Volume 17, Número 3, Jul/Set - 2013
PESQUISA
Atividades terapêuticas: compreensão de familiares e profissionais de um centro de
atenção psicossocial
Leandro Barbosa de Pinho
1
Luciane Prado Kantorski
2
Christine Wetzel
3
Eda Schwartz
4
Celmira Lange
5
Juliana Graciela Vestena Zillmer
6
1
Doutor em Enfermagem Psiquiátrica. Professor Adjunto da Escola de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre-RS. Brasil. E-mail: Lbpinho@ufrgs.br
2
Doutora em Enfermagem. Professora Associada da Faculdade de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de PelotasRSBrasil E-mail: kantorski@uol.com.br
3
Doutora em Enfermagem Psiquiátrica. Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre-RS. Brasil. E-mail: cwetzel@ibest.com.br
4
Doutora em Enfermagem. Professora Associada da Faculdade de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas-RS. Brasil. E-mail: eschwartz@terra.com.br
5
Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas- RS. Brasil. E-mail: celmira_lange@terra.com.br
6
Doutoranda em Enfermagem do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina- SC. Brasil. E-mail: juzillmer@gmail.com
Recebido em 16/07/2012
Reapresentado em 27/09/2012
Aceito em 15/05/2013
RESUMO
OBJETIVO: analisar a compreensão de familiares e profissionais de saúde mental sobre as atividades
terapêuticas no cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial.
METODOLOGIA: Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada em um Centro de Atenção Psicossocial
do Estado de Santa Catarina, Brasil.
RESULTADOS: As atividades terapêuticas, por exemplo, revelam o leque de possibilidades de atuação
e imersão das práticas nas novas tendências de cuidado na área, assim como o risco
de adoção de posturas verticalizadas e cristalizadas, mais compatíveis com modelos
de atendimentos tradicionais, contra as quais a própria Reforma Psiquiátrica luta
há mais de 20 anos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Espera-se que o estudo proporcione novos olhares sobre a Reforma Psiquiátrica no contexto
estudado, de modo a problematizar os processos de trabalhos das equipes e a relação
dos serviços com os usuários que atendem.
Palavras-chave: Enfermagem psiquiátrica; Saúde mental; Política de saúde
INTRODUÇÃO
Durante séculos, vários têm sido os fenômenos no campo da saúde que são complexos e intrigantes. Cita-se, por exemplo, a loucura como um dos maiores dilemas da humanidade e que, até hoje, ainda carece de explicações que possam dar conta da riqueza e singularidade que a acompanha.
A loucura teve diferentes inscrições ao longo da história. Passou de fenômeno da excentricidade ao castigo elaborado pelos deuses. Uma loucura que foi permitida, mas que também foi contida dentro dos limites da considerada "normalidade". Até ser capturada como domínio do saber médico, a loucura transitou entre a esfera da manifestação estranha ou até mesmo esperada para um fenômeno do desajustamento humano, a ser corrigido em instituições especializadas1.
Esse período em que a loucura inaugura um novo status - desta vez como doença - surgiu por volta dos séculos XVIII e XIX. É nesse momento que se evidencia o nascimento de uma nova ciência, de cunho dualista e experimentalista, que sobrevive até os dias de hoje por questionar a dúvida e a incerteza, em busca de regularidades e verdades absolutas. A loucura não era mais vista como uma manifestação multifacetada da vida, mas como uma experiência transitória de adoecimento que merecia classificação rigorosa e tratamentos disciplinatórios. Como justificativa dessa prática, a psiquiatria trouxe à tona a necessidade de redimensionar os espaços de atuação do médico para permitir a emergência de seu saber, tornando o manicômio o lugar ideal para o exercício do domínio sobre as manifestações do outro e o cenário para o sucesso das intervenções médicas2.
No manicômio, o tratamento era centrado na impossibilidade do ócio, além do isolamento do sujeito de suas relações familiares, considerados fatores impeditivos para o reajustamento do insano. Entendia-se que a única forma de devolver o louco à sociedade era controlar a razão desviada, disciplinar não somente os corpos, mas as mentes sofridas. Desenvolveu-se um conjunto de atividades terapêuticas que pudesse, inicialmente, controlar as manifestações excessivas das paixões latentes, reorganizando o pensamento e o intelecto do louco. No entanto, nas décadas de 1960 e 1970, houve um aumento dos índices de cronificação institucional, em função do fluxo maciço de internações psiquiátricas, que geralmente chegavam a três meses. Nesse contexto, as atividades assumiram mais uma postura "ocupacionista" que propriamente terapêutica, de forma que todos deveriam participar das atividades para evitar que a ociosidade prejudicasse o tratamento3.
Nos últimos 30 anos, acompanhamos diferentes mudanças no perfil dos serviços e também das práticas em saúde mental. Com o desenvolvimento do movimento da reforma psiquiátrica, desafia-se a questionar a loucura como objeto de alguns para tornar-se objeto de muitos, assim como as bases organicistas que a sustentam, deslocando-a para o terreno da complexidade. A loucura vem sendo caracterizada como um fenômeno complexo, no qual estão envolvidos diferentes determinantes (biológicos, psicológicos, sociais, culturais e espirituais). No contexto da Reforma Psiquiátrica, não é somente necessário redimensionar nosso olhar sobre a loucura, mas também o que fazemos com ela, isto é, como construir/ reconstruir relações, pessoas, competências profissionais e serviços de saúde.
Essas transformações vêm ao encontro das orientações preconizadas pelas políticas de saúde mental no Brasil nas últimas décadas. Destacam-se as Portarias GM/MS 189/91 e 224/92, que regulamentam a constituição de equipes multidisciplinares, a regulamentação dos padrões mínimos de funcionamento de serviços de acordo com o Sistema Único de Saúde e a remuneração de procedimentos extrapsiquiátricos no âmbito do SUS, como acolhimento, atendimento em grupos, visitas domiciliares e oficinas terapêuticas. Também é importante mencionar a Lei 10.216/2001, que dispõe sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais no país e a Portaria GM/MS 336/2002, que institui os Centros de Atenção Psicossocial4.
No contexto da assistência em saúde mental na comunidade, as atividades terapêuticas (como as oficinas terapêuticas e de criação coletiva) retornam para o cenário das práticas em Centros de Atenção Psicossocial. Atualmente, questiona-se o papel dessas atividades na vida dos indivíduos, suas finalidades terapêuticas e o valor simbólico que agregam à formação e autonomia do ser humano. Questiona-se o simples fato da liberdade de "ir e vir", de querer ou não participar, os desejos dos sujeitos e também o que querem ou não querem fazer. Mais do que uma simples ocupação, as atividades terapêuticas nos serviços comunitários devem revitalizar as relações entre os sujeitos, servindo de mecanismo para a expressão da criatividade humana e para dar novos sentidos à plenitude da vida.
Além de redimensionar o papel das atividades terapêuticas nos serviços comunitários, é preciso incorporar, no pensamento e na ação, que elas não podem ser tratadas como processos estáticos, já que não acompanhariam a complexidade do sofrimento do sujeito, muito menos seriam compatíveis com o dinamismo da vida. Dentro dos projetos terapêuticos, as atividades devem ser pensadas e constituídas, não apenas sob o ponto de vista das habilidades profissionais, mas, principalmente, com base nas necessidades daquela clientela. É preciso analisar desejos, demandas, solicitações e possíveis repercussões nas vicissitudes da vida humana. Mais do que têlas por simplesmente "tê-las", deve-se pensá-las como tecnologias de cuidado efetivo, além de um poderoso espaço de trocas simbólicas e de potencialização de pessoas.
Nesse sentido, este estudo objetiva analisar a compreensão de familiares e profissionais de saúde mental sobre as atividades terapêuticas no cotidiano do funcionamento de um Centro de Atenção Psicossocial. Pretende-se analisar potencialidades e limitações dessas atividades na dinâmica do serviço e do processo de trabalho da equipe, de modo a poder problematizar a incorporação dos preceitos da Reforma Psiquiátrica no cotidiano da prática em saúde mental.
METODOLOGIA
Este estudo é um recorte do Estudo "CAPSUL" - Avaliação de Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal de Pelotas em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Universidade Estadual do Oeste do Paraná. O CAPSUL foi financiado pelo Ministério da Saúde e propôs realizar uma avaliação quantitativa e qualitativa dos serviços nos três Estados do Sul do Brasil. Foi desenvolvido com o intuito de apreender o cotidiano dos serviços e ocorreu mediante a participação da equipe, usuários e familiares, buscando apreender a dinâmica do serviço, a forma como os atores interagem e os sentidos que constroem em relação à própria prática.
Este estudo baseou-se em um recorte da avaliação qualitativa de um Centro de Atenção Psicossocial do Estado de Santa Catarina. Discutiremos a compreensão de familiares e profissionais da equipe do CAPS sobre as atividades terapêuticas desenvolvidas pelo serviço.
Utilizamos, como técnica de coleta de dados, a entrevista semi-estruturada. Neste recorte, foram entrevistados 10 familiares e 18 trabalhadores do serviço. Dentre os trabalhadores de saúde mental investigados, destacam-se psicólogos, enfermeiros, médicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, oficineiros e técnicos/auxiliares de enfermagem. No entanto, o serviço possui, dentro do quadro de funcionários, outros profissionais, como vigilante, auxiliares de limpeza e oficiais administrativos. Por serem trabalhadores que também mantêm contato diário com usuários e familiares, foi importante incorporá-los na coleta de dados.
Todos os sujeitos que participaram deste estudo foram informados dos objetivos, esclarecidos quanto às questões de anonimato e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para preservar a identificação dos entrevistados, utilizamos a letra F para os familiares e a letra P para os profissionais, seguindo-se do número que corresponde à ordem das entrevistas.
Para a realização deste estudo, o projeto foi inicialmente submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, recebendo parecer favorável ao seu desenvolvimento (Of. 074/05 de 11 de novembro de 2005).
Mediante o processo de análise dos dados empíricos foram delimitadas questões (unidades de informação), agrupadas em núcleos temáticos mais amplos, o que possibilitou chegar às temáticas preliminares da discussão, sendo uma delas as atividades como suporte terapêutico.
Essas temáticas foram, posteriormente, reunidas em eixos temáticos de discussão. Esses eixos surgiram das incessantes leituras e releituras dos dados qualitativos, reunidos por núcleos de significados. A partir do agrupamento sistemático dos núcleos de significados foi possível reunir as informações necessárias para proceder à discussão. Neste estudo, optamos por trazer os resultados encontrados no agrupamento dos dados das famílias e dos profissionais, procurando identificar as articulações ou desarticulações entre as diferentes percepções.
RESULTADOS
O serviço investigado é um CAPS II, credenciado junto ao Ministério de Saúde em janeiro de 2002. Oferece acompanhamento diário, intensivo, semi-intensivo, e não intensivo, diferenciado do atendimento ambulatorial. É referência para o atendimento em saúde mental na microrregião em que se encontra.
Entre os profissionais entrevistados, destacam-se: um médico psiquiatra, três psicólogos, um enfermeiro, dois assistentes sociais, dois terapeutas ocupacionais, três auxiliares/técnicos de enfermagem, um farmacêutico, um agente de saúde pública, um oficial administrativo, um vigilante e um servente. No caso dos familiares, constituíram-se em parentes de usuários em acompanhamento pela equipe e que participam de algumas das atividades terapêuticas do serviço.
A seguir, apresentamos os resultados do estudo, seguida da discussão dos achados.
Compreensão de familiares
Os familiares identificam que as atividades são diversificadas e têm uma dupla função: possibilitam o vínculo e a adesão do usuário ao serviço; e o fato de poderem estar inseridos em uma atividade, esta passa a ser considerada terapêutica por eles:
Escutam música, dançam, ela faz a unha, fazem cabelo, fizeram maquiagem nela, às vezes cortavam o cabelo dela como ela queria, tudo isso tem. Ela gosta muito de estar aqui (...). Acho que tem tricô e tapeçaria. Tudo isso é bom pra eles, quanto mais, melhor, porque na mente vazia entra coisas que não é bom. Então tendo o que fazer, qualquer coisa, então é bom. [F7].
Os passeios, ele gosta muito. [F1].
A atividade está boa porque eles fazem exercícios, jogam bola... tem oficina ali. Está bom. Pra esse lado aqui está muito bom, porque aqui é mais um tratamento. [F3]
Olha, a caminhada já ajuda bastante. [F6]
Também é destacado pelos familiares como um aspecto positivo o fato de que as oficinas oferecidas têm diferentes propostas, de acordo com o momento e a necessidade do usuário. Quando ele chega ao serviço, geralmente em crise, o seu Projeto Terapêutico é mais restrito ao desenvolvimento de oficinas internas, direcionadas especificamente ao restabelecimento das dimensões afetivas e relacionais dos usuários. À medida que o usuário vai melhorando, ele vai sendo incorporado às propostas inclusivas na comunidade, como as oficinas de produção e de geração de renda. Os depoimentos abaixo confirmam essa tendência:
Quando eles estão melhorzinhos, eles... fazem tapete, fazem outras coisas: grampo de roupa, peças de artesanato. [F10]
Tem oficina de pintura, de marcenaria, tem terapia em grupo, tem os que preferem ficar na sala de televisão. Não é uma cobrança ou uma disciplina, é mais a critério do paciente... É como se o paciente fosse aprendendo a entrar de novo no ambiente de trabalho: tem responsabilidade, tem horário, pra quem sabe, mais tarde, eles veem se o paciente está pronto pra realmente voltar... [F8]
Os familiares também destacam que o serviço deve investir em outras atividades que possam ser de interesse do usuário. A fala a seguir destaca essa realidade:
[...] eles ofertam alguns serviços, sendo que a minha filha gosta muito de música, só que não tinha. Ela gosta muito de culinária, mas como a quantidade de pessoas é grande, raramente ela faz culinária. Seria uma coisa que realmente interessa muito a ela e acredito que a secretaria deveria dar mais apoio, no sentido de ter mais quantidade e variedade de terapias, atendendo também os gostos diversos de cada um. Tem pessoas que vieram do meio agrícola. A minha filha vem do meio universitário, estudava jornalismo [...]. Porque nem sempre o que uma gosta é o que a outra gosta. Aqui existe uma diversidade de culturas e costumes diferentes [F2].
Os familiares compreendem que o CAPS deve, sim, oferecer um cartel de possibilidades aos usuários, mas também deve ser flexível para acolher as demandas da própria família, com atividades específicas para ela. No serviço estudado, essas atividades fazem parte do Grupo de Sentimentos, um grupo terapêutico em que as famílias são estimuladas a conversar sobre os desafios do cotidiano, envolvendo o tratamento e a ressocialização dos usuários:
[...] o grupo do sentimento é muito importante na minha vida, muito importante, é onde eu encontro força para viver, é onde eu tenho aprendido muita coisa... e eu não posso faltar... porque faz muita falta no meu coração. Eu tenho que participar sempre do grupo do sentimento. [F1]
Isso é importante, e, quanto aos cuidadores, que somos bastante sofridos, eles fazem uma reunião chamada Grupo de Sentimentos. [F2]
É um grupo que fala sobre o paciente, o que a gente está achando, se eles tão melhorando, como eles tão reagindo (...). Muito bom também, porque ali a gente fica por dentro de como que eles estão reagindo, como eles estão progredindo, e a gente sabe tudo e também eles perguntam para gente quando eles estão em casa. Muito bom, uma reunião muito boa [F7]
Compreensão da Equipe
A visão que a equipe desenvolve de suas atividades terapêuticas é muito crítica e produtiva para repensar a prática em saúde mental no interior do CAPS. No caso da equipe, há referências às atividades terapêuticas externas e internas ao serviço.
Voltadas para o espaço extramuros, as visitas domiciliares são apontadas como ferramentas que diversificam o atendimento, sem prejudicar a inserção e a continuidade da participação do usuário nas atividades oferecidas no interior do serviço:
Eu acho que o nosso CAPS aqui também tem a preocupação de atender aqueles que não conseguem vir aqui, então a gente faz os atendimentos domiciliares... E a gente também conhece a história de vida, vai a cada quinze dias, ou uma vez por mês [...] é uma maneira de estar acompanhando a família. [P12]
Quando a gente percebe através de uma visita, de visitas... que o paciente realmente precisa de moradia, que tem dificuldade, é feito um relatório, a assistente social é que se envolve, e a gente procura ajudar, acho que a gente tem tido esse olhar para os nossos usuários. [P3]
No caso da oferta de atividades no interior do serviço, parece haver uma percepção de que o profissional deve respeitar os interesses de cada usuário, sendo essa premissa estabelecida em contrato de cuidados:
Então se ela tem o desejo de estar naquela oficina de tapeçaria ela vai fazer tapeçaria porque ela quer, porque é prazeroso [...] aquele momento pode ser rico, ele pode ser um momento de troca, pode ser um momento em que o profissional vai perceber um monte de coisa que em outro momento fechado ele não vai perceber... [P10]
No entanto, a equipe tem consciência de que as mesmas atividades oferecidas precisam estar inseridas em um processo dinâmico, para que se evite a inércia institucional e a adoção de posturas cristalizadas, que pouco reformam. Embora as oficinas terapêuticas sejam relevantes espaços para a produção de vida, elas precisam ser continuamente problematizadas, de preferência junto com os usuários. Os depoimentos abaixo demonstram essa necessidade:
Acho que algumas vezes faz-se um mata tempo mesmo, ou o que vejo que está acontecendo ultimamente... "Ah hoje vai ter a oficina do nada"... se eles estão falando isso é porque, realmente, eles não querem fazer isso que a gente está oferecendo [P12]
[...] as oficinas já não funcionam como deveriam, sabe? Já não tem mais aquela preocupação [...] as pessoas que estão entrando estão tentando fazer da melhor forma também, mas não estão tendo suporte que deveriam ter... [P3]
[...] às vezes a pessoa não é aquela capacitada. Faz de boa vontade tudo e tal. E fica naquele bordadinho, bordadinho, bordadinho, e não são trabalhadas as dificuldades [...] [P13]
DISCUSSÃO
Segundo as famílias, os usuários gostam muito das atividades, o que às vezes se torna sinônimo de "gostar do serviço". Algumas delas, como as relacionadas a cuidados estéticos, lazer e atividades físicas, são atividades que se realizam na sua vida cotidiana, o que causa uma surpresa bem vinda nas famílias dos usuários. Porém, sabe-se que usuários de um serviço de saúde mental, pelo processo de adoecimento e pelas dificuldades de inserção social, podem encontrar-se limitados em relação às pequenas coisas do dia-a-dia, tal como passear, ir a um salão de beleza, jogar bola, entre outras. Nesse contexto, parece que o CAPS vem se preocupando e vem trabalhando para aproximar o usuário das atividades cotidianas de sua vida, sendo um diferencial para um tratamento que se pretende em liberdade e pleno de oportunidades.
Em um estudo5, identificou-se que os familiares reforçam que as oficinas são excelentes espaços para discussão e problematização da situação do usuário e também do serviço. Segundo eles, o fato de participar das atividades com frequência e também decidir sobre os melhores caminhos a serem tomados permite que o familiar compreenda, com propriedade, o funcionamento da unidade, a organização da equipe e a condução da política. Nesse caso, entendemos que a participação da família nas atividades provoca mudanças na equipe e na rotina do serviço, concretizando sua condição de protagonistas do processo.
No entanto, a fala de F8 trouxe um questionamento interessante para pensar nas dificuldades da transição do usuário do contexto do tratamento para o mundo do trabalho. É verdade que o usuário parece ir se adaptando tão bem às dinâmicas e rotinas do serviço que pode ficar dependente ou restrito ao desenvolvimento das atividades internas previstas pelo CAPS. No entanto, a proposta de um serviço comunitário de saúde mental é a de fortalecer os laços entre o usuário e o mundo que o rodeia, estando aí inseridos o trabalho, o passeio, o lazer, o convívio social, as regras sociais, as compras, as viagens e as amizades. Embora possa ser um desafio para o CAPS aproximar o sujeito, muitas vezes, com tantas limitações de seu contexto de vida, é fundamental que cada serviço e cada profissional possam desenvolver, ao longo do tratamento, um planejamento de alta eficiente, que não somente inclua os aspectos relativos à manutenção do tratamento fora dos espaços institucionais, mas também discuta e problematize as dificuldades e facilidades que o usuário poderá enfrentar na vida em sociedade.
Nesse sentido, olhar para as questões que fazem parte do mundo da vida, responder às adversidades do cotidiano e ser incluído em uma lógica que permita ao usuário o restabelecimento de trocas sociais parece fazer parte do processo de trabalho de um CAPS. Trata-se de um serviço que nasceu para ser diferenciado, pois tem como finalidade a inclusão e a cidadania, mas que não abandona a clínica tradicional nesse processo6. Quer dizer que o CAPS se singulariza como opção terapêutica e como espaço de inclusão social, porque mescla, no dia-a-dia, atividades cotidianas da vida com aquelas que buscam uma efetiva participação do sujeito na comunidade.
Observou-se que os familiares são críticos a respeito do cotidiano do serviço de saúde mental, especialmente quando se destacam as competências e habilidades dos profissionais. F2, em seu depoimento, parece tensionar esse processo. O familiar entende que o serviço precisa oferecer um cardápio que se adapte, também, às habilidades de cada profissional. No entanto, nos serviços comunitários, a construção do Projeto Terapêutico pode ser flexível o suficiente para contemplar as demandas de todos os atores do serviço (usuários, familiares e equipe), já que, muitas vezes, o profissional pode não demonstrar as competências e habilidades necessárias para a condução de uma atividade, mas um familiar ou um usuário poderão. Trata-se de uma poderosa oportunidade de aprender, de ser criativo e de reinventar sua própria formação em saúde mental.
À medida que o familiar questiona a oficina e a oferta (pouca ou diversificada) de atividades, está também contribuindo para o repensar da própria política de saúde mental do município7. No caso em questão, a oferta restrita de atividades nos mostra que o serviço ainda precisa avançar na constituição de um debate que incorpore as demandas do usuário na realidade. Pretende-se, com isso, evitar que o serviço se volte ao enquadramento coletivo de sujeitos6, isto é, em uma espécie de serialização de indivíduos singulares por natureza, que são programados pelo serviço a cumprir as atividades pré-organizadas por ele.
A psiquiatria tradicional tomou para si uma tarefa peculiar no contexto do tratamento das manifestações da loucura, condenando a família por parte dos problemas detectados no doente mental. Tomando para si a tarefa de regular a vida social, a psiquiatria também tomou para si a tarefa de regular o sistema familiar, agindo pedagogicamente sobre a sua participação, de modo a isolá-la, reprimi-la e afastála de todo o contexto do tratamento para o bem do doente8.
No contexto da Reforma Psiquiátrica, a família não mais é entendida como um simples sistema doente, ou que pode resumir-se a intervenções falhas e equivocadas sobre a vida do indivíduo em sofrimento psíquico. A família volta ao cenário como um sistema complexo, que pode e deve participar do tratamento, resguardadas suas singularidades. É dizer que os serviços precisam se adaptar às múltiplas facetas de cada membro familial, diminuindo os comportamentos excessivamente moralizadores e/ou superprotetores e estimulando o envolvimento dinâmico e afetivo com o usuário9.
O serviço estudado, ao ofertar atividades inclusivas, não somente para usuários, mas também para a família, parte do princípio da necessidade de trabalhar com as pessoas e também com seus vínculos, conservando maneiras sofisticadas de entender a completude da vida humana, de sua necessidade de estabelecer laços e a complexidade biopsicossocial do sofrimento mental. O usuário, inserido nas atividades do serviço, e a família, tendo um espaço para abrir-se, transforma o cotidiano do CAPS, tornando-o um cenário de acolhimento, de escuta e de cuidado. Em consequência, transforma-se uma relação que, durante muito tempo, foi distante e impessoal, para tornar-se uma possibilidade concreta de produzir saúde e vida dentro e fora dos serviços substitutivos de saúde mental.
Em se tratando do posicionamento da equipe a respeito das práticas, as visitas domiciliares surgem como instrumentos de diálogo entre o serviço e o "externo" a ele. Servem elas como ferramentas facilitadoras da reinclusão do usuário na família, bem como para ressignificar o contato do usuário com o serviço10-11. É possível, através delas, compreender a dinâmica das relações familiares, o envolvimento da comunidade no tratamento do usuário, os sentimentos de inclusão ou exclusão que possam estar envolvidos, entre outros. Além disso, as visitas domiciliares acompanham e incluem o usuário no seio da família, trabalhando com as limitações, com os jargões excludentes e com singularidades do grupo familial como um todo10.
Nos depoimentos é possível notar que, dentro do rol de atividades terapêuticas do serviço, a visita domiciliar desponta como uma tecnologia de cuidado que promove as articulações necessárias entre os usuários, o serviço e a comunidade. A visita transforma-se em uma excelente oportunidade de conhecer os diferentes contextos de vida, as necessidades singulares de cada pessoa ou da família e favorece o fortalecimento do vínculo com o usuário e os profissionais do serviço. Dentro de um contexto de reformas, a visita domiciliar constitui-se em mais uma tecnologia que proporciona cuidados contínuos fora dos espaços institucionais, sendo uma forma de mostrar o sentimento de "pertença" daquele usuário com o serviço e o compromisso estabelecido pela equipe com a situação do usuário.
No que diz respeito ao contexto interno do serviço, as atividades terapêuticas do CAPS (oficinas e grupos) parecem constituir-se em espaços de produção de subjetividades, onde há diálogo, interações, reciprocidade e vínculos. Nas oficinas, P10 ressalta a questão das trocas, ou seja, o respeito às escolhas do usuário. É justamente esse movimento em direção à autonomia que nos permite entender que o CAPS seja um espaço de produção de sujeitos livres para ir e vir, visão essa que compreendemos ser compatível como um modelo psicossocial de fazer saúde mental.
A equipe de saúde mental também analisa criticamente as limitações dessas atividades. Muitas delas, conforme alguns depoimentos, ainda são oferecidas mais como uma alternativa de entretenimento e ocupação do que como uma estratégia de potencialização de autonomia e cidadania nos espaços de atendimento.
Nesse sentido, algumas atividades ainda levantam contradições importantes para problematizar as transformações da assistência psiquiátrica, centrada no território. O "bordadinho, bordadinho", que na visão de P13 não só é repetitivo para o usuário, também não tem uma finalidade terapêutica apropriada, tendo em vista a ausência de um trabalho que esteja centrado nas dificuldades de cada indivíduo e nas peculiaridades de cada usuário.
As atividades terapêuticas nos serviços de saúde mental geralmente obedecem a lógicas de funcionamento que estão intimamente relacionadas ao conceito de loucura e às repercussões do trabalho na vida do indivíduo. Como nem sempre as concepções de loucura se assemelham ou se distanciam, mas se mesclam, é possível extrair diferentes organizações discursivas sobre as finalidades das atividades no contexto do cuidado em saúde mental. É dizer que as oficinas, por exemplo, podem servir como campo diferenciado de expressão da criatividade e do estado da arte, permitindo deslocamentos que ressignificam sujeitos e instrumentos do trabalho. Da mesma forma, é possível que exista uma tendência invertida, ou seja, a de que a atividade se transforme em uma maneira de submeter o louco ao regramento específico, no sentido de ofertar meios para que ele apenas se readapte ao contexto da sociedade12.
A partir dessa identificação, pode-se pensar na existência de quatro distintos (porém complementares) discursos sobre as atividades terapêuticas em saúde mental. No primeiro grupo, temos o "discurso do déficit", no qual as oficinas servem como formas de entretenimento e tratamento da loucura. É uma antiga vertente de trabalho da terapia ocupacional, capturada pela psiquiatria clássica, e que conhecemos e queremos superar. No segundo grupo, temos o "discurso do inconsciente", em que interessa a subjetividade psíquica do louco e a possibilidade de simbolizar a sua própria vida, culminando com o ideal do apaziguamento. No terceiro grupo, encontra-se o "discurso da cidadania". Aqui, o político da Psiquiatria Democrática Italiana prevalece, como forma de resgate dos aspectos mais intrínsecos, como autonomia e cidadania, perdidos pelo louco em função do tratamento psiquiátrico tradicional. E no quarto grupo, temos o "discurso da estética", no qual a loucura é vista como um potencial criativo de expressão artística, inserida no âmbito da cultura pela expressão da arte12.
Diante desse contexto é preciso redescobrir o significado das atividades terapêuticas em saúde mental. As oficinas, o trabalho e a arte, ou a atitude de reinserir socialmente os usuários, deve buscar a conquista ou a reconquista do seu cotidiano. Ele não deve se adaptar à ordem já estabelecida, mas deve ser reconectado a todo um mundo do qual pode (e deve) participar e transformar, como parte de um processo de produção de vida material. Assim, as atividades terapêuticas devem ser usadas como verdadeiras catalisadoras de territórios existenciais, por meio de ações artísticas, artesanais ou lúdicas que favoreçam a inclusão dos excluídos e a recuperação do potencial de cidadania13-14.
A Reforma Psiquiátrica, como movimento complexo e que possui caráter eminentemente dialético, vem questionando o papel de toda a estrutura que circunda o cuidado à loucura no cotidiano dos serviços comunitários de saúde mental (atores, instituições, saberes e práticas). A problematização das atividades terapêuticas, por exemplo, revelou o leque de possibilidades de atuação e imersão das práticas nas novas tendências de cuidado na área, assim como o risco de adoção de posturas verticalizadas e cristalizadas, mais compatíveis com modelos de atendimentos tradicionais, contra os quais a própria reforma psiquiátrica luta há mais de 20 anos.
É preciso dizer que a Reforma Psiquiátrica só sobrevive como movimento ao promover o tensionamento necessário para provocar mudanças na realidade. Nesse caso, pensar na diversificação das atividades terapêuticas e o quanto elas estão no meio de uma disputa entre a reinvenção e a inércia institucional revelam o poder de um movimento que nasceu para questionar e desafiar todo um conjunto de conhecimentos absolutos sobre o louco, a loucura e suas relações. É nesse contexto que a reforma avança e retrocede, sempre carregada de novas contradições, prontas para serem superadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As compreensões apontadas pelos atores investigados refletem suas preocupações e satisfações quanto às atividades de saúde mental desempenhadas no serviço substitutivo. Também reforçam tendências gerais sobre o processo de trabalho, a dinâmica de funcionamento e de organização das práticas e como encaram a loucura nesses cenários.
Espera-se que o estudo permita problematizar continuamente os avanços e retrocessos do movimento de Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro, de modo a oferecer novos olhares sobre novas (e também velhas) questões com as equipes, os serviços, o trabalho em saúde e o cuidado ao sofrimento mental.
REFERÊNCIAS