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CAPES

Volume 8, Número 3, Set/Dez - 2004

ARTIGO DE REFLEXÃO

 

Fenomenologia - fenômeno situado: opção metodológica para investigar o humano na área da saúdeª

 

Phenomenology - situated phenomenon: methodological option to investigate the human being in the health field

 

Fenomenología - fenómeno situado: opción metodológica para investigar lo humano en el área de la salud

 

 

Regina Lúcia Ribeiro MorenoI; Maria Salete Bessa JorgeII; Maria Lúcia Pinheiro GarciaIII

ITerapeuta Ocupacional. Membro da Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital Infantil Albert Sabin. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela UECE. E-mail: reginamoreno@secrel.com.br
IIEnfermeira Professora Titular da Enfermagem em Saúde Mental da UECE e Doutora em Enfermagem pela EE/EERP/USP (Interunidade). Líder do Grupo de Pesquisa em Saúde Mental, Família e Práticas de Saúde. E-mail: masabejo@bol.com.br
IIIPsicóloga Clínica. Mestranda em Saúde Pública pela UECE. Membro do grupo de estudo em fenomenologia da UECE. E-mail: branca@secrel.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo procura esclarecer aspectos fundamentais da fenomenologia, um fenômeno situado caracterizado como método de análise, denominado método ideográfico e nomotético. Esse método sublinha a importância de chegar à essência de um fenômeno e não apenas aos dados e fatos de que tratam as Ciências Naturais. Fazendo um diálogo com a abordagem heideggeriana, quando se acrescenta as fases do círculo hermenêutico (interpretação fenomenológica), o método tem a finalidade de buscar a essência do fenômeno. A intenção desta divulgação foi possibilitar a difusão desse modo alternativo de investigar no âmbito da esfera humana, que vem expandindo-se principalmente o cenário acadêmico na área da saúde.

Palavras-chave: Fenomenologia. Método qualitativo. Filosofia.


ABSTRACT

This article seeks to clarify basical aspects of phenomenology, a situated phenomenon, characterized under the methodological focus of analysis, so-called ideographic method and nomoethic. This method underline the importance of to get to the essence of the phenomenon and not only the data and facts that treat the Natural Science. Dialoguing trough a heideggerian approach, adding to itself the stages of the hermeneutic circle (phenomenological interpretation), the method has the purpose to seek the essence of the phenomenon. The intention of this publicizing was to make possible the difusion of this alternative way of investigation in the filed of human life, wich has been expanding itself most of all the academic scenery in the health field.

Keywords: Phenomenology. Qualitative method. Philosophy.


RESUMEN

Este artículo busca esclarecer aspectos fundamentales de la fenomenología - fenómeno situado, el cual se caracteriza como enfoque metodológico de análisis, el método ideográfico y nomotético idealizado por Martins y Bicudo, que subraya la importancia de llegarse a la esencia de un fenómeno y no sólo a los datos y hechos de que tratan las Ciencias Naturales. Hace un eslabón con el abordaje heideggeriano, que dialoga con la anterior, cuando a esta añadimos las fases del círculo hermenéutico (interpretación fenomenológica), con la finalidad de buscar la esencia del fenómeno. La intención fue posibilitar la divulgación de ese modo alternativo de investigar en la esfera humana, que viene se ampliando principalmente el escenario académico en el área de la salud.

Palabras-clave: Fenomenología. Método cualitativo. Filosofia.


 

 

INTRODUÇÃO

A fenomenologia caracteriza uma modalidade de pesquisa alternativa às posturas clássicas por propor a morte em moratória de algumas concepções como fermento para a páscoa da crítica reflexiva. Tal situação em termos de construção científica deve ser mais divulgada para possibilitar aos leitores - pesquisadores uma melhor compreensão do assunto, e conseqüentemente, uma maior adesão a esse método.

O artigo descortina inicialmente a historicidade da fenomenologia, permeada por uma das modalidades da pesquisa qualitativa, fenômeno situado, e finaliza discorrendo sobre a terminologia filosófica heideggeriana, considerado por alguns como uma terminologia diferenciada, mas não divergente, pois ela está cercada pelas coisas do mundo e busca, do mesmo modo, compreender a essência ou estrutura de um fenômeno que se manifesta nas descrições ou discursos de um sujeito (Moreno1)

As atitudes e experiências dos seres humanos não são objetos que apresentem características possíveis de serem estudadas quantitativamente, pois elas apresentam dimensões pessoais, estão relacionadas a um local, a um momento e a um modo como foram vividas. Logo, torna-se necessário que esse fenômeno seja colocado em suspensãob para que possa ser compreendido, situado e significado.

 

HISTORICIDADE DA FENOMENOLOGIA

O método fenomenológico surgiu aproximadamente no início do século XX, na Alemanha, em contraposição ao conhecimento científico tradicional, com o objetivo de atingir a essência do fenômeno e não apenas os dados, os fatos de que tratam as Ciências Naturais. Teve como fundador Edmund Husserl, que defendia a necessidade de uma atitude transcendental, através da "epoché" que descrevesse os atos da consciência, a essência verdadeira das coisas naturais e dos seres humanos e não somente a postura objetivista de valorização, percebida pelos sentidos. Esse método, ao longo de toda a sua evolução histórica, inspirou também inúmeros outros estudos e seguidores.

Na França, destacaram-se os nomes de Sartre, Merleau-Ponty, Ricoeur, Levizmas, Dufrenne. Na Alemanha, Pfânder, Reinach, Geiger, Hering, Hartmann, Heidegger e Jaspers. Na Itália, Pacci. Nos EUA, Faber, Dorion, Spiegelberg e os europeus que para lá migraram, Gurwitsch e Shutz. No Brasil, as influências da fenomenologia foram poucas, pois em geral, os especialistas acentuaram o papel do neotomismo, do neopositivismo, do culturalismo, do marxismo e do existencialismo.

Os culturalistas brasileiros que receberam influxo da fenomenologia foram influenciados, direta ou indiretamente, pelos pensamentos de Husserl e Max Scheler, quando procuraram explorar as estruturas essenciais do fenômeno. No entanto, foi em torno de Heidegger que se agrupou um grande número de fenomenólogos (Capalbo2; Mota3).

A fenomenologia proposta por Husserl não tinha o objetivo de desenvolver um método para realizar pesquisas empíricas. Ela pretendia fornecer o caminho para desenvolvimento das ciências eidéticas, as ciências das essências, que formariam a base racional das ciências positivas, como ele chamava as ciências físicas e naturais (Moreira4).

Husserl privilegiava a consciência ou o sujeito do conhecimento. Afirmava que as essências descritas pela fenomenologia são produzidas ou constituídas pela consciência que dá significado à realidade, ao mundo das coisas. Para ele, na relação do sujeito do conhecimento com o objeto há um ato intencional da consciência. Assim, Husserl buscava compreender como as coisas apresentam-se e acontecem nos modos subjetivos de viver. Descreveu ainda a essência (eidos) como se constituindo da central invariante que permanece ao longo de todas as variações imaginárias (Capalbo2)

Enquanto Husserl pensava no ente - sujeito do conhecimento, Heidegger pensava em um movimento de transcendência deste ente, de ascensão acima do ente que é o ser. No entanto, este ser que é o criador dos entes diferencia-se deles, pois mantém uma relação, interage com um mundo, tem uma história. Ao se manifestar no mundo, o ser denuncia sua existência.

A sua essência, portanto o núcleo invariável, o que o singulariza, é o fato de existir. Assim, para compreender a sua essência, é necessário compreender os seus modos de se manifestar na existência, já que é nela que o ser realiza-se. Aqui, Heidegger diferencia-se de Husserl, pois busca compreender o ser tendo como pano de fundo a historicidade que, para ele, está na sua essência.

Os acontecimentos históricos ou da vida cotidiana são governados por uma profunda conjunção interna, na qual todos eles são por ela penetrados. Esses acontecimentos constituem-se de determinada maneira e não de outra, a partir de um conjunto de múltiplas possibilidades tornando-se o nexo com o que advém. Esse elo do presente com o passado e com o futuro é a historicidade.

Forghieri5 refere que a Fenomenologia surgiu no campo da Filosofia como um método que possibilita chegar à essência do próprio conhecimento. Também apresenta a redução fenomenológica como principal recurso da Fenomenologia. Essa redução consiste em retornar ao mundo da vida, tal qual aparece antes de qualquer alteração produzida por sistemas filosóficos, teorias científicas ou preconceitos do sujeito. Isso significa retornar à experiência vivida e sobre ela fazer uma profunda reflexão, que permita chegar à essência do conhecimento ou ao modo como ele se constituiu no próprio existir humano.

Considerando o exposto, é prudente retornar ainda ao pensamento de outros autores que escreveram sobre a Fenomenologia. Giles6 descreve que a Fenomenologia é um método científico que proporciona os meios para se chegar a uma perspectiva intuitiva das essências, para um contato direto com o Eidos.

Reale e Antiseri7 vêem a Fenomenologia como uma ciência de essências e não de dados, fatos. Para Ribeiro Jr.8, a Fenomenologia ensina como chegar à essência de um determinado fenômeno, como conseguir a vivência da realidade, através da descrição do fenômeno que a experiência nos oferece.

Martins e Bicudo9 comentam que a Fenomenologia pretende estabelecer a intersubjetividade para chegar à objetividade. Para Barguil e Leite10, a Fenomenologia proporciona o conhecimento do outro e do mundo favorecendo o estabelecimento da relação entre sujeito-sujeito.

Moreira4 refere que, para existir o conhecimento, se faz necessário que a relação entre sujeito-objeto ocorra, pois o sujeito com sua inteligência é capaz de apreender o objeto em seu sentido permitindo, assim, o surgimento do saber. Logo, não se pode falar de conhecimento sem a presença do sujeito e objeto. O conhecimento supõe um objeto que se dá e um sujeito que o recebe.

A origem da Fenomenologia, para Barguil e Leite10, pode ser encontrada no confronto entre as teorias subjetivistas e objetivistas. As primeiras defendem a primazia do sujeito sobre o objeto, isto é, o fato de que o saber está no sujeito que o constitui na consciência. As teorias objetivistas dão prioridade ao objeto afirmando que o conhecimento está no objeto à espera de ser captado, sentido pelo sujeito.

A Fenomenologia investiga a descrição de fenômenos experienciados conscientemente, sem teorias sobre sua explicação causal e tão livre quanto possível de pressupostos e conceitos. Destaca também o sujeito como elemento necessário para o conhecimento das coisas do mundo exterior, sem ignorar a sua existência empírica. Esse método busca contrapor-se ao excesso de objetividade das Ciências Naturais, analisar o fenômeno e compreender o porquê dele.

Os autores apresentados buscam conceituar a Fenomenologia. No entanto, eles não fazem referência a uma modalidade de pesquisa para ela. Assim, neste artigo destacaremos a modalidade fenômeno situado proposta por Martins e Bicudo9. Abordaremos também o enfoque da Fenomenologia heideggeriana, adotado como fundamento filosófico, por/para responder às exigências da modalidade fenômeno situado.

 

O FENÔMENO SITUADO COMO MODO DE COMPREENDER OS FENÔMENOS

Martins e Bicudo9 propõem três modalidades para compreensão do fenômeno: a análise interpretativa, também denominada hermenêutica, que envolve um delineamento complexo do fenômeno estudado; a análise de estrutura do fenômeno situado, também denominada fenomenologia existencial, que descreve a estrutura do conteúdo total do fenômeno (a essência) e envolve um fundamento filosófico; e a análise reticular, também denominada de lingüística, que se fundamenta em uma rede complexa de proposições, a partir dos conteúdos empíricos do fenômeno.

A Fenomenologia, o fenômeno situado segundo Martins11, busca uma compreensão particular daquilo que estuda. Não pretende, como no positivismo, chegar às generalizações, princípios e leis. Nesse sentido, Martins e Bicudo9 sublinham que as descrições são as melhores formas de se ter acesso ao mundo-vida dos sujeitos. Entretanto, no caso de não se conseguir obter descrições espontâneas desses sujeitos, pode-se recorrer à entrevista ou ao relato do próprio pesquisador.

Na modalidade denominada estrutura do fenômeno situado, o pesquisador não necessita de pressupostos ou pré-concepções da natureza do fenômeno investigado, como nas Ciências Naturais. Apenas faz-se necessário buscar as descrições das experiências dos sujeitos envolvidos para que se possa mostrar a essência deste fenômeno diante dos olhos dos leitores, ou seja, para que o leitor possa compreender como estão vivendo e que experiência estão passando em uma determinada situação de vida.

Para Martins e Bicudo9, essa modalidade está dirigida para os significados, ou seja, para as expressões claras sobre percepções que o sujeito tem daquilo que está sendo pesquisado. O fenômeno situado possui três momentos: a descrições ou os relatos, a reduçãoc e por último, a interpretação fenomenológica distribuída entre a análise ideográfica e nomotética.

A descrição (ou os relatos) retrata e expressa a experiência consciente do sujeito sintetizada por unidades de sentido. Recolhidas as descrições, iniciam-se os momentos das análises ideográfica e nomotética. A primeira busca tornar visível a ideologia presente na descrição ingênua dos sujeitos. O pesquisador procura por unidades de significado, identificando-as após várias leituras de cada uma das descrições. A seguir, faz-se a transcrição das mesmas para a linguagem do pesquisador. Articulando as compreensões resultantes dessa seleção das unidades de significado, o pesquisador elabora seu agrupamento. Esse agrupamento é utilizado para a nomotética, que é a análise das divergências e convergências expressadas nas unidades de significado e influenciadas pela interpretação do pesquisador.

Para Martins11, a Fenomenologia existencial - fenômeno situado utiliza a comunicação interpessoal expressada no discurso para focalizar a experiência consciente dos sujeitos (intenção), bem como localizar os elementos de significado presentes empiricamente, para se chegar à compreensão dos significados desta experiência vivida através de procedimentos hermenêuticos.

 

FENOMENOLOGIA HEIDEGGERIANA

Heidegger foi o primeiro filósofo a abordar a hermenêutica como lei básica da compreensão. A hermenêutica regula a elucidação dos conceitos de experiência vivida, expressão de vida e por fim, a compreensão da experiência humana viva (Coreth12; Barreto e Moreira13).

A hermenêutica pertence à imediação da óptica intelectual, pois ela procura desvelar o objeto do estudo através de um processo baseado na relação sistemática entre vida, expressão e compreensão. Ela dispensa qualquer tipo de explicação causal e busca uma apreensão do sentido, do significado exato, descobrindo o não-dito contido em forma simbólica (Barreto e Moreira13).

A filosofia de Heidegger consiste no entendimento de que os entes têm sua essência dada pelo eu transcendental ou sujeito do conhecimento, que é propriedade do "homem". Mas qual a essência do criador dos objetos, quer dizer do sujeito do conhecimento? Essa interrogação procura revelar e levar à luz da compreensão o próprio objeto que decide sobre a estrutura dessa interrogação e que orienta as cadências do seu modo (Giles6). A obra de Heidegger foi fonte de inspiração para as correntes existencialistas, embora sua teoria fosse orientada muito mais para a teoria do ser, do que propriamente para a teoria da existência (Motta3).

Para um pesquisador melhor apreender um fenômeno que abarca o mundo-vida dos sujeitos, com suas características existenciais de ser humano e suas relações (ser-com), faz-se necessário também estabelecer relações com alguns conceitos ontológicos fundamentados na analítica existencial de Heidegger, para que possa iniciar uma experimentação sensível desse princípio teórico, muito utilizado em inúmeras pesquisas na área da saúde.

 

CONCEITOS HEIDEGGERIANOS RELEVANTES PARA COMPREENSÃO DOS FENÔMENOS

Heidegger14 enfoca a idéia da vida e alude ao modo de existir do homem (Dasein, ser-aí) como uma exigência própria da Fenomenologia. Para ele, o ponto de partida da Filosofia é a experiência humana, sem a projeção de nenhum esquema preestabelecido.

O mundo-vida de um ser é construído a partir de seu modo de sentir, pensar, ver e interpretar o seu cotidiano. Seu viver no mundo passa, por conseguinte, a ser orientado por valores éticos, culturais e sociais importantes para formação de suas estruturas, de ser no mundo. A sua existência manifesta-se pelo seu modo de ser no mundo. O ser e o mundo completam-se e se fundem. Assim, há uma construção do ser com o mundo, o sendo-com, compreendido no viver com os outros, viver em comunidade ou viver na massificação, absorvido no coletivismo. Heidegger15,16 denomina como vida social a esse modo básico de viver com os outros no cotidiano.

Heidegger15 ainda refere que o ser-aí (Dasein) significa o modo de existir do homem vinculado à temporalidade, no qual o ser não se deixa revelar a si próprio, senão a partir do tempo. Portanto, a temporalidade constitui o horizonte da compreensão deste ser.

O ser-aí (dasein) é introduzido no mundo como forma de definir, fazer ascender como espiral no tempo e no espaço toda a sua evolução. O tempo é visto como unidade plural do presente, passado e futuro. A essência humana reside em sua finitude, em sua existência. O ser-aí é essencialmente o estar-no-mundo com transcendência e não somente o estando-em-si mesmo, pois o ser-aí não é somente um sujeito sem seu mundo, mas sim um ser-no-mundo.

Verneaux17 vislumbra a diferença entre a existência autêntica e a inautêntica, referindo que, na primeira, o ser mergulha no silêncio e na solidão e acolhe suas angústias e revelações para superar e transcender a sua vida cotidiana e ficar face a face consigo, com sua condição humana. Já na existência inautêntica, o ser foge de si mesmo e se recusa a conhecer e assumir sua condição de homem.

Segundo Heidegger15, o cuidado, o se relacionar com o outro é a estrutura fundante do ser-aí, geralmente se manifestando na relação do dasein com o outro no mundo, orientada pela consciência e paciência. O "cuidar", para esse mesmo autor, significa "zelar" e deve ser compreendido como temporização do tempo, pois o tempo é visto como um mediador da existência humana e, ainda, como estrutura fundante do existir e não apenas uma conseqüência de "agoras".

A solicitude ou maneira de cuidar do outro é vista por Heidegger15 como uma forma do ser relacionar-se com o outro, cuidar da existência do outro ou ainda oferecer condições do outro para se cuidar. E essa maneira de cuidar pode apresentar-se sob duas formas básicas: uma corresponde a um cuidado dominador, manipulador, em que tudo é feito pelo outro. E a segunda forma coincide com um tipo de cuidado que possibilita ao outro crescer, descobrir-se e assumir o próprio caminho.

Já a expressão pre-sença (que é o ente que sempre eu mesmo sou) dificilmente se dá isoladamente. Um ser ou modo de ser caracteriza-se pelo estar-com-o-outro. E é nessa co-pre-sença que o homem constrói a sua existência, a sua história (Heidegger14).

Além desses conceitos heideggerianos, existem outros que constroem a teia filosófica do autor. No entanto, a pretensão desse artigo não foi a de abarcar toda a riqueza do mundo conceitual desse filósofo, mas sim estimular o uso desse referencial teórico em pesquisas na área da saúde. Nesse sentido, verifica-se que a abordagem fenomenológica já vem sendo empregada há algum tempo. Exemplificando este ponto, em 1998 foi publicado um estudo compreensivo sobre ser mãe portadora de HIV, no qual Spíndola e Banic18 destacaram que:

A trajetória fenomenológica possibilita o estudo do fenômeno situado conforme ele se apresenta àqueles que vivenciam a situação, preocupando-se com a essência do fenômeno e o significado atribuído pelos personagens que vivem a experiência.

Da mesma maneira, outros estudos que se valem da abordagem fenomenológica também podem ilustrar o seu emprego na área da saúde, neste caso, na Enfermagem, Camargo e Souza19 buscaram desvendar as singularidades das mulheres que enfrentam a quimioterapia para o câncer da mama. Um outro estudo explorou a compreensão psico-fenomenológica do ser diabético que vivencia uma amputação (Loureiro et al 20). Assim, a abordagem fenomenológica presta-se com especial pertinência a estudos que buscam a compreensão e o desvelamento de objetos de estudo que tratam de experiências humanas no âmbito da saúde.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se percebe a partir dessa proposta metodológica da pesquisa qualitativa, fenomenologia - fenômeno situado, é que ela pode ser um dos caminhos para o campo da saúde. No seu cotidiano, essa área vem cada vez mais compartilhando o desejo de compreender a estrutura da esfera humana, tal qual ela se apresenta, concentrando seu enfoque na subjetividade do ser, a partir de um conteúdo descrito pelos sujeitos da pesquisa, na busca de descobrir o fenômeno manifestado em sua essência. Essa natureza de estudo pode ir além da análise ideográfica e nomotética quando se acrescenta à sua análise o círculo hermenêutico, com a finalidade de buscar a profundidade como aproximação da essência do fenômeno situado.

No entanto, percebemos que a operacionalidade dessa proposta metodológica ainda é muito questionada no cenário acadêmico. Talvez o motivo para esses questionamentos encontre-se na falta de preocupação dessa proposta com generalizações, princípios e leis tão caras e comuns às Ciências Naturais.

A aceitação e/ou validação desse modo de investigar alternativo depende ainda de mudanças nas esferas educacionais e um envolvimento não somente dos pesquisadores, mas também dos sistemas de informação e divulgação. Por isso, sua consolidação e aceitação no mundo da pesquisa como um todo, quem sabe, demanda ainda mais alguns anos.

 

REFERÊNCIAS

1. Moreno RLR. Vivências maternais em Unidades de Terapia Intensiva: um olhar fenomenológico. Rev Bras Enferm 2003 maio/jun;56(3):282-87.

2. Capalbo C. Fenomenologia e ciências humanas. 3ªed. Londrina (PR): Ed. UEL; 1996.

3. Motta MGC. O ser doente no tríplice mundo da criança, família e hospital: uma descrição fenomenológica das mudanças existenciais. [tese de doutorado]. Florianópolis (SC): Centro de Ciências da Saúde/UFSC; 1997.

4. Moreira RVO. As estruturas dialéticas do conhecimento. Fortaleza (CE): 1996. Texto digitalizado.

5. Forghieri YC. Psicologia fenomenológica. São Paulo(SP): Pioneira; 1993.

6. Giles TR. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo (SP): EPV, EDUSP; 1975; v. 1.

7. Reale G, Antiseri D. História da Filosofia. São Paulo (SP): Paulinas; 1991. v. 3.

8. Ribeiro Junior J. Fenomenologia. São Paulo (SP): Pancast; 1991.

9. Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em Psicologia: fundamentos e recursos básicos. 2ª ed. São Paulo (SP): Ed. Moraes; 1994.

10. Barguil PM, Leite RCM. Voltemos às próprias coisas: o convite da fenomenologia. In: Barreto JAE, Moreira RVO et al. Imaginando erros. Fortaleza (CE): Casa José de Alencar; 1997. p. 79-111 Coleção Alagadiço Novo.

11. Martins J. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como países. São Paulo(SP): Cortez; 1992.

12. Coreth E. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo(SP): EPU; 1973.

13. Barreto JAE, Moreira RVO. Ciências: O erro necessário. In: Barreto JAE, Moreira RVO et al. Imaginando erros. Fortaleza(CE): Casa José de Alencar; 1997. Coleção Alagadiço Novo.

14. Heidegger M. Ser e tempo. 13ª ed. Petrópolis(RJ): Vozes; 1993.

15. Todos nós ... ninguém: um enfoque fenomenológico do social. Tradução de Dulce Maria Cristalli. São Paulo(SP): Moraes; 1981.

16. Seminários avançados de Merlau-Ponty. São Paulo(SP): Faculdade de Psicologia/PUC (RJ); 1993 Texto digitalizado.

17. Verneaux R. Lecons sus L'existentialiems; la metaphysique de M. Heidegger. 6ªed. Paris(FR): Chez Pierre Pequi; 1968.

18. Spindola T, Banic M. Ser mãe portadora do HIV: análise compreensiva. Esc Anna Nery Rev Enferm 1998 abr/set;2(1/2):101-10.

19. Camargo TC, Souza IEO. Acompanhando mulheres que enfrentam a quiometerapia para o câncer de mama: uma compreensão das singularidades. Esc Anna Nery Revi Enferm 2002 ago;6(2):261-72.

20. Loureiro MFF, Damasceno MMC, Silva LF, Carvalho ZMF. Ser diabético e vivenciar a amputação: a compreensão psico-fenomenológica. Esc Anna Nery Rev Enferm 2002 dez;6(3):475-89

 

 

NOTAS

ª Recorte do texto da dissertação de mestrado em Saúde da Criança e do Adolescente: Moreno, RLR. Revelação de Experiências Maternais em Unidade de Terapia Intensiva: Visão Fenomenológica. Fortaleza: UECE / Centro de Ciências da Saúde; 2002.

b O sinônimo de redução fenomenológica significa suspender todo juízo sobre o mundo natural.

c Redução é o movimento do sujeito para destacar o que julga essencial ao fenômeno.

 

 

Recebido em 12/02/2004
Reapresentado em 27/08/2004
Aprovado em 10/09/2004

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