Volume 8, Número 3, Set/Dez - 2004
ARTIGOS DE PESQUISA
O estágio da escola de enfermagem Anna Nery no Hospital de Isolamento São Sebastião (1924-1946)ª
The apprenticeship of Anna Nery Nursing School at the São Sebastião Isolation Hospital (1924-1946)
La pasantía de la Escuela de Enfermería Anna Nery en el Hospital de Aislamiento San Sebastián (1924-1946)
Tatiana de Oliveira GomesI; Ieda de Alencar BarreiraII; Antonio José de Almeida FilhoIII
IAluna do 7º período de Graduação em Enfermagem e Obstetrícia, da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de Iniciação Cientifica CNPq, vinculada ao Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira - Nuphebras
IIProfessora Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental (DEF), da EEAN/UFRJ. Membro do Nuphebras. Pesquisadora 1A do CNPq
IIIProfessor Assistente do DEF da EEAN/UFRJ. Doutorando em Enfermagem na EEAN/UFRJ. Membro do Nuphebras
RESUMO
O objeto deste estudo histórico é o Hospital de Isolamento São Sebastião (HSS), no Rio de Janeiro, como campo de estágio para a Escola Anna Nery (EAN) no período de 1924 a 1946.
OBJETIVOS: descrever a trajetória institucional do HSS; analisar as circunstâncias em que a EAN atuou nesse hospital; e discutir as estratégias por ela desenvolvidas para a utilização do HSS como campo de estágio.
FONTES PRIMÁRIAS: documentos escritos, orais e fotográficos; fontes secundárias: artigos e livros sobre a temática.
RESULTADOS: O HSS, desde a sua criação, sofreu várias alterações em função da ocorrência de diversas epidemias; eram inúmeros os problemas administrativos enfrentados pela EAN no HSS; para evitar as infecções cruzadas, as docentes e alunas da EAN atribuíam grande valor aos procedimentos técnicos de isolamento. Ao tempo em que a EAN colaborou para elevar o padrão de qualidade do hospital, o estágio do HSS contribuiu para ampliar o conhecimento técnico-científico de professoras e alunas da EAN.
Palavras-chave: História da Enfermagem. Enfermagem. Doenças transmissíveis.
ABSTRACT
The object of this historical study is the São Sebastião Isolation Hospital (SSIH), in Rio de Janeiro - Brazil, as an apprenticeship field for Anna Nery School (ANS) from 1924 to 1946.
OBJECTIVES: to describe the institutional trajectory of the SSIH; to analyze the circumstances of the act of ANS at this hospital; and to discuss the strategies developped by this school for the utilization of the SSIH as an apprenticeship place.
PRIMARY SOURCES: written and oral documents and photographies; secundary sources: articles and books about the theme.
RESULTS: the SSIH since its creation suffered several changes because many epidemics occurrence; it was one of the innumerable administrative problems that the ANS faced at the SSIH; to avoid crossed infections, the teachers and students of ANS attributed great value on the isolation technical procedures. At the same time that ANS collaborated to raise the hospital quality standart, the apprenticeship of SSIH contributed to amplify the technical and scientific knowlegde of the ANS teachers and students.
Keywords: History of Nursing. Nursing. Communicable Diseases.
RESUMEN
El objeto de este estudio histórico es el Hospital de Aislamiento San Sebastián (HSS), en Rio de Janeiro - Brasil, como campo de pasantía para la Escuela Anna Nery (EAN) en el periodo de 1924 a 1946.
OBJETIVOS: describir la trayectoria institucional del HSS; analizar las circunstancias en que la EAN actuó en ese hospital; y discutir las estrategias por ella desarrolladas para la utilización del HSS como campo de pasantía.
FUENTES PRIMARIAS: documentos escritos, orales y fotográficos; fuentes secundarias: artículos y libros sobre la temática.
RESULTADOS: el HSS, desde su creación, sufrió varias alteraciones en función de la ocurrencia de diversas epidemias; eran innumerables los problemas administrativos enfrentados por la EAN en el HSS; para evitar las infecciones cruzadas, las docentes y alumnas de la EAN atribuían gran valor a los procedimientos técnicos de aislamiento. Al tiempo en que la EAN colaboró para elevar el patrón de calidad del hospital, la pasantía del HSS contribuyó para ampliar el conocimiento técnico y científico de profesoras y alumnas de la EAN.
Palabras clave: Historia de la Enfermería. Enfermería. Enfermedades transmisibles.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O objeto deste estudo é o Hospital de Isolamento São Sebastião (HSS), utilizado como campo de estágio pela Escola Anna Nery (EAN) de 1924, quando a turma pioneira estagiou nas dependências do HSS, até 1946, quando a Escola encerrou suas atividades de estágio no HSS.
Este trabalho apresenta como objetivos: descrever a trajetória institucional do Hospital São Sebastião; analisar as circunstâncias em que a Escola Anna Nery atuou nesse hospital; e discutir as estratégias por ela desenvolvidas para a utilização do Hospital São Sebastião como campo de estágio.
Para tanto, torna-se necessário compreender o contexto histórico, político e social que envolveu e desencadeou o processo de criação e ampliação progressiva do HSS, bem como a utilização do mesmo pelas alunas da EAN.
Desde o século XIX, a febre amarela, a varíola, a malária e a peste assolavam a capital do país. Não obstante algumas iniciativas de caráter legal, como a organização sanitária brasileira, não foi capaz de atender às questões de polícia sanitária e saneamento. Foi somente com a Reforma Oswaldo Cruz, em 1904, quando foi reestruturada a Diretoria Geral de Saúde Pública, que se fizeram sentir melhoramentos na ação sanitária, que alcançou grandes êxitos na luta contra as "doenças pestilenciais" na capital federal (Costa1).
A Reforma Carlos Chagas criou o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), que ensejou a participação dos sanitaristas no processo decisório governamental, substituiu as práticas de polícia sanitária pelas de educação sanitária, expandiu as atividades de saneamento, criou órgãos especializados e uma Escola de Enfermeiras, cujas diplomadas integrariam a equipe de saúde pública (Rodrigues2).
O presente estudo, de cunho histórico-social, tem como fontes primárias documentos escritos das séries Missão Parsons e Ofícios Expedidos, bem como relatórios anuais das diretoras da EAN; os depoimentos orais do Dr. José Antônio Nunes de Miranda (ex-acadêmico de medicina, estagiário do HSS) e da ex-aluna da EAN Ana Jaguaribe da Silva Nava, localizados no Cedoc/EEAN/ UFRJ; documentos escritos e fotografias cedidas pela diretoria do HSS; e ofícios localizados no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). As fontes secundárias utilizadas foram livros e periódicos que abordam a história da saúde pública no Brasil, a história da enfermagem brasileira e do HSS, localizados na biblioteca setorial de pós-graduação da EEAN, no Banco de Textos do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras) e no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que a análise dos documentos foi realizada face ao contexto político e social no qual eles foram produzidos.
OS PRIMÓRDIOS DO HOSPITAL SÃO SEBASTIÃO
O Hospital São Sebastião (HSS) foi inaugurado ao final do Império, em 9 de novembro de 1889, em uma chácara na Praia do Retiro Saudoso, conhecida como "Ponta do Caju", área periférica da zona urbana, de frente para baía da Guanabara (Histórico do Hospital São Sebastião3; Benchimol4).
A cerimônia contou com a presença do imperador D. Pedro II, suas altezas imperiais, ministros e pessoas influentes da Corte; no mesmo mês foram recebidos os primeiros doentes (Histórico do Hospital São Sebastião3).
O HSS, considerado um modelo para a época, consistia em um conjunto de pavilhões assemelhando-se a uma vila, cujos edifícios eram separados um dos outros, de forma a favorecer a circulação de ar e a difusão da luz solar. Os doentes hospitalizados eram distribuídos por sexo, tipo de doença e estado de saúde. O conjunto comportava construções permanentes, bem como enfermarias-barracas, assim denominadas por serem construídas de madeira e em caráter provisório, com o objetivo de atender determinada emergência (Benchimol4).
A estrutura original do HSS abrigava o gabinete do diretor, uma secretaria e mais sete enfermarias, totalizando 240 leitos. Das sete enfermarias, três eram gerais, uma para mulheres, uma para agônicos e as outras duas eram pavilhões de madeira do tipo Lefort, com 60 leitos cada. Esses pavilhões eram elevados do solo, de único andar e mediam 45 m de comprimento e 18 m de largura cada um, havendo uma comunicação entre eles. Ao redor havia uma varanda, a qual dava acesso às diversas portas do pavilhão. A cozinha, o refeitório, a rouparia, o almoxarifado, a lavanderia, o necrotério, a carvoaria, as cocheiras e a residência para os internos funcionavam em construções independentes. O HSS contava ainda com dois grandes reservatórios de água, destinado à limpeza do hospital e para casos de incêndio (Benchimol4).
Desde então o HSS sofreu progressivos acréscimos, pois o número de pessoas atingidas por doenças infectocontagiosas, no Rio de Janeiro, era superior à sua disponibilidade, exigindo a realização de obras emergenciais. Para uma melhor observação dessa evolução, foi elaborado o Quadro I que evidencia o ritmo das ampliações para atender às demandas emergenciais, tanto assim que algumas dessas instalações foram construídas em caráter provisório, mormente durante a Gestão Oswaldo Cruz.
Quadro 1 - Clique para ampliar
Mesmo com as dificuldades de atendimento à população, o HSS permitiu a realização de importantes pesquisas e recebeu a visita de ilustres médicos e missões estrangeiras, entre elas a Missão Pasteur, a qual veio ao Rio de Janeiro, em novembro de 1901, com o objetivo de pesquisar o agente etiológico da febre amarela e preparar uma vacina. O diretor do HSS, Dr. Carlos Seidl, instalou a Missão em um prédio de dois andares, denominado Pavilhão Finlay, de modo a melhor acomodar o laboratório de mosquitos e outros animais utilizados nos estudos (Histórico do Hospital São Sebastião3).
Os estudos da Missão permitiram a criação de um dispositivo para isolar os doentes de febre amarela, principalmente nos quatro primeiros dias de infecção, evitando a propagação da doença. Tal dispositivo, conhecido como "quarto Marchoux", foi utilizado nos dois pavilhões Lefort, subdividindo-os em 14 quartos de tela de arame, cada qual com um leito e porta dupla, ordenados em duas fileiras (Benchimol 4).
Apesar desses vários acréscimos e reformas, o número de leitos disponíveis no HSS continuava insuficiente, sobretudo para atender a população dos subúrbios do Rio de Janeiro, o que fez com que as autoridades sanitárias, em meados de 1908, transformassem uma fábrica falida no Hospital do Engenho de Dentro, o qual passou a funcionar como dependência do HSS. Benchimol4
O HOSPITAL SÃO SEBASTIÃO COMO CAMPO DE ESTÁGIO DA ESCOLA ANNA NERY
A partir dos anos 20, quando as alunas da EAN já estagiavam no HSS, passa-se a observar uma maior homogeneidade nas novas construções do Hospital.
Em fevereiro de 1927, começou a funcionar o pavilhão Affonso Penna, destinado ao tratamento das moléstias contagiosas agudas em geral. Em julho de 1927, foi inaugurado o pavilhão Zeferino Meirelles, com 64 leitos destinados a homens tuberculosos (Série Missão Parsons5). Em abril de 1928, esse pavilhão foi fechado para reformas e seus 59 doentes foram transferidos para o pavilhão Vianna de Castillo e para a divisão de febre amarela do pavilhão Affonso Penna. No ano seguinte, outro pavilhão já fazia parte do HSS: o pavilhão Carlos Seidl (Pullen 6).
Em julho de 1930, foi aberto o pavilhão Miguel Couto que possuía excelente organização e equipamentos. O prédio era constituído por dois andares, o primeiro correspondia a enfermarias de adultos e o segundo de crianças, cada um com um corredor de 100 metros, com seis quartos pequenos nas extremidades e, no centro, enfermarias para doentes de todas as idades (Série Missão Parsons 5; Coelho7). Nesse mesmo mês, tal pavilhão recebeu todos os doentes existentes no pavilhão Affonso Penna, exceto os doentes tuberculosos, de ambos os sexos. Pullen 6. Em dezembro de 1930, o pavilhão Affonso Penna foi ocupado apenas por mulheres tuberculosas e os homens tuberculosos foram transferidos para o pavilhão Ferreira Vianna (Pullen 6; Série Missão Parsons5).
No ano de 1932, após a Revolução Constitucionalista, eclodiu uma epidemia de varíola e alastrim. Em novembro desse ano, foi aberta uma enfermaria de emergência no pavilhão Clementino Fraga, com 50 leitos, para atender aos soldados enviados pelo Hospital Central do Exército. No mês seguinte, essa enfermaria foi fechada (Lobo 8).
Em 1936, dois outros pavilhões foram construídos: o pavilhão Plácido Barbosa, destinado a gestantes tuberculosas, e o pavilhão Fernandes Figueira, para o serviço de crianças tuberculosas (Pullen 6; Veiga Filho 9).
Em 1941, em vista da crescente importância da tuberculose, foi inaugurado no HSS, o Laboratório Central da Tuberculose, idealizado por Milton Fontes Magarão e Clementino Fraga (Fernandes 10).
Em setembro de 1946, uma outra epidemia de febre tifóide exigiu a abertura de um serviço de emergência com 30 leitos (Curtis 11).
O quadro a seguir permite uma melhor compreensão da estrutura do HSS, durante o período em que a EAN atuou nessa instituição.
Desde o início do curso, em 1923, a EAN teve de enfrentar a falta de pessoal habilitado e de local apropriado para a prática das alunas em doenças infecto-contagiosas, pelo fato de o Hospital São Francisco de Assis, organizado em função da EAN, não oferecer tais serviços (Aguinaga12).
Após décadas de sua inauguração, persistiam os problemas estruturais do HSS, que determinavam grandes dificuldades na sua utilização como campo de estágio: falta de água, mais funcionamento da lavanderia e escassez de recursos materiais e humanos em geral (Reys13).
Apesar dessas dificuldades, em novembro de 1924, cinco alunas da EAN foram designadas para estágio no HSS. Essa experiência inicial se deu em enfermarias masculina e feminina. Os cuidados de enfermagem incluíam a fiscalização de repouso e dieta, verificação de peso e temperatura corporal e aplicação de compressas frias (Série Missão Parsons 5).
Em 1927, a Escola já contava com uma docente na função de diretora de enfermagem do HSS. Ao mesmo tempo, observa-se um aumento no número de pavilhões sob a responsabilidade da EAN. O pavilhão Affonso Penna, destinado ao tratamento das moléstias contagiosas em geral, ficou a cargo da Escola. Série Missão Parsons 5. Em julho, a Escola assumiu mais um pavilhão, o Zeferino Meirelles. No ano seguinte, as alunas prestavam cuidados no pavilhão Carlos Seidl (Denhardt 14).
Em 1930, o HSS chegou a ter cinco pavilhões sob os cuidados das alunas da EAN: o pavilhão Miguel Couto, para doenças transmissíveis em geral, com 90 leitos; o pavilhão Ferreira Vianna, destinado aos homens tuberculosos, com 54 leitos; o pavilhão Affonso Penna para as mulheres tuberculosas, dispondo de 80 leitos; o pavilhão Zeferino Meirelles, para homens tuberculosos, com 64 leitos, além do Pavilhão Carlos Seidl, do qual não foi possível identificar a capacidade (Série Missão Parsons5).
Em março de 1931, devido ao elevado número de doentes internados no pavilhão Miguel Couto, ficou decidido que o serviço de enfermagem aos tuberculosos dos pavilhões Carlos Seidl e Affonso Penna fechariam, de modo que as enfermarias deste ultimo seriam transferidas para o pavilhão Miguel Couto, o que permitiria melhor instrução às alunas da EAN (Pullen 6).
A enfermaria de emergência, aberta no pavilhão Clementino Fraga, para atender à epidemia de varíola, detectada ao final da Revolução Constitucionalista, em 1932, ficou aos cuidados da EAN e durante o tempo em que permaneceu aberta (novembro-dezembro 1932) não houve óbito, nem infecção cruzada (Lobo 8).
Em 1933, a pedido do diretor do HSS, à época, Dr. Sinval Lins, reforçado pela assistente de diretora naquele hospital, a enfermeira Sylvia Maranhão, foi destacada a enfermeira de saúde pública Isaura Barbosa Lima para organizar o pavilhão Clementino Fraga, o qual foi reinaugurado no dia 2 de julho do corrente ano (Lobo 8)
Em 1946, outro pavilhão, o Fernandes Figueira, destinado aos pacientes com tuberculose, também servia como campo de prática para as alunas da EAN.
O Quadro II permite observar que a participação da EAN no serviço de enfermagem do HSS se dava tanto na organização quanto nos cuidados de enfermagem aos doentes acometidos por várias doenças infectocontagiosas, com destaque para a tuberculose, que nessa época era objeto de grande preocupação das autoridades sanitárias do país.
Quadro 2 - Clique para ampliar
AS ESTRÁTÉGIAS ADOTADAS PELA ESCOLA ANNA NERY
A participação das alunas da EAN no HSS se deu num contexto no qual a epidemiologia orientava as políticas de saúde pública, que atribuíam grande ênfase ao controle das fontes de infecção e dos vetores. O uso de antibióticos ainda era incipiente, tanto que é na década de 40 que observamos os primeiros artigos sobre o assunto publicados na revista Anais de Enfermagem (Décourt15; Teixeira16). Nessas circunstâncias, a estratégia da EAN, para evitar a disseminação das doenças infectocontagiosas, era a execução estereotipada das técnicas de isolamento.
Por isso, a todo instante a aluna era observada quanto à sua capacidade para a técnica de colocação e retirada do capote de isolamento. Da mesma forma, eram exigidas da aluna responsabilidade e habilidade para prestar cuidados aos pacientes em isolamento, sem que contaminasse a si ou ao material utilizado nos diversos procedimentos, entre os quais podemos citar: vestir e despir o capote, limpeza das mãos, uso de máscaras, verificação de temperatura, pulso, respiração e pressão arterial, aplicação de compressas frias e quentes, aplicação de injeção e administração de medicamentos, transporte da roupa usada da área contaminada e até a assinatura de papéis. Os procedimentos técnicos de isolamento eram minuciosamente descritos em um artigo, com ênfase no uso do capote, que contava com 11 passos para sua colocação e 13 para sua retirada. Alguns procedimentos contavam com ilustrações para melhor compreensão das alunas (Escola Anna Nery 17).
A avaliação das experiências práticas em cada enfermaria era mensalmente registrada em um relatório, juntamente com as notas atribuídas, que variavam de 6 (excelente) a 1 (má). Esse relatório, onde os critérios englobavam aceitabilidade ao paciente, adaptabilidade, dignidade, gênio, simpatia, sinceridade, iniciativa, interesse, lealdade, memória, poder de observação, pontualidade, confiança e tato, era entregue a cada aluna, para o conhecimento de sua avaliação. Somado a esse relatório, havia um outro, de caráter confidencial, que era preenchido somente pela diretora da Escola ou por pessoa por ela designada (Ribeiro 18).
O estágio das alunas tinha a duração de quatro meses. Havia três turnos de trabalho: de 7 às 14 horas, das 14 às 21 horas e das 21 às 7 horas do dia seguinte (Ribeiro18).
Em 1930, foi instalada uma residência para enfermeiras da EAN nas dependências do hospital, o que indica a importância da atuação da EAN no HSS. O local escolhido foi o mesmo pavilhão Finlay que havia sediado a Missão Pasteur (Histórico do Hospital São Sebastião3). A casa recém-modelada foi inaugurada em 6 de março (Série Missão Parsons5).
O controle das alunas na residência era norteado por um regulamento elaborado pela diretora da EAN, Bertha Pullen, e contemplava detalhes como: organização dos quartos pelas alunas, ausências e saídas do hospital, comportamento apropriado, horário das refeições e uso do telefone (Série Missão Parsons5). Dessa forma, ressalta-se que o cotidiano das discentes da EAN era rigorosamente controlado e planejado a fim de proporcionar a formação do habitus profissional das alunas (Santos19).
Em 6 de agosto de 1935, Zaira Cintra Vidal iniciou a instrução prática das diplomadas da EAN. As aulas, ministradas no pavilhão Miguel Couto, foram acompanhadas pela então diretora da Escola, Bertha Pullen, que sempre que achava necessário, fazia modificações. Para padronizar a instrução e o desempenho das alunas, a enfermeira interna Judith Arêas ficou responsável pela demonstração das técnicas, bem como pela fiscalização de sua execução, de modo a garantir a eficácia de cada procedimento, o que explica o fato de que durante os 12 anos em que a chefe de enfermeiras da EAN, D. Carmem Graça, trabalhou no HSS, houve apenas um caso de contágio: uma enfermeira se feriu ao furar bolhas na pele de um rapaz acometido de tifo, vindo a falecer da doença (Pullen 6; Ribeiro 18).
A falta de condições de trabalho no HSS era dramática e permanente. No mesmo ano de 1935, em visita de inspeção realizada pela diretora da Escola, foi encontrada, no pavilhão Miguel Couto, uma criança com traqueostomia, a qual se achava sem proteção por falta de gaze no hospital; outros quatro casos cirúrgicos estavam em igual situação. Para solucionar o problema, a Escola providenciou uma remessa de gaze do Hospital São Francisco de Assis (Pullen 6).
A lavagem das roupas das alunas se constituía um problema crônico. Até 1935, a EAN tinha que fornecer sabão e óleo ao HSS. Mais tarde, o HSS passou a arcar com tais despesas, porém a roupa era extraviada com freqüência ou voltava em péssimas condições para o uso. Por isso, em março de 1940 foi feito um acordo com outro campo de estágio da EAN, o Hospital Arthur Bernardes, no sentido de que assumisse o serviço de lavagem das roupas das alunas (Pullen 6 ; Reys 13).
Durante os anos da década de 40, as precárias condições do HSS, às quais as alunas estavam submetidas constantemente, eram citadas, mensalmente, nos relatórios da Escola, como ilustra o relato da diretora da EAN, Laís Netto dos Reys, em julho de 1945, manifestando a sua insatisfação pelo fato de as alunas e enfermeiras terem que realizar tarefas que não lhes competiam, como carregar água quente para o banho dos doentes e levar e trazer material do laboratório, por falta de serventes. Essa situação ficou sem solução durante diversos anos, apesar de pelo menos em um ofício a diretora da EAN solicitar solução imediata ao diretor do HSS. Nesse mesmo ofício, a diretora reclama também do reduzido número de enfermeiras do próprio HSS, o que sobrecarregava alunas e professoras (Série Ofícios Expedidos - As pioneiras20). Em que pese a reclamação sobre as condições de conservação da residência das enfermeiras e alunas da EAN, o depoimento oral da ex-docente da EAN, então aluna, Ana Jaguaribe da Silva Nava, revela que tal fato parecia ser compensado por uma convivência calorosa. Em suas palavras: ...à noite nós podíamos receber visitas, os internos podiam ir lá [na residência das enfermeiras]. Eu e o Veloso, um mineiro de Ouro Preto, tocávamos piano, revezávamos, elas [as alunas] dançavam... (Nava21).
Apesar dessas inúmeras dificuldades, a competência de enfermeiras e alunas da EAN no HSS era amplamente reconhecida, como relata o ex-estudante de medicina José Antônio Nunes Miranda, que, em 1942, estagiou no HSS: O pavilhão Miguel Couto era campo da EAN e nós, internos, também trabalhávamos lá (...) era um problema sério com a enfermagem, porque elas sabiam muito mais do que, de uma maneira geral, os residentes, os internos (...) (Depoimento Jose Antônio Nunes de Miranda 22).
Não obstante, em julho de 1946, alegando-se a precária condição da residência das enfermeiras no HSS, as alunas foram transferidas para o Internato da EAN, em Botafogo, ainda que tal providencia obrigasse a um gasto de gasolina para seu transporte diário. Ainda em 1946, a diretora da Escola, Laís Netto dos Reys, comunicou ao Diretor do Hospital que, a partir de 1º de janeiro de 1947, as atividades das alunas estariam encerradas nesse estabelecimento (Série Ofícios Expedidos - As pioneiras20)
Devemos considerar que o encerramento da atuação da EAN do HSS, após 22 anos de contínua cooperação (1924-1946), ocorreu em uma conjuntura que envolvia tanto a conquista pela EAN do estatuto de unidade autônoma na Universidade do Brasil (UB), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, como a transferência administrativa do Hospital São Francisco de Assis e, portanto, do pavilhão Carlos Chagas (PCC), de doenças contagiosas, da Prefeitura do Rio de Janeiro para a UB, através do Decreto-lei nº 9.636, promulgado em 22 de agosto de 1946 (Silva Júnior23). Tais fatos explicam e justificam a transferência do campo de estágio da EAN para uma unidade da própria universidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Hospital São Sebastião (HSS), última construção pública inaugurada por D. Pedro II, funcionou como uma instituição modelo, tanto para o tratamento dos doentes acometidos por doenças infecto-contagiosas como para o desenvolvimento de pesquisas Logo após a sua criação, o HSS demonstrou ser insuficiente para atender à grande população da capital federal, em face da ocorrência de epidemias; dessa forma, ele sofreu diversas alterações de infra-estrutura.
Apesar de esta instituição hospitalar, nesse período, se caracterizar como um aglomerado de pavilhões, construídos de acordo com as necessidades de cada momento e da precariedade de suas condições de funcionamento, a EAN prestou-lhe relevantes serviços por mais de duas décadas, envolvendo tanto o cuidado dos doentes como a organização e a chefia de enfermagem de vários pavilhões. Vale ressaltar o alto padrão de qualidade dos serviços prestados, mesmo diante das enormes dificuldades administrativas enfrentadas. Ao mesmo tempo, o HSS foi fundamental para a formação das alunas da EAN, pois as mesmas tiveram amplas oportunidades de adquirir experiências no cuidado aos doentes acometidos por diversas doenças infectocontagiosas. O HSS parece ter proporcionado às alunas um rico campo de aprendizado, onde havia um espaço de autonomia para o serviço de enfermagem.
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21. Nava AJS. Depoimento. Rio de Janeiro (RJ): UFRJ/EEAN/Centro de Documentação. p. 26.
22. Miranda JAN. Depoimento. Rio de Janeiro (RJ): UFRJ/EEAN/Centro de Documentação. p. 26
23. Silva Junior OC. Do asylo da mendicidade ao Hospital Escola São Francisco de Assis: a mansão dos pobres. Rio de Janeiro (RJ): Papel & Virtual; 2000.
NOTA
ª Trabalho vencedor do prêmio "A Lâmpada". classificado em primeiro lugar na categoria aluno de graduação, no 11º Pesquisando em Enfermagem, 7ª Jornada Nacional de História da Enfermagem - Nuphebras e 4º Encontro Nacional de cuidados de Enfermagem - Nuclearte.
Recebido em 19/07/2004
Reapresentado em 22/11/2004
Aprovado em 03/12/2004