Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014
Pesquisa
Estratégias de biossegurança dos trabalhadores da saúde no cuidado às pessoas com
HIV/AIDS (1986-2006)
Mariana Vieira Villarinho
1
Maria Itayra Padilha
1
1 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
Recebido em 15/01/2012
Reapresentado em 03/05/2013
Aprovado em 24/05/2013
Autor correspondente:
Mariana Vieira Villarinho
E-mail:
nanyufsc@ibest.com.br
RESUMO
O objetivo deste estudo foi identificar as estratégias de biossegurança utilizadas
pelos trabalhadores da saúde de um hospital referência em doença infectocontagiosas,
no cuidado às pessoas com HIV/AIDS, no período de 1986 a 2006.
MÉTODOS:
Trata-se de um estudo descritivo qualitativo com perspectiva sócio-histórica que
utilizou a História Oral para a realização de entrevistas com 23 trabalhadores da
saúde.
RESULTADOS:
Apartir da análise de conteúdo de Bardin emergiram duas categorias: Busca pelo
conhecimento sobre a AIDS no início da epidemia; e mudança no processo de
trabalho: estratégia de biossegurança à minimização do acidente de trabalho.
Conclui-se que foi necessário e correto investir na segurança por meio de ações
educativas e preventivas que promoveram transformações culturais, que produziram
maior simetria entre os trabalhadores da saúde, sobretudo da enfermagem, e
enalteceram o cuidado de si, no cuidado às pessoas, independente do seu
diagnóstico soropositivo para o HIV.
Palavras-chave: Biossegurança; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Profissionais da saúde; Saúde do trabalhador; História.
INTRODUÇÃO
O interesse pela temática decorre da existência dos inúmeros riscos encontrados nos ambientes de trabalho que podem afetar a saúde e a integridade física do trabalhador. Entre os riscos, o biológico é o que mais acomete o trabalhador da saúde, visto que, na maioria das vezes, realizam procedimentos envolvendo exposição ao sangue, entre outros fluidos corpóreos1.
A forma como os trabalhadores da saúde percebem os riscos biológicos e o cuidar de si traz à tona a importância de se debater e adotar estratégias de biossegurança e de incluí-las na discussão do conceito ampliado de saúde, o que implica em pensar qualidade de vida. O cuidado de si envolve, ainda, questões acerca de comportamentos e possibilidades, a exemplo da adoção das medidas de biossegurança, com vistas à promoção da saúde, bem-estar e qualidade de vida do trabalhador2.
Neste contexto, em meio ao surgimento da AIDS e com a possível transmissão ocupacional pelo vírus do HIV, decorrente do acidente de trabalho envolvendo exposição a material biológico, surge a preocupação do Center of Disease Control (CDC) pela higiene e segurança no trabalho3. A partir de então, recomendações no sentido de proteger os profissionais foram preconizadas e periodicamente revisadas, alteradas, considerando-se a inovação de conhecimentos e a epidemiologia da doença4.
A busca incessante pelo conhecimento acerca da AIDS e sua real forma de transmissão, assim como a mudança no processo de trabalho, com adoção de técnicas e métodos preconizados, foram estratégias de biossegurança eficazes à eliminação e/ou minimização dos riscos ocupacionais, experienciadas pelos trabalhadores da saúde, no Hospital Nereu Ramos (HNR), contexto deste estudo, localizado no Município de Florianópolis/SC.
Acredita-se que as estratégias de biossegurança quando confiáveis e aplicáveis são de suma importância e pré-requisitos essenciais aos trabalhadores da saúde no âmbito de sua prática de cuidado. Diante do contexto e ponderando acerca da temática exposta, decidiu-se realizar este estudo que tem por objetivo:
Identificar as estratégias de biossegurança utilizadas pelos trabalhadores da saúde de um hospital referência em doença infectocontagiosa no cuidado às pessoas com HIV/AIDS, no período de 1986 a 2006.
A opção de (re)construir a história deste período, 1986 a 2006, deve-se ao primeiro caso notificado de AIDS no município de Florianópolis, e o recorte final até 2006 justifica-se pelo fechamento do Ambulatório de DST/AIDS de Florianópolis, em virtude da descentralização do serviço de AIDS no município. O desejo de um estudo com trabalhadores da saúde, orientando-se pelas suas histórias e memórias, coloca-se como importante por entender que as lembranças e experiências, acerca das práticas de cuidado junto aos pacientes com HIV/AIDS, ao longo da epidemia, revelam seus modos de cuidar. Além disso, possibilita revelar o quanto os trabalhadores da saúde, sobretudo da enfermagem, investiram, desenvolveram estratégias com vistas a melhorar as condições e proteção individual e coletiva no seu ambiente de trabalho.
METODOLOGIA
É uma pesquisa sócio-histórica com abordagem qualitativa, que utilizou a História Oral (HO) como método-fonte para a coleta de dados. A história oral privilegia a realização de entrevistas com pessoas que presenciaram, testemunharam, participaram de acontecimentos em um determinado contexto social5.
A HO, a ser utilizada como método-fonte, abriu espaço na história para aqueles que não tiveram voz sobre a sua própria história, no cuidado aos pacientes com HIV/AIDS, ao longo da epidemia, por meio de suas memórias. Foram entrevistados, no período de março a outubro de 2011, quatro médicos, oito enfermeiras, quatro técnicos de enfermagem, três auxiliares de enfermagem, um dentista, um nutricionista, uma assistente social e uma psicóloga, totalizando 23 trabalhadores da saúde que participaram, vivenciaram, direta ou indiretamente, o cuidado às pessoas com HIV/AIDS, internadas no HNR, no período de 1986 a 2006. Os critérios de inclusão foram: trabalhadores da saúde que atuaram no cuidado aos pacientes com HIV/AIDS, no período de estudo; que possuíam boa memória sobre o desenvolvimento das suas práticas laborais, no cuidado às pessoas com HIV/AIDS; e que tinham disponibilidade e interesse em participar da pesquisa.
A seleção dos sujeitos para participarem da pesquisa foi realizada a partir de uma solicitação feita ao Setor de Recursos Humanos do HNR, e por recomendação dos próprios trabalhadores já entrevistados. Todas as entrevistas foram previamente agendadas, conforme a disponibilidade do entrevistado, respeitando local, data e hora por eles sugeridas. As entrevistas ocorreram nos domicílios e nos locais de trabalho dos sujeitos do estudo. A coleta de dados foi encerrada a partir da saturação dos dados.
Após o processo de coleta de dados, estes foram transcritos, a fim de preservar a confiabilidade dos relatos. A transcrição e a organização dos relatos obtidos pela entrevista constituíram a ordenação dos dados, e a classificação ocorreu a partir de exaustivas leituras e releituras, de modo a agrupar/compilar provisoriamente os possíveis enunciados. Nesse percurso, procurou-se identificar estruturas de relevância e realizar o reagrupamento por temas, conforme estabelece a análise de conteúdo de Bardin6, na qual emergiram as categorias: Busca pelo conhecimento sobre a AIDS no início da epidemia; e Mudança no processo de trabalho: estratégia de biossegurança à minimização do acidente de trabalho. Tais categorias trazem à tona as estratégias de biossegurança apontadas pelos trabalhadores da saúde no cuidado aos pacientes com HIV/AIDS no início da epidemia.
Ademais, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da Universidade Federal de Santa Catarina e aprovada mediante o Parecer nº 920/10. Os sujeitos que aceitaram participar do estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para garantir o anonimato, os sujeitos do estudo foram identificados por letras referentes às categorias profissionais e por números, no intuito de seguir a ordem cronológica que atuaram no HNR (por exemplo, médico M1, enfermeiro E3, técnico de enfermagem TE2, auxiliar de enfermagem AE1, dentista D1, assistente social AS1).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Apresentaremos os resultados desta investigação a partir de dois agrupamentos discursivos, possibilitando ao leitor vislumbrar o percurso de análise dos dados na busca da compreensão da evolução das práticas de cuidado, estratégias de biossegurança dos trabalhadores da saúde às pessoas com HIV/AIDS internadas no HNR, no período do estudo.
A grande maioria dos profissionais entrevistados é procedente do estado de SC; a faixa etária variou de 46 anos a 70 anos, com uma média de 58 anos, com atuação no cuidado direto ou indireto dos pacientes com HIV/AIDS, no HNR, por um período de 2 a 37 anos, com média de 19,5 anos.
Busca pelo conhecimento sobre a AIDS no início da epidemia
Nesta categoria algumas questões foram levantadas pelos trabalhadores da saúde, como sendo consideradas estratégias de biossegurança utilizadas no cuidado às pessoas com HIV/AIDS, no início da epidemia. Destacaram o interesse pelos estudos, conhecimentos sobre a AIDS, assim como o compartilhamento de tal conhecimento entre os profissionais da saúde do HNR e demais instituições de Santa Catarina (SC).
O surgimento da AIDS em Santa Catarina foi marcado por espanto, medo, estigma por grande parte da sociedade civil, incluindo os próprios profissionais da saúde, diante do desconhecido, pois, até então, as formas de conhecimento produzidas sobre a AIDS tinham uma conotação de doença traduzida por angústia, pânico, rejeição7.
Assim foi preciso estudar, buscar conhecimento sobre a real forma de transmissão do HIV, pois quando se conhece aquilo com que se trabalha o sentimento de proteção torna-se mais presente. Este fato que se observa a partir das seguintes falas:
Todos nós estávamos assustados com aquela doença nova. Daí uma medida para nos sentirmos mais seguros era estudar para entender um pouco mais sobre a doença, quais os cuidados que deveríamos ter (D1).
Tivemos que estudar, correr atrás para conhecer melhor a AIDS, os cuidados com a nossa segurança. Porque no início a gente não sabia nada (TE1).
Tudo era novo, então a gente se reunia para tirar as dúvidas, começamos a aprender um com o outro, ficávamos antenados a tudo, para a nossa segurança (AS1).
Eu participava das reuniões de enfermagem, médica, e essa integração da equipe era muito boa. A troca de conhecimento entre os profissionais no início da epidemia foi fundamental para a proteção da equipe (P1).
Toda a equipe teve que correr atrás, estudar, desenvolver estratégias para a nossa segurança, daí reuníamos para discutir os casos, conhecer mais sobre a doença, as precauções (E3).
Além da busca incessante pelo conhecimento sobre a doença, suas formas de transmissão até então pouco conhecidas, os relatos mencionam também a importância da equipe multidisciplinar, neste processo, para as condições de trabalho mais segura.
O novo, o desconhecido, como no surgimento da AIDS, gera medo, receio, insegurança pelos trabalhadores da saúde, no âmbito do cuidado prestado às pessoas com HIV/AIDS. E neste contexto, a falta de conhecimento sobre a AIDS, e principalmente a real forma de transmissão do vírus, acabou por deixar o trabalhador da saúde mais vulnerável aos riscos envolvendo exposição ao material biológico possivelmente contaminado8. Desta forma, a busca pelo conhecimento, assim como a integração, o trabalho conjunto entre as diferentes categorias profissionais foram estratégias fundamentais para uma maior proteção dos trabalhadores, no decorrer de sua atividade laboral.
Alguns trabalhadores da saúde até conhecem os riscos no seu ambiente de trabalho, porém de forma genérica, e esse conhecimento não se transforma em uma ação segura de prevenção. Os riscos ocupacionais podem ser ou estar ocultos pela falta de conhecimento e/ou informação, situação esta em que o trabalhador sequer suspeita da sua existência9. Neste sentido, acreditamos que o trabalhador da saúde deva ir atrás de conhecimento, mostrar-se interessado em aprender, assim como compartilhar, discutir com seus colegas da equipe de trabalho dúvidas, angústias acerca dos riscos, os quais estão expostos no cuidado às pessoas com HIV/AIDS.
O trabalho em equipe é realizado por um grupo de pessoas que, juntas, se comunicam, dialogam, compartilham e consolidam conhecimentos para que planos sejam realizados, decisões futuras sejam influenciadas e ações sejam determinadas10. No presente estudo, o trabalho em equipe, face ao surgimento da AIDS no HNR, foi essencial para que os trabalhadores da saúde juntos pudessem adquirir mais conhecimento, discutir, compartilhá-los, assim como encontrar possíveis riscos no ambiente de trabalho e, desta forma, propor ações, estratégias para maior segurança, no cuidado às pessoas com a doença.
No que se refere ao compartilhamento do conhecimento sobre a AIDS, este sem sombra de dúvida foi outra importante estratégia de biossegurança utilizada pelos trabalhadores da saúde, pois, mais que a busca pelo conhecimento, foi preciso socializá-lo. E os sujeitos do estudo deixaram muito clara a importância de compartilhar a sua proteção, conforme demonstra os relatos:
A enfermeira e o médico tinham mais conhecimento sobre a AIDS e daí sempre passavam as orientações pra gente não se contaminar (AE1).
Com a internação do primeiro paciente com AIDS, elaborei um rol mínimo de precauções e tal, mas tudo dentro das possibilidades da época, porque não se tinha internet. Daí fixei no posto de enfermagem, chamei a equipe e falei sobre os cuidados, as medidas de segurança que deveriam ter (E2).
Lembro que a enfermeira catava as informações sobre a doença e colocava no mural pra equipe. É, fomos aprendendo sobre a AIDS no dia a dia, inclusive os cuidados que a gente tinha que ter com a gente (AE3).
É possível observar nas falas o importante papel do médico e principalmente da enfermeira no compartilhamento de informações, orientações acerca das precauções que os demais membros da equipe deveriam ter no cuidado aos pacientes com HIV/AIDS.
O enfermeiro, enquanto membro e líder da equipe de enfermagem, é o profissional responsável em compartilhar seu conhecimento para que, em harmonia e complementariedade com os demais profissionais da saúde, preserve a integridade física e mental do trabalhador11. Ainda neste contexto e em concordância de que os trabalhadores da saúde precisam constantemente de orientações quanto a sua proteção, durante o cuidado do outro, é oportuno ressaltar a importancia da educação continuada.
A educação continuada foi fundamental para segurança dos funcionários, porque reeduca, renova os funcionários. É, a realização de cursos sobre biossegurança foi importante para passar as orientações, precauções (N1).
Considero a reciclagem fundamental à segurança dos trabalhadores. É preciso trabalhar, reforçar a importância do uso das medidas de biossegurança, através da educação continuada (M4).
Desde que assumi a CCIH sempre fiz treinamentos sobre medidas de biossegurança, uso correto dos EPIs. É importante reciclar, orientar os funcionário e as capacitações foram excelentes oportunidades para se discutir, compartilhar o conhecimento entre a equipe (E8).
A educação continuada com frequentes atualizações acerca das precauções-padrão foi de extrema importância aos trabalhadores da saúde, no âmbito das suas atividades, visto que a desatualização ou a sua inexistência dificultam o acompanhamento do avanço científico e a atualização das práticas de biossegurança. A educação continuada, a partir de um trabalho cooperativo, permite aos envolvidos uma continua especialização, o compartilhamento de informação, experiências, assim como orientação12. Concordamos com os autores e ressaltamos que este compartilhar deva extrapolar a informação e intervir com diferentes estratégias, visto que alguns dos trabalhadores da saúde até conhecem as medidas de biossegurança, porém não as empregam de maneira sistemática e constante12. Neste sentido, cabe aos serviços de saúde planejar e implementar orientações específicas aos trabalhadores da saúde para que estes adotem um exercício profissional seguro.
Ainda neste contexto do compartilhar conhecimento sobre a AIDS no início da epidemia, é oportuno ressaltar que tal compartilhamento não se ateve apenas aos trabalhadores da saúde do HNR, mas também aos profissionais dos demais serviços de saúde do Estado de Santa Catarina, como revelam as seguintes falas:
Capacitávamos a nossa equipe do Nereu e dos outros locais. A gente compartilhava o conhecimento que tínhamos sobre a AIDS, principalmente as precauções a se ter no cuidado ao paciente (M1).
Nós éramos a referência para infecto. Então, cabia a nós treinar, capacitar, informar os profissionais da saúde sobre os cuidados importantes para sua segurança (E2).
Enquanto equipe de um hospital de referência a gente ia para aquelas cidades em que os casos de AIDS estava aparecendo e falávamos horas sobre os cuidados, as precauções (M2).
O fato de o HNR ser considerado um hospital de doenças infectocontagiosas tornou-o referência também no tratamento da AIDS e treinamento dos profissionais para o cuidado. Tão logo, os profissionais da saúde tiveram que buscar mais conhecimento e maior especialização para a execução correta e segura das técnicas e procedimentos necessários no cuidado aos pacientes2. Neste contexto, é oportuno ressaltar ainda que o HNR, ao assumir seu papel de referência, fez com que o conhecimento sobre a AIDS, sobretudo as medidas de biossegurança, extrapolasse o ambiente interno e fosse socializado às demais instituições de saúde de SC, onde estavam surgindo os primeiros casos da doença.
Mudança no processo de trabalho: estratégia de biossegurança na minimização do acidente de trabalho
A adoção das medidas de biossegurança, com a utilização dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), manuseio cuidadoso dos materiais perfurocortantes, o não reencapamento de agulhas contaminadas, o descarte destas em local apropriado, assim como a atenção e cautela durante os procedimentos foram estratégias incorporadas pelos sujeitos do estudo, as quais se caracterizaram por uma mudança no processo de trabalho que, por sua vez, influenciou na minimização dos acidentes de trabalho com exposição ao material biológico.
No que se refere ao uso dos EPIs, com o surgimento da AIDS, estes foram adotados pelos trabalhadores da saúde, sendo considerados indispensáveis para sua segurança. E como se pode observar nos relatos, os sujeitos do estudo não apontaram apenas o uso da luva como medida de biossegurança, mas também dos demais equipamentos, como avental, gorro, máscara, entre outros, decorrente da falta de conhecimento acerca da real forma de transmissão do HIV no início da epidemia.
Lembro do primeiro paciente que atendi, ele até foi indicado pelo doutor. Daí, me fantasiei tipo um astronauta, botei gorro, luva, máscara, óculos protetor, um guarda-pó, tudo que tinha direito... entrava no consultório todo paramentado (D1).
Nos primeiros pacientes que chegaram com AIDS, como não se conhecia direito a doença, a gente usava todos equiparatos. Era até irônico, parecia que ia entrar numa sala de cirurgia (AE1)
Eu saia do posto de enfermagem com luva e com máscara, sempre tinha no bolso comigo. Criei essa rotina para a minha segurança (TE3).
No inicio veio pra gente usar uma proteção para o rosto, era uma espécie de capacete de soldador, só que, ao invés de ser escuro, era de acrílico branco. Então, tu botavas aquilo e ficava aquele negócio aqui quadrado na tua frente (TE4).
É possível observar, a partir dos relatos, que com o advento da AIDS, várias foram as mudanças nas atividades práticas dos trabalhadores da saúde, principalmente aquelas relacionadas à vestimenta adequada, tendo como preocupação primordial o medo de infectar-se, de morrer, pois, até então, antes do conhecimento do HIV, os riscos de acidentes de trabalho por material biológico eram subestimados, embora sabidamente pudessem contribuir para a transmissão de muitas outras doenças infectocontagiosas veiculadas pelo sangue que, igualmente ao HIV, conferiam agravos importantes à saúde1.
Com o surgimento do HIV, a revisão da prática profissional tornou-se necessária, uma vez que o contágio por tal vírus provoca uma doença de alta mortalidade e morbidade2. Desta forma, o CDC dos Estados Unidos da América publicaram em 1987 o "Guia para prevenção da transmissão do HIV, vírus da hepatite B nos profissionais de saúde", no qual as precauções denominadas Universais passaram a ser recomendadas toda vez que se suspeitava ou conhecia o agente infeccioso. No entanto, este sistema apresentava pouca eficácia na prevenção de transmissão de infecções ocasionadas por contaminação sanguínea, devido à impossibilidade de se conhecer rapidamente o diagnóstico sorológico do paciente13,14.
Assim, em 1996, mantendo-se a essência de considerar o risco universal, o CDC preconizou uma nova proposta, que substituiu o termo "Precauções Universais" por PP, "Precauções Padrões", as quais incluíram o uso dos equipamentos de proteção individual (luva, máscara, protetor ocular e avental) sempre que for previsto o contato com sangue, sêmen, secreções vaginais, líquidos amniótico, cerebroespinhal, pericárdico, peritonial, pleural e sinovial, além de outros fluidos corporais com sangue, independente da situação sorológica do paciente13.
Ainda neste contexto, com relação a utilização dos EPIs, um estudo identificou que dos 100 profissionais da saúde entrevistados, 76 mencionaram alteração na prática profissional com o surgimento do HIV/AIDS, sendo que, destes, 52, ou seja 68,4% atribuíram respostas referentes à paramentação, o uso dos EPIs com intuito de se proteger4.
A utilização dos EPIs, de acordo com a Norma Regulamentadora 06 é definida como obrigação do trabalhador, que deve adotá-lo apenas com a finalidade a que se destina13. Concordamos com os autores, porém complementamos que se faz necessária a presença também da Instituição de Saúde neste cenário, pois é preciso ir além, não basta fornecer EPIs, é necessário sensibilizar, capacitar, bem como escutar os anseios, as dúvidas dos trabalhadores no que se refere à adoção e ao uso correto das medidas de biossegurança.
Além da adoção dos EPIs, outras estratégias na prática profissional dos trabalhadores da saúde do HNR foram adotadas, em consequência ao surgimento do HIV/AIDS, a exemplo do manuseio cuidadoso dos materiais perfurocortantes. Este foi mencionado como importante estratégia de biossegurança incorporada pelos sujeitos do estudo, a qual se caracterizou por um processo de trabalho adequado, que por sua vez influenciou na minimização dos acidentes de trabalho com exposição ao material biológico, conforme se observa nas seguintes falas:
Uma medida de segurança importante que a enfermagem adotou com o surgimento da AIDS foi o desprezo das agulhas contaminadas em locais resistentes. E também passou a não mais reencapar as agulhas contaminadas (M1).
Era preciso desenvolver estratégias para trabalharmos de maneira mais segura, daí passamos a trazer latas de leite Ninho, Nescau para colocar as agulhas contaminadas, e éramos alertados a não reencapar mais as agulhas (TE4).
Observa-se que, com o surgimento da AIDS, houve maior preocupação por parte dos trabalhadores da saúde, principalmente pela enfermagem, no manuseio dos objetos perfurocortantes, no não reencapamento das agulhas contaminadas, assim como no desprezo destas em local apropriado.
Estudos ratificam que, em consequência ao advento da AIDS, quanto à manipulação cuidadosa de objetos cortantes e pontiagudos, foi recomendado não reencapar, entortar, quebrar ou retirar agulhas das seringas e descartá-las em recipientes resistentes imediatamente após o uso3,4, visto ser notória a frequência com que ocorrem acidentes envolvendo material perfurocortante, como lâminas de bisturi e agulhas.
Neste contexto, é oportuno citar ainda um estudo realizado em hospital universitário no Brasil, o qual analisou as situações de ocorrências e tendências de acidentes com agulha e evidenciou que 15 a 35% dos acidentes de trabalho apontaram falhas relacionadas ao procedimento de cuidado com as agulhas15. Um outro estudo, acerca da prática de reencapar agulhas entre profissionais da saúde, detectou, por meio da análise dos recipientes de descarte, que mais de 50% das agulhas encontravam-se reencapadas e que cerca dos 46% dos acidentes relativos a perfurações estavam relacionados a práticas não recomendadas16.
Diante do elevado número de acidentes com material biológico envolvendo objeto perfurocortante como agente causador, sem sobra de dúvida, o manuseio adequado de tais objetos passou a ser estratégia de biossegurança essencial ao processo de trabalho adequado. E neste contexto, ressalta-se a importância também da necessidade de vigilância e treinamentos contínuos pelas instituições e gestores, no sentido de fomentar a adoção de tais práticas pelos trabalhadores da saúde, a fim de propiciar um ambiente de trabalho seguro17.
Ainda com relação à mudança no processo de trabalho favorecendo na minimização dos acidentes de trabalho envolvendo material biológico possivelmente contaminado, os sujeitos do estudo adotaram como medida e/ou estratégia para sua segurança a importância da atenção e cautela durante os procedimentos.
Passei a ter o máximo de atenção, cuidado durante os procedimentos, porque a atenção era indispensável para a nossa segurança (TE4).
Graças a Deus nunca me acidentei, mas eu sempre fui muito cuidadoso, cauteloso. É importante fazer o procedimento tranquilo, com atenção, com segurança, porque daí dificilmente se acidenta (M2).
Com certeza a atenção, a disciplina, a vigilância cerrada no procedimento executado foram medidas de biossegurança fundamentais para evitar o acidente (P1).
A maior atenção dispensada pelos trabalhadores da saúde durante os procedimentos envolvendo exposição a material orgânico, pode-se dizer que foi uma importante incorporação na prática profissional em consequência da AIDS, uma vez que a correria, o descuido, a falta de atenção foram, como ainda continuam sendo, fatores agravantes para ocorrência dos acidentes de trabalho.
A calma e a atenção são atitudes que devem ser adotadas durante a prática laboral, a fim de prevenir os acidentes do trabalho, fortalecendo a ideia de que o trabalhador também está ciente de sua contribuição na prevenção ou ocorrência deles. Concordamos plenamente com os autores, pois, mais que recomendações, ter o máximo de atenção são atitudes que responsabilizam os trabalhadores da saúde no reconhecimento da importância do seu envolvimento no processo de prevenção dos acidentes de trabalho.
Além do uso dos EPIs, do não reencapamento das agulhas contaminadas, do desprezo destas em local apropriado, assim como da atenção, cautela, durante os procedimentos envolvendo sangue e/ou fluidos corpóreos, como estratégias de biossegurança no cuidado às pessoas com HIV/AIDS, é oportuno ressaltarmos que outras também foram as estratégias desenvolvidas e mencionadas por alguns sujeitos do estudo, as quais foram essenciais ao processo de trabalho adequado e seguro. Conforme demonstra as falas:
Era bizarro, os tubos de ensaio com sangue eram transportados soltos. Daí a enfermagem criou uma caixinha própria para colocar os tubos. É, elas sempre estavam a frente das transformações (AS1).
Com o surgimento da AIDS, tivemos que nos adequar, organizar o serviço, criar estratégias para nossa segurança e dos funcionários (E2)
No Nereu não tinha laboratório, então o sangue era levado de Kombi dentro de caixas de isopor para outro laboratório. Daí eu e outra duas enfermeiras fomos desenvolvendo estratégias para a segurança dos funcionários, lembro que criamos uma caixa com suportes para os tubos de ensaio (E3).
É histórico dizer que a enfermagem, com seu saber e poder, sempre esteve à frente na organização dos serviços de saúde, e isto não foi diferente no HNR. As enfermeiras tiveram um papel fundamental no sentido de resolver a complexa problemática para um cuidado seguro, buscando, assim, soluções em relação a material, equipamentos e principalmente organização do serviço de enfermagem para atuar com segurança junto aos pacientes com HIV/AIDS18.
A criação de um recipiente apropriado para condicionamento seguro dos tubos de sangue, mencionado pelos sujeitos do estudo, é um exemplo de que a enfermagem, em consequência ao surgimento da AIDS, teve que inovar, criar, desenvolver estratégias, enfim organizar o serviço, com vista a melhorar as condições e proteção no seu ambiente de trabalho.
CONCLUSÃO
A busca pelo conhecimento sobre a AIDS e sua real forma de transmissão, o seu compartilhamento entre as diferentes categorias profissionais, a mudança no processo de trabalho com a adoção das medidas de biossegurança, destacando o uso dos EPIs, o manuseio correto dos materiais perfurocortantes, assim como a atenção, cautela dispensada durante os procedimentos envolvendo sangue e/ou fluidos corpóreos, foram estratégias de biossegurança utilizadas pelos trabalhadores da saúde como sendo essenciais para evitar e/ou minimizar os riscos de acidentes de trabalho envolvendo material biológico.
Ademais, as lembranças, memórias dos trabalhadores da saúde, acerca de suas práticas de cuidado das pessoas com HIV/AIDS no período do estudo, foram indicativos de que as estratégias de prevenção às situações de vulnerabilidade e riscos aos acidentes de trabalho com material biológico incluíram ações conjuntas, estabelecidas entre trabalhadores e serviços. Estas estiveram ainda voltadas às melhorias das condições de trabalho, em especial direcionadas à organização do trabalho, à oferta de material com dispositivo de segurança, à implantação de programas educativos, assim como à sensibilização à mudança de comportamento tanto dos trabalhadores como dos gestores, uma vez que ações isoladas foram consideradas ineficazes para a minimização de tais agravos.
Enfim, concluímos o importante papel do trabalhador da saúde, sobretudo da enfermagem, que, no âmbito de seu trabalho, juntamente com o serviço de biossegurança, reconheceu os possíveis riscos os quais estavam expostos, a fim de evitá-los. E neste contexto foi de suma relevância o trabalho em equipe, o comprometimento de todos os envolvidos, assim como o reconhecimento destes à enfermagem, que foi uma categoria primordial à criação e implementação de estratégias de biossegurança à minimização dos acidentes de trabalho com exposição ao material biológico.
Por mais difícil que pareça, foi preciso e certo investir na segurança dos trabalhadores, por meio de ações educativas e preventivas que promoveram transformações culturais, que produziram maior simetria entre os trabalhadores, enalteceram o cuidado de si, mediante a adoção das estratégias de biossegurança no atendimento às pessoas, independente do seu diagnóstico soropositivo para o HIV, com enfoque na saúde e qualidade de vida do trabalhador, no âmbito de sua atividade laboral.
REFERÊNCIAS