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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014



DOI: 10.5935/1414-8145.20140003

Pesquisa

Satisfação e insatisfação no trabalho de profissionais de saúde da atenção básica

Letícia de Lima 1
Denise Elvira Pires de Pires 2
Elaine Cristina Novatzki Forte 2
Francini Medeiros 2


1 Universidade do Estado de Santa Catarina. Chapecó - SC, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil

Recebido em 28/08/2012
Reapresentado em 28/06/2013
Aprovado em 22/07/2013

Autor correspondente:
Letícia de Lima
E-mail: letrindade@hotmail.com

RESUMO

O objetivo desta pesquisa qualitativa foi identificar motivos de satisfação e insatisfação dos profissionais de saúde em dois modelos assistenciais, na Estratégia de Saúde da Família (ESF) e na Atenção Básica Tradicional (ABT).
MÉTODOS: Amostra intencional com 22 profissionais de saúde do sul do Brasil e dados coletados por meio de entrevistas e grupo focal.
RESULTADOS: Principais motivos de satisfação: nos dois modelos - afinidade com a profissão/gostar do que faz, satisfação dos usuários com a assistência recebida, trabalho em equipe; na ESF- vínculo entre profissionais e usuários. Principais motivos de insatisfação: nos dois modelos - problemas nas relações com usuários/famílias; na ABT- salário insuficiente e dificuldades no trabalho em equipe; na ESF - déficit nos instrumentos e ambiente de trabalho, carga horária excessiva e falta de compreensão sobre o modelo.
CONCLUSÃO: A dimensão subjetiva influencia a satisfação laboral, mas condições concretas para a realização do trabalho são fortemente significativas.


Palavras-chave: Saúde do trabalhador; Atenção primária à saúde; Saúde da família; Satisfação no emprego.

INTRODUÇÃO

No atual cenário de saúde brasileiro, pós-Constituição de 1988, surgem iniciativas de fortalecimento da atenção básica e de reorganização dos serviços de saúde de modo a aproximar-se dos preceitos constitucionais e do disposto na Lei Orgânica da Saúde, Lei 8080 e Lei 8142 de 1990. No âmbito da atenção básica, identifica-se a convivência de dois modelos assistenciais entendidos como tecnologias não materiais de organização do trabalho em saúde. Um orientado, predominantemente, pelos padrões da biomedicina, centrado na assistência médica voltada para o diagnóstico e tratamento das doenças - a Atenção Básica Tradicional (ABT) - e outro concebido como inovador, no sentido de aproximação aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) - a Estratégia de Saúde da Família (ESF).

A ESF propõe uma mudança de perspectiva no modo de cuidar, de organizar o trabalho e de entender o processo saúde-doença. Tem como foco coletividades e propõe a assistência ao indivíduo na sua integralidade, considerando-o em seu contexto familiar e social. Agrega às ações curativas ações preventivas e de promoção da saúde, assim como prevê a análise e o monitoramento dos problemas de saúde, considerando os indicadores epidemiológicos e sanitários. Propõe o desenvolvimento de ações que atendam às demandas da população, favoreçam o acesso aos serviços de saúde, melhorem a qualidade das ações preventivas e da atenção, garantindo cuidados mais apropriados1-3.

Os dois modelos vigentes na atenção básica têm distintos desafios e originam diferentes demandas com consequentes implicações na satisfação no trabalho das equipes. Quando trabalham, os seres humanos não utilizam apenas seus conhecimentos e habilidades. No processo da ação transformadora do trabalho o indivíduo, como um todo, é mobilizado e transforma-se no processo. Segundo Dejours4:27, o trabalho

[...] é aquilo que implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar incluindo o saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar. [...] Trabalhar não é somente produzir, é também transformar a si mesmo [...].

Trabalhar envolve relações, as quais podem resultar em satisfação ou podem causar sofrimento. O trabalho na saúde é um trabalho especial de cuidado humano e desenvolvido, majoritariamente, na forma de trabalho coletivo. Um trabalho deste tipo implica em relações entre profissionais e usuários dos serviços e seus familiares, assim como em relações entre os componentes das equipes e entre profissionais e gestores5,6.

A literatura registra estudos que abordam, direta ou indiretamente, a satisfação e insatisfação no trabalho em saúde5,7,8, no entanto são raros os estudos acerca da satisfação no trabalho na atenção básica9,10, assim como inexistem estudos que analisem este fenômeno entre profissionais de saúde que atuam nos dois modelos assistenciais vigentes na atenção básica no Brasil, o tradicional baseado na biomedicina e o modelo inovador da ESF. Satisfação e insatisfação no trabalho em saúde têm implicações na saúde dos profissionais e nos resultados da assistência prestada. Indivíduos mais satisfeitos apresentam melhor qualidade de vida e menores índices de adoecimento físico e mental. Satisfação e insatisfação no trabalho influenciam o comportamento do trabalhador8, com implicações no processo de adoecimento, nos acidentes de trabalho, nas faltas ao trabalho e nos erros, comprometendo, entre outros aspectos, a segurança dos usuários7.

A satisfação pode ser compreendida como um estado emocional prazeroso que resulta de múltiplos aspectos do trabalho e que pode ser influenciada pela concepção de mundo e pelas aspirações, vivências e características individuais de cada trabalhador, implicando formas diferenciadas de enfrentamento dos problemas e a tomada cotidiana de decisões6. Neste cenário, foi desenhada a presente pesquisa com o objetivo de identificar fontes de satisfação e insatisfação no trabalho de profissionais de saúde que atuam nos dois modelos assistenciais vigentes na atenção básica no Brasil, a ESF e a ABT.

METODOLOGIA

Estudo de natureza qualitativa, sustentado pela teoria do processo de trabalho em saúde, e pela abordagem de Dejours em relação a prazer e sofrimento no trabalho, o qual foi realizado junto a 7ª Regional de Saúde (RS), localizada na Região Sudoeste do Paraná, incluindo três equipes de ESF e três de ABT.

Para composição da população de estudo foram usados como critérios: escolher equipes típicas de cada modelo (ABT e ESF) indicadas pela coordenação da Regional de Saúde por desempenharem um trabalho de qualidade; incluir somente profissionais de saúde em número igual nos dois modelos assistenciais; incluir somente equipes de ESF com a equipe mínima completa e profissionais com, no mínimo, um ano de atuação nas equipes. Foram excluídas as unidades mistas (com presença dos dois modelos assistenciais na mesma Unidade Básica de Saúde - UBS).

Participaram da pesquisa 22 sujeitos, sendo 11 profissionais da ESF - três médicos/as (MED), três enfermeiras (ENF), três técnicas de enfermagem (T ENF), um dentista (DENT) e uma técnica em higiene dental (THD) - e 11 profissionais da ABT, em número e categoria profissional igual à ESF.

Para a coleta de dados utilizaram-se entrevistas e grupos focais. As entrevistas foram realizadas com os profissionais de saúde das equipes selecionadas e representativas dos dois modelos assistenciais, buscando: a) informações relativas ao trabalho dos profissionais de saúde; b) identificar a composição da equipe e a caracterização das práticas assistenciais dirigidas aos usuários; c) identificar a organização e divisão do trabalho na equipe; d) identificar os motivos de satisfação e insatisfação no trabalho nos dois modelos assistenciais. Considerando-se o objeto de estudo, foi solicitado que cada profissional entrevistado listasse, por ordem de prioridade, três motivos de satisfação e três motivos de insatisfação no trabalho. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Os achados obtidos nas entrevistas foram sistematizados e apresentados para discussão e validação nas sessões de grupo focal - três sessões em cada modalidade assistencial.

Para auxiliar no tratamento e análise dos dados foi utilizado o software de análise de dados qualitativos, ATLAS TI 7.0 (Qualitative Research and Solutions). Todas as entrevistas transcritas e o documento resultante dos dados obtidos nas sessões de grupo focal foram inseridos no Atlas Ti como "documents" e codificados com base em categorias formuladas a partir das falas dos sujeitos, considerando-se o objetivo e o referencial teórico definido para esta pesquisa. As macrocategorias de análise foram: satisfação no trabalho e insatisfação no trabalho. As falas dos sujeitos foram identificadas pela denominação da categoria profissional e número de ordem, acrescido da sigla ESF ou ABT.

Para o desenvolvimento da pesquisa foram observados os aspectos éticos preconizados pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, e o projeto foi submetido e aprovado, sob o número 971/2010, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina.

RESULTADOS

Os resultados obtidos nas entrevistas com os 22 profissionais de saúde (11 da ABT e 11 da ESF) foram organizados em quatro categorias: motivos de satisfação e de insatisfação no trabalho na Atenção Básica Tradicional e motivos de satisfação e insatisfação na ESF.

Motivos de satisfação no trabalho na Atenção Básica Tradicional (ABT)

No modelo assistencial da ABT os 11 profissionais de saúde entrevistados mencionaram sete diferentes motivos de satisfação no trabalho, os quais constam na Tabela 1.

Tabela 1. Motivos de Satisfação dos Profissionais de Saúde da ABT
Motivos de satisfação Total de citações %
Afinidade com o trabalho/profissão e gostar do que faz 10 45,45%
Resolubilidade da assistência oferecida e satisfação dos usuários 04 18,18%
Trabalho em equipe 02 9,09%
Salário 02 9,09%
Prática do acolhimento e vínculo com os usuários 01 4,54%
Autonomia na realização do trabalho 01 4,54%
Não identificou fonte de satisfação 02 9,09%
Total 22 100%
Tabela 1. Motivos de Satisfação dos Profissionais de Saúde da ABT

Entre os motivos de satisfação no trabalho, a afinidade com a assistência/cuidado prestado, a afinidade com a profissão e gostar do que faz foram os mais significativos.

Pra mim, no caso, é eu poder dar de mim. Eu poder conversar, poder ajudar. Assim, tem certas coisas que a pessoa vem né, e a gente conversa. (T ENF2 ABT)

Huum, o meu trabalho, uma que eu gosto do meu trabalho, gosto do que eu faço.(THD1 ABT)

O segundo motivo de satisfação, de maior destaque, foi a resolubilidade da assistência oferecida aos usuários; a satisfação do usuário com a assistência recebida.

Resolubilidade, ver que resolveu o problema do usuário. (MED 1ABT)

Eu acredito que a resolubilidade. Eu acho que quando o sistema único conseguir [...] melhorar essa questão [...]será um passo muito além. Acho que resolubilidade. (ENF 2ABT)

[...] quando o paciente sai feliz a gente fica feliz também. (THD 1 ABT)

Os demais motivos de satisfação foram: trabalho em equipe/comprometimento da equipe; salário; prática do acolhimento e vínculo com os usuários; autonomia para realização do trabalho. Contudo, dois entrevistados não conseguiram identificar nenhuma fonte de satisfação no trabalho na ABT.

Olha, hoje eu não tenho motivação nenhuma, eu não tenho vontade de sair da cama [...], a minha motivação hoje é zero. (T ENF 1ABT)

Motivos de satisfação no trabalho na Estratégia Saúde da Família (ESF)

No modelo assistencial da ESF foram identificados oito diferentes motivos de satisfação no trabalho; todos os profissionais se mostraram satisfeitos com algo relacionado ao seu trabalho (Tabela 2). O principal motivo de satisfação foi a resolubilidade da assistência, o segundo mais significativo foi o trabalhar em equipe, seguido da afinidade com a profissão, "o gostar do que faz".

Tabela 2. Motivos de Satisfação dos Profissionais de Saúde da ESF
Motivos de satisfação Total de citações %
Satisfação dos usuários com a assistência recebida e sua colaboração no processo assistencial 09 30%
Trabalho em equipe 06 20%
Afinidade com o trabalho/profissão e gostar do que faz 05 16,66%
Vínculo entre profissionais e destes com os usuários 04 13,33%
Salário 02 6,66%
Dinâmica das atividades na ESF 02 6,66%
Demanda, quando reduzida 01 3,33%
Aplicação da proposta da ESF, incluindo intersetorialidade 01 3,33%
Total 30 100%
Tabela 2. Motivos de Satisfação dos Profissionais de Saúde da ESF

O acompanhamento do paciente, você sabe o que aconteceu com o paciente, saber que ele melhorou. (MED 1 ESF)

Ver que a minha equipe consegue ser resolutiva, que a população está satisfeita com o trabalho da minha ESF é fonte de satisfação. (ENF 3 ESF)

A minha equipe, em primeiro lugar. (ENF 1 ESF)

(...) é a equipe, tanto que às vezes eu penso, ah eu não vou trabalhar de manhã, mas ai eu penso, ah mas eu vou sobrecarregar os meus colegas, tanto assim eu penso que eu tenho que vir pela equipe, ela me anima a vir trabalhar(...).(T ENF 2 ESF)

É a equipe como um todo. (MED 3 ESF)

[...] é a equipe, que a gente vive aqui, eles são a minha segunda família no caso. (T ENF 3 ESF)

[...]é gostar do que eu faço. (T ENF 2 ESF)

Outro porque eu gosto, eu fiz odonto eu gosto de trabalhar, então motivação porque é o meu trabalho né, meu trabalho então eu gosto, é isso que eu gosto de fazer. (DENT 1 ESF)

O segundo motivo é porque de alguma forma eu estou fazendo um bom trabalho, eu gosto do que eu faço. Às vezes eu tenho vontade de sair correndo daqui, mas eu gosto...de ser auxiliar às vezes eu não gosto, mas eu gosto do meu trabalho, de como eu ajo na vida das pessoas.(THD 1 ESF)

Em quarto lugar aparece a satisfação pelo vínculo estabelecido entre os profissionais e entre profissionais e os usuários, marcadamente importante na ESF. O vínculo transparece na fala dos profissionais no reconhecimento e na confiança depositada na equipe.

A minha população, que me recebe muito bem. (ENF 1 ESF)

E o relacionamento com os pacientes e com a equipe. (T ENF 1 ESF)

Os demais motivos de satisfação mencionados em menor frequência foram: o salário, o comprometimento do usuário, a dinâmica das atividades na ESF, a demanda quando reduzida e a aplicação da proposta da ESF, incluindo a intersetorialidade.

Motivos de insatisfação no trabalho na Atenção Básica Tradicional

Em relação à insatisfação no trabalho, os 11 profissionais do modelo assistencial da ABT levantaram nove motivos de insatisfação. Conforme descrito na Tabela 3.

Tabela 3. Motivos de Insatisfação dos Profissionais de Saúde da ABT
Motivos de insatisfação Total de citações %
Dificuldades na colaboração do usuário/família no processo assistencial 06 25%
Salário 06 25%
Dificuldades no trabalho em equipe 03 12,5%
Falta de reconhecimento no trabalho e de valorização profissional 02 8,33%
Déficit nos instrumentos e ambiente de trabalho 02 8,33%
Falhas na gestão 02 8,33%
Falta de incentivo à educação continuada 01 4,16%
Excesso de demanda 01 4,16%
Carga horária 01 4,16%
Total 24 100%
Tabela 3. Motivos de Insatisfação dos Profissionais de Saúde da ABT

Os motivos mais significativos de insatisfação no trabalho foram: dificuldades na colaboração dos usuários e famílias no processo assistencial; o salário percebido, considerado insuficiente; e dificuldades no trabalho em equipe.

O que falta é um maior comprometimento dos usuários com a sua saúde, da família assumir a sua responsabilidade. (MED 2 ABT)

O que me incomoda é a falta de comprometimento do usuário com o seu tratamento. (MED 3ABT)

Mas aqui o que me incomoda que eu colocaria é o salário mesmo, o resto, não dá para reclamar se comparar com meu outro emprego. (T ENF 3 ABT)

Acho que é a falta de coleguismo, a falta de comprometimento da equipe, às vezes a gente fica até uma hora da manhã digitando alguma coisa e chega aqui no outro dia e 'ah não vai dar', sabe. (T ENF 1 ABT)

Também foram mencionados como motivos de insatisfação: falta de reconhecimento no trabalho e de valorização profissional; déficits nos instrumentos e ambiente de trabalho; falhas na gestão; falta de incentivo à educação continuada; excesso de demanda e carga horária excessiva.

Motivos de insatisfação no trabalho na Estratégia Saúde da Família

Os 11 profissionais da ESF entrevistados apresentaram 10 motivos de insatisfação, os quais estão organizados na Tabela 4. Entre estes, destacou-se o déficit nos instrumentos de trabalho e na estrutura das Unidades Básicas de Saúde (UBS), incluindo a precariedade na área física. Estas condições foram consideradas inadequadas para a realização do trabalho.

Tabela 4. Motivos de Insatisfação dos Profissionais de Saúde da ESF
Motivos de insatisfação Total de citações %
Déficit nos instrumentos de trabalho e no ambiente/área física da UBS 07 20,58%
Problemas na relação com os usuários, incluindo agressão 05 14,70%
Falta de compreensão do gestor, da equipe e do usuário sobre o modelo assistencial da ESF 04 11,76%
Carga horária excessiva 04 11,76%
Salário 03 8,82%
Problemas no trabalho em equipe e na capacitação para trabalhar em equipe 03 8,82%
Excesso de demanda 03 8,82%
Problemas no sistema de referência e contrarreferência e no suporte técnico 02 5,88%
Centralidade no trabalho/assistência médica 02 5,88%
Desvalorização social do serviço público 01 2,94%
Total 34 100%
Tabela 4. Motivos de Insatisfação dos Profissionais de Saúde da ESF

A estrutura do meu posto que eu não concordo [...] vamos pegar a planta básica do Ministério e ver como deve ser uma unidade de saúde, como deve ser uma sala de vacinas. Quando eu vim para cá a minha sala de vacinas não tinha nem isofilme na janela, ainda usava cortina, e isso é completamente fora da realidade. Eu acho que a infraestrutura é o primeiro aspecto para dar um bom atendimento para a população, com privacidade, com respeito, então isso a gente tem que colocar no papel. (ENF 1 ESF)

A falta de materiais e a estrutura física da unidade, que deveria ser melhor [...] é tudo muito improvisado. Aqui não seria uma unidade, é parte de uma escola, precisaria de salas maiores [...] apesar de que vamos receber uma unidade nova. Essas são as coisas que me incomodam. (T ENF 3 ESF)

Dentre as causas de insatisfação mencionadas pelos profissionais, também foi significativa a identificação de problemas de relacionamento com a população usuária dos serviços de saúde e com os gestores, face às características do novo modelo assistencial proposto para a ESF. Os entrevistados mencionaram que há "falta de entendimento/conhecimento" da população, dos gestores e de membros da equipe, acerca das características do modelo assistencial da ESF.

Falta de comprometimento dos usuários. (ENF 2 ESF)

Acho que o primeiro motivo é o estresse que nós temos com usuários e familiares que não conhecem nosso sistema de trabalho, e que em vez de tentar dialogar com a equipe, manifestam-se através de comunicações para chefia, para ouvidoria, sem qualquer tentativa de dialogo. Isso é o que mais gera confusão e discussão aqui dentro.(MED 2 ESF)

[...] e a dificuldade da compreensão dos outros serviços com relação ao nosso atendimento.(ENF 3 ESF)

Evidenciaram-se, ainda, diversos outros problemas relacionados às condições de trabalho como: carga horária excessiva, baixos salários e o excesso de demanda. Individualmente, e em conjunto, esses aspectos são fontes de insatisfação e aumento das cargas de trabalho na ESF, levando ao desgaste dos trabalhadores.

A demanda é grande e traz risco. (MED 2 ESF)

[...] a maioria que trabalha aqui só usa como "bico", porque não é bem remunerado, é muito mal pago. (MED 3 ESF)

Eu vejo que essa carga horária é pesada, aumenta muito a carga, a gente sai daqui muito cansado, porque são muitas pessoas, muito contato, muita demanda. (THD 1 ESF)

A dificuldade para efetivação do trabalho em equipe e a falta de investimentos na qualificação profissional, para a realização de um trabalho integrado e colaborativo, mostraram-se como fontes de insatisfação para os participantes da pesquisa.

A equipe tem só dois anos, a equipe é muito nova, então a gente está ajudando elas a trabalhar nos moldes da ESF [...] falta capacitação para a efetivação de um trabalho em equipe. (MED 2 ESF)

A rede assistencial revela fragilidades que impedem o bom funcionamento do trabalho e geram insatisfação profissional. Ainda, os sujeitos sinalizaram a falta de reconhecimento do trabalho desenvolvido pela ESF.

Um segundo ponto é o retorno das informações [...] o que foi dito pelo médico de lá. Porque a gente poderia trabalhar melhor com o paciente se a gente soubesse o que foi feito lá, são as falhas na referência e contrarreferência. (ENF 3 ESF)

Tu precisas do CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], dos bombeiros, da polícia, de vários setores e as coisas falham não há um suporte, um sistema integrado para atender o usuário. (ENF 1 ESF)

O pesado é a cobrança deles (usuários); apesar de a gente buscar fazer um trabalho bom, de qualidade, eles acham que porque é público não é de qualidade. Isso me incomoda. (THD 1 ESF)

DISCUSSÃO

Os resultados da pesquisa mostraram que, independentemente do modelo assistencial (ABT ou ESF) a satisfação no trabalho é fortemente influenciada por três fatores: realizar um trabalho com o qual se tem afinidade, o "gostar do que faz"; a resolubilidade da assistência, o que no caso da saúde tem forte relação com a satisfação dos usuários; e em terceiro lugar o trabalho em equipe. Além dos três motivos de satisfação mencionados, destacou-se, na ESF, o estabelecimento de vínculo entre os membros da própria equipe, e destes com os usuários.

No que diz respeito aos motivos de satisfação, dois dos mais significativos, o "gostar do que faz" e perceber que o produto do seu trabalho é útil para a sociedade e reconhecido pelos usuários, têm suporte na teorização de Dejours e na teoria marxista11 sobre trabalho humano. Segundo a teoria marxista, no trabalho humano ocorre um processo de transformação para atender necessidades e, em uma perspectiva filosófica, consiste em um processo criativo, no qual o trabalhador se vê projetado na sua obra11. No processo de transformação, o trabalhador também se transforma, mobiliza não apenas o seu corpo e a sua capacidade cognitiva, mas seus afetos, suas expectativas - o sujeito, em sua integralidade, está envolvido na ação4,11. O "gostar do que faz" tem essa relação de identificação com o trabalho, de sentir-se participante do processo e não apenas executor de tarefas delegadas, realizadas de forma alienada. O trabalhador consegue perceber seu toque mágico no processo de transformação. "Gostar do que faz" constitui-se em elemento protetor do trabalhador, contribuindo para realização de um trabalho orientado pela finalidade projetada para cada atividade de trabalho.

O trabalho em equipe foi o terceiro motivo mais significativo para a satisfação no trabalho na ABT e o segundo na ESF. Esse resultado sinaliza o efeito positivo do trabalho em equipe sobre o sujeito trabalhador em qualquer modelo assistencial. Quando o trabalho é realizado em equipe, de forma colaborativa, com compartilhamento de objetivos, e soma de esforços para o resultado coletivo, aumenta a eficácia do atendimento e contribui para maior satisfação no trabalho. Esse achado aproxima-se do encontrado na literatura em relação ao trabalho em equipes de saúde6,12,13. No que diz respeito à ESF, parece que o modelo prescrito pelo Ministério da Saúde tem contribuído positivamente para a viabilização de equipes cooperativas, ao prescrever que o cuidado às pessoas que vivem em área geográfica definida deve ser realizado por equipes multiprofissionais de forma cooperativa e em uma perspectiva interdisciplinar2.

No que diz respeito à insatisfação no trabalho, verificou-se, nos dois modelos, que os principais motivos de insatisfação são: dificuldades nas relações; dificuldades de colaboração de usuários, famílias e comunidade no processo assistencial; dificuldades nas relações para a realização do trabalho em equipe; e déficits nas condições de trabalho-salário, jornada, sendo que os déficits nos instrumentos de trabalho, no ambiente e área física se destacaram como o motivo de insatisfação mais significativo na ESF. Estes achados têm consonância com o encontrado na literatura sobre processo de trabalho, em especial na saúde5,14-16.

No que diz respeito às relações, especialmente com usuários, família e comunidade, mas também com colegas e gestores, parece que problemas neste campo são significativos para a insatisfação no trabalho independente do modelo assistencial - ABT ou ESF. Assistência em saúde depende de um trabalho coletivo multiprofissional que, para viabilização efetiva, depende da colaboração e de boas relações entre os sujeitos trabalhadores membros das equipes e entre estes e os sujeitos cuidados/usuários dos serviços16. As relações de trabalho que se estabelecem nas equipes e destas com os usuários têm uma dimensão subjetiva e cultural e interfere no resultado assistencial e na satisfação de ambos. Usuários, familiares e comunidade insatisfeitos podem provocar reações de protesto, reivindicações e até "agressões" e "não adesão" a tratamentos prescritos. Insatisfação de usuários implica insatisfação de profissionais e equipes. Parece estar no mesmo sentido a satisfação mencionada pelos profissionais da ESF, quando conseguem aplicar, na prática, os princípios prescritos no modelo. Os profissionais acreditam no modelo proposto para a ESF e identificam como fonte de insatisfação quando há problemas na sua implementação por dificuldades de compreensão da proposta por gestores, usuários e por componentes da equipe; quando identificam a centralidade nas consultas médicas, o que se aproxima do modelo curativo da biomedicina; assim como pelos problemas na rede assistencial (incluindo o sistema de referência e contra-referência). A literatura registra os diversos problemas que a ESF tem enfrentado no seu processo de desenvolvimento e busca de consolidação14,15.

As condições de trabalho destacaram-se, nos dois modelos, entre os principais motivos de insatisfação no trabalho. Condições de trabalho16 incluem: déficits nos instrumentos de trabalho e no ambiente/área física; baixos salários e jornada de trabalho excessiva; excesso de demanda relacionada ao dimensionamento de pessoal, mas que também pode ter relação com a centralidade na relação queixa-consulta médica; e a falta de investimento na educação continuada. A literatura é farta na identificação da relação da insatisfação e aumento das cargas de trabalho com as más condições de trabalho5,9,14,15. A viabilidade de uma proposta inovadora, como a da ESF, depende de condições de trabalho, incluindo equipes em quantidade e qualidade; salários justos15 e jornada de trabalho adequada; educação permanente; organização do trabalho e modelo gerencial mais horizontal e participativo; instrumentos de trabalhos em quantidade e qualidade, de modo a propiciar cuidados resolutivos e seguros para usuários e profissionais. Cabe destacar que o déficit nos instrumentos e área física foi o principal motivo de insatisfação na ESF. A inadequação e a precariedade da área física das Unidades Básicas de Saúde/UBS foram reconhecidas pelo próprio governo federal, e a presidenta da República anunciou, em novembro de 2011, o investimento para modernização de 40 mil UBS, sendo prevista a construção de três mil novas, em áreas de alto risco social.

O modelo assistencial da ABT sustenta-se na ciência de base positivista, a qual tem influenciado a prática assistencial e a organização dos serviços de saúde em todo o mundo. Mesmo após mais de 17 anos de implementação de um novo modelo assistencial, previsto para viabilizar os preceitos Constitucionais e os princípios do SUS, os dois modelos coexistem. Os achados desta pesquisa sinalizam que ainda há certa afinidade de profissionais de saúde e de usuários com a assistência tradicional curativa, focada na doença e na assistência médica e que este modelo tem influenciado as equipes de ESF. No entanto, em relação a este achado, cabe destacar que uma pesquisa realizada por Fertonanni17 com usuários da ESF encontrou resultado oposto no que diz respeito a aspiração dos usuários. Na referida pesquisa, os usuários, ao serem atendidos nos serviços de saúde, demonstraram desejar cuidados que se aproximam dos princípios da integralidade e distanciam-se do modelo centrado na doença que orienta a ABT, o que sinaliza para a necessidade de mais investigações sobre essa temática. Ao mesmo tempo identificou-se que os profissionais que atuam na ABT revelaram, dentre as fontes de satisfação, aspectos inovadores e fortemente valorizados na ESF, como o trabalho em equipe, a prática do acolhimento e o vínculo. Outros estudos3,18 também têm enfatizado a importância dessas ferramentas para romper com o modelo da queixa-conduta e como potencializadores de relações mais harmônicas entre usuários e profissionais de saúde, o que pode favorecer a satisfação de ambos.

O crescimento da ESF trouxe para a centralidade dos debates a necessidade de fortalecer as estratégias de acesso, acolhimento e vínculo por favorecerem os princípios do SUS. Ao mesmo tempo, a expansão da ESF vem evidenciando a insuficiência dos arranjos organizacionais atuais e a falência das práticas profissionais e de gestão no que se refere, especificamente, à mudança dos paradigmas que regem o tradicional modelo de atenção à saúde9.

Cabe destacar que o trabalho pode implicar sofrimento manifestado como falta de motivação e apatia4, e que na ausência de fontes de satisfação no trabalho, assim como nas situações em que a remuneração é o único fator mobilizador para o trabalho, a tendência é conduzir os profissionais ao desgaste e ao adoecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos motivos de satisfação e insatisfação no trabalho na Atenção Básica no Brasil sinaliza que gostar do que faz, condições de trabalho e relações de trabalho têm forte implicação na determinação das duas situações. O estudo mostrou, ainda, que apesar de existir uma dimensão subjetiva na satisfação laboral, as condições concretas para a realização do trabalho são fortemente significativas. A pesquisa também reafirmou a existência de macroproblemas da rede assistencial que fragilizam a atenção básica e o SUS, os quais são de ordem estrutural, política, cultural e de déficit de investimentos financeiros, sinalizando um longo e difícil caminho a ser trilhado.

Os achados sinalizam, ainda, a necessidade imediata de investimentos na qualificação das equipes e dos gestores, bem como no fortalecimento dos mecanismos de controle social e do trabalho das equipes orientado pelo compromisso com a saúde dos usuários. No entanto, é fundamental investir no cuidado e na valorização do trabalhador do SUS, investindo em melhores salários, na implantação de planos de cargos e salários, na qualificação profissional, no fortalecimento do trabalho coletivo multiprofissional na perspectiva interdisciplinar e na atuação intersetorial visando auxiliar e corrigir os problemas na rede assistencial e amenizar a insatisfação de profissionais e usuários.

Os resultados do presente estudo contribuem para o debate acerca de modelo assistencial, da saúde dos trabalhadores da saúde e da resolubilidade da assistência, mas apresentam limitações no que se refere a generalizações, tendo em vista o desenho da pesquisa que estudou, em profundidade, uma realidade determinada. Mostram que mais estudos neste campo podem subsidiar mudanças, mas, também, podem reforçar os bons resultados com vistas ao fortalecimento do SUS.

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