Volume 17, Número 4, Set/Dez - 2013
PESQUISA
Necessidades de saúde de homens na atenção básica:
acolhimento e vínculo como potencializadores da integralidade
Luisa Pereira Storino
1
Kleyde Ventura de Souza
2
Kênia Lara Silva
3
1
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
2
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG,
Brasil
3
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
Recebido em 27/04/2013
Reapresentado em 08/05/2013
Aprovado em 19/08/2013
Autor correspondente:
Luisa Pereira Storino
E-mail: lulitorino@gmail.com
RESUMO
Este estudo teve como objetivo analisar as necessidades de saúde de homens usuários
de uma unidade básica de saúde, na cidade de Belo Horizonte/Minas Gerais.
MÉTODOS:
Trata-se de uma pesquisa qualitativa e tem como categoria de análise as
necessidades de saúde. Foram entrevistados 27 homens na faixa etária de 20 a 59
anos no período de março a junho de 2012. Os dados foram submetidos à análise
temática.
RESULTADOS:
Os resultados mostraram que o acolhimento e o vínculo se destacaram como
dispositivos potencializadores da integralidade da assistência e do reconhecimento
das necessidades de saúde do grupo estudado.
CONCLUSÃO:
A capacidade dos profissionais e dos serviços de acolherem, traduzirem e
construírem um cuidado contínuo e adequado para as necessidades de saúde desse
público é fundamental para que o valor de uso do trabalho em saúde seja
reconhecido e para que os homens se reconheçam como sujeitos do seu cuidado e de
suas necessidades.
Palavras-chave: Saúde do homem; Política de saúde; Masculinidade; Assistência integral à saúde
INTRODUÇÃO
Estudos epidemiológicos mostram que a população masculina possui menor expectativa de vida do que a população feminina em todo o mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)1, a média da expectativa de vida mundial masculina e feminina, em 2009, diferia em cinco anos: as mulheres viviam, em média, 71 anos, e os homens, 66 anos.
Em relação à mortalidade, no Brasil, a diferença entre homens e mulheres é significativamente maior entre 15 e 39 anos de idade, sendo que, no ano de 2010, a chance de homens de 22 anos morrerem era 4,5 vezes maior que de mulheres na mesma idade. As causas externas são as principais causas de morte entre os homens brasileiros nessa faixa etária2.
Esses dados revelam que o público masculino tem particularidades que precisam ser compreendidas, considerando sua forma de inserção na sociedade. Assim, é possível visualizar os diferentes perfis e padrões típicos de saúde e doença que se manifestam nesse grupo social e compreender os determinantes que operam sobre ele3.
Nesta lógica, a expectativa de vida de homens em comparação ao de mulheres configura-se em apenas um parâmetro que, articulado aos processos sociais, culturais e políticos, contribui para se compreender os diferentes graus de vulnerabilidade que podem se manifestar na população masculina.
Essa perspectiva contribui para ampliar e qualificar a assistência à saúde fundamentada nas necessidades de saúde individuais e coletivas, possibilitando a busca pela integralidade. Isso porque a integralidade é definida como um princípio do SUS, que considera as dimensões biológica, cultural e social do usuário, orienta políticas e ações de saúde capazes de atender as demandas e necessidades no acesso à rede de serviços4 .
É importante salientar que, para se pensar em integralidade da assistência à saúde, o sujeito que necessita dela precisa estar representado na construção diária do trabalho em saúde no nível singular, como também nos âmbitos organizacionais e políticos em que as necessidades de saúde são socialmente reconhecidas5
No entanto, ao se considerar esse requisito, no que se refere ao reconhecimento e satisfação das necessidades de saúde de homens e da construção de uma assistência fundamentada pelo princípio de integralidade, a tarefa está apenas iniciada. Portanto, ainda precisa ser discutida amplamente. É fato que as vulnerabilidades dos grupos não masculinos, como crianças, mulheres e idosos, foram historicamente priorizadas nas ações do setor saúde.
Do ponto de vista da medicalização social, na construção das políticas públicas de saúde no Brasil, grupos específicos tiveram atenção especial do Estado com a finalidade de "sanear o corpo social". Estes grupos - mulheres, crianças, idosos, homossexuais, criminosos e loucos - foram alvo de atenção especial. As mulheres, pela responsabilidade em reproduzir uma raça forte e sadia; as crianças e idosos, por serem considerados frágeis diante das doenças e dos infortúnios, e, os homossexuais, criminosos e loucos por, supostamente, representarem um perigo social6.
Outro argumento que explica essa construção histórica é que o conhecimento das áreas biomédicas e de formulação de políticas públicas é ancorado em elementos considerados masculinos e tendem a não problematizar o homem como sujeito do cuidado, e a masculinidade como objeto7. Assim, essas questões culturais, políticas e econômicas culminaram em um não reconhecimento das vulnerabilidades próprias do público masculino, representado nas políticas públicas e na realidade dos serviços de saúde8.
Apesar disso, algumas acumulações ocorreram nas últimas duas décadas, em que se debateram, em vários espaços, a importância das relações de gênero para se discutir questões sociais, inclusive a saúde, levantando contradições inerentes às práticas de saúde e aos processos de saúde e doença de homens. Políticas públicas de saúde no mundo9-10 e no Brasil foram impactadas por essas modificações.
No Brasil, a saúde do homem vem sendo inserida lentamente na pauta da saúde pública, desde o lançamento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH)11, formalizada em 27 de agosto de 2009.
No entanto, um estudo que explorou a implantação da PNAISH em cinco municípios do país concluiu que os Planos de Ação Municipal não apresentam descrições precisas para implantação da política, priorizando ações baseadas em procedimentos e exames que reforçam a centralidade da atenção no aparelho genital masculino. Esse estudo destacou também que gestores e profissionais na assistência direta têm pouco ou nenhum conhecimento sobre a política12.
Deve-se considerar que a PNAISH é uma formulação recente e precisa ser amplamente discutida e implementada, embora já receba muitas críticas: por não incorporar as discussões de gênero, por "vitimizar" um homem que deve ser sujeito de uma política específica porque precisa ser protegido de si mesmo, por representar mais um passo no processo de "medicalização" do corpo masculino e por estar demasiadamente focada na próstata12.
Admite-se que ações para a saúde do homem não devem ser tratadas apenas no âmbito dos serviços de saúde. Questões como a morte de jovens por violência, abuso de álcool e drogas apontam a necessidade de esforço intersetorial que envolva a mídia, a justiça, a educação, os empregadores, entre outras instituições na sociedade.
Entretanto, o setor saúde precisa encetar as mudanças, principalmente no sentido de ampliar a equidade e a integralidade da assistência a partir do reconhecimento de outras necessidades de saúde, além das já reconhecidas pelos serviços e políticas da área. Dessa forma, é fundamental a discussão sobre as masculinidades para os serviços/profissionais de saúde e para a população, no sentido de romper com a noção de invulnerabilidade dos homens e de fazer ressoar as necessidades desse grupo.
Considerando esse contexto e a percepção de que existe uma reprodução destes fenômenos, também na realidade dos serviços de atenção básica, no Brasil, decidiu-se aprofundar a discussão sobre as necessidades de saúde dos homens usuários deste tipo de serviço com base em um referencial teórico coerente com a perspectiva de que os sujeitos constroem necessidades a partir de suas formas de inserção na sociedade13.
Assim, esse artigo tem como objetivo analisar as necessidades de saúde de homens usuários de uma unidade básica de saúde. Trata-se de um recorte de dissertação de mestrado intitulada: "Necessidades de saúde de homens usuários de uma unidade básica de saúde em Belo Horizonte14 e apresenta uma das categorias empíricas do estudo, em que se destacaram o acolhimento e o vínculo como dispositivos potencializadores da integralidade da assistência e do reconhecimento de suas necessidades de saúde".
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, com abordagem qualitativa. A teoria das necessidades13 foi considerada como base teórico-metodológica. Nesta perspectiva as necessidades são compreendidas como um produto das práticas sociais de sujeitos e grupos que ocupam uma classe social, em um momento histórico. Essas práticas são delineadas pela cultura construída pela moralidade e costumes das gerações passadas, o que inclui referenciais de masculinidades. Portanto, as necessidades se concretizam para os indivíduos de diferentes classes sociais e cultura de maneira desigual, pois desigual é o acesso aos produtos que satisfazem as necessidades13.
A teoria das necessidades possibilita compreender a mediação entre processos micro e macrossociais, considerando a mútua e complexa interação entre estrutura e sujeitos 13. No entanto, a satisfação das necessidades de saúde de grupos e indivíduos é um processo que se dá no cerne de uma sociedade complexa e tem fatores estruturais determinantes. Desta forma, a ação do sujeito no exercício da autonomia é fundamental para mobilizar o modo de andar a vida, no sentido de viabilizar a satisfação de necessidades de saúde que podem qualificar o viver15.
Empiricamente, as necessidades de saúde podem ser analisadas a partir do discurso dos atores sociais sobre sua relação com os objetos de suas necessidades, que podem ser materiais ou externas ao ser humano (moradia, alimentação, ou um modo de vida); ou serem internas, livres ou espirituais (conhecimento, a fé e os sentimentos motivados pelas relações sociais). Em relação aos serviços de saúde, são consideradas as práticas profissionais e as tecnologias de saúde. Desta maneira, estando os profissionais e seus atos imbricados neste processo, o reconhecimento mútuo na relação entre profissionais e usuários, a partir do acolhimento e do vínculo, também se configura objeto dessas necessidades.
O estudo foi desenvolvido na cidade de Belo Horizonte/MG em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do distrito Norte da cidade, em que atuam quatro equipes de saúde da família (ESF), sendo o acolhimento das equipes feito por demanda espontânea, no período diurno, cinco dias por semana. Participaram da pesquisa 27 homens na faixa etária de 20 a 59 anos, com residência fixa há pelo menos um ano na área de abrangência da UBS, recrutados aleatoriamente na rotina do serviço e abordados no momento em que buscavam a UBS com demandas pessoais ou como acompanhantes.
Para produção do material empírico foram realizadas entrevistas semiestruturadas, até a saturação dos dados, no período de março a junho de 2012. Procurou-se, na elaboração do instrumento utilizado, delinear o objeto estudado, contemplando de maneira oportuna questões que poderiam fazer emergir as necessidades de saúde. Além das entrevistas, foram realizados pela pesquisadora registros em um diário de campo, no qual se buscou remontar situações relacionadas ao processo saúde/doença dos sujeitos do estudo.
As expressões dos sujeitos sobre os objetos de suas necessidades de saúde e suas ações no sentido de qualificar "o modo de andar a vida" foram analisadas em uma sequência coerente à análise temática de conteúdo16, que prevê: préanálise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Destacaram-se os dados que, semanticamente, remetiam aos temas contemplados na Taxonomia de Necessidades de Saúde15.
Esta taxonomia é composta de quatro grandes grupos de necessidades de saúde, que incluem: boas condições de vida; garantia de acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida; acolhimento e vínculo com um profissional ou equipe; autonomia e autocuidado na escolha do modo de "andar a vida"15.
Para a realização deste estudo foram atendidos todos os requisitos éticos propostos pela resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte conforme pareceres CAAE-0650.0.203.000-11 e 0650.0.203.410-11. Os participantes receberam individualmente todas as orientações referentes à pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Como qualquer produto, os equipamentos e práticas de saúde, para terem valor de uso para o indivíduo, precisam necessariamente satisfazer suas necessidades. O valor de uso também está relacionado às características da "mercadoria" e ao trabalho humano aplicado em sua produção13. Os resultados do estudo indicam que vínculo e o acolhimento tornam-se elementares na satisfação de necessidades, em relação aos serviços de saúde, dos participantes do estudo, confirmando achados de outras pesquisas.15
Os dados demonstram que os homens manifestam satisfação com os serviços prestados quando têm algum vínculo com um profissional ou com a equipe, exemplificando a situação em que foram bem acolhidos:
Eu gosto demais de vir aqui...eu vejo aquele posto lá em baixo (refere-se a outro serviço). Nossa Senhora, aquilo deve ser um sufoco terrível. Aqui não! Minha mãe "tava" doente e eu recebi muito apoio, sabe? Eu gosto muito de vir aqui. Pessoal muito bacana, educado H(22).
Como a gente sabe que aqui tem um bom atendimento, quando eu preciso mesmo, eu venho aqui H(24).
A expressão "preciso mesmo", na segunda fala, pode significar situações muito específicas, restritas ou pouco variadas em que esse sujeito necessita dos serviços da UBS, como, por exemplo, as situações em que manifesta sintomas agudos de alguma doença. Já no segundo caso, o vínculo com a equipe é capaz de dar suporte para a satisfação de outras necessidades como, por exemplo, o apoio à família. A partir disso, é possível inferir que, para o primeiro sujeito, o serviço atende mais integralmente suas necessidades.
No relato seguinte, o homem expressa a satisfação com a nova tecnologia de saúde, que se ajustou melhor às suas necessidades. Isso foi possibilitado pela relação equipe de saúde/usuário, em que houve participação de ambas as partes, produzindo como resultado o cuidado a partir do reconhecimento de uma necessidade de saúde que qualificou a vida do sujeito.
A insulina que me dá segurança, sabe?!,Eu estava tomando quatro metilformina, e mesmo assim eu estava perdendo o equilíbrio. Ás vezes, minha vista estava meio embaçada. Depois que eu comecei a tomar insulina, a coisa melhorou H(22).
Portanto, à medida que os serviços de saúde oferecidos correspondem à variedade das necessidades de saúde dos homens, eles se vinculam mais a esses serviços. É visível essa relação quando se observa, de forma mais frequente, a existência de vínculo de homens que conhecem o diagnóstico de sua condição crônica de saúde, com os profissionais de saúde.
Assim, como esse tipo de necessidade é mais reconhecido na estrutura em que o serviço se organiza, certamente as práticas de saúde terão maior possibilidade de ter valor para os usuários que apresentam essas necessidades do que para outros indivíduos, ou terão chances de corresponder de maneira menos fragmentada às suas necessidades.
Mas essa relação não exclui a importância da participação do profissional e dos sujeitos, na consolidação da continuidade do tratamento, propiciada pelo vínculo e pela construção e reconstrução de necessidades de saúde. Dessa forma, ter um profissional ou equipe de referência de responsabilização, dentro do sistema, poderia ser uma necessidade a partir da construção do vínculo13.
No caso a seguir, o entrevistado deseja ser atendido sempre pelo profissional em quem confia, e que produz um trabalho singular para suas necessidades de saúde. Esse homem reconhece que o fato de o médico "estar por dentro" de suas necessidades torna o trabalho mais adequado para satisfazê-las.
Como eu já comecei com o Dr. X , depois vou mexer com o Dr.Y? Não tem jeito...Dr. X já está" mais "por dentro" H(6).
Não se pode dizer que o vínculo por si só garanta um atendimento que vislumbre a integralidade na relação de assistência equipe e usuário, muito menos considerando-se a satisfação de necessidades de saúde, possível somente em uma complexa rede que extrapola o sistema de saúde. Mas, sem a relação de reconhecimento mútuo dos indivíduos em suas posições de sujeitos, não é possível pensar em integralidade. Desse modo, para haver integralidade, é preciso que as necessidades do sujeito sejam percebidas em suas variedades, e, para que isso ocorra, é fundamental a comunhão possibilitada pelo vínculo17.
Entretanto, a realidade, para a maioria dos homens, não é semelhante às dos sujeitos citados. Os produtos das práticas profissionais da APS não são de consumo habitual para a maioria dos homens, por vários motivos que incluem questões estruturais na conformação dos serviços e na maneira dos homens se reconhecerem socialmente. Essas questões culminam em barreiras que dificultam o reconhecimento dos homens como portadores de necessidades de saúde por parte dos profissionais, assim como dificultam o reconhecimento das práticas profissionais em saúde como produtos de necessidades por parte dos usuários.
Nas próximas declarações, percebe-se que um dos caminhos para os profissionais de saúde investirem na diminuição das barreiras, a fim de que os homens acessem os serviços de saúde, é colocar-se à disposição de forma cuidadosa, para que não se perca a oportunidade de se construir o vínculo.
Tem que ter empatia. Por exemplo, gente idoso, quando vai a algum lugar, tipo posto de saúde e é bem recebido, é outra coisa. Mas, quando vai ao posto de saúde e não é bem recebido, não vai querer nem voltar H(4).
Às vezes a pessoa está altiva, não está com aquela paciência com a gente, então às vezes eu acho que, porque a pessoa trata a gente mal, a gente acaba, como se diz, se afastando H(17).
A capacidade de ouvir e a sensibilidade de quem recebe os sujeitos e suas demandas nos serviços de saúde são fundamentais para que as reais necessidades sejam compreendidas e atendidas de maneira mais integral17.
No entanto, para que o acolhimento e o vínculo aconteçam verdadeiramente e se tornem uma marca de valor das práticas de saúde da Atenção Primária à Saúde (APS) para os sujeitos, não depende apenas de os profissionais de saúde se mostrarem disponíveis e ouvir as demandas dos homens. É preciso que as práticas de saúde sejam construídas visando ampliar os produtos de atenção à saúde para esse público.
Nos casos seguintes, pode-se inferir que estes homens, apesar de reconhecerem suas necessidades de saúde, não reconhecem suas vulnerabilidades e julgam que as condições não são favoráveis a que essas necessidades sejam satisfeitas.
Preciso fazer um tratamento de dente para eu trabalhar. Tenho dores no tornozelo e preciso ir ao médico, mas aí eu vou hoje e custo a ser atendido. Eles vão marcar o exame. Aí o exame demora 6 meses e, quando aquele exame chega, você não precisa daquele exame, sua dor já passou H(9).
Vir ao posto já é demorado... quando você está doente... para você fazer exames preventivos....aí...vai demorar muito mais [...]Aqui faz check up completo? Eu não sabia! H(20).
Entretanto, no primeiro caso, a pessoa sequer chegou a procurar a UBS para solucionar as queixas referidas, por julgar que o serviço seria incapaz de atender a suas demandas em tempo satisfatório. As notas registradas no diário de campo sobre esse homem revelaram que ele não estava no serviço para ser atendido, e sim acompanhando a filha. Além disso, apesar de ter consciência de ser portador de doença crônica grave, nega-se a fazer tratamento e ter vínculo com os profissionais da UBS.
Eu posso ser diabético e ter pressão alta, mas nunca tomei esses remédios. Nunca tive necessidade disso. E se eu for ao médico, ele vai falar pra eu tomar todo dia. Pra que eu vou tomar isso?H(9).
No segundo caso, o sujeito mostra um desconhecimento sobre os serviços oferecidos e não possui vínculo com os profissionais. Apesar de ser tabagista inveterado e de ter histórico de hipertensão arterial, não mostra a necessidade de conferir a saúde por meio da realização de exames de rotina.
Percebe-se a dificuldade desses homens de reconhecerem suas vulnerabilidades e se responsabilizarem pelo próprio cuidado. Eles se colocam em uma situação alienada em relação ao cuidado com a saúde, criando uma barreira para que manifestem necessidades qualitativas no que diz respeito à saúde. Deve-se salientar que as necessidades qualitativas de saúde dos sujeitos podem não ser necessariamente relativas aos produtos e serviços ofertados pelos serviços.
Nesses casos, a maneira como o profissional se coloca à disposição, no sentido de satisfazer as necessidades "conscientes" desses sujeitos, é fundamental para que lhes sejam oferecidas oportunidades de desenvolverem outras necessidades. Apesar de a ação do profissional de saúde ter um limite claro, é por meio do acolhimento e da empatia que as contradições que os distanciam podem ser superadas.
Deve-se ressaltar que o profissional de saúde precisa ter consciência do seu poder em induzir demandas. Por isso, é fundamental descobrir caminhos para uma prática que reconheça a necessidade de autonomia dos sujeitos. O respeito à autonomia dos homens "no modo de andar a vida" pode significar um trabalho de cuidado.
A flexibilidade do trabalho para propiciar o acesso pelo bom acolhimento e pela disponibilidade de horários compatíveis para os trabalhadores reduz outras barreiras, e pode significar também oportunidades para os profissionais construírem vínculo com os homens.
No relato a seguir, o depoente sugere soluções para a redução de barreiras reconhecidas por ele para o acesso aos serviços de saúde:
No meu caso, dependente um pouco dos horários que a gente trabalha, acho que, se fosse um pouco mais favorável, ou um atendimento no sábado... Porque a gente trabalha de segunda a sexta, às vezes trabalha até no sábado, então... É, talvez possa ser a dificuldade dos horários também, eu acho que o horário da gente é um pouco complicado. Às vezes, aí na parte da tarde, a gente não consegue uma vaga, às vezes é aquela oportunidade que a gente tem pra gente vir e não consegue H(17).
Já no próximo relato, o mesmo homem demonstra que o acolhimento satisfatório contribuiu para que ele sentisse necessidade de dar continuidade ao tratamento.
Eu agora no momento estou frequentando o posto, estou conhecendo, mas dentro do que eu já tive participação, aí o posto sempre me deu toda atenção... por isso mesmo que eu estou retornando, eu estou querendo ter mais frequência ...querendo vir tratar aqui H(17).
O mais importante nesse processo é a potencialidade do trabalho em saúde de construir junto aos homens condições para que eles possam reconhecer suas vulnerabilidades e serem ativos na satisfação de suas necessidades. Para que isso seja possível, é necessário que haja uma intencionalidade de reconhecer necessidades de saúde, de construir práticas menos prescritivas, considerando a autoria dos sujeitos no processo saúde-doença, assim como a inserção social desses indivíduos.
É importante lembrar que, para garantir a busca pela integralidade em uma perspectiva que considere a satisfação das necessidades da população como fundamento, não se pode pensar o vínculo profissional-usuário e o acolhimento como característicos da assistência exclusiva da atenção primária à saúde. O vínculo com o profissional e o bom acolhimento são necessidades que acompanham os sujeitos em seus itinerários em toda a rede de atenção, e sua satisfação é condição para a busca pela integralidade da assistência.
A insatisfação com alguns serviços, em outros níveis de assistência à saúde, quando homens já necessitaram dela em algum momento, sugere que o acolhimento e o vínculo, além de serem de extrema importância para a construção do processo terapêutico, também são indicadores de que aquele serviço está ou não correspondendo a alguma necessidade de saúde do grupo em questão. Nos relatos seguintes, percebe-se que, para o usuário, as falhas no acolhimento e as dificuldades de construção de vínculo em outros níveis de atenção desqualificam a assistência à saúde.
Que seja um tratamento mais sério, com mais eficácia...Você chegar lá e ter a resposta, por exemplo: o posto te encaminha e você vai ao órgão e eles te atenderem e não ficar te empurrando H(7).
Eu fiquei esperando dois anos para a consulta com especialista em próstata. Quando fui encaminhado para o centro de especialidades, pediram um exame que o SUS não faz H(26).
"Eu acho bom o atendimento aqui, não tenho o que reclamar. Dependendo, alguma coisa que você tem que fazer fora, tem que esperar chamar e tal...eu estou esperando o urologista H(27).
A dificuldade de possibilitar um atendimento em que o acolhimento e o vínculo estejam presentes nas ações constitutivas da rede de atenção à saúde interfere na capacidade de se prestar uma assistência em que se busca a integralidade.
O acolhimento e o vínculo precisam ser buscados na relação profissionais/usuário em toda a rede de atenção à saúde. A APS não pode mudar sozinha a atenção à saúde por meio da humanização e da integralização. O vínculo e o acolhimento são dispositivos que têm funcionado como um canal para outras necessidades, que, como essas, acompanham as pessoas por onde busquem satisfazê-las.
Deve-se levar em consideração que o profissional médico é muito mencionado pelos sujeitos do estudo, e que o trabalho da enfermagem apresenta-se invisível para eles. Essa ausência de vínculo com a enfermagem pode apontar para várias inferências. Entre elas, está o fato de que o produto do trabalho dessas profissionais pode não corresponder às necessidades de saúde desse público, pelo menos até o momento.
As enfermeiras, nesta UBS, concentram suas atividades em atendimentos que normalmente estabelecem vínculo com o público feminino, tais como consulta de pré-natal, atendimento da mulher dentro de protocolos que visam à prevenção de câncer de colo uterino e de mama, consulta de acompanhamento e desenvolvimento de crianças até dois anos de idade e ações educativas. Outro estudo observou o mesmo fato em outros cenários semelhantes8. Além disso, as consultas programadas para outros públicos, como, por exemplo, para os usuários portadores de doenças crônicas, que no cenário de estudo são as mais procuradas, são pontuais, e não há um processo de cuidado que possibilite o vínculo.
Há, entretanto, uma questão contraditória, que é o fato de a enfermagem estar na linha de frente do acolhimento. Por meio dela é que os homens têm maior acesso aos serviços. Apesar disso, os homens usuários do serviço desconhecem o trabalho dessa categoria profissional, o que infere a reiteração da centralidade da demanda por serviços na figura do médico e na consulta médica.
Também seria uma questão a se investigar: o fato de os profissionais da enfermagem serem do sexo feminino pode influenciar no reconhecimento das necessidades por parte dos profissionais? Isso dificulta o reconhecimento do produto do trabalho das enfermeiras por parte do usuário, levando em consideração que a enfermagem não ocupa um lugar hegemônico na produção de assistência à saúde e nas relações de gênero?
A enfermagem, como profissão do cuidado, pode colaborar muito para o reconhecimento de necessidades de saúde e da posição de sujeito do cuidado dos homens. Essa contribuição, a partir de um conhecimento crítico sobre a finalidade do trabalho em saúde, é primordial para vencer contradições que reiteram a invisibilidade dos homens nos serviços, reforçam atos profissionais medicalizadores e aprofundam o abismo entre os homens e as práticas sociais de cuidado.
Este estudo revelou alguns elementos e contradições que se manifestam na dimensão do encontro profissional e usuário que podem apontar caminhos para a atuação da enfermagem neste sentido. No entanto, compreende-se que aspectos que tangem esse fenômeno podem ser reconhecidos apenas a partir de uma aproximação da realidade, que inclui de maneira mais completa as práticas e os profissionais envolvidos na escuta e na atenção a esse público. Considera-se, assim, uma limitação desse estudo o fato de apenas os homens terem sido investigados.
CONCLUSÃO
A realização do estudo permitiu concluir que, no contato com os objetos de suas necessidades relacionados aos serviços de saúde, os homens podem reconhecer no trabalho do profissional, ou em outra tecnologia, a resposta a suas necessidades de saúde, assim como perceber a importância de sua própria autoria no processo saúde/doença, e de sua participação na construção de um sistema de saúde capaz de visibilizá-las.
Da mesma maneira, os profissionais de saúde, em um trabalho com intencionalidade, têm o potencial de modificar sua prática no sentido de produzir uma assistência capaz de reconhecer mais integralmente as necessidades de saúde desse público. Assim, a relação de reconhecimento mútuo dos sujeitos, proporcionada pelo vínculo, apresenta grande potencial para qualificar as necessidades de saúde de homens e o trabalho dos profissionais de saúde, particularmente das enfermeiras, que compõem a linha de frente no reconhecimento desses sujeitos no nível singular.
Este estudo aponta caminhos para a construção de práticas em saúde mais eficientes na identificação e interpretação de necessidades de saúde, principalmente no que se refere ao acolhimento dos vários sujeitos que buscam os serviços de saúde. Criar possibilidades de acolhimento e vínculo para os homens, em todo o sistema de saúde, é o primeiro passo para romper com a invisibilidade do público masculino no sentido de dar vistas para os princípios de equidade e integralidade da assistência.
REFERÊNCIAS