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CAPES

Volume 9, Número 1, Jan/Abr - 2005

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Atenção à pessoa com HIV em unidade básica: concepção acerca da assistência dos profissionais de saúde

 

Assistance to the person with HIV in a Basic Unity: conception about the care of the professional of health

 

Atención a la persona con HIV en Unidad Básica: concepción sobre la asistencia de los profesionales de salud

 

 

Thaís Araujo NeryI; Florence Romijn TocantinsII

IBolsista IC/UNIRIO. Escola de Enfermagem Alfredo Pinto - UNIRIO. Rio de Janeiro. e-mail: thaisneryenf@hotmail.com
IIEscola de Enfermagem Alfredo Pinto - UNIRIO. Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

As ações assistenciais propostas pelo Sistema Único de Saúde são desenvolvidas através de Programas e propostas institucionais. Para sua implementação, há contribuição de vários profissionais, os quais fundamentam suas ações em concepções de necessidades assistenciais. A investigação, ocorrida no período de agosto de 2002 a julho de 2003, buscou explicitar, em perspectiva social e fenomenológica, a concepção de necessidade assistencial que fundamenta a ação dos profissionais de saúde, não pertencentes à equipe de enfermagem, que assistem pessoa com HIV em Unidade Básica de Saúde do Município do Rio de Janeiro. Fundamentou-se nas concepções teórico-metodológicas de Alfred Schutz. Foram entrevistados 17 profissionais, sendo possível, a partir de análise compreensiva de seus depoimentos, explicitar que a concepção de necessidade assistencial que fundamenta sua ação é de saúde como ausência de doença, levando-os a uma busca pela melhora dos sintomas. Revelou-se uma assistência com pouca ênfase na prevenção da transmissão do vírus, conduzindo à reflexão sobre a importância de se rever uma estratégia multiprofissional para implementar a assistência integral à saúde, proposta pelo SUS.

Palavras-chave: HIV. Necessidades e Demanda de Serviços de Saúde. Cuidados integrais de saúde.


ABSTRACT

The health assistance proposed by the Unified Health System (SUS) is developed through institutional Programs and proposals. To implement this assistance there are many professionals giving their contribution, based on conceptions of healthcare needs. This research intended to express, in a social-phenomenological perspective, the conceptions of healthcare needs that base the actions of health professionals, who don't belong to nursing team, that look after people with HIV in Health Basic Unity. It was developed through the theoretical and methodological conceptions of Schutz. There were interviewed 17 professionals, being possible, from comprehensive analysis of their declarations, to show that the conception of health needs that bases their actions is The absenceof disease, guiding them to an attempt to alleviate symptoms. There was reveled a model of attendance with little scope in prevention of virus transmission, leading to a reflection about the importance of rebuilding a multi-professional strategy to implement the integral health attendance proposed by SUS.

Keywords: HIV. Health services needs and demand. Comprehensive health care.


RESUMEN

Las acciones asistenciales propuestas por el Sistema Único de Salud (SUS) son desarrolladas por medio de Programas e propuestas institucionales. Para su implementación, hay contribución de varios profesionales que fundamentan sus acciones en concepciones de necesidades asistenciales. La investigación, cumplida en el período de agosto de 2002 a julio de 2003, intentó explicitar, en perspectiva social y fenomenológica, la concepción de necesidad asistencial que fundamenta la acción de los profesionales de salud, no pertencentes al equipo de enfermería, que asisten persona con HIV en Unidad Básica de Salud del Municipio de Rio de Janeiro - Brasil. Se ha fundamentado en las concepciones teórico-metodológicas de Alfred Schutz. Fueron entrevistados 17 profesionales, sendo possible, a partir del análisis comprensivo de sus declaraciones, explicitar que la concepción de necesidad asistencial que fundamenta su acción es de salud como ausencia de enfermedad, llevándolos a una búsqueda por la mejora de los síntomas. Se ha revelado una asistencia con poco énfasis en la prevención de la transmisión del virus, conduciendo a la reflexión a respeto de la importancia de se rever una estrategia multiprofesional para implementar la asistencia integral a la salud, propuesta por el SUS.

Palabras clave: VIH. Necesidades y demanda de servicios de salud. Atención integral de salud.


 

 

INTRODUÇÃO

O sistema de saúde vigente no Brasil, SUS (Sistema Único de Saúde), "é constituído pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestado por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público"1.

As ações assistenciais propostas pelo SUS são desenvolvidas através de Programas e propostas institucionais, envolvendo a participação de diferentes profissionais, tendo cada um a sua perspectiva e desenvolvendo ações específicas. Ao trabalharem em equipe, espera-se que as necessidades de saúde da população sejam atendidas, proporcionando à mesma uma assistência integral, o que contempla o princípio de integralidade na atenção à saúde prevista pelo SUS 1.

A atenção às necessidades de saúde pode ser entendida, segundo Liss2 e Tocantins3, como um movimento gerador, capaz de determinar uma oferta de serviços, existindo uma correlação entre as necessidades assistenciais de uma população e os serviços de saúde oferecidos para atender a essas necessidades.

Para Tocantins4, só é possível compreender o significado objetivo de necessidade assistencial quando se dá voz àqueles que vivenciam a situação, especificamente quando esses sujeitos expressam o significado da ação de procurar assistência.

No contexto das necessidades de saúde da clientela e o atendimento das mesmas por parte dos profissionais de saúde, esta pesquisa pretende investigar qual a concepção de necessidade assistencial que fundamenta a ação de profissionais de saúde não enfermeiros que assistem pessoa HIV infectada em Unidade Básica de Saúde.

A importância de ter esse grupo de profissionais como sujeitos de estudo surgiu após a realização de pesquisas junto a pessoas HIV infectadas5 e equipe de enfermagem6. Estes objetivaram compreender, respectivamente, as necessidades assistenciais da população HIV infectada que procura a Unidade Básica e a intencionalidade da ação dos enfermeiros ao assistir o referido grupo. A fim de compreender como esse grupo está sendo assistido, tornou-se relevante dar voz aos demais profissionais de saúde, considerando a equipe multidisciplinar.

Além disso, ouvir os outros profissionais é fundamental para a atividade do enfermeiro, uma vez que, ao integrar uma equipe de saúde, ele deve participar no planejamento, elaboração e avaliação da programação e dos planos assistenciais de saúde7.

No Manual de Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis8, podem ser identificadas várias ações a serem desenvolvidas por esses profissionais, entre elas:

- Prevenir a infecção pelo HIV, tanto na infecção primária quanto na reinfecção. O que se dará por meio de atividades educativas que priorizem a percepção de risco, as mudanças no comportamento sexual e a promoção e adoção de medidas preventivas, com ênfase na utilização adequada do preservativo.

- Participar do processo de aconselhamento, o qual deve ser realizado antes e depois do teste, enfatizando a relação entre as DST e a infecção pelo HIV.

- Decidir o início da terapia anti-retroviral e qual a melhor combinação a ser instituída.

- Contribuir para diagnóstico inicial e encaminhar para um serviço especializado quando necessário.

- Antever mudanças que minimizem o risco de uma reinfecção e/ou transmissão do vírus para outras pessoas, através da anamnese e exame físico.

- Dar atenção especial a certos sítios anatômicos, durante o exame físico, nos quais a ocorrência de infecções oportunistas causadas pelo HIV é freqüente.

- Oferecer o teste anti HIV a toda gestante; oferecer medicação adequada a partir da 14ª semana de gestação; inibir a lactação e apoiar a mulher para que não se sinta discriminada por não amamentar; fornecer leite artificial apropriado.

Considerando que esse Manual é o documento de referência para a prática assistencial dos profissionais de saúde e que, implicitamente, aponta para as necessidades assistências da clientela HIV infectada, é importante que as ações nele previstas sejam a diretriz dos profissionais em Unidade Básica de Saúde.

Com esse entendimento e com a concepção de que só é possível compreender o significado objetivo de necessidade assistencial quando se dá voz àqueles que vivenciam a situação, ou seja, quando os profissionais de saúde expressam o significado da ação de prestar assistência à clientela4, este estudo teve por objetivo identificar as ações desenvolvidas pelos profissionais junto a pessoas HIV infectadas em Unidade Básica de Saúde e explicitar, em uma perspectiva social fenomenológica, a concepção de necessidade assistencial que fundamenta tal ação.

 

TRAJETÓRIA DO ESTUDO

A presente investigação, de caráter qualitativo, ocorreu no período de agosto de 2002 a julho de 2003, tendo como cenário uma Unidade Básica situada na região metropolitana do Rio de Janeiro. Utilizou-se como referencial teórico as concepções da fenomenologia sociológica de Alfred Schutz9. Essa abordagem, de acordo com Castelo Branco10:19:

fundamenta-se naquele que vivencia a experiência, valoriza a vivência daquele que realmente realiza e sente a ação, que é única, pois só este é que vai poder dizer o que pretende. E toda e qualquer ação é intencional, portanto tem significado.

Segundo Schutz9, a ação humana é planejada a partir do projeto que o sujeito se propõe a realizar. Apesar do significado de uma ação ser subjetiva, é possível compreendê-la através da identificação dos "motivos para".

Os "motivos para" referem-se à finalidade de uma ação, ao resultado que se espera alcançar. Segundo Capalbo11, enquanto uma ação está em curso, o ator tem em vista o "motivo para", o qual tem caráter subjetivo, sendo possível apreendê-lo através do contato direto com o sujeito que vivencia o fenômeno, neste caso, o profissional de saúde não enfermeiro.

O primeiro passo foi submeter o Projeto à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em uma Unidade Básica situada na região metropolitana do Rio de Janeiro, a fim de atender às Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos 12.

Apesar de, em consonância com a metodologia utilizada, não ser necessário estabelecer o quantitativo de profissionais, nossa proposta inicial era entrevistar um representante de cada categoria e um de cada especialidade médica, a fim de ter um grupo heterogêneo e representativo dos profissionais de saúde não enfermeiros que assistiam pessoa infectada com o HIV na Unidade.

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, através de contatos com o Centro de Estudos da Instituição, foram contatados 22 profissionais e questionados se assistiam pessoa infectada com HIV em Unidade Básica, sendo considerados sujeitos da pesquisa os que responderam que assistem essa população, independentemente da concepção do profissional sobre o que é assistência. Dos 22 profissionais, 1 não era sujeito da pesquisa e 4 não concordaram em participar: três alegaram falta de tempo e um profissional agendou a entrevista, mas no momento da mesma não atendeu a um dos critérios para ser entrevistado, que é a assinatura do Consentimento Livre e Informado.

Os profissionais, que referiram assistir essa clientela, foram convidados a participar da Pesquisa, na qualidade de entrevistados, após breve exposição sobre alguns elementos do Projeto de Pesquisa, como: título, sujeitos da investigação, roteiro e tempo de duração das entrevistas, assinatura obrigatória do Consentimento Livre e Informado, além da garantia do anonimato do entrevistado.

As entrevistas foram previamente agendadas conforme a disponibilidade de cada profissional, o que geralmente ocorria após seu último atendimento no turno. Antes de dar início a cada uma delas foram re-afirmados a importância de gravar os depoimentos e o respeito ao sigilo dos sujeitos. Para tanto, foi solicitado que cada entrevistado escolhesse um pseudônimo, com o qual foi identificado em sua fala.

 

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

Como características dos 17 profissionais entrevistados, identificou-se que todos eram do sexo feminino, sendo 10 da área médica (duas clínicas, duas ginecologistas, uma pneumologista, uma neurologista, uma psiquiatra, uma dermatologista e uma otorrinolaringologista) e 7 de outras áreas da saúde (duas nutricionistas, uma dentista, uma fisioterapeuta, uma assistente social, uma psicóloga e uma fonoaudióloga/audiologista).

O tempo de formado dos profissionais variou de 3 a 32 anos, sendo a média de 18 anos, e a idade variou de 26 a 56 anos, sendo a idade média de 42,5 anos, o que de certa forma permite inferir a experiência de vida e profissional dos entrevistados.

A análise das atividades relatadas pelos profissionais entrevistados como sendo desenvolvidas junto à pessoa infectada com HIV, permitiu identificar que todas as ações assistenciais estão previstas no Manual de Controle de DST/AIDS8. Contudo, cabe ressaltar que, em sua maioria, os entrevistados não mencionaram desenvolver atividades que priorizam a percepção de risco, mudanças no comportamento sexual e a adoção de medidas de prevenção e de promoção da saúde, tendo sido referido por apenas dois profissionais o incentivo ao uso do preservativo e orientações quanto às formas de transmissão do vírus.

Quanto às atividades que visam a adesão ao tratamento, foram mencionadas pela maioria dos entrevistados, com bastante ênfase, a adesão à terapia medicamentosa, seja a anti-retroviral ou a de infecções oportunistas e ainda a adesão ao tratamento e controle dos efeitos colaterais das medicações.

Mediante o exposto, identifica-se uma prevalência de atividades curativas em detrimento das preventivas. Busca-se mais uma aderência ao tratamento medicamentoso, visando a melhora dos sintomas, do que prevenir a re-infecção ou a transmissão do vírus.

Em seguida, passou-se à fase de identificação dos "motivos para" nas falas dos entrevistados. Inicialmente foi feito um recorte das falas, destacando o que o profissional apontava como sua intencionalidade, o que ele referiu ter em vista ao assistir pessoa infectada com HIV em Unidade Básica.

Com a leitura e análise desses recortes, percebemos que havia algo em comum nessas falas e procedemos a repetidas leituras das entrevistas a fim de identificar quais as categorias concretas do vivido que emergiam das falas desses profissionais.

Foi identificada apenas uma categoria: Melhora dos Sintomas, o que pode ser constatado nos seguintes recortes.

O bem-estar do paciente (...) se ele está passando mal, melhorá-lo, diagnosticar e tratá-lo. (Atir)

Melhorar aquilo, o motivo pelo qual ele me procurou... se ele tá com uma febre, uma dor abdominal, tá com diarréia eu vou examiná-lo, pedir exame, tendo em vista a melhora daqueles sintomas. (Mariana)

...eu procuro orientar... fazer com que ela não se relaxe do tratamento, não deixe de acompanhar, não deixe de se tratar... vamos supor... se a mulher é hipertensa eu pergunto, a Senhora está usando a medicação antihipertensiva? Tá fazendo o tratamento direitinho?... Se ela é diabética, a senhora está usando algum remédio, tá tomando insulina? Se ela tem problema de tireóide, eu pergunto assim a mesma coisa... e se ela tem HIV eu pergunto: A senhora tá fazendo uso da medicação? Quanto é que tá sua carga viral?... A Srª. está acompanhando com a infectologista? (Maria)

Melhorar a qualidade de vida, os sintomas da pessoa. (Amélia)

Todo paciente nosso vem encaminhado da clínica médica. Aí vem com aqueles exames, com triglicerídeos mil (...) tentar melhorar a qualidade de vida dela. Dar uma alimentação equilibrada para evitar esses efeitos colaterais. Nossa preocupação também é com o aparelho gastrointestinal, que às vezes eles também tem alterações intestinais... (Sandra)

...que ele consiga um... um melhor aspecto, até estético. Por exemplo, hoje eu atendi um rapaz que tinha quebrado os incisivos, então eu restaurei. (Clara)

Tanto no atendimento individual quanto no coletivo, no grupo, a gente tem essa preocupação de recuperação do estado nutricional(...) Ele vem pra cá com alguma coisa instalada, que tem ligação com a nutrição... (Juliana)

Em seguida, passou-se à fase de estruturação do significado da ação em comum a todos os profissionais.

 

NA BUSCA PELA MELHORA DOS SINTOMAS...

A partir da organização e análise das falas sobre o que os profissionais de saúde têm em vista ao assistir pessoa infectada com HIV, foi possível identificar como típico da ação uma assistência que visa a melhora dos sintomas do cliente. Esse típico da ação aponta simultaneamente para a concepção de necessidade de saúde que fundamenta a ação de profissionais não enfermeiros ao assistirem essa clientela em Unidade Básica.

A idéia de sintoma remete para a queixa do paciente - sua subjetividade - o que, nem sempre, pode ser comprovado através de exame físico e/ou de exames complementares, podendo ser identificado nas falas a seguir:

Pergunto quais são as queixas no momento. E relativo a sintomas da doença, a efeitos colaterais do remédio, a dúvidas, a outras queixas... resolver os problemas de saúde dela. (Ana Júlia)

Primeiro, é que aquela auto-estima retorne... melhorar esse quadro depressivo, a consciência da doença... (Marina)

Porém, o que foi apreendido como sintoma também pode ser entendido de maneira ampla, como alterações físicas que podem ser identificadas pelo profissional, ou seja, no sentido objetivo, o que pode ser observado mais claramente:

Melhorar aquilo, o motivo pelo qual ele me procurou... se ele tá com uma febre, uma dor abdominal, tá com diarréia eu vou examinalo, pedir exame, tendo em vista a melhora daqueles sintomas. (Mariana)

Além desses dois aspectos - subjetivo e objetivo - o sintoma, nas falas de alguns profissionais, também engloba tudo aquilo que incomoda o cliente, revelando que o profissional não enfermeiro, ao assistir o cliente infectado com HIV tem em vista proporcionar a sensação de bem-estar a ele, o que pode ser identificado nas seguintes falas:

O bem-estar do paciente (...) se ele está passando mal, melhorá-lo, diagnosticar e tratá-lo. (Atir)

...o que você, é, tenta no primeiro momento é tentar tranqüilizar mesmo o paciente... então você tenta tranqüilizar ele que hoje em dia é possível ter uma vida, é, boa, se ele colaborar no tratamento, se ele fizer o tratamento adequado, tiver uma vida sem uso de droga, de bebida, enfim, tentar uma vida saudável, né, que ele consegue viver bastante tempo(...) a minha intenção é exatamente essa, é tentar mostrar que ele pode ter uma vida boa, com qualidade... (Amanda)

Melhorar a qualidade de vida daquele paciente. Tentar minimizar o problema que ele apresenta naquele momento. (Priscila)

Pelo que pôde ser apreendido nas falas, se o profissional conseguir deixar o cliente livre de sintomas, proporcionando a sensação de bem-estar ao mesmo, entende que está atendendo à necessidade de saúde do cliente.

A fim de alcançar a melhora dos sintomas, entendida neste contexto de maneira ampla, englobando o bemestar do cliente, o profissional de saúde não enfermeiro busca conscientizar o cliente sobre a importância de aderência ao tratamento, seja através do uso de medicação para tratar doenças oportunistas, do uso de antiretrovirais, do acompanhamento da carga viral com o médico especialista, entre outros.

Uma vez que a concepção de necessidade assistencial do profissional de saúde não enfermeiro está voltada para a idéia de proporcionar bem-estar, entendendo este como ausência de sintomas "desagradáveis" decorrentes da infecção pelo HIV ou por agentes oportunistas, surgiu a reflexão sobre a integralidade da assistência proposta pelo SUS.

Tendo como objetivo da assistência uma luta sem trégua contra a doença, perguntamos: será que uma pessoa infectada com HIV não apresenta necessidades outras que não somente o alívio de sintomas? Que profissional ou que categoria daria conta de outras questões?

A jovem Valéria Piassa Polizzi13, HIV infectada, escreveu em sua biografia algo que nos leva a refletir sobre os riscos de fundamentar a assistência à saúde na luta contra a doença, o que fica claro no seguinte trecho:

Esse doutor Infecto, pensava o que da vida? Que era só chegar e dizer tome isso! Eu abaixo minha cabeça e digo amém. Será que ele havia esquecido que eu era feita de um material chamado ser humano e que, por um acaso, como todos os outros da mesma raça, era cheia de dúvidas?... Não, ele não sabia nada disso. Vai ver que ele nem lembrava que eu era gente. Era isso, olhava pra minha cama e só enxergava um tubo de ensaio cheio de vírus pulando dentro.13:229,230

Em outro trecho, ela mostra-se surpresa quando o profissional parece querer ouvi-la e mostra o quanto isso era relevante:

O que nós precisamos fazer agora - prosseguiu ele - é uma transfusão de sangue e alguns exames para ser descoberto o porquê da infecção. Pode ser? Pára tudo. Ele não ordenou? Não mandou? Não impôs? Ele perguntou se pode ser? (...) Meu Deus, aquilo realmente parecia um sonho... ele era inteligente o bastante para saber que perguntar a opinião do paciente de vez em quando não doía nada. 13:227

Analisando esses dois trechos, percebe-se um profissional visando a melhora do quadro clínico do paciente, o que em sua concepção vai suprir a necessidade de saúde do cliente. Porém, na fala da autora, usuária dos serviços de saúde, notamos que a busca do profissional no tratamento dos sintomas não é tudo o que ela precisa, não se mostra suficiente. Ela traz algo mais, ela mostra a importância de ser ouvida e respeitada em suas dúvidas, ela necessita ser tratada, em suas próprias palavras, como gente, ou seja, como sujeito ativo na relação profissional de saúde-cliente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise compreensiva das falas nos levou a rever e repensar a integralidade da assistência proposta pelo SUS. Corroboramos Cecílio14:11 quando relaciona as necessidades de saúde com a assistência integral:

...a integralidade da atenção, no espaço singular de cada serviço de saúde, poderia ser definida como o esforço da equipe de saúde de traduzir e atender, da melhor forma possível, tais necessidades, sempre complexas, mas principalmente, tendo que ser captada em sua expressão individual.

Esse autor afirma que, para se alcançar uma assistência integral, no encontro do usuário com o profissional de saúde deveria prevalecer o compromisso e uma busca constante por fazer uma escuta das necessidades de saúde trazidas pela pessoa que procura atendimento em determinado serviço.

Com essa análise, percebe-se que há uma divergência de prioridades entre as propostas do SUS e a prática assistencial na Unidade Básica. Os profissionais permanecem dentro de um modelo assistencial fundamentado na objetividade da ciência médica, enquanto o SUS prevê a busca por uma assistência integral, incluindo tanto aspectos objetivos quanto subjetivos na atenção às necessidades de saúde da população.

Concluímos que para atender as necessidades de saúde da população é preciso mudar a maneira de se planejar os serviços de saúde, pois, no pensamento de Silva15, as unidades de saúde são planejadas a fim de obter uma melhora em seu funcionamento, mas dentro do mesmo modelo assistencial, no qual se cuida da doença, dos sintomas, mas não propriamente da pessoa.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecimento a Cristiane Leta Vieira, acadêmica do Curso de Graduação da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto (UNIRIO), por sua colaboração na fase de realização e transcrição das entrevistas.

Esta pesquisa contribuiu para o conhecimento da concepção de necessidade assistencial de saúde que fundamenta o agir de profissionais de saúde não enfermeiros em relação à clientela infectada com HIV, no espaço da Unidade Básica de Saúde. E deixou a certeza de que é preciso reorientar a assistência para que as necessidades de saúde da clientela possam ser satisfeitas, para que a pessoa seja assistida da maneira mais integral quanto seja possível - que ela seja ouvida e respeitada em sua singularidade.

E para alcançar esse objetivo, idealizado desde a Reforma Sanitária Brasileira, é relevante buscar incessantemente a compreensão do "momento atual", saber como se dá a assistência e em que concepções ela se fundamenta. Para que, então, em outro momento, possamos elaborar propostas consistentes que nos levem à implementação de um sistema de saúde que, acima de tudo, assista o ser humano em toda sua humanidade.

Pois como afirma Cecílio 14:11.

Toda ênfase da gestão, organização da atenção e capacitação dos trabalhadores deveria ser no sentido de uma maior capacidade de escutar e atender a necessidade de saúde, mais do que a adesão pura e simples a qualquer modelo de atenção dado aprioristicamente.

Assim, este estudo aponta para a importância de novos estudos sobre a capacitação dos profissionais de saúde na assistência à pessoa infectada com HIV em UBS, e ainda sugerimos aprofundar as investigações que têm como objeto a participação do enfermeiro, como integrante da equipe de saúde, e sua contribuição na elaboração, planejamento e avaliação da programação e dos planos assistenciais de saúde no sentido de aprimorar a assistência à população infectada com HIV.

 

REFERÊNCIAS

1 Lei nº 8.080 de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde; a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e das outras providências. [on line] [citado 13 março 2003] [aprox. 3 telas].Disponível em: http://www.planalto.gov.br

2. Liss PE. Health Care Need. Hampshire (ENG): Avebury; 1993.

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5. Rebello MI, Calegaro KMS, Tocantins FR. A saúde da pessoa HIV infectada e suas necessidades: o significado da ação de procurar assistência. Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro (RJ): UNIRIO; 2001.

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9. Schutz A. Collected Papers 1. The problem of social reality. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers; 1990.

10. Castelo Branco AL, Tocantins FR. A cliente internada e a enfermagem psiquiátrica. Rio de Janeiro (RJ): Gráfica Minister; 1996.

11. Capalbo C. Metodologia das Ciências Sociais: a fenomenologia de Alfred Schutz. 2ª ed. Londrina (PR): UEL; 1998.

12. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacionalde Saúde. Resolução nº 196 de 10 de outubro 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [on line] [citado 19 out 2003] [aprox. 3 telas] Disponível em: http://www.ufrg.br/HCPA/gppg/res19696.htm.

13. Polizzi VP. Depois daquela viagem: diário de bordo de uma jovem que aprendeu a viver com aids. 18ª ed. São Paulo (SP): Ática; 2001.

14. Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro (RJ): IMS/ UERJ/ABRASCO; 2001.

15. SILVA SF. Planejamento em Unidades Básicas de Saúde: noções de planejamento, estratégia e modelo assistencial. Curitiba (PR): Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva/NESCO; 2000.

 

 

Recebido em 13/09/2004
Reapresentado em 11/02/2005
Aprovado em 01/03/2005

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