Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014
Pesquisa
Adesão à terapia antirretroviral e suas representações para pessoas vivendo com HIV/AIDS
Eduardo Pereira Paschoal
1
Caren Camargo do Espírito Santo
1
Antônio Marcos Tosoli Gomes
1
Érick Igor dos Santos
1
Denize Cristina de Oliveira
1
Ana Paula Munhen de Pontes
1
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Recebido em 03/03/2013
Reapresentado em 30/09/2013
Aprovado em 02/10/2013
Autor correspondente:
Eduardo Pereira Paschoal
E-mail:
eduardoppaschoal@gmail.com
RESUMO
Neste estudo objetivou-se analisar o processo de adesão à terapia antirretroviral
e
suas representações sociais para pessoas que vivem com HIV/AIDS. Trata-se de um
estudo de natureza qualitativa e descritiva, elaborado à luz da Teoria das
Representações Sociais. Participaram 30 pessoas em tratamento ambulatorial para
HIV/AIDS em um hospital público do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados por meio
de entrevistas semiestruturadas e submetidos à análise de conteúdo temática.
Observa-se que os eventos adversos decorrentes da terapia, o medo de ter a
soropositividade revelada e o fato de não se perceber doente implicam o abandono da
terapia, e que o amparo profissional e familiar é essencial para a que a pessoa
prossiga com a terapia. Conclui-se que o processo de adesão evidencia um processo
de
mudanças simbólicas, do início do tratamento até sua estabilização, expresso em
atitudes e imagens da doença, do vírus e dos medicamentos.
Palavras-chave: Adesão à medicação; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Enfermagem.
INTRODUÇÃO
Para análise do processo de adesão à terapia antirretroviral considerando a construção psicossocial da epidemia por meio das representações sociais de pacientes com HIV/AIDS faz-se necessário um breve resgate histórico. Apesar dos relatos observados em 1975, o primeiro caso de depressão imunológica aguda foi descrito apenas em 1981 pelo CDC (Centers for Disease Control) nos Estados Unidos, sendo identificado em 1982 seu agente etiológico, o vírus da imunodeficiência adquirida (HIV)1. A princípio denominada WOG, sigla para "Wrath of God" ou fúria de Deus em português, a síndrome da imunodeficiência adquirida foi alvo de estigmatização e preconceito pelo fato de os primeiros casos terem sido identificados em grupos homossexuais masculinos, os quais tinham seu comportamento sexual julgado e considerado promíscuo pela sociedade1.
No Brasil estudos mostram que no período de 1980 a junho de 2011, foram registrados um total de 608.230 casos de AIDS. De 1980 a 2010 ocorreram 241.469 óbitos, tendo como causa básica a AIDS2. Ao longo dessas três décadas foram inúmeras as mudanças referentes à percepção da síndrome, principalmente a partir de 1996 com aintrodução da terapia antirretroviral (ARV) combinada. A terapia levou a uma expressiva redução na morbimortalidade relacionada à AIDS, passando a ser caracterizada como evolutiva e crônica, superando a visão do início da epidemia que a caracterizava como uma doença que trazia a morte como uma certeza, em um tempo breve3.
Neste aspecto vale ressaltar que o Brasil foi um dos primeiros países a implementar a distribuição universal de medicamentos3. Os resultados mostraram-se exitosos a partir da adoção do conceito da HAART (Highly Active Antiretroviral Therapy - Terapia Antirretroviral Altamente Eficaz), que é a combinação dos inibidores de protease e transcriptase reversa, de forma a ser extremamente efetiva na redução da carga viral plasmática de RNA-HIV-1 para níveis indetectáveis4.
É indiscutível o fato de que a HAART, embora não represente a cura, permite tornar mais lento o curso da doença, ao passo que prolonga e promove uma melhor qualidade de vida ao paciente. No entanto, estudos mostram que a não adesão ocorre em algum grau, tanto em países pobres como ricos, e a taxa média é de 50%4. A não adesão ou a adesão inadequada são as causas mais frequentes para a falha do tratamento, pois o uso dos medicamentos em doses inadequadas ou de forma irregular acelera o processo de seleção de cepas virais resistentes, ameaçando a efetividade do tratamento no plano individual e levando a disseminação do vírus de resistência, no plano coletivo5.
A não adesão é apontada pela literatura como um evento determinado por diversos fatores, que podem ser agrupados em: fatores relacionados à pessoa sob tratamento, à doença, ao tratamento, aos serviços de saúde e ao suporte social6. Dessa forma a adesão ao tratamento à terapia antirretroviral mostra-se como um processo complexo,evidenciando a necessidade de se compreender os fatores subjetivos intrínsecos à pessoa e ao seu grupo social envolvidos no processo de adesão, a fim de possibilitar a formação de uma real aliança terapêutica entre cliente e cuidador.
Por ser pouco compreendida, a adesão mostra-se, por vezes, como um duro processo, gerando desgaste tanto para o profissional de saúde quanto para a pessoa a ser cuidada,que, muitas vezes, opta por abandonar o tratamento por considerar este um caminho mais fácil e menos doloroso. Ao estudar o processo de adesão a partir das representações sociais das pessoas que convivem com HIV/AIDS, torna-se possível identificar a forma como o gerenciam em seu cotidiano e, assim, apontar possíveis aspectos que influenciam na vulnerabilidade associada a este processo.
Considerando-se o impacto biopsicossocial da síndrome, bem como da terapia antirretroviral, tem-se como objetivo analisar o processo de adesão à terapia antirretroviral e suas representações sociais para pessoas que vivem com HIV/AIDS. Este estudo torna-se relevante por permitir a reflexão acerca dos aspectos psicossociais envolvidos neste processo, tornando possível a melhor compreensão dos eventos que levam à ruptura deste processo.
REFERENCIAL TEÓRICO
A AIDS pode ser compreendida como um fenômeno social possuidor de uma imensa carga estigmatizadora, na qual o doente ou portador do vírus vivencia duplamente o seu sofrimento. De um lado, percebemos o sofrimento físico de uma doença que, mesmo com os avanços da ciência, ainda não tem cura, enquanto do outro, vemos o sofrimento social causado pelo olhar excludente, pela intolerância, pelo medo e preconceito para com as pessoas que convivem com o vírus7. Dessa forma, a AIDS é percebida como uma doença que traz, além do preconceito, uma série de incertezas com respeito ao futuro.
Neste contexto, nota-se a inserção da terapia antirretroviral, a partir de 1996, que trouxe consigo uma esperança de prolongar a vida, dando à doença um caráter evolutivo crônico, potencialmente controlado. No entanto, a adesão ao tratamento destaca-se entre os maiores desafios da atenção às pessoas vivendo com HIV/AIDS, uma vez que requer mudanças comportamentais, dietéticas, o uso de diversos medicamentos por toda a vida, além da necessidade, por parte dos serviços de saúde, de novos arranjos e oferta de atividades específicas visando promover e assegurar a adesão7.
A adesão ao tratamento é um processo colaborativo que facilita a aceitação e a integração de determinado regime terapêutico no cotidiano das pessoas em tratamento, pressupondo sua participação nas decisões sobre o mesmo8. Consiste em um processo de negociação no qual se busca a adequação aos hábitos e necessidades individuais e que visa fortalecer a autonomia para o autocuidado, transcendendo, assim, a simples ingestão de medicamentos9.
No que se refere à teoria das representações sociais, esta tem sido muito utilizada para explicar a problemática psicossocial da AIDS, uma vez que permite compreender o sentido atribuído para um fenômeno como o adoecimento, orientando as condutas dos sujeitos a partir das representações que construíram sobre a doença. Isso acontece porque essas representações sociais se inscrevem em uma experiência humana que apresenta uma série de significados10. Ou seja, por meio do estudo das representações torna-se possível compreender a visão de mundo que a pessoa soropositiva constrói a partir da sua inserção em grupos sociais, além de melhor entender a tomada de posição e os comportamentos adotados diante do processo de adesão, o que viabiliza a formação de um elo consistente entre profissional e usuário.
Esse elo, quando estabelecido entre os profissionais de saúde envolvidos na assistência e as pessoas que vivem com HIV/AIDS é de suma importância para o processo de adesão, uma vez que a consolidação da parceria entre o profissional e o paciente no ouvir, sentir e pensar juntos permite a criação de soluções para a melhoria da adesão e a superação das inúmeras barreiras que se colocam no cotidiano8.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, do tipo descritivo, elaborado à luz da teoria das representações sociais na perspectiva da Psicologia Social, utilizando-se a abordagem processual, na qual foram explorados os conteúdos e os processos de constituição das representações do processo de adesão à terapia antirretroviral.
As representações sociais constituem-se como uma forma de perceber e dar sentido ao que é estranho ou novo. São fenômenos complexos que estão sempre ativos e em ação na vida social. Em sua riqueza fenomênica assinalam-se elementos diversos na sua constituição, os quais são,por vezes, estudados de maneira isolada: elementos informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões, imagens etc. Pode-se observar as representações sociais no dia-a-dia uma vez que elas circulam nos discursos, são carregadas pelas palavras, veiculadas nas mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas nas condutas e agenciamentos materiais ou espaciais11.
Para a realização deste estudo foram entrevistadas 30 pessoas que convivem com HIV/AIDS, no período de abril a maio de 2009. A inclusão dos participantes se deu por meiode critérios preestabelecidos: ser usuário do serviço de assistência especializada (SAE) estudado, maior de 18 anos, de ambos os sexos, em terapia com antirretrovirais e que tenha recebido o diagnóstico em um tempo superior a 6 meses, devido ao fator tempo configurar-se como um determinante na elaboração das representações sociais. O campo de estudo foi um hospital público municipal na cidade do Rio de Janeiro, especializado e referenciado para tratamento de pessoas com HIV/AIDS, sendo considerado pelo Ministério da Saúde como um SAE.
Para a coleta de dados foi utilizada entrevista semiestruturada orientada por um roteiro temático, pois esta estimula os participantes da pesquisa a falarem mais livremente, permitindo que eles sejam os protagonistas neste cenário e possam revelar seus modos de pensar, valores, sentimentos, assim como os fatores objetivos e subjetivos que motivam ou dificultam a adesão à terapia. Para tal foram levantadas questões referentes à como se deu o início da terapia, quem e o que mais ajudou durante esse processo e quais as atitudes tomadas diante das dificuldades impostas pela terapia.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde (CEP SMS-RJ) sob o protocolo 200/08. As entrevistas foram gravadas mediante a autorização dos entrevistados e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido conforme a resolução 196/96. Vale ressaltar que a pesquisa contou com voluntários que aceitaram participar após serem esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e assegurados sobre o caráter confidencial das suas falas.
Após a coleta foram realizadas as transcrições das entrevistas, a fim de possibilitar uma análise profunda de cada fala e dos seus elementos transversais, procurando identificar aspectos comuns aos pacientes que interferem no processo de adesão. Para tal, utilizou-se a análise de conteúdo temática-categorial12,13. A técnica de análise de conteúdo permite o acesso de diversos conteúdos explícitos ou não presentes em um texto, mas para isso pressupõe algumas etapas, como: pré-análise, exploração do material ou codificação, tratamento dos resultados, inferência e interpretação12. Para a realização de tal técnica utilizou-se uma sistematização13 na qual, a princípio, realizou-se uma leitura flutuante exaustiva do texto, a fim de se permitir se impressionar pelos elementos presentes no texto, mas sem apegar-se a elementos específicos na leitura. Após a leitura foram definidos os objetivos da análise e algumas hipóteses sobre o objeto analisado. Deu-se início, então, à pré-análise em que foram identificadas as unidades de registro (UR) definidas como recortes de sentidos expressos no texto por meio de frases completas ou parciais e/ou parágrafos, assim como personagens e acontecimentos que são elementos factuais importantes para o objeto em estudo.
Os depoimentos dos participantes foram identificados no texto de acordo com o número dado ao sujeito durante a entrevista (sujeito 01, sujeito 02, etc.).
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Dos 30 entrevistados, 76,7% concentram-se na faixa etária de 30 a 49 anos e,na sua maioria, são casados, vivem com companheiro ou em união estável (50%). Assim, a maior parte vive com a família (76,7%) e tem escolaridade até o ensino médio completo (36,7%), ganhando até quatro salários mínimos (n = 23 ou 76,6%). No estudo predominaram pessoas que convivem com o HIV há menos de 11 anos (69,6%), heterossexuais (63,3%), com predomínio da religião católica (44%) seguida da evangélica (36%).
Quanto aos resultados da análise dos dados discursivos, obteve-se 380 UR e 36 unidades de significação. Essas unidades foram distribuídas em três categorias que representam 100% do corpus analisado. As três categorias foram nomeadas como: Fatores que dificultam o processo de adesão à terapia antirretroviral; Elementos facilitadores do processo de adesão à terapia antirretroviral; A mudança e a valorização davida no processo de adaptação aos medicamentos antirretrovirais. Para o presente texto abordou-se separadamente essas categorias, analisando-se cada uma delas e salientando a sua representatividade quantitativa.
Temas/unidades de significação | Nº UR/Tema | % UR/Tema | Categorias | Nº UR/Categoria | % UR/Categoria |
Quantidade de Comprimidos | 17 | 4,5 | Fatores que dificultam o processo de adesão à terapia antirretroviral | 186 | 48,9 |
Administração Injetável | 5 | 1,3 | |||
Frequência das medicações | 1 | 0,3 | |||
Dependência da medicação (obrigratoriedade) | 21 | 5,5 | |||
Efeitos adversos dificultam muito a adesão | 36 | 9,5 | |||
Falta de amor à vida, desinteresse, pensamentos suicidas. | 22 | 5,8 | |||
Tomam errado por desconhecimento | 3 | 0,8 | |||
Voltam a tomar a medicação quando adoecem, por medo da morte | 26 | 6,8 | |||
Constantes idas ao hospital para realização de exames | 2 | 0,5 | |||
Acreditam que a terapia oferece riscos, pode matar | 2 | 0,5 | |||
Não tomam ou tomam de forma inadequada quando querem fugir da rotina | 4 | 1,1 | |||
Precisam esconder da família, amigos ou colegas de trabalho | 16 | 4,2 | |||
Não aceitam o tratamento por negação, rejeição | 7 | 1,8 | |||
Descaso, preguiça, desleixo com o tratamento | 6 | 1,6 | |||
O tratamento não corresponde às expectativas | 2 | 0,5 | |||
Não aderem por falta de informação (ignorância) | 4 | 1,1 | |||
O início é doloroso, sofrido | 6 | 1,6 | |||
Desinteresse do profissional | 2 | 0,5 | |||
Param de tomar quando se sentem bem e curados | 4 | 1,1 | |||
Procuram tomar no horário certo | 19 | 5,0 | Elementos facilitadores do processo de adesão à terapia antirretroviral | 123 | 32,3 |
Distribuição gratuita | 4 | 1,1 | |||
Cuidado com a alimentação | 18 | 4,7 | |||
Apoio espiritual | 8 | 2,1 | |||
Apoio de familiares | 13 | 3,4 | |||
Apoio, orientação e interesse profissional | 37 | 9,7 | |||
Reconhecem palestras e cartazes como estratégias | 9 | 2,4 | |||
Conhecem ONGs e grupos de apoio, mas não frequentam por falta de tempo | 3 | 0,8 | |||
Buscam carinho, amor | 2 | 0,5 | |||
Procuram tomar os medicamentos corretamente para evitar complicações | 10 | 2,6 | |||
Não esconde | 7 | 1,8 | A mudança e a valorização da vida no processo de adaptação aos medicamentos antirretrovirais. | 71 | 18,6 |
Adaptação do medicamento à rotina diária | 10 | 2,6 | |||
Não tiveram dificuldades ou problemas durante a adaptação | 25 | 6,6 | |||
Após a adaptação tudo melhora | 11 | 2,9 | |||
Mudança de hábitos | 5 | 1,3 | |||
Desejo de prolongar a vida | 5 | 1,3 | |||
Apegam-se à vida, querem viver mais | 8 | 2,1 | |||
Total | 380 | 100 | 380 | 100 |
Categoria 1 - Fatores que dificultam o processo de adesão à terapia antirretroviral
Esta categoria, a maior da análise, comporta 186 UR e 19 unidades de significação, o que equivale a 48,9% do corpus de análise. Nela foram identificadosos motivos que levam o paciente a abandonar o tratamento ou a não aderir adequadamente. Os principais temas/unidades de significação que fizeram parte desta análise foram: efeitos adversos dificultam muito a adesão, voltam a tomar a medicação quando adoecem por medo da morte, precisam esconder da família, amigos e colegas de trabalho e param de tomar quando se sentem bem, acham que estão curados.
Dentro desta categoria encontrou-se uma atitude negativa presente na representação social da terapia antirretroviral expressa na dificuldade imposta pelos eventos adversos dos medicamentos antirretrovirais, o que torna o próprio tratamento aversivo, fazendo o seu abandono parecer uma alternativa mais fácil e aliviadora, conforme UR a seguir:
Às vezes, as pessoas, no caso de muitos, sofrem com os efeitos, então, às vezes, faz tão mal, tanto mal, que eles preferem deixar de tomar, às vezes, a pessoa fala: ah, já estou ruim mesmo, ruim eu fico (sujeito 21). Pelas reações. De vômito, de diarreia, de tontura, uma coisa, que se você não perseverar, você desiste. Que é bravo... (sujeito 07).
Além do vômito, diarreia, cefaleia e sonolência, há modificações corporais, como a lipodistrofia, como dificultadoras do processo de adesão e que interferem principalmente na autoestima das pessoas que convivem com o HIV/AIDS. Algumas alterações são atribuídas pelos sujeitos à quantidade de medicamentos que devem ser ingeridos, sendo este um fator dificultador, igualmente, conforme UR a seguir:
Não toma a medicação porque é diabético, porque dá lipodistrofia, vou ficar com a cara feia, o rosto feio e também os efeitos colaterais. Alguns efeitos colaterais são bizarros, realmente... (sujeito 21). Toda vez que venho buscar os remédios eu jogo todas as bulas no lixo, só levo as medicações, caixa tudo eu jogo fora porque se você ler e tiver conhecimento você vai ler e entender alguma coisa, porque o mesmo remédio que te faz bem ele vai acabar com os seus rins. Não é por maldade, é a quantidade de remédios... (sujeito 01).
A lipodistrofia, que expressa uma dimensão imagética da representação da terapia antirretroviral, traz um novo estigma em relação à doença, pois favorece a descoberta da condição de soropositividade por terceiros e impactam na autoimagem e na sexualidade, podendo influenciar a qualidade da adesão e levar ao abandono do tratamento8.
Observa-se, também, que tomar a medicação implica perceber-se ou sentir-se doente, o que leva a duas problemáticas: a primeira é o fato de o paciente só buscar ajuda quando adoece,e a segunda é que, após sentir-se bem ou "curado", abandona o tratamento novamente. Outro fator dificultador é a dependência da manutenção da vida ao medicamento, levando o cliente e sentir-se obrigado a tomar a medicação, já que não tomar equivale a morrer, conforme UR a seguir:
Quando a doença ataca... quando ela se manifesta e começa a sentir alguma coisa, aí vem procurar o médico... Quando tá bem some de novo... (sujeito 15). Só que quando indetectado, o que vai acontecer? Eu fiquei sem tomar o remédio, que, aliás, estimula. Então a gente tem que fazer nosso papel (sujeito 16). Tem que tomar, é obrigado a tomar. Tem que tomar, se não tomar morre (sujeito 01).
A introdução da terapia antirretroviral deu às pessoas com HIV/AIDS uma nova perspectiva, modificando o curso da doença e trazendo uma melhoria significativa na qualidade de vida, principalmente após a introdução do conceito de HAART, que consiste na combinação de diferentes antirretrovirais.
No entanto, a terapia está associada ao medo e a solidão por objetivar a situação de soropositividade, visto que, em muitos casos, os medicamentos são a única evidência de que a pessoa é soropositiva. A retirada dos rótulos ou o descarte dos frascos acaba por ser um recurso utilizado pelos clientes como uma forma de evitar a descoberta da soropositividade por terceiros8.
Neste sentido, os participantes deste estudo também revelam este medo da descoberta do diagnóstico e do isolamento social, perpassando pelas condições de transporte e de armazenamento dos medicamentos que exigem ser guardados em refrigeradores:
Quando chego em casa eu sou obrigada a tirar o rótulo do remédio, tudo que se refere à AIDS eu tiro, porque vão ler e vão perguntar. Meus filhos, então para eles não saberem,eu tiro os rótulos (sujeito 5). O medo de você ser descoberto, se é uma pessoa que não conta para os familiares, como é que você vai guardar os medicamentos na geladeira, se na sua casa ninguém sabe? Como é que você vai levar a medicação para o trabalho, se no trabalho ninguém sabe? Ou você vai mentir pra uma namorada ou um namorado, se você nunca disse? O medo da solidão é de ser... é ficar só. Acho que a pessoa não adere ao tratamento porque ela vai se expor, um dia pode cair um comprimido no chão, ou dar uma mancada e deixar, ou falar alguma coisa (sujeito 29).
Um componente importante da estrutura discursiva analisada quanto aos motivos da não adesão ao tratamento medicamentoso é a falta de vontade de viver e de sentido para a vida, bem como falta de amor próprio e o medo de não sobreviver. Esses elementos representacionais decorrem principalmente da dimensão imagética de morte presente na representação social da AIDS:
Não se gostar, porque se você está doente e tem que tomar o medicamento e que aquele medicamento vai prolongar a sua vida e você não quer tomar,é porque você não se gosta. Você quer se matar (sujeito 28). Eu acho que éporque essas pessoas têm medo, porque elas não acreditam que vão sobreviver, acham que a vida delas acabou, então preferem que acabe mais rápido (sujeito 28).
Isso é corroborado por outro estudo que aponta que a representação de morte implica uma atitude negativa perante a doença, à medida que as pessoas com HIV/AIDS consideram a morte como algo inevitável e deixam de encontrar um sentido para a adesão medicamentosa14.
Torna-se evidente nesta categoria que o paciente não pode e não deve ser o único agente do processo de adesão, visto que existe uma rede social, como família, amigos e profissionais,que influenciam na decisão de tomar ou não a medicação. Enfatiza-se, assim, a necessidade do acolhimento da pessoa com HIV/AIDS por parte da equipe de saúde, assim como do desenvolvimento de uma ação conjunta entre a equipe profissional e a pessoa cuidada, dedicando atenção especial aos efeitos adversos e procurando traçar estratégias de modo a melhorar a adesão.
Categoria 2 - Elementos facilitadores do processo de adesão à terapia antirretroviral
Esta categoria é formada por 123 UR e 8 unidades de significação, o equivalente a 32,3% dos dados analisados. Aborda os elementos e agentes que contribuem de forma positiva para o processo de adaptação ao tratamento antirretroviral. Esses agentes envolvem a família, o profissional de saúde e o próprio sujeito. Como principais unidades de significação têm-se: procuram tomar no horário certo, cuidado com a alimentação, apoio de familiares, apoio, orientação e interesse dos profissionais.
Nesta categoria, portanto, identificam-se a atitude positiva da representação social da terapia antirretroviral e o cuidado com o horário como principais formas de adequação da rotina ao tratamento, uma preocupação tida pelo sujeito. Percebe-se, também, o entendimento da importância dos horários na efetividade do tratamento:
Tem que estar atento na hora. Antes de você sair para o dia, você tem que se programar porque não pode esquecer o remédio (sujeito 3). Não abrir muita diferença de intervalo porque, se não, com o tempo, vai haver resistência do vírus com o remédio. (sujeito 3). Eu tomo nos horários certos, evitando sair daquele ritmo ali para não ter problemas futuros. (sujeito 12). Não posso atrasar muito, não pode deixar de tomar o remédio... (sujeito 10).
A família configura-se como uma rede de apoio de extrema importância para levar adiante a adesão ao tratamento medicamentoso. Observa-se essa importância do núcleo familiar como um forte motivo, principalmente em casos de abandono, para a retomada do tratamento, conforme UR a seguir:
Ah, é amor dos familiares. [...] o que conta mesmo são os seus familiares. O amor deles, o incentivo deles, o amor que a pessoa tem pela vida, e a vontade de viver (sujeito 18). Eu voltei ao tratamento por causa dos meus filhos, não foi nem por causa de mim. Eu acho assim... Eu já vivi até agora, para mim tanto faz estar aqui ou não estar aqui, eu voltei mais por causa dos meus filhos (sujeito 4).
As pessoas que conseguem mobilizar recursos tanto individuais como sociais para enfrentar as situações novas colocadas pelos ARVs adaptam-se melhor a sua nova condição. Neste contexto, a família constitui-se como um agente que dá suporte à adesão à terapia antirretroviral,e, portanto, os cuidadores devem levar em conta o núcleo familiar da pessoa em tratamento, buscando identificá-los e inseri-lo nesse processo15.
Outro ator social referido envolvido no processo de adesão à terapia medicamentosa é o profissional de saúde, principalmente médicos e enfermeiros, que são vistos como estimuladores, já que buscam acompanhar a rotina da pessoa cuidada, conforme depoimentos a seguir:
Quem me estimula? No momento agora está sendo a doutora [...], por que quando o neném nascer quem vai passar a me consultar é a doutora [...], minha doutora, ela me estimula muito (Sujeito 16). Antes de chegar aos médicos, os próprios enfermeiros aconselham... Dão conselhos, procuram ver horários, procuram ver o cotidiano da pessoa, a rotina da pessoa (sujeito 3).
Neste sentido, os serviços de saúde são de suma importância para a adesão, visto que através dos profissionais de saúde possibilitam o diálogo, a comunicação, permitindo uma relação em que a negociação se coloca como possível. Estes serviços têm traçado estratégias como: estudo de casos, oficinas interdisciplinares e grupos de adesão que têm como objetivo melhorar a aderência ao tratamento por acolher o paciente e levá-lo a ser o principal sujeito deste processo de mudança16.
Os incentivos por parte da família e dos profissionais mostram-se como fatores essenciais para a adesão ao tratamento. Quando o paciente percebe a convicção que os profissionais de saúde têm sobre um determinado agente terapêutico tendem a internalizar esta convicção, o que contribui fortemente para sua adesão8.
Categoria 3 - A mudança e a valorização da vida no processo de adaptação aos medicamentos antirretrovirais
O início da terapia ARV, apesar de conturbado, também é marcado pela esperança depositada no tratamento. Essa esperança, juntamente com o apoio social e as estratégias desenvolvidas pela equipe de saúde, permite que a pessoa soropositiva supere as adversidades e prossiga com o tratamento8.
Com 58 UR e 15,3% do corpus de análise,esta categoria é dedicada a descrever a cotidianidade de vida das pessoas com HIV/AIDS após a adaptação aos medicamentos antirretrovirais. Nesta categoria foram abordadas quatro unidades de significado: não esconde, adaptação da medicação a rotina diária, após a adaptação tudo melhora, mudança de hábitos, se apegar a vida e querer viver mais.
Após a adaptação constata-se a consolidação de uma rotina na qual a pessoa que vive com HIV/AIDS pôde adequar a terapia antirretroviral àsua vida. Esta adequação somada à redução ou ausência dos efeitos colaterais decorrentes da adaptação do organismo ao medicamento leva a uma mudança na percepção acerca da terapia, que deixa de ter uma representação negativa, passando a ser encarada como fonte de bem estar ou como algo normal no cotidiano:
Os horários meio-dia e meia-noite são os horários que eu adequei àminha rotina de trabalho, minha rotina pessoal, que são práticos, e quando eu estiver na rua eu tenho uma caixinha de plástico [...] há anos eu trago as minhas medicações (sujeito 29). Hoje em dia, tem dois anos que eu tomo todo dia, estou bem,pelo contrário, depois que eu passei a tomar o remédio, estou até me sentindo melhor (sujeito 05).No início foi difícil, foi muito difícil. A primeira semana até eu me adaptar à medicação, meu organismo se adaptar, eu sofri bastante. Porque era muito enjoo, muita dor de cabeça, dor no corpo... Mas depois de uma semana isso tudo sumiu, desapareceu e eu voltei a ter uma vida normal (sujeito 17). [...] fui aprendendo a conviver com essas reações que o remédio me dava, eu fiquei assim um mês e mês e meio e depois não, fiquei normal (sujeito 30).
Neste sentido, a construção do hábito de tomar a medicação, juntamente com a possibilidade de mudanças na combinação dos remédios, auxilia a aceitação da terapia ARV. A confiança no tratamento é reforçada quando o período assintomático é prolongado, porque para as pessoas com HIV/AIDS, os longos períodos sem sintomas demonstram a eficácia dos antirretrovirais17.
O processo de adesão, por sua vez, acaba sendo encarado como uma forma de aprendizado no qual é necessário adquirir autoconhecimento, passando a respeitar as limitações impostas pela doença e a viver de forma mais saudável. Assim, as representações sociais da terapia antirretroviral assumem um caráter prático, o que implica em uma mudança de antigos hábitos, conforme depoimentos:
Evitando bebida, evitando perder noites de sono, falando da importância do repouso na vida da pessoa, e muitas coisas, sendo que a pessoa, se for o caso, afasta do álcool, lembrando o horário do remédio, mostrando como é que se tomam todos eles, dizer o tipo dos remédios (sujeito 19).
A adesão pode ser entendida como um processo colaborativo8 e não umcuidado unidirecional, implicando na corresponsabilização do profissional e do cliente. Inicialmente, a prática de cuidado deve partir da pessoa com o vírus,sendo esta o principal agente de mudança. Observa-se a este respeito que a pessoa assistida entende a necessidade de autoconhecimento, assim como a do autocuidado, conforme UR a seguir:
Quer viver tendo, sendo HIV positivo, você tem que ter seriedade, tem que respeitar o seu corpo, tem que conhecer o seu corpo. Muitas pessoas vivem vendo o corpo, mas ignoram o seu próprio corpo, então isso é muito reforçado, não se assustar, não acreditar em tudo que se ouve, não seguir boatos e modas, e sempre se proteger também (sujeito 29).
Neste aspecto, pessoas que acreditam em sua capacidade de lidar ou manejar as circunstâncias que eventualmente asimpeçam de realizar comportamentos de saúde, tanto preventivos quanto de tratamento, mostram-se com uma melhor adesão aos esquemas terapêuticos, diferentemente de pessoas que se percebem incapazes ou sem habilidades para manejar as adversidades oriundas do tratamento18.
Como uma forma de se buscar um sentido para se viver diante da doença, emerge a busca pelo que é sagrado na vida. Observa-se a fé e a espera no divino como forma de lidar com o fato de não poder modificar a sua própria realidade, depositando,assim, a esperança de uma mudança da realidade sobre um ser maior:
Ou as pessoas começam a aconselhar, a falar para ela que não é assim, ou às vezes a pessoa vai para a igreja e fala: agora Deus vai me ajudar. Então tem que ter algum ponto de apoio para ela voltar... (sujeito 14) O que me ajuda muito é a fé que eu sei que é muito grande (sujeito 13) Isso alimenta muito o nosso espírito, essa fé assim, já estou curado, estou sarado... (sujeito 13).
Dessa forma, a religião apresenta-se como importante fator motivacional, visto que a busca da espiritualidade configura-se como "base de apoio para que as pessoas vivam suas vidas e até mudem suas formas de levar a vida"15:735.
Apesar da introdução da terapia antirretroviral, a AIDS ainda é muito marcada pela representação de morte. Diante disso,o apego à vida é um importante fator motivacional para a adesão medicamentosa:
Então de fato ela vai voltar, e o incentivo dela vai ser o que? Que ela vai querer viver, e para ela querer viver ela tem que traçar uma meta, e tem que começar a tomar os remédios (sujeito 12). Para quem tem o objetivo de viver um pouco mais, ou viver tudo que tem necessidade de viver, acho que é importante (sujeito 09). Sempre é interessante viver um pouco mais... (sujeito 09).
Pôde-se perceber nesta categoria que o processo de adesão constitui-se como um processo de aprendizado no qual a pessoa vivencia a experiência da soropositividade e a partir desta ganha forças para mobilização de mudanças, tomando uma posição em relação à doença e à vida15. Vemos que ao mobilizar recursos para o enfrentamento da situação, como a adequação do tratamento à rotina diária e a perseverança para prosseguir mesmo diante dos efeitos adversos, torna possível a continuidade ao tratamento, fazendo com que a atitude diante da terapia antirretroviral seja positiva.
CONCLUSÃO
Mediante os resultados obtidos, conclui-se que o processo de adesão é um evento multifatorial e extremamente influenciável por uma rede interligada de várias questões que perpassam as condições de vida, tais como o trabalho e os relacionamentos interpessoais. Este processo pode ser subjugado por fatores relacionados à pessoa com HIV, à doença, ao tratamento, e também ao meio que cerca o cliente.
Este estudo mostra que o início da utilização dos ARV é marcado por uma representação estritamente negativa, expressa na imagem de isolamento social, medo de vivenciar o preconceito,dificultando o processo de adesão. O núcleo familiar mostra-se como agente motivador deste processo, principalmente quando este núcleo envolve dependentes da pessoa em tratamento, tais como os filhos. No entanto, foi observado que quando não existe a possibilidade de revelação do estado de soropositividade para a família, este processo torna-se mais difícil, pois a pessoa com HIV/AIDS tende a não fazer uso dos ARV por medo de ser reconhecido como soropositivo ao HIV.
Evidencia-se que o medo de ser reconhecido está relacionado a fatores como a descoberta dos antirretrovirais por terceiros, principalmente familiares e a percepção por outros quanto aos efeitos colaterais expressos principalmente na imagem da lipodistrofia. Esse medo determina ações de ocultamento da medicação como forma de negação da doença, tais como o descarte de bulas, caixas e, em alguns casos, até mesmo dos próprios medicamentos.
Apesar de a pessoa com HIV/AIDS ser encarada como protagonista no processo de adesão,observou-se que o cliente não pode atuar sozinho durante este processo, destacando-se o acolhimento profissional como forte fator motivador, à medida que desenvolve no "aderente" a confiança no tratamento. Pode ser notada, assim, a necessidade de uma escuta ativa, na qual o profissional deve acolher o discurso da pessoa com HIV, sem expressar juízo de valor ao que é dito, permitindo dessa forma que a pessoa desenvolva confiança no profissional e expresse suas dúvidas, ansiedades, medos e expectativas. Salienta-se a necessidade de que os profissionais observem e identifiquem a presença de possíveis fatores que possam estar dificultando a adesão medicamentosa ou afetando a autoconfiança dos clientes.
As representações do processo de adesão evidenciam o desenvolvimento de um processo de mudanças simbólicas desde o início do tratamento até a sua estabilização, que se expressa não apenas nas atitudes, mas também nas imagens representativas da doença, do vírus e dos medicamentos. Esse processo é evidenciado quandoa pessoa soropositiva consegue superar as dificuldades iniciais impostas pelo tratamento, passa a entender este processo como um período de aprendizado e a encarar a terapia antirretroviral como uma nova motivação de vida, assumindo uma atitude positiva diante dela.
Salienta-se que o estudo teve um número limitado de sujeitos e foi realizando em um único campo que acompanha pessoas que estão em uso da terapia antirretroviral, não sendo possível alcançar pessoas que não aderiram à terapia e desvelar o processo de adaptação à terapia antirretroviral. Destaca-se a necessidade de novos estudos, mais abrangentes e que abordem especificamente este processo, visto que este ainda se mostra um grande desafio e compromete a continuidade da terapia.
REFERÊNCIAS