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Ministério da Educação
CAPES

Volume 17, Número 3, Jul/Set - 2013

PESQUISA

Pioneirismo da associação brasileira de enfermagem no desenvolvimento da pesquisa: da revista ao centro de pesquisa

Laís de Araújo Pereira 1
Tânia Cristina Franco Santos 2


1 Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro EEAN/UFRJ. Bolsista de Doutorado CAPES. Membro Pesquisador do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira. Rio de JaneiroRJBrasil. Email: laisaraujo26@yahoo.com.br
2 Pós-Doutora em História da Enfermagem. Escuela de Enfermería - Universidad de Valladolid.Professora Associada do Departamento de Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem Anna Ney / UFRJ. Membro Fundador do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 / CNPq.Rio de JaneiroRJBrasil. E-mail:taniacristinafsc@terra.com.br

Recebido em 11/06/2012
Reapresentado em 27/07/2012
Aceito em 06/03/2013

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo analisar as primeiras iniciativas da Associação Brasileira de Enfermagem para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem. Com um recorte temporal que engloba o período de 1932 a 1971, ano de criação da Revista Brasileira de Enfermagem à criação do Centro de Estudos e Pesquisas, da Associação Brasileira de Enfermagem. As fontes utilizadas foram documentos escritos localizados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Centro de Memória da Associação Brasileira de Enfermagem, além de edições da revista localizadas na Biblioteca Setorial da Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery. Percebe-se, nesta análise, que os empreendimentos realizados por essa entidade representaram um verdadeiro espaço de investigação e de formação de enfermeiros pesquisadores no Brasil.


Palavras-chave: Enfermagem; História da Enfermagem; Pesquisa em Enfermagem

INTRODUÇÃO

O estudo tem como objeto as principais contribuições da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) em prol do desenvolvimento da pesquisa em enfermagem. O objetivo é analisar as primeiras iniciativas da ABEn para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem. O recorte engloba o período de 1932 a 1971. O marco inicial representa o ano da criação do primeiro periódico da profissão, e o final corresponde ao ano da criação de um Centro de Estudos e Pesquisas para a Enfermagem. Durante os anos que englobam o recorte temporal do estudo, a ABEn, criada em 1926, era a única entidade de classe da enfermagem brasileira.

Sendo assim, ao longo de várias décadas, as lutas em prol do crescimento, desenvolvimento e reconhecimento social da profissão eram empreendidas por enfermeiras da Associação Brasileira de Enfermagem. No que se refere à pesquisa, o entendimento da importância de sua produção, divulgação e consumo sempre representaram objeto de preocupação da Associação Brasileira de Enfermagem. Tanto assim, que a ABEn criou, em 1932, o primeiro periódico da enfermagem, a atual Revista Brasileira de Enfermagem. Merece destaque também a instituição, em 1940, da Semana da Enfermagem e em 1947, a realização do 1º Congresso Nacional de Enfermagem1.

Outro empreendimento de monta realizado pela ABEn foi a realização da primeira pesquisa em enfermagem baseada em grandes números, qual seja, o Levantamento de Recursos e Necessidades de Enfermagem no Brasil (1956-1958). O relatório final desse levantamento, intitulado "Diretrizes para a Enfermagem no Brasil" foi concluído em 19601.

Para dar prosseguimento ao levantamento de dados e à execução das recomendações nele contidas, foi criada uma comissão também financiada pela Fundação Rockefeller. No entanto, esse apoio foi suspenso em 1962, sendo a comissão anterior substituída pela Comissão de Documentação e Estudos, que até meados da década de 1970 foi a principal responsável em reunir dados numéricos sobre escolas e formação de pessoal de enfermagem1.

No que tange a pós-graduação, a Reforma Universitária de 1968 (Lei 5.540/68), estabeleceu o princípio da indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a exigência dos cursos de pós-graduação stricto sensu para a carreira docente2. Nesse sentido, tal reforma ensejou que a enfermagem brasileira empreendesse estratégias no sentido de acumular e institucionalizar o seu capital científico, mediante a implantação de cursos de mestrado, sendo o primeiro implantado em 1972.

Nesse contexto, a Assembleia de Delegados da ABEn, realizada no âmbito do XXIII Congresso Brasileiro de Enfermagem, em Manaus, em 1971, criou o Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem (CEPEn). Vale ressaltar que a criação desse centro antecede a criação e implantação do curso de mestrado em enfermagem no Brasil e ao ingresso da Enfermagem no Sistema Nacional de Pós-Graduação3. Essa "arte de antecipar as tendências"4:28 está estreitamente ligada ao acúmulo de capital escolar e de capital de informação pelas integrantes da associação, os quais lhe permitiram "apreender o senso do jogo, ou seja, o senso da história do jogo, no sentido do futuro do jogo"4.

Esse senso do jogo era necessário, uma vez que, no campo científico, os indivíduos ou instituições cujas disposições não são aquelas que o campo exige, arriscam-se a estar sempre mal colocados, e, portanto arcam com todas as consequências dessas posições. Não obstante, esses indivíduos ou instituições podem lutar contra as forças desse campo, não submetendo suas disposições às estruturas, mas tentando conformá-las às suas disposições. Para esse jogo, as disposições adquiridas - o habitus - determinam as tomadas de posição para submeter ou reagir às forças em jogo.

Diante da problemática apresentada foi formulado o seguinte objetivo: Analisar as primeiras iniciativas da Associação Brasileira de Enfermagem para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem.

MÉTODO

Estudo de natureza histórico-social cujas fontes primárias estão constituídas de documentos localizados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Centro de Memória da Associação Brasileira de Enfermagem e na Biblioteca Setorial da Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery. Nesta última foram localizadas as edições da Revista Brasileira de Enfermagem referentes às décadas de 1950, 1960 e 1970, cada ano contendo de três a quatro volumes. O período de coleta de dados ocorreu entre outubro de 2010 a maio de 2012.

Dentre os diversos documentos escritos consultados, nos acervos citados, para a construção deste estudo, foram selecionados documentos institucionais e oficiais como: decretos-lei, estatutos, regulamentos, regimentos, relatórios, boletins internos, circulares, políticas de trabalho, organogramas, informativos e cartas institucionais.

As fontes secundárias, constituídas de artigos e livros sobre História da Enfermagem, em especial da Associação Brasileira de Enfermagem, apoiaram a análise dos achados, os quais também tiveram como referência os conceitos de campo e capital científico, descritos pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.

O conceito de capital, emprestado da economia, tem papel nodal para o pensamento de Pierre Bourdieu. No que se refere ao capital científico, o direito de entrada e permanência no campo científico depende do seu acúmulo, pois os campos são o lugar de duas formas de poder que correspondem a duas espécies de capital científico: de um lado, o poder que se pode chamar de temporal ou político, ou seja, poder ligado à ocupação de posições importantes. De outro, um poder específico, prestígio pessoal que deriva do reconhecimento objetivado ou institucionalizado dos pares-concorrentes ou de uma fração consagrada do campo científico 4.

O conceito de campo, concebido como um espaço de várias dimensões, foi aplicado no estudo, de modo a compreender as estratégias das enfermeiras para fazer valer o capital científico coletivamente acumulado no campo e pelo campo (portanto, em estado incorporado)4. Isso porque no campo científico se defronta com construções sociais concorrentes e inúmeras representações destinadas a "fazer ver e a fazer valer uma maneira de ver"4:33.

O projeto que deu origem ao presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da EEAN/HESFA, em 31 de maio de 2011 (Protocolo 042/2011). A contribuição deste estudo em relação aos já publicados sobre este tema é evidenciada pelo aprofundamento da discussão sobre o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem no Brasil. Nesse sentido, o estudo se justifica, uma vez que os desafios atuais não são novos, especialmente no tocante à produção e difusão do conhecimento, internacionalmente, bem como ao fortalecimento da pós-graduação em enfermagem.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os primeiros movimentos da Associação Brasileira de Enfermagem em prol da pesquisa

Em 1932, uma das primeiras iniciativas da Associação Brasileira de Enfermagem foi a de contemplar o que preconizavam as enfermeiras americanas no tocante ao reconhecimento social da profissão, qual seja, a criação de sua própria revista, na época denominada "Annaes de Enfermagem". Essa importante iniciativa, além de possibilitar uma melhor comunicação entre as enfermeiras, representou o primeiro espaço no Brasil, em que as enfermeiras tornaram visíveis os seus enunciados1-5. Vale dizer que a revista, juntamente com o Congresso Nacional de Enfermagem iniciado na década seguinte (1947), foi o primeiro ambiente intelectual utilizado pelas enfermeiras5 como estratégia para a divulgação da enfermagem.

Os Congressos Nacionais de Enfermagem foram reputados como uma das realizações mais importantes da ABEn, pois constituíram a fonte de inspiração do desenvolvimento da enfermagem como profissão, e dos enfermeiros como cidadãos úteis à sociedade. Ao final dos congressos, eram aprovadas as recomendações que seriam encaminhadas às diferentes instâncias de definição políticas. Essas recomendações eram importantes para orientar as ações das diversas diretorias da ABEn1.

O primeiro Congresso Nacional de Enfermagem ocorreu em São Paulo, no período de 18 a 22 de março de 1947, nas dependências da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. O tema central intitulava-se "Elaborar, em conjunto, um programa eficiente de enfermagem, visando o desenvolvimento da profissão em um plano elevado"1'. O tema do evento já em sua primeira versão demonstra sua proposta de contribuição coletiva ao desenvolvimento da profissão. Além disso, a criação do evento evidencia cabalmente o investimento da Associação em produzir espaço para acumulação de capital de instituição, uma vez que esse capital "se adquire essencialmente por estratégias específicas"4, como, por exemplo, a participação em reuniões de cunho científico.

No que tange à localização do evento, certamente, o fato de um estado da região Sudeste ter sido escolhido para sediar o primeiro congresso nacional se justifique pelo número maior de escolas e de enfermeiras diplomadas em São Paulo, juntamente com o Rio. Ademais, São Paulo foi também o primeiro estado a criar uma seção da ABEn (1945). Isso porque a escolha de lugares no espaço social está estreitamente ligada ao acúmulo de capital simbólico (volume e peso) dos agentes inseridos nele, pois os diferentes espaços sociais fisicamente objetivados tendem a concentrar os bens mais raros e seus proprietários ou usuários em certos lugares do espaço físico em oposição aos lugares que agrupam principalmente ou exclusivamente os mais indigentes (subúrbios pobres, guetos)6.

Portanto, a Associação Brasileira de Enfermagem, ao realizar um congresso em uma capital conferiu distinção a ela mesma e à profissão, uma vez que o reconhecimento social se obtém, em parte, mediante a apropriação de posições espaciais em que se afirmam as posições sociais. Dessa forma, "o espaço habitado ou apropriado funciona como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social"6:120, pois, em uma sociedade hierárquica, não há espaço que não esteja hierarquizado e que não expresse tais hierarquias e as distâncias sociais. Nesse sentido, a capital, é o lugar do capital, ou seja, o lugar onde estão concentrados os polos positivos de todos os campos e a maioria dos agentes que ocupam essas posições dominantes6.

A sessão de abertura fora presidida por Edith de Magalhães Fraenkel, à época presidente da ABEn Seção São Paulo. Na cerimônia estiveram presentes o Ministro da Educação e Saúde, o Ministro da Aeronáutica, o Governador do Estado de São Paulo e o Reitor da Universidade de São Paulo. Compareceram, também, cerca de vinte oficiais brasileiros e norte-americanos e enfermeiras a serviço da Força Aérea Americana1. A presença de personalidades de diferentes esferas da sociedade brasileira e americana contribuiu para tornar o grupo manifesto para si e para os outros, uma vez que a consagração do grupo, conferida pelos ritos, depende do poder das autoridades que o instauram e das disposições dos destinatários para conhecer e reconhecer as condições institucionais de um ritual válido. Isso porque a eficácia simbólica dos rituais varia conforme o grau de preparo dos destinatários, mais ou menos dispostos a acolhê-lo7.

A partir de 1956, o Congresso Nacional de Enfermagem passou a denominar-se Congresso Brasileiro de Enfermagem, e, em 1957, dez anos após a realização do primeiro, era instituído o prêmio Edith de Magalhães Fraenkel, o qual premiava os melhores trabalhos relativos "à pesquisa em enfermagem". Este também foi o primeiro prêmio a ser criado pela ABEn1.

A instituição de um prêmio, ao tempo que funcionava como um estímulo para o incremento da produção científica, também operava como um dispositivo que principiava a demarcação de diferenças sociais que valorizariam o capital científico das enfermeiras diante de uma nova ordem que anunciava a importância da pesquisa para o desenvolvimento da enfermagem brasileira. Subjacente ao esforço de fomentar a produção científica tem-se a atualização do capital simbólico de Edith de Magalhães Fraenkel diante da escolha de seu nome para nomear tão importante premiação. Edith foi presidente desta entidade por quinze anos (1927-1938/ 1941-1943/1948-1950) e sempre esteve presente nas atividades da Associação e da comunidade de enfermagem de forma geral1.

Inicialmente o prêmio "Edith de Magalhães Fraenkel" era oferecido à melhor pesquisa na área de Centro Cirúrgico. Por decisão da ABEn, em 1970, um ano após a sua morte, o prêmio passou a ser oferecido ao melhor trabalho de pesquisa apresentado como tema livre no Congresso1. Essa alteração contribuiu para ampliar as possibilidades de um maior número de participantes concorrerem a prêmio, estimulando a melhoria da qualidade dos trabalhos apresentados e, por conseguinte, uma maior visibilidade da existência de premiação no congresso junto à comunidade científica de enfermagem. Essa visibilidade também era importante para o ganhador do prêmio porque o capital científico é uma espécie particular de capital simbólico (prestígio, boa reputação, fama) que consiste no reconhecimento ou crédito científico atribuído pelo conjunto de pares- concorrentes no interior do campo científico. Dessa forma, a premiação do trabalho conferia prestígio ao outorgado e a personalidade que emprestava o seu nome.

Ademais, depreende-se que a vinculação do nome de Edith a um prêmio e à ampliação da área temática simboliza uma estratégia de consagração e eternização de fundadores da enfermagem nacional, preservando sua memória para a posteridade, uma vez que esse tipo de nomeação imortaliza a pessoa representada, permitindo a expressão de forma intencional ou implícita de uma identidade social.

No ano em que a ABEn completava 30 anos de existência (1956), teve início o Levantamento de Recursos e Necessidades de Enfermagem no Brasil. O Relatório Final do Levantamento, intitulado "Diretrizes para a Enfermagem no Brasil" foi publicado em 1960. A partir dos resultados foram encaminhadas recomendações a alguns Ministérios, Universidades, Escolas e Cursos de Enfermagem, de Auxiliares, entre outras instituições. Os resultados não só apontaram para questões mais gerais da profissão, como também significaram a identificação de dados que serviram de parâmetro para análise das condições de saúde da população e da situação dos profissionais no exercício de suas funções1-8.

A Comissão de Documentação e Estudos, criada em 1962, teve o propósito de produzir informações estatísticas necessárias aos trabalhos da Associação e ao atendimento das solicitações dos órgãos públicos e dos meios de comunicação. Esta comissão foi oficializada e normatizada no Estatuto da ABEn de 19651.

A Comissão de Documentação e Estudos teve como coordenadoras: Amália Corrêa de Carvalho (1964-1968), Glete de Alcântara (1968-1970), Anayde Corrêa de Carvalho (19701972), Nilza Dias da Rocha Medeiros e Anayde Corrêa de Carvalho (1976-1980)1. Com a reforma do Estatuto de 1976, a Comissão de Documentação e Estudos recebeu a denominação de Comissão de Atividades Científicas e de Documentação (CACID).

Pretendendo dar certa continuidade ao relatório do Levantamento de Recursos e Necessidades de Enfermagem, no que diz respeito ao campo educacional, a Comissão de Documentação e Estudos apresentou, em 1969, um documento referente à situação das Escolas de Enfermagem, no período de 1956 a 1969. Esse documento foi publicado, de forma resumida, em um folheto, o qual apresentava a evolução do ensino de enfermagem, incluindo dados estatísticos e informações sobre o pessoal de enfermagem. Vale ressaltar que os relatórios da comissão retratavam a situação de Enfermagem quanto ao preparo quantitativo de seus profissionais, possibilitando o planejamento de ações futuras. Tais relatórios representavam a maior fonte de divulgação de dados sobre Enfermagem do país1.

Durante toda a década de 1960, a ABEn continuou envidando esforços em prol da profissão, principalmente no que dizia respeito ao incentivo à pesquisa em enfermagem no Brasil. Nesse sentido, destaca-se que, em 30 de maio de 1963, Glete de Alcântara, ex-presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (Gestão 1952-1954), participou em Ribeirão Preto/SP, do concurso para provimento do cargo de Professor Catedrático na cadeira n°4 - História da Enfermagem e Ética para a Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP)9.

A candidata única foi submetida à prova didática e apresentou sua tese intitulada "A Enfermagem Moderna como Categoria Profissional: Obstáculos a sua Expansão na Sociedade Brasileira", sendo aprovada no concurso e tornando-se a primeira enfermeira da América Latina a ocupar o cargo de Professor Catedrático. Esta realização foi divulgada entre as enfermeiras na Revista Brasileira de Enfermagem e nos boletins informativos da associação:

"(...) Glete de Alcântara obteve média de 9,75, habilitando-se, brilhantemente, ao cargo efetivo de professor catedrático da cadeira de História da Enfermagem e Ética. (...) O concurso foi de grande significação para a enfermagem que nos dizeres do Professor Álvaro Guimarães Filho (Integrante da Banca Examinadora - Diretor da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP), ao cumprimentar a candidata, atingiu a sua maioridade"9:187.

A percepção sobre a importância de um título de cátedra para a profissão encontra ressonância nas palavras de Bourdieu ao referir que os concursos encerram princípios classificatórios que representam o reconhecimento de competências, instituindo distinções sociais fundadas em diferenças. Essa assertiva pode ser verificada no trecho abaixo, extraído do Editorial da Revista Brasileira de Enfermagem, no ano de 1963:

"Está a enfermagem confirmando sua posição no grupo das profissões de saúde ao gozar do privilégio de ocupar cátedras. É uma posição elevada, tanto nos direitos quanto nos deveres. Que o novo privilégio sirva de estímulo poderoso para o enfermeiro dar a contribuição profissional que lhe é própria, não uma ajuda qualquer, mas aquela que é eficaz e satisfatória porque é dada por um enfermeiro, precisamente"9:115.

Um ano depois (1964), a ABEn realiza o XVI Congresso Brasileiro de Enfermagem, em Salvador, Bahia, onde pela primeira vez foi discutido a temática - enfermagem e pesquisa. Neste Congresso, as discussões resultaram em recomendações à ABEn, às professoras de enfermagem e às chefes de serviço, sobre a incorporação da pesquisa em suas práticas assistenciais10.

Não obstante, antes mesmo da publicação das recomendações do Congresso, um editorial publicado na REBEn discorreu sobre a importância do aperfeiçoamento da enfermeira, ressaltando que tal aperfeiçoamento deveria ser estimulado através de cursos, conferências, reuniões, seminários e congressos, em âmbito nacional, pelas Escolas de Enfermagem, pela ABEn e por outras instituições11. Essas recomendações expressam o entendimento da importância da acumulação de capital científico para se fazer ver, se dar a conhecer e se fazer reconhecer.

A Associação Brasileira de Enfermagem diante das mudanças ensejadas pela Reforma Universitária de 1968

No que se refere à produção científica das enfermeiras, durante a segunda metade da década de 1960, a mesma ainda encontrava-se aprisionada em um círculo vicioso: não havia produção de pesquisas de enfermagem porque as enfermeiras não estavam preparadas para tal, por outro lado, se não eram desenvolvidas pesquisas de enfermagem, não se preparavam enfermeiras-pesquisadoras e isto era, com certeza, um entrave ao progresso da profissão.

A discussão sobre a investigação científica no XVI Congresso (1964) apontava para a importância da mesma, no sentido de contribuir para o avanço da profissão e para o desenvolvimento do corpo de conhecimento científico sistematizado baseado em teorias de enfermagem que serviriam de base para novas investigações, novos conhecimentos, de modo a contribuir para renovar e atualizar a prática profissional5. Esse congresso ocorre na efervescência dos desdobramentos do golpe militar ocorrido em 31 de março de 1964. Na ocasião, a educação estava regida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.024/1961) que consolidava o modelo tradicional para as instituições de ensino superior no Brasil, mantendo as cátedras, as escolas isoladas e as universidades compostas pela simples justaposição de escolas profissionais, sem maior preocupação com a pesquisa12.

Não obstante, o movimento em favor de uma reforma universitária no Brasil já estava sendo debatido desde o início da década de 1960, antes mesmo de se instaurar o Regime Militar no país. Tal mobilização contava com distintos segmentos da vida universitária e intensa participação dos estudantes. Exemplos disso são as realizações de Seminários Nacionais da Reforma Universitária pela União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1961,1962 e 196312.

Em 1965, o ministro da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, no governo Castelo Branco, solicitou ao Conselho Federal de Educação / CFE um pronunciamento acerca da necessidade de implantar cursos de pósgraduação. No entanto, a LDB de 1961 só dava competência ao CFE para regulamentar os cursos superiores que habilitassem os formandos com diplomas para o exercício de profissões liberais (cursos de graduação). Perante esse obstáculo, os conselheiros buscaram apoio na lei n°4.881/65 - Lei do Magistério Superior, pois o Artigo 25 desta lei conferia ao CFE a competência para definir os cursos de pós-graduação e suas características13.

Tal manobra favoreceu a elaboração do Parecer n° 977/65 do Conselho Federal de Educação, o qual apresentava um modelo de pós-graduação fortemente influenciado pelo modelo norte-americano. No referido documento constava que o objetivo da pós-graduação era o de proporcionar ao estudante o aprofundamento do saber, que lhe permitisse alcançar elevado padrão de competência científica ou técnicoprofissional, impossível de adquirir no âmbito da graduação14.

De acordo com esse parecer, a pós-graduação teria também como objetivos a formação tanto de um corpo docente preparado e competente quanto de pesquisadores de alto nível, além da qualificação profissional de outros quadros técnicoadministrativos necessários ao desenvolvimento nacional. A pós-graduação deveria ainda ter lugar na universidade, na medida em que é integrante do complexo universitário, necessária à realização dos fins essenciais da universidade2.

Três anos mais tarde, a Reforma Universitária (Lei 5.540/68) instituída às vésperas do Ato Institucional n°5, de dezembro de 1968, o qual se caracterizou como o início do ciclo de maior repressão do regime, que se estendeu até o final do governo Médici (1969-1974)15, estabeleceu de fato o princípio da indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a exigência dos cursos de pós-graduação stricto sensu para a carreira docente2.

Diante dessas mudanças no cenário brasileiro, a ABEn discutiu as implicações da Reforma Universitária de 1968 para a formação do enfermeiro já no Congresso Brasileiro de Enfermagem de 1967 e também nos congressos dos anos seguintes. Tanto assim que, no XXI Congresso Brasileiro de Enfermagem, em 1969, realizado em Porto Alegre, Amália Corrêa de Carvalho e Circe de Melo Ribeiro, respectivamente presidente e vice-presidente da ABEn discorreram sobre o tema "Declaração de Princípios", apresentando o posicionamento da Associação Brasileira de Enfermagem sobre a educação profissional15. O excerto abaixo traz fragmentos do estudo apresentado:

"O currículo de enfermagem deve desenvolver a capacidade crítica e de pesquisa do estudante e constitui a base para o aperfeiçoamento posterior do enfermeiro, em cursos de especialização e de pós-graduação; [...] 11. Os docentes de enfermagem devem ser preparados em cursos de especialização, de pós-graduação com objetivos definidos em relação à habilitação para o magistério; [...] dos princípios: 6. A educação pósgraduada e a especialização dos profissionais de enfermagem são condições essenciais para o aperfeiçoamento da prática de enfermagem e para a sua manutenção em alto nível de qualidades"15:217.

Nesse congresso merece ainda destaque o trabalho "Bases para a política da Associação Brasileira de Enfermagem", de autoria de Judith Feitosa de Carvalho e Hilda Lozier, enfermeira do Ministério da Saúde e assessora de enfermagem da Zona V - OPS/OMS, respectivamente. Nesse estudo, as autoras apresentam um plano de ação para entidade face às novas exigências impostas pela Reforma Universitária de 1968, uma vez que as reformas no ensino superior obrigavam as escolas de enfermagem a uma reformulação dos currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação, de modo a ajustá-los às diretrizes da reforma universitária16.

No referido trabalho, as autoras afirmavam ainda que as reformulações necessárias no ensino de graduação e de pós-graduação demandavam a necessidade de providências pela Comissão de Educação da Associação Brasileira de Enfermagem, no sentido de: realizar estudos sobre os currículos de pós-graduação stricto sensu em enfermagem; estudar e propor um plano para cursos de pós-graduação; aperfeiçoar o pessoal docente para o desenvolvimento dos novos currículos; e estudar os dispositivos da Reforma Universitária relativos à organização das Escolas com vistas à elaboração de uma proposta que articulasse docência e pesquisa e que servissem de guias às escolas de enfermagem, viabilizando o cumprimento dos objetivos educacionais16.

Diante do reconhecimento da necessidade de realizar estudos para dar conta das necessidades de reformulações no ensino, discutidas no congresso, ao final foram aprovadas as seguintes proposições:

"estudar as áreas prioritárias de pesquisas em enfermagem, e estabelecer um programa tentativo que abranja gradativamente as necessidades em âmbito nacional; conhecer os órgãos que se destinam a pesquisas no País e estabelecer coordenação com os mesmos; estudar os meios para formar um grupo de enfermeiras especialistas para assessoria no desenvolvimento de pesquisas; criar um fundo para financiar pesquisas em enfermagem, incluindo gastos com impressão, publicação e distribuição; estudar e propor a realização de cursos de curta duração sobre a metodologia da pesquisa, em diferentes regiões do país; estabelecer intercâmbio com órgãos nacionais e internacionais para obter material bibliográfico atualizado e para trocar experiências sobre pesquisas em enfermagem e outros campos afins"16:230.

Um novo Currículo Mínimo foi formalizado (1972), por meio do Parecer do Conselho Federal de Educação (CFE) nº 163/72 e da Resolução/CFE nº 04/72, que dispôs sobre a nova estrutura curricular para o curso de graduação em enfermagem e a formação profissional da enfermeira, que abrangia as ciências básicas, as disciplinas profissionais e as habilitações específicas: enfermagem de saúde pública, enfermagem obstétrica e enfermagem médico-cirúrgica1.

Um ano antes, em Julho de 1971, ocorreu em Manaus, o XXIII Congresso Brasileiro de Enfermagem, o qual recomendou às enfermeiras educadoras e aos setores de serviço a necessidade de continuar investindo na produção de pesquisa17:

1.Que procurem realizar pesquisas nos diferentes campos da enfermagem; 2. Que se interessem em efetuar investigações visando à obtenção de dados objetivos que sirvam de base para a melhoria dos cuidados prestados e 3. Que procurem realizar pesquisas operacionais a fim de verificar a viabilidade da observação sistematizada em diferentes situações de trabalhos17:25.

Merece ressalte que, nesse mesmo ano (1971), a Escola de Enfermagem Anna Nery submeteu ao Conselho Federal de Educação solicitação de aprovação e credenciamento do primeiro curso de mestrado em enfermagem no Brasil. Esse fato foi objeto de divulgação pela ABEn no Documentário do XXIII Congresso Brasileiro de Enfermagem.

No ano de 1972 o curso de mestrado foi implantado, sendo o primeiro no Brasil. A criação do primeiro curso de pós-graduação stricto sensu demarcou a institucionalização da produção científica1. O curso de mestrado visava desenvolver e aprofundar a formação adquirida no âmbito da graduação, ampliar os níveis de competência e as habilidades profissionais, abrangendo de forma integrada o ensino, a pesquisa e a assistência em enfermagem.

Neste contexto, às vésperas da criação do primeiro curso de mestrado em enfermagem no Brasil, ocorreu a reunião ordinária da Assembleia de Delegados, no âmbito do XXIII CBEn. Nesta assembleia foi aprovada a proposta de Haydée Guanais Dourado, então coordenadora da Comissão de Legislação para a criação, em São Paulo, de um órgão com personalidade jurídica própria, o qual teria como denominação de Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem (CEPEn)1.

Este órgão teria como finalidades, definidas em Regimento Especial (CEPEn), aprovado somente em 1979, reunir estudos e informações sobre saúde de interesse para a investigação na área de enfermagem; realizar pesquisas em enfermagem e áreas correlatas; prestar auxílio na realização de pesquisas de enfermagem, segundo projetos aprovados; promover e incentivar publicações de pesquisas de enfermagem e divulgar as pesquisas já realizadas18.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As importantes transformações que ocorreram no campo da educação em enfermagem, principalmente durante a década de 1960 e 1970, ecoam ainda na década de 2010, século XXI. Isso porque, no curso de quase cinco décadas podemos sentir a ressonância das vozes de nossas antecessoras quando lutaram e lograram êxito na inserção da enfermagem brasileira na comunidade científica, sendo a ABEn a entidade que concentrou as enfermeiras na luta pelo desenvolvimento da profissão durante ao transcorrer do século XX, junto com as Escolas de Enfermagem, encarregadas do incentivo e divulgação das pesquisas de enfermagem.

Os empreendimentos realizados pela Associação Brasileira de Enfermagem e as Escolas de Enfermagem representaram um verdadeiro espaço de investigação e de formação de pesquisadores, uma vez que o campo científico engloba as instituições encarregadas da produção e circulação dos bens científicos (produção científica).

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