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CAPES

Volume 8, Número 3, Set/Dez - 2004

ARTIGOS DE PESQUISA

 

As enfermeiras na força expedicionária brasileira: a criação de um habitus militar na 2ª Guerra Mundial

 

The nurses in the brazilian expeditionary force: the creation of a military habitus at World War II

 

Las enfermeras en la fuerza expedicionaria brasileña: la creación de un habitus militar en la 2ª Guerra Mundial

 

 

Margarida Maria Rocha BernardesI; Gertrudes Teixeira LopesII; Tânia Cristina Franco SantosIII

IEnfermeira e Bióloga. Especialista em Administração em Serviços de Saúde. Mestre em Enfermagem pelo Programa de Mestrado - Faculdade de Enfermagem / Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Docente do Curso de Graduação da Universidade Estácio de Sá. Enfermeira supervisora da Fundação Hospitalar de Resende - RJ. E-mail: margarbe@globo.com
IILivre Docente, Professora Titular do Departamento de Fundamentos de Enfermagem, Coordenadora do Programa de Mestrado e Procientista da Faculdade de Enfermagem / Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de História da Enfermagem Brasileira e Doutora em Enfermagem - Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq
IIIDoutora em Enfermagem, Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental e Membro da Diretoria do Núcleo de História da Enfermagem Brasileira - Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq

 

 


RESUMO

Estudo de cunho histórico-social que tem como objetivo descrever os princípios/bases do processo de seleção e preparo das enfermeiras inseridas na Força Expedicionária Brasileira. As fontes primárias foram uma fotografia e nove depoimentos orais de enfermeiras que participaram da Força, tratados e analisados à luz dos conceitos de habitus, poder, violência e capital simbólico. Os resultados mostram que seu treinamento, antes de partirem para o front, consistiu de etapas distintas incluindo condicionamento físico obrigatório e preparo social exigido para que se comportassem como militares, além de preparo profissional. Em vista dos achados, tornou-se evidente o fato de que a convocação e participação das enfermeiras na 2ª Guerra Mundial aconteceu graças a uma imposição do governo dos Estados Unidos da América ao governo brasileiro, exigindo enfermeiras na força tarefa que seguiu para a Itália para cuidar dos soldados brasileiros.

Palavras-chave: Enfermagem. Enfermeira. Exército. 2ª Guerra Mundial.


ABSTRACT

Historical and social study with the purpose to describe the principles/basis of the selection process and the preparation of the nurses in the Brazilian Expeditionary Force. The primary sources was photographies and nine oral depositions of nurses that took part of the Expeditionary Force, treated and analized according to the concepts of the habitus, power, violence and simbolical capital. The results showed that their training, before their going to the front, consisted in diferents stages that included obligatory physical conditioning and social preparation necessary for that they could behave as militaries, besides the professional preparation. Because of what was found, it became clear the fact that the calling and participation of the nurses in the World War II happened because of an imposition of the North American government to the brazilian government, demanding nurses in the task force that went to Italy to take care of the brazilian soldiers.

Keywords: Nursing. Nurses. Army. World War II.


RESUMEN

Estudio historico y social que tiene como objetivo describir los principios/bases del proceso de selección y preparación de las enfermeras que participaron en la Fuerza Expedicionaria Brasileña. Las fuentes primarias fueron una fotografia y nueve testigos orales de enfermeras que participaram de la fuerza, tratados y analizados a luz de los conceptos de habitus, poder, violencia y capital simbólico. Los resultados revelan que su entrenamiento, antes de la partida para el front, consistió de etapas distintas incluyendo condicionamento fisico obligatorio y preparación social para tener conducta de militares, y también formación profesional. Delante de los resultados, se tornó evidente el hecho de que la convocación y participación de las enfermeras en la 2ª Guerra Mundial ocurrió a causa de una imposición del gobierno de los Estados Unidos de América al gobierno brasileño que exigia una Fuerza para cuidar de los soldados brasileños en Italia.

Palabras clave: Enfermería. Enfermera. Ejército. 2ª Guerra Mundial.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAS

Estudo de natureza histórico-social. Ele apresenta como objetivo, analisar o processo de seleção e preparo das enfermeiras do Exército, inseridas na Força Expedicionária Brasileira (FEB), como conquista do espaço social da Enfermagem no cenário da 2.ª Guerra Mundial.

Esta Guerra Mundial ocorreu no momento político brasileiro denominado Era Vargas, um período compreendido entre os anos de 1930 a 1945(1). Como parte dos países aliados neste conflito, o Brasil criou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que partiu para o campo de batalha comandada pelo General João Batista Mascarenhas de Moraes(2). Na oportunidade foram para a Itália cento e oitenta e seis profissionais de saúde, tais como médicos, dentistas, farmacêuticos da ativa e da reserva, vários professores de medicina e de odontologia, e sessenta e sete enfermeiras pioneiras do Exército(3).

Um dos fatores que possibilitou o pioneirismo dessas enfermeiras foi a mobilização nacional espontânea que se desenvolveu sob a forma de pressão popular, para a entrada no Brasil na 2ª Guerra Mundial. As brasileiras procuraram uma maneira de participar dessa mobilização, e o caminho encontrado foi pela profissão de Enfermagem. Assim, houve uma demanda significativa pelos cursos das escolas de formação em Enfermagem da época. Um fato significativo que demonstra a importância desse voluntariado foi o ingresso de duas alunas pertencentes à nobreza brasileira, as princesas Maria Francisca e Maria Tereza Orleans e Bragança, na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha Brasileira(3).

A necessidade de criação de um Quadro de Enfermeiras para atuar no cenário da guerra, juntamente com o efetivo da FEB, aconteceu a partir de uma solicitação/ordem aos aliados dos Estados Unidos da América (EUA), uma vez que (...) as [enfermeiras] deles estavam já muito cansadas e, além do mais, não falavam a nossa língua [o português](4:25).

Dessa forma, o governo brasileiro implementou a busca de voluntárias, em caráter de urgência, para atender à solicitação do governo dos EUA, desde então um grupo hegemônico, mandatários do Estado, detentores do monopólio de violência simbólica legítima (5:46).

Para atender às exigências do governo norteamericano, as Forças Armadas brasileiras requisitaram jovens voluntárias e as submeteram a um treinamento capaz de prepará-las para enfrentar um cenário de guerra, além de todas as implicações que pudessem advir de um evento dessa natureza. Tal fato gerou uma mudança significativa no habitus das jovens, quando receberam formação militar. Elas tiveram a oportunidade de se apropriarem de uma forma de cultura diferenciada, já que para atuarem nos cenários de batalha passaram por uma espécie de aculturação ao estilo militar.

Para os brasileiros, o Teatro de Operações (W. L. Cardoso, comunicação pessoal, 18 fev. 2002ª) da 2ª Guerra Mundial foi na Itália, o que incluiu uma mudança de habitus daquelas enfermeiras de maneira quase que radical, de vez que elas estariam em um país distante, desenvolvendo atividades diferentes daquelas as quais estavam acostumadas, e isso em plena guerra.

 

BASES METODOLÓGICAS E CONCEITUAIS

Esta investigação é de natureza histórico-social, com uma fonte primária principal para a realização do estudo - uma fotografia encontrada no Jornal A Folha Ilustrada, da coleção particular da enfermeira Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrerob, que fez parte do Grupamento Feminino que atuou no Teatro de Operações.

Na investigação original denominada "O Grupamento Feminino de Enfermagem do Exército na Força Expedicionária Brasileira durante a 2.ª Guerra Mundial: uma abordagem sob o olhar fotográfico 1942 a 1945"c, desenvolvida em 2002 e 2003, da qual foi retirado parte do material empírico para a elaboração deste estudo, nove enfermeiras da FEB participaram com seus depoimentos orais. Elas concordaram em participar daquela pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Doação de Depoimento, para o Centro de Memória Professora Doutora Nalva Pereira Caldas da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Então, as fontes primárias complementares deste estudo foram: (a) o depoimento da enfermeira Virgínia Portocarrero realizado para a investigação citada, no qual ela faz referências e comentários sobre a fotografia já considerada, uma vez que ela é uma das protagonistas nela envolvidas (a outra enfermeira já é falecida); (b) nota publicada no Jornal A Manhã sobre o treinamento das enfermeiras; e (c) artigos publicados na época, principalmente em periódicos do próprio Exército ou outras instituições a ele vinculadas direta ou indiretamente. Como fontes secundárias foram utilizados artigos mais recentes relativos aos eventos considerados neste estudo.

O depoimento oral da Enfermeira Virgínia Portocarrero foi gravado e tratado através de transcrição, de acordo com os cuidados recomendados no âmbito da história oral. O material selecionado deste depoimento, de acordo com o seu conteúdo manifesto, foi analisado à luz dos conceitos de habitus, campo, poder, violência e capital simbólico(5). Estes conceitos também fundamentaram a análise das demais fontes históricas contidas neste estudo.

 

O PROCESSO DE SELEÇÃO DAS ENFERMEIRAS COMO AGENTES PARA O TEATRO DE OPERAÇÕES

Em 1942, na entrada formal do Brasil na 2ª Guerra Mundial, houve uma série de acordos para ajuda entre os aliados, e mais precisamente entre o Brasil e os EUA. Assim, foi fundamental para o governo norte-americano que o governo brasileiro permitisse a construção de bases militares no Rio Grande do Norte, um fato considerado vital para a proteção do Atlântico Sul, o desenvolvimento das batalhas do Atlântico Norte e a manutenção de uma linha de comunicações com o norte da África. Para operacionalizar esses acordos, a administração Roosevelt enviou uma missão técnica para ajudar a planejar e organizar a FEB que, após o processo de mobilização, seleção e treinamento dos seus integrantes, desembarcou na Itália, em 1944(1).

Além do Exército Brasileiro, duas outras Forças Armadas envolveram-se com a FEB. A Marinha do Brasil participou do esforço de guerra, transportando para Gibraltar cinco grupos da Força para o Teatro de Operações. E a Força Aérea Brasileira (FAB) enviou um Grupo de Caça para a Itália, efetuou o patrulhamento das costas brasileiras e a execução da campanha antisubmarina. A Marinha Mercante, apesar de todos os reveses, continuou no tráfego para o abastecimento(3).

Seguiram para a 2ª Guerra Mundial as tradicionais Armas do Exército: Infantaria, Artilharia, Engenharia, Cavalaria e 1º Batalhão de Saúde. Também integraram a referida Força, as Companhia de Manutenção, Companhia de Intendência, Companhia de Transmissões, Pelotão de Polícia, Banda de Música Divisionária, Justiça Militar e o Banco do Brasil, que funcionou com três escritórios(6). O Corpo de Saúde da FEB foi articulado de forma rápida. No que tange as enfermeiras voluntárias da FEB, elas iniciaram sua adesão à essa força em 9 de outubro de 1943. Sua chamada foi publicada no Jornal O Globo(7).

Ao atender o apelo do governo brasileiro, a mulher estaria cônscia de suas responsabilidades patrióticas(3:34), quando escolheu participar na guerra e se engajar na FEB. Os requisitos necessários pautavam-se na exigência das convocadas possuírem um capital cultural que, à época, era o de deter alguma experiência na prática assistencial de enfermagem, portando qualquer diploma comprobatório de Enfermagem. A enfermeira Elza Cansanção, integrante do Grupamento Feminino de Enfermagem do Exército da FEB, confirma essa exigência:

[...] Resolveram então abrir o voluntariado com qualquer diploma de enfermagem; quer dizer, qualquer treinamento de enfermagem seria aceito no Exército [...].

Ratificando a posição anterior, era necessário [...] portar diploma de escola de enfermagem, [ter] idade [entre] 18 a 36 anos e ser solteira, viúva ou separada8:59 . Assim, a seleção das candidatas comportava exigências que visavam a construção de um grupo mais ou menos homogêneo, capaz de assimilar os deveres inerentes à posição que essas mulheres enfermeiras ocupariam dentro de uma cultura diferenciada, cuja característica é uma rígida estrutura hierárquica. Esta posição confirma-se textualmente, pois, [...] o discurso militar traz o apelo do amor à pátria e a crença absoluta no valor da corporação, fundamentos da construção do espírito militar [...]9:127.

 

PRINCÍPIOS/BASES PARA A FORMAÇÃO DO HABITUS DA ENFERMEIRA DO EXÉRCITO E ALGUMAS DE SUAS CONSEQÜÊNCIAS

No campo militar, a disciplina rígida é reforçada pela postura corporal, pelo exercício contínuo de gestos nítidos e sincronizados e pela padronização de normas9. Dessa forma, para que fizessem parte da FEB, as enfermeiras/agentes selecionadas participaram, em caráter obrigatório, do Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército (CEERE) ministrado pela Diretoria de Saúde do Exército (J. de M. Corrêa Neto, comunicação pessoal, 14 fev. 2002d), cujo objetivo era formar o Quadro de Enfermagem (QEERE) e. Tal Curso representou uma estratégia de homogeneização do comportamento das candidatas, mediante a introspeção de um habitus militar.

Quatro cursos foram ministrados, cada um deles com duração de seis semanas e comportando três módulos distintos, a saber: parte teórica, preparação física e instrução militar l. Das 113 candidatas, seguiram para o Teatro de Operações 67 enfermeiras, sendo 61 enfermeiras hospitalares e 6 enfermeiras especializadas em transporte aéreo(7).

No Rio de Janeiro, a Diretoria de Saúde do Exército realizou o Curso de Adaptação. Ao mesmo tempo, nas outras sedes das Regiões Militares, as Chefias dos Serviços de Saúde ficaram responsáveis pelo treinamento das enfermeiras dos outros Estados da Federação. O Hospital Central do Exército ofereceu aulas práticas, realizando estágios matinais. Durante o curso, as instruções de ordem militar, ordem unida, educação física, natação e de adaptação ao meio militar foram desenvolvidas na Escola de Educação Física do Exército e no Colégio Militar do Rio de Janeiro(10).

O Major Médico Dr. Augusto Marques Torres coordenou, no Rio de Janeiro, a parte teórico-prática, definida pela Diretoria de Saúde do Exército, abordando entre outros aspectos, conteúdos referentes a epidemiologia e profilaxia da malária, serviços de clínica oftalmológica e otorrinolaringológica(11). A preparação física contou com a direção da professora Iris Rodrigues Belo, que submeteu as enfermeiras a marchas rastejantes, subidas em cabo, saltos, corridas e natação(11), sendo essa última atividade coordenada pela campeã de natação Maria Lenk(2).

O capitão Carlos de Meira Mattos e o 1º Tenente Médico Dr. Fernando Mangia, auxiliados pelos sargentos Barcelar e Villy, foram os responsáveis pela instrução militar que visava adaptar as jovens aos regulamentos militares, de forma que elas se apresentassem perfeitamente identificadas com a categoria que passaram a pertencer e a representar(12).

A construção do habitus militar das enfermeiras permeou todo o processo de preparação das jovens para sua integração ao voluntariado da FEB. O depoimento de uma enfermeira evidencia do caráter intensivo desse preparo:

O treinamento todo era muito pesado. Amanhecíamos no Hospital Central do Exército até doze horas. Aí, pegávamos um ônibus e vínhamos para um restaurante ao lado da Central do Brasil (...) Nós entrávamos às treze horas nas aulas teóricas na Diretoria de Saúde, no centro [da cidade], antigo Ministério do Exército (...), hoje [denominado] Comando Militar do Leste. Acabando isto, pegávamos um ônibus ali mesmo da Central para a Urca e íamos para a Escola de Educação Física (...). Só éramos liberadas [às] seis horas da noite. Tínhamos o dia inteiro de treinamentos diferentes (Virgínia Portocarrero).

No entanto, alguns conteúdos inerentes a preparação das enfermeiras foram por elas considerados como inócuos:

Como amostra de previsão intelectual, a direção do Curso nos obrigou a umas intoleráveis e ridículas aulas de francês (...) Não saberiam os responsáveis pelo Curso (ou teria sido difícil prever) que iríamos permanecer dias e dias em bases americanas? [Em contrapartida,] continuávamos a ignorar, por exemplo, o emprego do termômetro Fahrenheit (13:408-9).

No que diz respeito ao treinamento físico das candidatas, uma análise a seguir será realizada a partir da fotografia agora apresentada.

 

 

Ainda que a foto apareça no Jornal Folha Ilustrada, ela foi publicada originalmente no Jornal A Noite Ilustrada do dia 11 de abril de 1944, para ilustrar a matéria intitulada Enfermeiras da Reserva do Exército, Rigorosa preparação técnica - Exercícios para todas as emergências em campanha - Uma brilhante demonstração.

O cenário no qual está ambientada esta fotografia, é uma pista gramada de atletismo da Escola de Educação Física do Exército, no bairro da Urca, zona sul do Rio de Janeiro. Na fotografia é possível perceber que as duas mulheres estavam realizando um movimento físico vigoroso, durante uma luta com bastões. Elas são, da esquerda para a direita, Odete Baltazar de Oliveira e Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero.

Quanto ao seu vestuário, ambas estão vestidas com um macacão aparentemente inteiriço, de cor preta, com grandes golas brancas. Está visível no tórax da segunda figura da composição três botões brancos grandes e redondos. Os uniformes são largos, para garantir flexibilidade durante os movimentos vigorosos que são feitos nas ginásticas de solo. O comprimento das vestimentas é no terço superior das coxas, cujas bainhas estão bem aderidas às pernas das ginastas. Elas estão calçadas com tênis brancos de cadarço e meias brancas.

A musculatura dos seus braços e de suas mãos, que seguram os bastões redondos, está tensa, denotando o intenso esforço físico nos movimentos realizados. Ambas estão sorridentes e atentas ao exercício e aos movimentos da oponente. Uma das enfermeiras/agentes presentes na foto em tela comenta a respeito desta fotografia:

Nós lutávamos e uma tinha que derrubar a outra (...). Era para treinar defesa pessoal (...). Eu venci na queda (Virgínia Portocarrero).

O intenso treinamento físico realizado pelas enfermeiras/agentes, com vistas a obtenção de maior força muscular, era percebido por elas como algo benéfico:

Eu era uma pessoa frágil, [que] não tinha a disposição física que adquiri após os treinamentos feitos pelo Exército, lá na Escola de Educação Física, na Urca, no Forte São João (...). Eu pesava quarenta e dois quilos (Virgínia Portocarrero).

A análise detida da fotografia, conjugada com o depoimento oral de uma das protagonistas do evento, evidencia a assimilação da mística do cumprimento do dever, mediante aquisição de um novo habitus, o militar, cuja palavra de ordem era a disciplina rigorosa, explicitada inclusive nas maneiras de usar o corpo.

Quando foi publicada, esta fotografia ocupou duas páginas centrais do Jornal, juntamente com outras seis fotografias relativas a mesma matéria. As dimensões desta fotografia específica é de trinta centímetros de altura por vinte e sete centímetros de largura na folha onde está publicada originalmente. A divulgação dessas fotografias proporcionou a visibilidade de um grupo que aspirava ingressar num campo inédito na História da Enfermagem Brasileira e do próprio Exército Brasileiro, pois a prática fotográfica constituí um ritual de solenização e de consagração de um grupo(14).

Outro jornal de circulação à época, A Manhã datado de 11 de maio de 1944, apresentou uma nota informando que as enfermeiras que integravam a FEB do Exército estavam recebendo uma ativa instrução, de forma que seus conhecimentos profissionais pudessem ser adaptados ao meio militar, além de poderem em público, de maneira isolada ou em conjunto, apresentarem-se sempre perfeitamente identificadas com a categoria militar. Acrescentava ainda que, o treinamento físico recebido por elas tinha como objetivo final capacitá-las a desempenhar com desembaraço e vigor necessários, as múltiplas atividades que as esperavam nos Teatros de Operações de além-mar.

O processo de atualização do habitus militar também incluía preparar as enfermeiras para tornarem-se porta voz da categoria frente aos meios de comunicação. Neste sentido, a utilização desses meios de comunicação, não apenas deram visibilidade às enfermeiras do Exército, como também demarcaram as relações de poder dentro desse espaço, poisas relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes envolvidos nessas relações(5). Assim, as relações das enfermeiras com a imprensa tinham algumas regras decididas pela sua Chefia no Exército, como registra o seguinte depoimento:

A diretoria de Saúde escalou algumas [enfermeiras] que podiam prestar declarações à imprensa (...). Essas eram encarregadas de toda a parte da imprensa (...). Outras não podiam (...). Quando elas queriam falar, tinham que pedir autorização para a Diretoria (...). Depois que fomos oficialmente convocadas, quando passamos justamente para o serviço da FEB, o então capitão nosso instrutor Carlos Meira Mattos escalou a Carmem Bebiano e eu para falarmos com a imprensa. Nós éramos [as] monitoras. A Lúcia Osório e a Ignácia chamavam de sub-chefes. Nós quatro podíamos dar declarações (...). Era nessas horas que nós falávamos (Virgínia Portocarrero).

Essas enfermeiras/agentes foram escolhidas para serem porta-vozes autorizadas do grupamento de enfermeiras, principalmente face ao capital cultural que possuíam. Tanto é assim, que elas podiam representar o grupo de mulheres em situações extra-muros e, mais apropriadamente, a corporação da qual faziam parte. Confirmando isso, uma das enfermeiras falou em seu depoimento que:

A Carmem Bebiano era poliglota, falava fluentemente alguns idiomas (...). Era uma moça rica, tinha imóveis inclusive no Estados Unidos e na França (...). [Ela] foi oficial de ligação, quando nós cinco primeiras chegamos na Itália (...). [O] oficial de ligação era a pessoa ponte entre o major médico brasileiro e a enfermeira Chefe americana (...), justamente pela sua fluência na língua inglesa [ela] pode exercer esse cargo muito bem (Virgínia Portocarrero).

Apesar da improvisação, premência, inadequação e emergência da realização do treinamento, a convocação atraiu essas moças por diversos motivos. A patriótica convocação estendeu-se a todas que possuíam formações educacionais e práticas diversas. Elas foram incentivadas, na primeira década deste século, pela brilhante atuação da Cruz Vermelha divulgada no mundo inteiro com o objetivo de garantir, através de enredos repletos de paixão e aventura, a passagem dos pressupostos ideológicos do imperialismo norte-americano(15). Neste sentido, o discurso patriótico foi apropriado pelas mulheres, em diferentes tempos e lugares, como argumento irrecusável à sua aparição no mundo público(9).

As cinco primeiras oficiais enfermeiras, que integravam o Destacamento Precursor de Saúde, saíram do Rio de Janeiro sob a Chefia do Major médico cirurgião Ernestino Gomes de Oliveira, no dia 07 de julho de 1944 e chegaram a Nápoles, na Itália, no dia 15 do mesmo mês, um dia antes da chegada da tropa do Primeiro Escalão da FEB. Seus nomes são: Antonieta Ferreira, Carmem Bebiano, Elsa Cansanção Medeiros, Ignácia de Mello Braga e Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero(4).

Essas enfermeiras pioneiras, que seguiram para o Teatro de Operações, eram, em grande parte, oriundas de famílias de nível social médio, ou seja, filhas de médicos, generais e outros. Confirmando essa origem social, as primeiras enfermeiras a partir [para a guerra] eram de algum modo, relacionadas a oficiais superiores do Exército (16:79).

Algumas dessas enfermeiras fizeram parte da turma de Samaritanas de 1942, que foi uma turma de choque da sociedade. Dela faziam parte moças das mais representativas famílias brasileiras e até estrangeiras 17:40. Assim participaram da FEB, Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero, filha do General Titto Portocarrero; Carmem Bebiano, uma das maiores acionistas da América Fabril; e Lúcia Osório, de tradicional e importante família militar, sobrinha-neta do General Osório, patrono da Arma de Cavalaria do Exército Brasileiro(17).

Estes dados mostram que, o habitus das enfermeiras está diretamente vinculado ao capital simbólico, que tem a ver também, com prestígio, reputação, fama, dentre outros aspectos que compõem o capital cultural e social. O primeiro como o próprio nome sugere é o conhecimento cognitivo específico adquirido, sendo expresso juridicamente pelos títulos e diplomas. O capital social pode-se inferir pela genealogia apresentada pelas jovens voluntárias. Neste sentido, é preciso destacar que os dominantes viajam, são poliglotas, estão ligados por afinidades culturais, de estilo de vida e têm dinheiro(18).

Já com o habitus militar incorporado, essas enfermeiras partiram para o front com o firme propósito de atuar no cenário de guerra, desenvolvendo uma assistência de enfermagem que deveria ser produtiva e digna da classe, conduzindo suas ações profissionais de maneira sensível e humanizada, uma característica intrínseca do povo brasileiro. Este povo [...] é formado por aquilo que o poeta chamou de "flor amorosa de três raças tristes" [...], isto é, a mistura sentimental do negro, do índio e do branco 21:30.

Essas enfermeiras, mulheres de destaque social, talvez tenham sido escolhidas para representar e falar pela FEB, esta incorporada ao V Exército Norte-Americano que era, inegavelmente, dominante, hegemônico. Assim, seu papel de enfermeiras e de militares ia além do que talvez se pudesse esperar, uma vez que elas eram pertencentes a classe dominante, representando-a.

Ainda que seu trabalho seja reconhecido na atualidade, quando participaram da Guerra, não raro essas enfermeiras, apesar de tudo o que representavam, deparavam-se com situações fora de seu controle. A seguinte fala exemplifica este aspecto relacionado a sua posição na hierarquia militar e ao soldo recebido, abaixo de seus postos:

Embora na hierarquia militar fossemos 2º tenentes arvoradas g , recebíamos soldo equivalente aos de sargentos. Éramos 2º tenentes, porém sem as vantagens pecuniárias do posto (...). Esse salário em moeda da época era de vinte e um mil réis sendo que esse montante era dividido em três partes iguais e tinham o seguinte destino: setecentos mil réis nós escolhíamos uma pessoa da família para receber aqui no Brasil (...). Eu escolhi minha mãe; (...) setecentos mil réis ficavam depositados em um banco também aqui, para tocarmos nele quando retornássemos; [e] os outros setecentos mil réis restantes nos pagavam lá transformados em liras italianas (Virgínia Portocarrero).

As enfermeiras por não pertencerem ao oficialato sofreram, inicialmente, situações vexatórias, até que o Comandante da FEB [General Mascarenhas de Moraes] as comissionou nos postos de 2º Tenente (...), em ato oficial posteriormente confirmado, embora tivessem o salário equivalente aos dos sargentos(2, 20). Elas foram portanto, comissionadas ao posto hierárquico de 2.º Tenente, cujo registro encontra-se no Boletim Interno da FEB21. A situação original de ingresso na carreira militar desse grupo de mulheres era a de enfermeiras de 3ª classe do círculo de oficiais subalternos do Exército Brasileiro (J. de M. Corrêa Neto, comunicação pessoal, 14 fev. 2002h).

Assim, destacam-se duas situações conflitantes extraídas da experiência dessas enfermeiras participantes da FEB. De um lado, todo o prestígio envolvido no voluntariado dessas jovens, bem nascidas e bem posicionadas socialmente, para uma causa considerada nobre, apesar do treinamento rígido e cansativo pelo qual passaram. E do outro lado, talvez uma discriminação de gênero e de poder masculino-militar que, embora enquadrando-as com um posto existente na hierarquia militar, oferecia um soldo correspondente a um outro posto, mais baixo nessa mesma hierarquia.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A participação das enfermeiras no cenário da 2ª Guerra Mundial foi a resultante da pressão do governo dos EUA sobre o governo brasileiro, no sentido de existirem enfermeiras na força tarefa que seguiria para o front. Vale ressaltar que, se a interferência do governo norteamericano revestiu-se de um caráter impositivo, por outro lado, ela contribuiu para a inserção da mulher em um cenário inédito na História do Brasil, do Exército e da Enfermagem Brasileira.

O voluntariado foi a forma encontrada pelo Exército brasileiro para atrair mulheres com idade variando de 18 a 36 anos, com a titulação de enfermeira e possuidoras de qualquer nível de formação intelectual, desde que não fossem casadas, nem possuíssem filhos.

Um traço marcante do preparo dessas enfermeiras voluntárias foi o exaustivo investimento nos aspectos inerentes ao preparo físico, além da assimilação de um habitus militar. Tais estratégias tiveram a função de fortalecer o sentimento de unidade interna do grupo, mediante a homogeneização de atitudes e gestos. Assim, antes de partirem para o front europeu, elas passaram por um processo radical de atualização dos seus habitus.

 

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23. Ministério da Saúde(BR). Enfermagem: legislação e assuntos correlatos. 3ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Fundação Serviço de Saúde Pública; 1974. p.125

 

NOTAS

ª Teatro de Operações é o terreno onde realizam-se as operações militares durante as Guerras[...] Por exemplo, Teatro de Operações da Itália, foi o terreno onde realizaram as operações bélicas da 2ª Guerra Mundial [...] (Marechal Waldemar Levy Cardoso, em entrevista concedida a autora Margarida Maria Rocha Bernardes em 18 de fevereiro de 2002, em sua residência). O Marechal Levy Cardoso, que nasceu em 04 de dezembro de 1900, é uma personalidade cativante, nacionalmente respeitado e importante cidadão militar sendo o único Marechal vivo do Exército Brasileiro. Na 2.ª Guerra atuou de forma brilhante, como oficial superior no posto de Tenente Coronel Comandante do 1º Grupo de Obuses da Artilharia da FEB. O Marechal Levy Cardoso é [...]o último dos Marechais [...], pessoa lúcida, ativa, remanescente do mais alto posto do Exército, o qual já foi ocupado por personalidades como Deodoro da Fonseca, Proclamador da República e Cândido Rondon, defensor das causas indígenas (22:6). O próprio Marechal afirma: [...] Eu sou do século XIX, todo mundo hoje é do século passado [...] até os bebês que nasceram em dezembro de 2000 são do século passado. Mas, quando estávamos no século passado eu já tinha 100 anos. Eu fui do século XIX, vivi o século XX e estou vivendo agora os meus dias de século XXI.

b A fotografia utilizada neste estudo, como fonte histórica encontra-se localizada na 5ª Seção do C.M.L., Subseção de Audiovisuais. Ministério do Exército.

c A pesquisa original foi desenvolvida como dissertação de mestrado defendida no Programa de Mestrado da Faculdade de Enfermagem da UERJ em 2003.

d Segundo o depoimento oral do General Jonas de Moraes Corrêa Neto (realizado em 14 de fevereiro de 2002, em sua residência), as enfermeiras ao terminarem o CEERE, integrando-se à FEB tornaram-se enfermeiras da reserva. A partir do momento em que elas integraram essa força operacional, de combatentes, elas imediatamente passaram a ativa, como todo o pessoal da reserva convocado (...) Todos passaram a estar na ativa por causa da guerra.

f O Quadro de Enfermeiras da Reserva do Exército Brasileiro (QEERE) foi criado pelo Decreto - Lei nº 6097/43 de 13 de dezembro de 1943, publicado no Diário Oficial da União nº 290, datado de 15 de dezembro de 1943(23).

g Arvorada é uma terminologia militar usada exclusivamente para regularizar a situação das enfermeiras/agentes do estudo, naquela época(8).

h De acordo com o depoimento oral do General Jonas de Moraes Corrêa Neto (realizado em 14 de fevereiro de 2002): [...], o General Mascarenhas preocupou-se em regularizar a situação delas [voluntárias da FEB] para que não ficassem em inferioridade militar em relação aos brasileiros e, principalmente perante as colegas enfermeiras de outros países, com quem foram atuar em conjunto no conflito[...].

 

 

Recebido em 19/07/2004
Reapresentado em 20/11/2004
Aprovado em 04/12/2004

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