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CAPES

Volume 9, Número 1, Jan/Abr - 2005

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Representações sociais de clientes sobre a tuberculose: desvendar para melhor cuidar

 

Patients' social representations about tuberculosis: to reveal for a better care

 

Representaciones sociales de clientes sobre la tuberculosis: desvendar para mejor cuidar

 

 

Ivaneide Leal Ataide RodriguesI; Maria José de SouzaII

IEnfermeira - Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ - Docente da Universidade do Estado do Pará
II
Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da EEAN/UFRJ - Doutora em Enfermagem

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou conhecer e discutir as representações sociais sobre a tuberculose de clientes em tratamento. A abordagem qualitativa teve como base teórica conceitos da Teoria das Representações Sociais. Para obtenção das informações, utilizou-se a associação livre de idéias e a entrevista semi-estruturada aplicadas a 17 clientes em tratamento de tuberculose, em uma Unidade Básica de Saúde em Belém - Pará. Os depoimentos foram analisados com base na técnica de análise temática, emergindo duas unidades: A TUBERCULOSE: do medo de verbalizar à crença de curar; e OS SENTIMENTOS CONFESSADOS: quando o mal é medo. Os achados evidenciaram as representações sociais sobre a tuberculose como doença curável, mas apesar disso o sentimento mais presente nas falas de seus portadores é o medo, atribuído em grande parte à desinformação. O estudo apontou para a necessidade de revisão da forma de cuidar de clientes com tuberculose e dos métodos de informar em saúde.

Palavras-chave: Cuidado de enfermagem. Doenças transmissíveis. Tuberculose.


ABSTRACT

This research aims to know and discuss the patients representations in tuberculosis treatment about this disease. It was a qualitative, discriptive approach to the topic having theorical base on the Concept of Social representation theory. This information was obtained by using the technique of free association of ideas and semiestructured interview with seventeen new patients with tuberculosis in treatment in a health center in Belém do Pará. In this analysis was used a technique of thematic analysis of Bardin. Basing on the result, it was made two Thematic Units named: The TUBERCULOSIS: fear of expressing the belief in the cure of this desease and the CONFESSED FEELING. When the problem is fear of the sickness, we can conclude that the social representations of the patients showed the tuberculosis as curable disease. Nevertheless the most present feeling in patients' speech was fear of this disease because of lack of information about it. Based on the results of the research, it was possible to see the necessity of a review in the way we treat our patients with tuberculosis and also the method of information in the health area.

Keywords: Treatment of nursery. Contageous diseases. Tuberculosis.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo conocer y discutir las representaciones sociales de clientes em tratamiento de tuberculosis sobre la enfermedad. El abordaje fue cualitativa, teniendo como base teórica conceptos de la Teoria de las Representaciones Sociales. Para obtención de las informaciones, fue utilizada la técnica de asociación libre de ideas e la entrevista semiestructurada aplicadas a 17 clientes en tratamiento de tuberculoses, en Unidad Básica de Salud de Belém - Pará - Brasil. Los testemonios fueron analizados con base en la técnica del análisis temático, de ahí surgiendo dos unidades: LA TUBERCULOSIS: del miedo de verbalizar a la creencia de curar; I LOS SENTIMIENTOS CONFESADOS: cuando el mal es el miedo atribuido en grande parte a la desinformación. Con base en esos resultados, el estudio apuntó para la necesidad de revisar la forma de cuidar de clientes con tuberculosis y también los métodos de informar en salud.

Palabras clave: Cuidado de enfermeria. Enfermedad transmisible. Tuberculosis.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A tuberculose ainda hoje é um grave problema de saúde pública, não só no Brasil como em outras regiões do mundo. A Organização Mundial de Saúde diz que aproximadamente um terço da população mundial está infectada pelo M. tuberculosis. A cada ano, de 8 a 10 milhões de pessoas adoecem e perto de três milhões morrem da doença. O Brasil ocupa, atualmente, o 14º lugar em número de casos novos de tuberculose no mundo e, entre as regiões brasileiras, a Norte apresenta uma média anual de 6.000 casos novos. O Pará se encontra entre os Estados com maior incidência, com média anual de 3000 casos novos, sendo que sua capital, Belém, contribui com aproximadamente 45% desse total, notificando em média 1.300 casos novos por ano(1).

Secularmente, a tuberculose vem sendo uma doença associada às más condições de vida, embora saibamos que fatores como a pouca organização dos serviços de saúde contribuam significativamente para o aumento de casos, principalmente se considerarmos que, do ponto de vista epidemiológico, o tratamento correto dos bacilíferos é a ação mais importante para o controle da tuberculose (2). Observamos que ao longo dos anos vem crescendo o número de pacientes que interrompem o tratamento. Esse fato é importante, pois o não êxito do tratamento pode levar à resistência bacilar às drogas tuberculostáticas disponíveis, à perpetuação da doença na comunidade e ao conseqüente aumento do sofrimento humano causado pela doença (1).

As doenças transmissíveis são produtos da interação de elementos como: condições do hospedeiro, condições do ambiente e um agente causal. No caso da tuberculose, vemos que o adoecimento é causado por um agente infeccioso (o bacilo de Koch) e concorrem para ele situações de imunidade do hospedeiro, mas é certo também que essa situação é propiciada por condições que dizem respeito às desigualdades existentes na sociedade. Essas desigualdades têm seus alicerces na economia, mas ajudam a compreender o social, pois a tuberculose, que por muito tempo foi vista como mal romântico, mostra sua realidade de predominar entre os desfavorecidos, principalmente nos grandes centros urbanos, configurando-se como doença típica da miséria. Essa condição permeia a forma como o doente se vê e como é visto pela sociedade. À época da tuberculose associada ao romantismo e à vida desregrada, a sociedade via os "tísicos" como ameaça ao grupo social e por conta disso acreditava que os mesmos deveriam ser "apartados" da sociedade. Hoje, com o advento de tratamento eficaz, esses doentes já não são vistos pela sociedade como um perigo coletivo, embora o preconceito ainda seja encontrado.

No contexto individual, para o doente, já é possível entender que, ao adoecer de tuberculose, ele não está condenado à morte social, embora em alguns momentos o adoecimento traga limitações em sua vida profissional e familiar. Com a moderna quimioterapia, essa situação é provisória, portanto, individual e coletivo não precisam necessariamente ser afetados por ela.

Não posso discutir a tuberculose fora do contexto da assistência prestada aos clientes. Tampouco deixar de mencionar o cuidado de enfermagem, pois na assistência ao cliente acometido de tuberculose a enfermeira tem um papel relevante.

O cuidado é inerente ao ser humano, pois, ao longo de toda a nossa vida, cuidamos ou somos cuidados por alguém; amigos e/ou familiares. Mas, para a enfermagem, o cuidado deve ter uma relevância ainda maior, pois ele é parte fundamental do seu processo de trabalho na saúde. Patrício(3) afirma que:

Enfermagem é a ciência, a tradição, a filosofia e arte de cultivar a vida através do cuidado. Ciência e tradição no sentido de conjunto de conhecimentos e saberes de diferentes culturas sobre o cuidado da vida, filosofia no sentido de refletir para compreender a vida e arte como forma de transformar a vida.

Portanto, acredito que o cuidado deva ser pensado no sentido de compreensão e transformação da vida. Entendendo que exige uma interação entre quem cuida e "para" quem cuida, ou até "com" quem se cuida, pois ele não deve necessariamente gerar ou manter dependência, o cliente não é objeto e sim sujeito nesse processo.

Minha experiência profissional e acadêmica, além de observações do cotidiano, levam-me a crer que o cliente não vê esse processo de cuidado apenas como uma relação profissional ou como uma relação de atenção entre o ente que cuida e para quem cuida. É necessário conjugar conhecimentos, experiências, habilidades e, principalmente, sensibilidade para que esse processo tenha êxito. É por assim acreditar que busco o conhecimento dos clientes, traduzido em suas representações sociais sobre a tuberculose, para melhor cuidar como profissional de saúde.

Apoiadas nos conceitos das representações sociais, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa que se atém a questões muito particulares, não se preocupando com dados a serem quantificados, mas sim com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, um contexto que não é possível captar em estatísticas(4).

Segundo Moscovici(5), as representações sociais "são entidades quase tangíveis. Elas circulam, cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano". Para o autor, portanto, as representações influenciam os comportamentos sociais, os conhecimentos e a comunicação entre as pessoas. Em se tratando da tuberculose, a representação que o doente tem da doença pode refletir-se no seu comportamento social influenciando suas relações. As representações sociais sobre a doença, ancoradas no estigma social que a mesma ainda carrega, influenciam na maneira como esse doente enfrenta sua doença, manifesto no medo de ser "visto" como tuberculoso pela sociedade.

Com base no exposto, estabelecemos os seguintes objetivos: descrever as representações sociais de clientes em tratamento na Unidade Básica de Saúde sobre a tuberculose; analisar e discutir, a partir dessas representações, a atenção dispensada pelos profissionais de saúde a esses clientes.

 

METODOLOGIA

A pesquisa desenvolveu-se a partir do depoimento de 17 clientes em tratamento de tuberculose na Unidade Municipal de Saúde do Telégrafo, bairro da periferia do município de Belém-Pa. Esses clientes, na sua totalidade casos novos (virgens de tratamento), estavam nos dois primeiros meses de tratamento. Os depoimentos foram obtidos por meio de entrevista semi-estruturada e da técnica de associação livre de idéias que entendemos permitir ao sujeito pensar livremente e produzir respostas livre das influências das questões elaboradas pelo pesquisador (6).

A coleta de dados iniciou-se após obter o consentimento dos participantes de forma a atender as normas éticas de pesquisas envolvendo seres humanos. Cabe ressaltar que, ao iniciar as entrevistas, explicamos aos participantes a necessidade do uso de gravador para facilitar o registro, na íntegra, dos depoimentos e sua posterior transcrição.

As informações foram trabalhadas por meio da análise temática (7), a qual propicia conhecer uma realidade por meio das comunicações de indivíduos que tenham vínculo com a mesma. Como resultado, emergiram duas unidades temáticas assim denominadas: tuberculose: do medo de verbalizar à crença de curar e os sentimentos confessados: quando o mal é medo, que foram desdobradas em dois e três subtemas.

O perfil dos sujeitos da pesquisa não foge ao descrito na literatura, como característica dos doentes por tuberculose: maior incidência em pessoas do sexo masculino, na faixa etária de 15 a 49 anos, inseridas em classes sociais menos favorecidas, baixa escolaridade e menores condições de acesso à aquisição de bens e serviços (8).

 

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DAS UNIDADES

Tuberculose: do medo de verbalizar a crença de curar

Os conteúdos cognitivos presentes nas falas dos sujeitos do estudo se constituíram como matéria-prima desta unidade, por considerar que se configuram na relação deles com a doença. Marques et al(9) mencionam que as representações sobre a saúde e a doença abrangem dimensões que comportam idéias e significados que vão além do campo biológico Esta unidade foi desmembrada em dois subtemas: A tuberculose como um mal que tem cura e adoecer de tuberculose: como explicar?

A tuberculose como um mal que tem cura

Na construção deste subtema percebemos a presença de frases e palavras que se destacavam, a exemplo de doença perigosa, brava, feia, mal e doença horrível. Para esses, a doença ainda se apresenta de forma tão temível que alguns hesitavam em verbalizar a palavra tuberculose, utilizando termos como mal ou doença, quando se referiam a ela:

Um mal assim...(hesitação) que talvez a gente se trate, mas não tenha cura (E5)

A não verbalização substituindo o nome da doença por adjetivos fortes denota que a palavra tuberculose causa ainda um impacto emocional muito grande por conta das representações negativas que circularam marcadamente na sociedade ao longo dos séculos. Apesar disso alguns depoentes não configuram a tuberculose como algo tão terrível, superando de alguma forma o estigma que sempre a cercou.

Os sujeitos que assim enfrentam o adoecimento o fazem por terem uma vivência anterior com a doença que não foi negativa, experiências vividas com pessoas conhecidas ou familiares que, tendo contraído a doença, tiveram êxito em seu tratamento. Portanto, esses clientes, ao se defrontarem com o novo, que é o seu adoecimento, ancorando essa condição no conhecimento sobre a doença já pré-existente, configurando uma representação da doença como algo não tão assustador.

Eu não diria (que é doença) comum, não tão comum. Mas uma doença que tem cura. (E13)

A representação da tuberculose como doença curável é coerente com o conhecimento reificado divulgado nos manuais técnicos e livros científicos. O Manual Técnico para o Controle da Tuberculose(2) ratifica essa representação quando afirma que ela é doença curável em 95% dos casos. É importante ressaltar que depoentes desse grupo comunicam em suas falas uma transição de "não cura" para "cura", pois em alguns momentos de seus depoimentos eles veiculam a não cura da doença, utilizando verbos no pretérito:

Eu pensava na tuberculose e ficava assustado, porque achava que não tinha cura... (E10)

Pensamos que essa transição se faça por serem doentes em tratamento, pois eles comunicam a formação de um saber a partir de suas experiências vivenciadas, informações circulantes e veiculadas no senso comum, mas também já permeadas pelas informações do universo reificado que são trazidas pelos profissionais de saúde que os atendem na Unidade Básica. O saber científico, parte do universo reificado, e o consensual, o saber do senso comum, não têm superioridade entre si ou são excludentes, posto que se completam e se valorizam de acordo com a situação à qual servem.

Adoecer de tuberculose: como explicar?

Neste subtema trazemos o que a totalidade dos sujeitos buscou comunicar como a trama explicativa para seu adoecimento, de onde vem a doença ou o que pode tê-la causado. De um modo geral, ao dar sentido à experiência do adoecimento eles estabeleceram uma relação coerente entre a sua origem e suas causas. Nesse processo, formaram suas representações.

Na abordagem das representações sociais, em se tratando da área da saúde, é premente entender que, para assimilar ou não as informações, é necessário considerar os modelos mentais e de conduta que os sujeitos utilizam para familiarizar os objetos ou fatos de seu ambiente, fazendo do novo algo compreensível, explicável e passível de causar mudanças de comportamento.

Ao longo dos tempos, a ciência busca explicar o processo de adoecimento por tuberculose. As tentativas de compreensão clínico-epidemiológicas da doença atravessaram séculos. Na Antigüidade, davam-se explicações para o adoecimento a partir de outras patologias respiratórias, a exemplo de pneumonia que não seguia seu curso habitual, traumatismos pulmonares que resultavam em lesões ulcerosas e em conseqüente tuberculose. Paralelamente à ciência, as concepções religiosas cristãs ganharam peso, configurando a doença como conseqüência da vontade divina. Bertolli Filho(10) menciona que no período moderno tiveram destaque os posicionamentos do médico italiano Girolano Francastoro, que se opunha a Hipócrates que ensinava que "um tísico nasce de outro tísico". Deve-se a ele a menção de que a tuberculose era transmitida por micropartículas veiculadas pelas correntes aéreas e que se depositavam em roupas e outros objetos.

Pode-se ver que esse raciocínio explicativo não estava de todo equivocado, considerando que se descobriria mais tarde ser o doente bacilífero a fonte de infecção e a veiculação do bacilo feita pelas gotículas de saliva infectadas. As respostas para muitos questionamentos chegaram com a descoberta do agente etiológico, quando passou a ser possível para a medicina esclarecer os pontos obscuros em relação ao adoecimento.

Essas explicações clínico-epidemiológicas foram apresentadas no intuito de facilitar a compreensão das representações dos sujeitos desse estudo. Pois muitas vezes elas vão ao encontro daquilo que permeava o imaginário, como causas de adoecimento, e que estavam fundamentadas em crenças que se configuraram como verdadeiras em algum momento da história da ciência. Imbricam-se aí o conhecimento consensual e o reificado em um ir e vir que mostra que as representações são produzidas e alteradas num processo lento de construção, desconstrução e (re)construção das idéias. Esse processo aplica-se principalmente para as doenças clássicas e metafóricas como a tuberculose. As representações dos sujeitos são os resultados de seus esforços para entender as coisas do mundo que se inscrevem no seu cotidiano.

Identificamos na fala dos sujeitos aspectos variados na trama explicativa do adoecimento. As causas ligadas aos hábitos de vida são a tendência majoritária, demonstrando que eles se sentem responsáveis por seu adoecimento. Para alguns, o significado cultural de sua doença é ancorado no "pecado", por terem transgredido os limites morais das regras impostas pela sociedade. Nesse enfoque, a tuberculose é considerada castigo:

Vem é de perder sono, beber. Eu passava muito tempo bebendo, sem me alimentar... vem da gente não se cuidar. É a gente que procura, né? (E7)

A conotação religiosa do pecado foi mencionada por um dos participantes, uma menção que traduziu a doença como uma provação imposta por Deus, mostrando sentimentos de aceitação e conformismo.

Eu penso que essa doença me afetou de tal forma...(que) aí eu ficome perguntando: oh Deus se Tu me deste este mal, este teste pra mim, deixa só em mim! (E5)

Parece ser comum às pessoas, de um modo geral, a necessidade de compreender e explicar por meio da via religiosa as situações que acontecem em suas vidas, principalmente quando acompanhadas de dor e sofrimento. È presente no discurso cristão a explicação do adoecimento como provação, pelo fato de que, nesse contexto, Deus é responsável pela vida das pessoas que nele acreditam e que portanto submetem-se aos seus desígnios, pois a religião cristã ensina que o sofrimento pode trazer o crescimento espiritual. Nesses casos, mesmo não possuindo respostas concretas, uma vez que não têm alcance para entendê-las, a fé é explicação suficiente para muitas delas.

Outras falas mostram que "pecado" nem sempre está associado à transgressão moral, mas a comportamentos individuais resultantes das pressões sociais que geram também sentimento de culpa.

No meu caso, eu tinha tido o meu filho recente e não me cuidei. Acho que foi isso. (E14)

Para essa depoente, a necessidade de cuidar do filho, regra social imposta como atributo do papel de mãe, levou-a a negligenciar a própria saúde e a culpar-se por isso. Outra aponta o papel social da mulher que precisa trabalhar fora do âmbito familiar, para contribuir economicamente no sustento da família. Dentro desse contexto, Minayo (11) ressalta que, no mundo moderno, o adoecimento pode ser atribuído ao modo de vida pouco saudável e às pressões exercidas pela sociedade.

O comportamento de assumir para si unicamente a responsabilidade por seu adoecimento mostra uma certa passividade desses sujeitos em não reivindicar melhores condições de vida ignorando que existe uma responsabilidade do poder público em provê-las. É ideologia dominante, na sociedade brasileira, que o adoecimento está ligado a fatores que dependem do indivíduo ao cultivar hábitos de vida pouco saudáveis, mas torna-se imperioso lembrar que é direito do indivíduo estar amparado por políticas sociais que são de responsabilidade do poder público. É fato que a tuberculose é secularmente doença que atinge em sua maioria os desprivilegiados do ponto de vista sócioeconômico. Kritski (12), ao analisar o aumento da incidência da tuberculose no Brasil, a relaciona a fatores como a falta de sistemas de saúde pública eficazes, a piora dos programas de controle, as crises econômicas, o crescimento da população marginalizada rural e urbana.

Identificamos também a menção de outras causas da doença. Nesse grupo, os sujeitos procuram proteger-se, atribuindo o adoecimento a fatores externos que fogem à sua governabilidade, a exemplo de elementos da natureza, contato com pessoas doentes e a tuberculose como conseqüência de outras patologias, demonstrando que, para eles, ela veio do meio que os cerca.

O que faz adoecer, é de pegar muito sol, andar no sereno, chuva ... Isso é a causa de adoecer. (E15)

Os depoimentos vão ao encontro das explicações do ponto de vista clínico-epidemiológico mencionadas ao iniciar a análise deste subtema. Podemos ver nos conteúdos das representações a presença de idéias que tiveram destaque ao longo do tempo, não só no senso comum como no conhecimento reificado. Essas permanecem marcadamente nos sujeitos, a exemplo da relação entre não "alimentar-se direito" e adoecer ou acreditar que a tuberculose é conseqüência de outras patologias não tratadas adequadamente:

Percebe-se ainda que, em seu esforço pessoal de entender o porquê de estar doente, alguns sujeitos já trazem suas explicações permeadas pelo conhecimento reificado, pois, mesmo antes do primeiro contato com os profissionais da unidade, eles já informavam que a doença "vem do ar" e é causada pelo contato com outra pessoa doente. Essa explicação, mesmo não sendo de todo correta, do ponto de vista científico, apresenta uma certa coerência com a idéia de fonte de infecção e transmissibilidade no modelo explicativo da etiopatogenia da tuberculose.

Na construção da segunda Unidade denominada

Sentimentos confessados: quando o mal é medo

Constatamos que uma doença que carrega uma forte carga histórica como é a tuberculose é capaz de suscitar uma gama variada de sentimentos. Em nossa experiência profissional, sempre nos chamou a atenção as formas como os doentes manifestavam seus sentimentos em relação à doença, demonstrando medo, ansiedade e tristeza. Ao desenvolver este estudo, vimos que esses sentimentos afloram no "dito" e no "não dito", em todo gestual que acompanha seus discursos.

Viscott(13) diz que "sentimentos são nosso sexto sentido, que interpreta, organiza, dirige e resume os outros cinco". Certamente, se nossos cinco sentidos nos permitem captar o mundo e conduzir a vida, os nossos sentimentos são a manifestação frente a essa percepção de mundo. Como diz esse autor, "a realidade não pode ser compreendida sem levar em conta os sentimentos". Descreveremos a seguir os dois subtemas que compõem esta Unidade:

O medo da doença

Detectamos, com freqüência, palavras como "apavorado", "medo", "assustado", confirmando o que ao longo do tempo caracterizou a tuberculose. Sontag(14) descreve que a "doença considerada por muito tempo misteriosa por sua diversidade de causas não esclarecidas, levava ao afloramento de sentimentos de pavor". Vemos, nas falas dos sujeitos, emergir o medo associado ao "sinal" mais emblemático da doença que é a hemoptise, ao mesmo tempo assustadora e reveladora:

... fiquei muito triste, fiquei nervoso sabendo que era grave... fiquei apavorado com o sangramento. (E5)

Assustadora porque freqüentemente esses clientes ficam extremamente preocupados ao menor sinal de hemoptóicos. Reveladora pois, ao longo das décadas, os escarros sangüíneos serviram para "decifrar os doentes do pulmão", sendo junto com o corpo emagrecido os elementos mais constantemente invocados(10) . Esse medo geralmente vem acompanhado da total desinformação em relação à doença, ou da informação que é obtida no conhecimento consensual, onde "sangrar" é sinal de tuberculose e tuberculose, sendo o não-familiar, provoca medo.

Identificamos também o medo da morte relacionado a um sinal da doença. Esse medo é uma tendência secular se considerarmos que, ao longo das décadas, a morte sempre esteve associada a ela. A morte física, que ocorria freqüentemente de forma lenta, era na maioria das vezes precedida da morte social, por conta do isolamento a que estavam condenados esses doentes. Vemos aí também a desinformação pois, com a disponibilidade de tratamento eficaz, a tuberculose continua sendo doença considerada grave, mas perfeitamente curável, evitando-se dessa forma a morte tão temida naqueles anos em que não se dispunha de conhecimentos suficientes sobre a mesma e tampouco de tratamento comprovadamente eficaz.

O medo da discriminação

Embora as representações da tuberculose mostrem mudanças favoráveis, o medo do preconceito ainda está presente. Mesmo quando a discriminação, que é a objetivação do preconceito, não tenha sido experimentada, o sujeito desenvolve a autodiscriminação, mostrando que, provavelmente, ela é mais forte no individual, pessoa doente, do que no coletivo, grupo social de pertença:

Eu só tinha vergonha de dizer para meus colegas de trabalho que eu tinha tuberculose por medo de ser rejeitado, porque tem muita gente que não sabe direito sobre a doença e tem preconceito. (E6)

Mesmo os que expressam esses sentimentos não sofreram qualquer tipo de discriminação, o que mostra uma coerência com o pensamento de Crochik(15) sobre o preconceito, quando o cliente associa este com a desinformação e o autor afirma que os preconceitos são idéias assumidas como próprias sem considerar sua racionalidade. O sujeito assume o estereótipo de doente e faz de seu imaginário o imaginário coletivo.

Ao falar de estereótipo não podemos deixar de mencionar o que foi evidenciado na fala de um sujeito, quando ele mostrou claramente que acreditava estar protegido da doença por não se enquadrar no que está cristalizado no imaginário coletivo como o "protótipo do tuberculoso".

Pensava que só pegava em gente fraca, magrinha. Como eu estava forte, eu não achava que podia pegar essa doença. (E6)

Esse sujeito apresentava-se fisicamente forte, em virtude de sua atividade laboral que se configurava em trabalho braçal (estivador). Ele então estabelece que o adoecimento por tuberculose é prerrogativa de um grupo (dos fracos) que não é o seu grupo de pertença. Como podemos constatar nesse caso, o sujeito usa do estereótipo para com o grupo e da discriminação para consigo mesmo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conteúdos cognitivos dos discursos apontaram visões da doença sob dois aspectos: o primeiro, ligado à tuberculose do passado, tem ainda uma angustiante permanência de representações negativas cristalizadas ao longo do tempo no senso comum. O segundo, mais coerente com o momento atual, mostrou crença na cura.

Constatamos que as experiências positivas vivenciadas pelos sujeitos permitiram que estruturassem representações mais desmistificadas sobre a doença. Pensamos que o fato de estar em tratamento e travar conhecimento com informações mais precisas contribuíram para isso. Sabemos que a informação isoladamente não é suficiente para alterar representações, mas consideramos importante que ela possa circular no meio social servindo de matéria-prima para a sua formação.

As explicações sobre o processo de adoecimento evidenciaram que para a maior parte dos sujeitos do estudo este ainda é centrado neles, pois tendem a individualizar a responsabilidade pelo adoecimento, não reconhecendo as condições sociais que propiciam esse fato. A atitude contrária, de isentar-se totalmente dessa responsabilidade, também emergiu em uma tendência clara de autoproteção, o sujeito atribui ao meio o seu adoecimento.

Os sentimentos foram um ponto forte neste estudo. Não poderia ser diferente, pois precisava-se evidenciar o afetivo das representações desses sujeitos. O medo foi sentimento presente em variados aspectos, inclusive naqueles relacionados a sinais da doença como tosse e hemoptise, esta fortemente marcada na história social da doença como evidência de adoecimento. O medo da morte nos remete à tuberculose do passado, quando ainda incurável e causadora de morte social e física. Quanto ao medo da transmissão, foi evidenciado muito mais como cuidado com o outro do que propriamente o indivíduo enxergar-se como nocivo ao bem-estar comum. Um tema relevante foi a permanência da tuberculose como condição estigmatizadora, revelada no auto-estigma com conseqüente alterações das relações sociais, não por atitude de seu grupo de pertença, mas dos próprios pacientes que, temendo o preconceito, mostraram a tendência a isolar-se da família e dos amigos.

Os achados deste estudo apontam principalmente para dois aspectos a serem considerados pelos profissionais de saúde: a necessidade de individualizar o atendimento e de revisar métodos educativos, não só para clientes em tratamento de tuberculose como também para a população em geral. Na necessidade de individualizar o atendimento, ressalto que, se os profissionais estão sujeitos às suas responsabilidades éticas e à normatização contida em manuais técnicos, é premente compreender que os clientes também estão sujeitos às normas que são próprias de seu ambiente cultural e social. Por isso, estudar as representações sociais pode nos ajudar a melhor cuidar, pois, ao entender a subjetividade do cliente e o contexto no qual está inserido, poderemos redimensionar nossa atenção entendendo que o cuidado deve ser direcionado a cada doente e não à doença. Para isso, é necessário não apenas a constituição de equipes tecnicamente competentes, mas a atenção mais aprofundada para os demais aspectos relativos ao indivíduo.

Em relação à necessidade de revisão dos métodos educativos, ressaltamos sua importância por ser a informação um meio de difusão e um dos elementos que interferem no processo de construção da idéia sobre um objeto. Não queremos afirmar que percepções diferentes sobre a doença e o adoecimento não devam ser consideradas, pelo contrário, esses conhecimentos é que permitem aos profissionais criarem discursos que superem a aparente simplificação informada por alguns sujeitos. Essa simplificação pode estar baseada no desconhecimento de conceitos científicos, pois a tuberculose não é "gripe" ou "pneumonia mal curada". Tampouco é conseqüência do "frio" ou "sol excessivos". Essa idéia é preocupante porque pode levar à manutenção do desconhecimento do risco real da doença e influenciar nos comportamentos de não valorizá-la como grave e que necessita de tratamento. Vale atentar para os resultados da pesquisa que mostraram que as informações transmitidas pelos profissionais aos clientes em suas consultas foram a principal fonte de informação sobre a doença, e essas, permeando seus conceitos pré-existentes, configuraram-se em um elemento importante na formação da representação da tuberculose como doença curável. Nota-se, então, a importância de maior investimento em estratégias educativas que levem em conta esses conhecimentos, procurando não partir do pressuposto de que os clientes não são capazes de nos entender ou não têm conhecimento algum sobre os objetos, mas refletir criticamente se estamos sendo capazes de orientá-los, considerando suas representações.

 

REFERÊNCIAS

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15. Crochik JL. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo (SP): Robe; 1995.

 

 

Recebido em 19/07/2004
Reapresentado em 09/12/2004
Aprovado em 10/01/2005

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