Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014
Pesquisa
A trajetória do câncer contada pela enfermeira: momentos de
revelação, adaptação e vivência da cura
Eveline Treméa Justino
1
Maria de Fátima Mantovani
2
Luciana Pulchaski Kalinke
2
Elis Martins Ulbrich
2
Ricardo Castanho Moreira
3
Leomar Abini
2
1 Universidade Federal do Paraná. Cascavel - PR - Brasil
2 Universidade Federal do Paraná. Curitiba - PR, Brasil
3 Universidade Federal do Paraná. Bandeirantes - PR, Brasil
Recebido em 22/10/2012
Reapresentado em 16/05/2013
Aprovado em 22/05/2013
Autor correspondente:
Elis Martins Ulbrich
E-mail:
lilaulbrich@yahoo.com.br
RESUMO
O objetivo deste estudo foi descrever a trajetória de pessoas com câncer colorretal
do diagnóstico ao fim da quimioterapia.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa desenvolvida em uma clínica de oncologia de Curitiba/Paraná.
A coleta dos dados ocorreu mediante entrevista narrativa por meio da técnica
relatos de vida, de janeiro a maio/2011, com dez participantes adultos de 35 a 60
anos.
RESULTADOS:
Evidenciaram-se três categorias: revelação, adaptação e vivência da cura. Nestas
observou-se o abandono de hábitos inadequados e preocupação com a famíliadiante do
diagnóstico recebido. Contudo, ao inserir a doença na sua rotina diária foram
necessárias adaptações para enfrentar as dificuldades diante do tratamento, mas,
após o término deste, muitos sujeitos sentiram-se bem para retornar a sua função
profissional, sendo esta correlacionada à sensação de autonomia que lhes era comum
antes da doença.
CONCLUSÃO:
Verificou-se que os relatos de vida possibilitaram conhecer os cuidados, a
vivência e os sentimentos dos participantes na tentativa de encarar positivamente
a trajetória do câncer.
Palavras-chave: Enfermagem oncológica; Neoplasias colorretais; Quimioterapia; Saúde do adulto.
INTRODUÇÃO
De modo geral, os indivíduos de todo mundo são atingidos por doença crônica, que pode causar alterações nas suas vidas e na de seus familiares de maneiras diversas, nos diferentes tempos do adoecimento, do diagnóstico ao tratamento e reabilitação.
Entre as doenças crônicas, o câncer configura-se como um problema de saúde pública e pode ser definido como um conjunto de mais de 100 doenças, incluindo tumores malignos de diferentes localizações. É considerado, desde 2003, importante causa de morte no Brasil. A estimativa para o ano de 2012, válida também para o ano de 2013, aponta a ocorrência de aproximadamente 385 mil casos novos, excluindo os casos de pele não melanoma, reforçando a magnitude do problema no país1.
Neste trabalho, o enfoque principal será o câncer colorretal, tumor maligno que acomete o cólon e o reto, considerado o mais frequente do tubo digestivo. Epidemiologicamente, este tipo de câncer configura-se como o terceiro mais comum no mundo em ambos os sexos. No Brasil, para o ano de 2012, o número de casos novos foi estimado em 14.180 em homens e 15.960 em mulheres, com destaque para as regiões sul e sudeste, que apresentam este tipo de câncer como o segundo mais frequente nas mulheres e o terceiro nos homens, sem considerar o câncer de pele não melanoma1.
No estado do Paraná, em 2012, o coeficiente de prevalência de câncer colorretal foi estimado em 17,26/100.000 mulheres e 16,37/100.000 para os homens1. Em países desenvolvidos, a sobrevida média global em 5 anos se encontra em torno de 55% e nos países em desenvolvimento, em 40%2.
Dentre os tratamentos utilizados, o quimioterápico, devido a sua complexidade e pelo anseio que provoca nos pacientes e seus familiares,é um assunto constantemente abordado nas pesquisas. Os efeitos colaterais, a alteração da rotina de vida, da autoestima, da autoimagem, são temores associados a essa terapêutica medicamentosa. Por esses e outros motivos, pacientes oncológicos merecem uma atenção especializada e centrada em suas necessidades biopsicossociais e são, portanto, a fonte de informações sobre suas percepções e sentimentos relacionados com a doença e ao seu cuidado.
Assim como o estigma da mutilação, as mudanças percebidas no corpo interrompem a vida dos portadores de câncer e cada um interpreta estas alterações segundo seus conhecimentos e experiências de vida3. O sentido social da doença usualmente reflete a associação do câncer a doença fatal, indecorosa e comumente considerada como sinônimo de morte, marginalizando e cultivando sentimentos negativos em relação à doença4. Não obstante, estar com câncer traz consigo, além da certeza de muito sofrimento, uma aproximação concreta da morte5.
O doente vivencia uma avalanche de alterações físicas, fisiológicas, emocionais, sociais, culturais, psicológicas, espirituais,e este impacto gera sentimentos como medo, ansiedade, angústia, dúvidas e raiva6. A vivência de um câncer é considerada um dos momentos mais críticos da vida de uma pessoa, por remeter a análise e reflexão da própria biografia, cujos significados foram construídos ao longo das suas experiências3. Desta maneira, o diagnóstico de câncer e todas as suas consequências rompem o equilíbrio do indivíduo e de sua família.
Tais mudanças são desencadeadas pela própria doença e seus tratamentos, como incisões cirúrgicas, drenos, ostomia, efeitos da radioterapia e da quimioterapia antineoplásica. A alteração da imagemcorporal, do funcionamento do organismo, as modificações na alimentação e as novas adaptações requeridas pelo câncer de intestino tornam essa população uma importante fonte de informações sobre a maneira como realizam seu cuidado.
Com relação ao tratamento do câncer colorretal, este varia de acordo com o tamanho, localização e extensão do tumor, além da condição de saúde do paciente. Pode ser cirúrgico, quimioterápico ou radioterápico, e,ainda, a combinação de mais de uma forma de tratamento.
Mediante todas as alterações que o câncer e o tratamento acarretam no paciente e sua família, os dados epidemiológicos e as projeções de seu comportamento na população, com destaque ao câncer colorretal, justifica a continuação de estudos com ênfase para a escuta das necessidades e incertezas vivenciadas por eles em busca de restabelecer sua saúde, assim como disponibiliza recursos para o aumento da qualidade da assistência, auxilia o enfermeiro a encontrar melhores formas de abordar esse indivíduo com intervenções, que venham a melhorar a relação com si próprio e ajudá-lo a se reinserir na sociedade7.
Diante do exposto, percebe-se um aspecto pouco contemplado no processo de cuidado da pessoa com câncer colorretal, e que a enfermagem precisa ir além do orientar seus pacientes perante a descoberta de uma doença eacompanhar como os indivíduos estão incorporando as novas informações recebidas e adaptando-as à sua vida.
Em razão da gravidade do tratamento quimioterápico, o tema aqui tratado interessa a diferentes profissionais da área da saúde, principalmente ao enfermeiro, que irá acompanhar e orientar durante todo o percurso do tratamento e reabilitação. Desta forma, estabeleceu-se o seguinte objetivo: descrever a trajetória de pessoas com câncer colorretal do diagnóstico ao fim da quimioterapia.
METODOLOGIA
Pesquisa com abordagem qualitativa que utilizou como método de coleta e análise de dados o relato de vida,que é a descrição aproximada da história realmente vivida, tanto objetiva quanto subjetivamente8. Esta técnica utiliza a entrevista narrativa como forma de obtenção dos relatos.
Os dados foram coletados de janeiro, após a aprovação do comitê de ética,a maio de 2011, quando houve convergência dos discursos, em uma clínica privada de oncologia especializada em tratamento do câncer, situada na cidade de Curitiba, Paraná. Fizeram parte deste estudo 10 adultos, de ambos os sexos, que se candidataram voluntariamente após serem informados sobre a realização da pesquisa e por estarem de acordo com os critérios de inclusão: diagnóstico de câncer colorretal; com doença localizada, sem disseminação para outras regiões ou estruturas anatômicas; ter concluído o tratamento com quimioterapia antineoplásica na referida instituição, em período superior a 3 meses; ter idade superior a18 anos e inferior a 60 anos; poder se comunicar verbalmente e sentir-se em boas condições clínicas.
Os participantes foram seis homens e quatro mulheres, com idade entre 35 e 60 anos, sete com terceiro grau completo, sendo um deles com pós-graduação stricto-sensu (doutorado) e o restante com segundo grau completo. Sete deles eram casados, dois solteiros e um divorciado, com média de dois filhos por participante.
As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade, de preferência no mesmo dia em que tivesse uma consulta médica ou com outro profissional, favorecendo o comparecimento do participante, sem interferir nas suas rotinas e compromissos. Os relatos foram gravados e transcritos, e retornaram aos participantes que puderam alterar, incluirou restringir a utilização de qualquer informação.
Aprovada a transcrição, o material foi organizado em forma de narrativa, com ordenamento dos fatos de acordo com a sequencia temporal dos acontecimentos, e foi inserida a complementação das informações docaderno de campo no decorrer das transcrições entre parênteses.
O passo seguinte foi a realização de leituras consecutivas, com a finalidade de identificar temas recorrentes, que foram destacados para levar à criação dos núcleos temáticos das informações8. Foram encontrados três núcleos temáticos, a saber: revelação, adaptação e vivência da cura.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de ética sob o registro número 1019.144.10.09, e os princípios éticos da Resolução 196/96 foram respeitados. Para a apresentação dos dados, os participantes não foram identificados, estes se encontram codificados como participante um (P1), dois (P2), e assim por diante.
RESULTADOS
A análise das entrevistas evidenciou que os relatos de vida dos participantes com câncer de intestino expõem uma trajetória de revelação-adaptação-vivência da cura.
Revelação
A vida antes do câncer para os entrevistados era caracterizada com negligência acerca do seu corpo, sua saúde física e mental. A falta de cuidados ou a aproximação de fatores nocivos ao organismo foram aspectos abordados pelos participantes.
Antes de descobrir o câncer de intestino eu levava a vida toda desregrada [...]. Eu bebia antes de descobrir o câncer [...]. Antes eu fumava uma carteira por dia, agora estou fumando em média oito cigarros por dia, às vezes dez [...]. Eu não tinha horário para comer, era de madrugada, era de manhã [...]. E eu comia de tudo, o que viesse, tudo que eu gostava, quando eu não gostava também não comia (P2).
Por outro lado, houve aqueles que expressaram já adotar práticas de cuidado para promoção e recuperação da saúde, influenciadas por doenças pregressas, como observado no relato abaixo.
Eu sempre tive uma saúde muito boa. Eu não bebo, não fumo, não tenho hábitos de vida noturna que fosse de ficar altas horas por aí. [...] Já fui revascularizado há seis anos [...]. Então você já tem aquele hábito de cuidar, mais ainda do que já cuidava (P3).
O diagnóstico de câncer nem sempre é simples e rápido, pois frequentemente, os indivíduos encontram alguma justificativa para postergar a procura do médico, seja pela esperança de que a alteração percebida não seja uma doença ou por acreditarem que aquele sinal ou sintoma desaparecerá espontaneamente sem necessidade de avaliação profissional. Este comportamento foi apreendido no relato do participante P7:
Entre os sintomas mais fortes e o diagnóstico levou três a quatro meses. Porque eu fiquei me enrolando para ir ao médico, ficava tomando analgésico para cólica, para poder trabalhar. Esse tempo durou uns três aquatro meses. Fui ao médico, ele pediu a colonoscopia, no mesmo dia de fazer a colonoscopia eu fui para a cirurgia de emergência. Estava com a barriga veia que era uma bola [aponta para a barriga, simulando o tamanho e ri] (P7).
O estigma que envolve o câncer e as preconcepções criadas por experiências observadas durante a vida resultam em temor, medo da doença e da morte. Como evidenciado no relato a seguir:
Pensava no que vale a vida, e agora, essa doença, como que vai ser, câncer meu Deus do céu. [...] Eu tinha medo, é medo da morte, como que vai ser agora e puxa, mas porque? Se eu sempre tive uma vida saudável, cuidei e me acontece uma coisa dessas. Mas depois passou, hoje estou cem por cento (P3).
Ao envolver a família e as demais pessoas de seu convívio nesta nova etapa de sua vida, o sujeito pode desencadear sentimentos de preocupação com seus entes, como percebido na fala de P6:
Eu tenho uma preocupação maior por ter vivido essa experiência, se eu soubesse disso antes, na minha época de novinha, meus 30 anos, alguém tivesse tido, eu teria pedido para o médico fazer [...]. Eu já disse para minha filha, quando chegar aos 40 tem que fazer. A gente fica preocupada, até com os amigos. Acho que não precisa ser só com a família [...] (P6).
O processo de revelação da doença foi associado pelos participantes aoscuidados que tinham consigo mesmo no passado, àpercepção da doença em seu corpo, à busca empreendida pelo diagnóstico e aossentimentos relacionados com a descoberta. Dessa forma, eles vivenciaram o desafio de adaptaçãoconstante à nova situação existencial, ao tratamento e suas repercussões.
Adaptação
Na maioria das vezes, o tratamento é demorado, exaustivo e doloroso, acarreta em mudanças no estilo de vida. Além de, em um primeiro momento, desencadear sentimento de tristeza e impotência, em relação à doença e ao tratamento. Como percebido nos relatos a seguir:
O que aconteceu [durante a quimioterapia] foi que eu fiquei um pouco depressivo, fiquei bem depressivo, mas passou e eu vi que estava cadavez melhor, que eu estava melhorando bem [Emoção! Enche os olhos de lágrima, embaraça a voz]. [...] via que a coisa estava evoluindo bem, eu ficava melhor, eu ficava bem (P3).
O medo do desconhecido é inevitável,e o enfrentamento do primeiro contato é algo que fortalece o ser, demonstrando que esse obstáculo pode ser ultrapassado de uma forma menos torturante. O impacto inicial causado pela necessidade de ser submetido a um tratamento tido como agressivo aos poucos vai sendo substituído pela expectativa do alcance da cura, como relata P3.
A quimioterapia,eu sempre a vi como uma terapia. [...] entendi que era um benefício e que era necessário (P1).
[...] A pessoa se deprime, só de saber a pessoa já se deprime. Eu sempre cuidei para não me deprimir. Sempre procurei pensar positivo [...] E certeza que eu ia sair curado, e foi o que aconteceu [..] (P2).
Os participantes desta pesquisa foram ao encontro de meios que pudessem amenizar suas dores e desconfortos. Houve relatos da utilização do chá de graviola, geleia real e método Canova associada à terapêutica médica tradicional.
Uma época até minha cunhada ela disse toma que está todo mundo falando. Era em cápsula e eu tomei, depois eu parei. [...] Também não senti nada tomando, acho que é mais o psicológico mesmo, do tipo "olha eu estou armada" [...] (P4).
Percebe-se, mediante declaração de P4, que a associação de terapias alternativas ao tratamento convencional, influenciadapor vínculos afetivos, pode até proporcionar uma melhora dos sintomas físicos. Principalmente preenche uma lacuna ocasionada pela instabilidade emocional, pois, no doente oncológico, as variações emocionais são mais intensas, visto o conjunto de novos fatores adicionados a sua rotina de vida.
Eu me sentia muito irritado, sem paciência, tanto é que estraguei amizades por intolerância, eu fiquei muito intolerante. Isso eu percebi depois da quimioterapia, hoje ainda sou um pouco. Eu não aguento as pessoas, não aguento coisas (P8).
O tratamento proporcionou novos sentidos e condutas nas vidas dos pacientes. Dificilmente sua rotina voltará a ser como antes, então se inicia uma nova etapa de cuidados, seguimento ou acompanhamento, que foi denominada vivência da cura.
Vivência da Cura
Durante esse período percebe-se que uma das preocupações de maior impacto é o medo da recidiva da doença, como declarado por P9.
Sou motorista de caminhão, continuo trabalhando, até durante a quimioterapia eu trabalhei [...] não é bom ter atividade tumultuada, isso influi muito o estresse no sistema nervoso. É por isso que eu tenho medo, por isso que eu vou parar. Não vale a pena ficar se estressando, tenho que me cuidar mais agora. Porque se voltar, muitos dizem que se voltar agora volta para matar mesmo (P9).
É notório que o medo permanece constante na vida dessas pessoas, como relato a seguir de P8, que a cada realização dos exames de acompanhamento manifesta física e emocionalmente reações de ansiedade e pavor diante dos resultados e do futuro incerto que a vida lhe reserva.
[...] você fica muito sensível depois de uma quimioterapia, fica se sentindo mal, fica com mais panicozinhos, não precisa procurar um psiquiatra necessariamente, mas você fica assim. [...] de seis em seis meses eu tenho que fazer a colonoscopia. [...] Então, quando vai chegando perto, que eu olho na agenda, já vai me dando um nervoso, eu fico sem apetite [...]. É uma coisa assim complicada, mas você tem que ter estrutura, respirar fundo e fazer (P8).
Não só na lembrança ficarão marcas da experiência do câncer, mas fisicamente, por algum tempo indícios de que a turbulência um dia se fez presente:
Ainda continuo com o cateter, faço manutenção de 30 em 30 dias [...]. Não me atrapalha de forma nenhuma. Eu sei que tenho que cuidar, não bater alguma coisa nele. Como eu não estou jogando bola mesmo, nãoestou fazendo nada, então não incomoda (P1).
A restrição física ainda é evidenciada por P1,que admite não ter a mesma disposição de antes e assume, com responsabilidade, os cuidados que precisa ter nessa fase do viver sem a doença.
Com algumas exceções, muitos sujeitos se sentem bem para retornar a sua função profissional após a conclusão do tratamento e essa pode ser uma das formas para voltar à sua rotina e sentir novamente a autonomia que lhe era comum antes da doença. Como relatado por P3.
Parei de trabalhar aproximadamente um ano, fiquei dispensado. Voltei a trabalhar, já tenho tempo para me aposentar, mas não gostaria [...] meu serviço é na rua, estou aqui, estou lá. [...] Não estou preso em quatro paredes ali, horário, ponto, que pudessem me levar ao estresse de trabalho. Por isso que ainda estou mantendo (P3).
Cabe salientar que o término do tratamento é uma vitória para o sujeito e para aqueles que percorreram esse árduo caminho ao lado dele. O prazer de comemorar o final dessa fase evidencia o otimismo por ter enfrentado e vencido um câncer, aproveitando o momento atual, sabendo que ele delineará nossas condições futuras, como a declaração a seguir:
A única coisa que eu fiz, quando eu terminei a rotina, que eu terminei a quimioterapia, foi saí tomar uma boa dose de vinho junto com a minha esposa, um jantar, para poder comemorar que tinha acabado a quimioterapia. Mas a vida seguiu igual, a vida segue normal. Veja bem, eu encarei o câncer e a quimioterapia e tudo que poderá vir pela frente como uma situação natural da vida (P1).
DISCUSSÃO
No relato de P2 percebe-se pouca importância atribuída à sua saúde. Háo reconhecimento dos fatores nocivos, porém a sensação de prazer e liberdade desencadeada por esses hábitos obscurecem a acuidade com a vida.
Verificou-se em um estudo9 uma conduta similar, no qual os participantes demonstravam reconhecer, assim como aqui, os fatores de risco para todo tipo de agravo a saúde, porém, não o suficiente para a mudança de atitude, mas ele é fundamental, além de ser o caminho para uma sociedade mais saudável.
Para quem já se submeteu a um tratamento para uma doença grave e conhece as rotinas que envolvem esse caminho, provavelmente pode aceitar e enfrentar de forma mais amena e tranquila um novo tratamento10. Este aspecto foi observado nos depoimentos de P3 submetido anteriormente a revascularização cardíaca, situação que também apresenta o estigma da morte. Apesar de serem duas doenças distintas, ambas estão arraigadas com apelo de sofrimento, porém a experiência prévia de uma doença grave pode levar a uma modificação no enfrentamento do tratamento.
Cada indivíduo pode apresentar reações divergentes ao encarar o tratamento antineoplásico. A negatividade é um sentimento comum nessa situação e deve ser trabalhada para que o êxito do tratamento seja atingido com menos dificuldades. Por outro lado, quando o otimismo prevalece e é perpetuado, pode ser considerado um forte aliado, principalmente do paciente, mas também da equipe de saúde que o acompanha e de sua família.
Sabe-se que cada indivíduo enfrenta as mudanças ocasionadas pela doença e terapêutica de forma única e que cada um constrói suas próprias estratégias para superar estes processos. Com o passar do tempo, observa-se que os sentimentos se modificam de negativos para positivos, tanto com relação ao tratamento como à própria doença11.
Atualmente as terapias complementares fazem parte da rotina de muitos indivíduos, adoecidos ou não. Talvez uma das justificativas pela busca constante dessas terapias seja a limitação em que a medicina tradicional encontra em tratar algumas injúrias e/ou solucionar sintomas decorrentes delas; sabe-se que a influência de familiares e amigos leva à busca por métodos alternativos.
Fato semelhante foi identificado em uma pesquisa desenvolvida no Rio Grande do Sul, que descreve essa busca como "itinerário do cuidado", em que a primeira opção de conforto e solução para a dor se dá no domicílio junto a familiares próximos com o uso de chás ou remédios caseiros. Caso a dor não seja aliviada ocorre a procura por recursos institucionalizados de saúde, na alternativa do médico12.
Em relação ao convívio social, que sofreu alteração devido ao estado emocional de P8, Silva13 menciona que a circunstância de estar com câncer suscita revolta contra si mesmo, contra os outros, contra o mundo e inveja daqueles que mantêm a saúde. Além disso, as mudanças ocorridas na vida social são decorrentes dos efeitos colaterais e das fantasias que o paciente tem em relação ao que os amigos e a sociedade possam pensar ou dizer a seu respeito11.
A vivência da cura foi um momento de reflexão acerca do adoecimento e da cura; assim, para P9, o estresse, além de contribuir para o desenvolvimento do câncer, poderia também contribuir para a recidiva do tumor. A concepção do câncer como fantasma é identificado pelos pacientes e também pelos familiares, visto que qualquer alteração no corpo é associada ao câncer e motivo para relembrar as experiências vividas14. Enfatizam também que a ansiedade está mais presente nos primeiros anos pós-tratamento, e que, com o passar do tempo, essa sensação gradativamente vai diminuindo, até se tornar uma rotina submeter-se anualmente aos exames14.
Para P9, o estresse foi um dos motivos desencadeadores do câncer. Percebe queexiste uma forte associação entre estresse laboral e o câncer colorretal, e que por esse motivo existe a intenção de parar de trabalhar. Observaque o medo da recidiva está presente na sua vida, reforçado pelo pensamento de que a pessoa nunca pode dizer que está curada. No mesmo sentido, foi identificado em um estudo15 que os pacientes buscam informações a respeito de sua doença, independente da classe social, e sabem que no contexto da oncologia a cura do câncer não pode ser afirmada por ninguém, perpetuando, assim, o estigma de doença fatal, mediante a possibilidade de recidiva.
Passado o pesadelo, a importância fundamental na vida desses sujeitos é sentir-se e viver como vivia antes. Percebe-se, um grande empenho em manter-se e manter sua casa, seu trabalho, suas atividades, sua rotina, como era antes da doença. O significado de vida normal está diretamente relacionado com torná-la o mais parecida possível com a anterior16. Ficam claros no relato de P1 e P3 a vontade e o anseio pela volta à rotina, a reincorporação da vida normal.
Há a percepção da mudança de valores dos sujeitos após a conclusão da quimioterapia, pois, na conquista do retorno às atividades rotineiras, sentem-se felizes e esperançosos quando podem equilibrar novamente sua vida financeira por meio do trabalho e por recuperar seu papel na família15. Como relata P1, ao sair para comemorar o final da quimioterapia antineoplásica com sua esposa,demonstrou o retorno à sua vida social, além de reafirmar seu papel familiar e sua relação pessoal.
Enfatiza-se que a limitação aparente desta pesquisa está na condição educacional diferenciada dos participantes, pois estes têm um entendimento distinto dos acontecimentos de suas vidas. Assim, nós profissionais da enfermagem precisamos entender e estudar outras realidades, não somente do serviço público como também privado, para prestarmos cuidados de qualidade para todos dentro de suas particularidades. Acrescenta-se que uma mudança cultural da percepção sobre o câncer contribuirá para a diminuição do impacto causado na vida do indivíduo e sua família, e o câncer deixará de ser associado apenas ao sentimento de sofrimento e morte, passando para uma doença que pode ser tratada, controlada e curada, em muitos casos17.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O enfoque principal desse estudo foi descrevera trajetória dos sujeitos do diagnóstico de câncer colorretal ao término da quimioterapia, e verificou-se que desde a revelação até a "cura" o percurso foi pautado pela tentativa de manter a normalidade e encarar positivamente os efeitos do tratamento.
Embora ainda persista um estigma de morte relacionado ao câncer neste estudo, esta não foi a tônica dos participantes. Assim, pode-se notar que não somente as alterações físicas e emocionais e o impacto causado pela quimioterapia antineoplásica foram destaques desse estudo, mas também a resposta positiva, como o bem-estar, fato que demonstra a aceitação por parte da comunidade dos novos avanços do tratamento aos doentes com problemas oncológicos.
Acredita-se que estudos relativos à percepção da qualidade de vida dos diferentes tipos de câncer poderão subsidiar as formas de cuidar destes pacientes,reforçando aspectos que eles considerem importantes nos seus cuidados diante doavanço tecnológico do tratamento do câncer e a perspectiva do aumento da sobrevida com qualidade.
REFERÊNCIAS