Volume 17, Número 3, Jul/Set - 2013
PESQUISA
Conhecendo as estratégias de ação e interação utilizadas pelos clientes para o enfrentamento
da diálise peritoneal
Felipe Kaezer dos Santos
1
Glaucia Valente Valadares
2
1
Enfermeiro. Mestre pela EEAN-UFRJ. Especialista em nefrologia pela UGF. Possui residência de enfermagem em nefrologia pelo HUPE-UERJ.
Rio de Janeiro - RJ.
Brasil. Email: felipe-ks@uol.com.br
2
Professora da Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Pesquisa Fundamentos do Cuidado de Enfermagem. Coordenadora do Curso de Enfermagem - Campus Macaé. Macaé - RJ. mail: glauciavaladares@ig.com.br
Recebido em 15/07/2011
Reapresentado em 11/01/2012
Aceito em 06/03/2012
RESUMO
Este artigo teve por objetivo apresentar as principais estratégias de ação e interação
utilizadas pelos clientes portadores de doença renal crônica para o enfrentamento
da diálise peritoneal. O referencial teórico utilizado foi o Interacionismo Simbólico,
por ser um arcabouço que valoriza o significado da interação como determinante do
comportamento humano. A Teoria Fundamentada nos Dados foi utilizada como referencial
metodológico. Após a sua obtenção, realizada por meio de um roteiro de entrevista
semi-estruturado, os dados foram gravados, transcritos, codificados e organizados
para compor a teoria explicativa sobre o fenômeno estudado. Durante a análise foram
identificados vários recursos utilizados pelos clientes, como a necessidade de obter
informações sobre a diálise peritoneal, o refúgio na espiritualidade e a falsa ilusão
da cura. Destaca-se também a importância da rede de apoio, em que o enfermeiro poderá
atuar como facilitador do processo de enfrentamento, em prol da adaptação dos clientes
à nova realidade.
Palavras-chave: Enfermagem; Diálise peritoneal; Cuidado de enfermagem
INTRODUÇÃO
A doença renal crônica (DRC) é um mal que atualmente vem atingindo índices crescentes em nosso país e no mundo. As pessoas que atingem a fase terminal da doença necessitam realizar um dos dois tipos de terapia renal substitutiva (TRS) disponíveis: hemodiálise (HD) ou diálise peritoneal (DP)1.
O número estimado de pacientes em diálise no Brasil em 2011 foi 91,314; 90,6% estavam em HD e 9,4% em DP. Esses dados indicam aumento pronunciado da população em diálise no Brasil, o que torna fundamental pensar sobre o cuidado de enfermagem voltado para essa população2.
A DP é uma modalidade dialítica que se utiliza da membrana peritoneal como superfície de troca para a difusão de solutos urêmicos e ultrafiltração do líquido corpóreo excedente no organismo, quando os rins perdem a capacidade de fazê-lo. Para tanto, um cateter flexível é implantado cirurgicamente no abdome e o cliente e/ou seus familiares fazem a substituição periódica de uma solução de diálise que, em contato com a membrana peritoneal, promove a remoção das escórias sanguíneas indesejadas e da água3.
Além do implante do cateter e da necessidade de conviver com ele na superfície abdominal e das adequações no domicílio, o cliente que irá realizar a DP necessita adequar seus horários, sua rotina e seus hábitos de vida de forma a acomodar esta terapia com segurança. O momento exato em que uma pessoa necessita utilizar a DP como método para substituir a função renal, em geral, é determinada por indicadores clínicos e laboratoriais4.
Por ser um método passível de realização no domicílio, a DP suscita uma série de adequações no ambiente que irá acomodar a esta terapia, bem como o envolvimento e a participação ativa de familiares e pessoas próximas ao cliente que apresenta DRC em fase dialítica. Por este mesmo motivo, cabe ao enfermeiro avaliar a residência e as acomodações do cliente que pretende incluir no programa de DP5.
Por todas as transformações que provoca na vida do cliente e de seus familiares, observamos que o início da DP é um momento crítico na trajetória existencial de um indivíduo. Todas as dimensões do seu existir e todo o seu contexto de vida são redefinidos, para dar novo significado à sua própria existência6.
Esta percepção despertou nosso interesse em desenvolver um trabalho de pesquisa, cujo objeto fosse o significado do enfrentamento da DP para os clientes que ingressam no referido método dialítico.
Este estudo foi realizado no modelo de uma dissertação de mestrado, apresentada e defendida no ano de 2009, na Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade do Federal do Rio de Janeiro (EEAN-UFRJ). O presente artigo apresenta-se como um recorte da referida dissertação.
Assim, o objetivo desta discussão é apresentar as principais estratégias de ação e interação utilizadas pelos clientes portadores de doença renal crônica para o enfrentamento da diálise peritoneal.
Considerando que um recente levantamento7 identificou que, de todas as teses e dissertações [sobre nefrologia] publicadas no Brasil, apenas 8% delas tratava sobre DP, esta apresentação torna-se ainda mais relevante, por proporcionar reflexão atual e específica sobre os cuidados de enfermagem para com esta clientela.
REFERENCIAL TEÓRICO
Dada a importância do significado que o estudo propõe, optamos por utilizar o Interacionismo Simbólico (IS) como eixo para a reflexão, análise e discussão dos dados. O interacionismo simbólico privilegia os significados como fatores determinantes no comportamento humano, considerando que esses valores são constantemente revisitados e transformados a partir do processo interativo do indivíduo com os elementos de seu próprio universo8.
Ao utilizar o interacionismo simbólico neste estudo, nossa intenção foi conhecer cada elemento significativo para o sujeito que ingressa na DP. Dessa forma, foi possível conhecer as estratégias utilizadas pelos clientes para lidar com o início da DP.
De acordo com as premissas do interacionismo simbólico, esse processo de atribuição de significados é todo ele constante e dinâmico, uma vez que o processo interativo do ser humano com seu próprio universo se dá a todo o momento.
Esta ideia confere especial interesse para a enfermagem, uma vez que pressupõe a possibilidade da intervenção profissional como forma de alterar o curso do comportamento dos clientes sob seus cuidados, com vistas à uma melhor vivência de sua realidade.
Alguns autores9 destacam a empatia como elemento imprescindível para que o diálogo se constitua como instrumentochave do cuidado desejado pelos clientes acometidos por uma determinada patologia crônica.
Assim, considerando o aspecto relacional do cuidado de enfermagem, a utilização do interacionismo simbólico nesta discussão tornou-se ainda mais apropriada, dada a valorização do elemento interativo para a prática do cuidado de enfermagem.
REFERENCIAL METODOLÓGICO
Para prosseguir com o estudo, utilizamos a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como eixo metodológico. A TFD, conhecida também como Grounded Theory, é considerada um tipo de pesquisa de cunho interpretativo, cuja relação com o interacionismo simbólico é estreita 10.
Isso se deve ao fato de que a TFD tem por objetivo explicar uma determinada cena da esfera social, ou seja, no ambiente onde se processam e se desenvolvem as diversas possibilidades interativas e seus respectivos desdobramentos11.
Caracterizada como uma pesquisa de caráter qualitativo, a TFD pressupõe uma série de processos de codificação por meio dos quais os dados vão sendo trabalhados de forma sistemática, para a elaboração de uma eixo central, cerne explicativo do fenômeno que se pretende conhecer. Ao todo, a TFD sugere três processos subsequentes: a codificação aberta, a codificação axial e a codificação seletiva12.
Por consistir em um método que valoriza os acontecimentos de uma determinada cena social, a TFD é capaz de propor teorias explicativas muito mais próximas da realidade. Assim, os dados vão sendo obtidos pelo pesquisador e trabalhados de forma sistemática e concomitante, até a elaboração final da proposta explicativa11.
A fim de agrupar as diversas categorias e subcategorias que surgem a partir do processo de codificação, alguns autores12 desenvolveram uma estrutura de paradigma explicativo, o qual inclui uma série de cinco condições relacionadas ao fenômeno estudado: Condições causais; Condições intervenientes; Contexto; Estratégias de ação e interação e Consequências.
O propósito desta discussão é apresentar as estratégias de ação e interação utilizadas pelos clientes portadores de doença renal crônica para o enfrentamento da nova realidade, ou seja, o conjunto de respostas que o indivíduo apresenta para lidar com a DP12.
Este estudo foi realizado de acordo com as normas da Resolução nº 196/96, que trata da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos. A pesquisa foi realizada em um hospital universitário do Rio de Janeiro e foi aprovada pelo seu Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 2343-CEP/HUPE.
As entrevistas foram realizadas no período entre julho e setembro de 2009. Todos os participantes do estudo o fizeram de forma voluntária, mediante exposição dos objetivos do estudo e após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O grupo amostral incluiu oito clientes em DP sem a realização de hemodiálise previamente. O perfil dos entrevistados incluiu cinco clientes do sexo feminino e três do sexo masculino, com idades que variaram entre 27 e 80 anos. Todos os clientes realizavam DP em um período inferior ou igual a um ano.
Para colher os dados foi utilizado um roteiro de entrevista semi-estruturada, e os depoimentos foram gravados em arquivo digital para posterior transcrição e análise. As entrevistas foram realizadas de forma individual, na residência dos entrevistados, em local reservado, mediante agendamento prévio, sem a presença de familiares, e tiveram tempo médio de 50 minutos.
À medida que os dados foram coletados e preparados para análise, foram incluídos outros depoimentos, até que chegássemos ao número de oito clientes assim identificados: Azul, Vermelho, Rosa, Roxo, Laranja, Preto, Marrom e Verde.
É importante ressaltar que a TFD pressupõe um movimento dinâmico e integrativo dos dados, sendo os mesmos dissociados apenas para fins de apresentação e discussão. A seguir, temos o diagrama utilizado para a discussão das Estratégias de ação e interação do cliente portador de DRC que enfrenta a DP.
Os diagramas são recursos visuais propostos pela TFD, os quais consistem em representações gráficas com o intuito de melhor visualizar e compreender o fenômeno em foco11.
RESULTADOS
Face às mudanças advindas com a DP, o cliente portador de DRC busca recursos emocionais para lidar com o inevitável: a terapia renal substitutiva. Neste momento, nos deteremos na descrição dos diversos recursos que o cliente desenvolve para lidar com o cotidiano em prol de adaptar-se à sua nova condição de vida, buscando harmonizar a terapia dialítica e seu próprio universo.
Pensar sobre as estratégias de ação e interação, neste caso, significa pensar sobre os recursos criados pelos clientes para conviver com o início da diálise, vivenciando o choque e empenhando-se para conviver com a nova realidade.
Neste estudo, as estratégias de ação e interação foram agrupadas em torno da categoria: Iluminando o caminho para o convívio com a diálise peritoneal. No processo de análise, as estratégias de ação e interação foram apresentadas e discutidas por meio das seguintes subcategorias: Informando-se sobre a DP; Interagindo com pessoas que realizam o método; Contando com a rede de apoio; Minimizando os aspectos negativos da DP; Buscando apoio de uma força metafísica; Pensando que a hemodiálise poderia ser pior e Pensando que deixaria a DP se ficasse curado.
Informando-se sobre a DP - Ao deparar-se com a DP, o cliente vislumbra um universo completamente desconhecido. Neste momento, o vazio criado pela desinformação pode tornar-se nocivo e improdutivo. Passado o momento do choque, da crise inicial, o cliente toma conhecimento das primeiras informações e, ao fazê-lo, dá-se conta de que a informação é libertadora, pois abate as barreiras e diminui as dificuldades.
Ao informar-se sobre a DP, o sujeito é transportado de uma condição de refém do medo para um estágio de conhecedor do método. Nesta situação, a informação surge como um ente libertador, diminuindo as angústias e fazendo crer que existem boas possibilidades de continuar vivendo.
As coisas que a enfermeira falava... ia mostrando no livro [manual de treinamento], ia mostrando o começo da terapia... O que podia acontecer... Então ... Eu não achei bicho de sete cabeças. ROSA
Um momento bastante propício para o incremento das informações sobre a temática junto ao cliente que inicia a DP é a capacitação específica voltada para o procedimento. Durante uma série de oito a dez encontros aproximadamente, um profissional (preferencialmente o enfermeiro) apresenta os detalhes da realização da técnica de DP, seus cuidados e desdobramentos.
Esses encontros, inicialmente destinados à capacitação para o início da terapia, podem e devem ser utilizados como um espaço de convivência, onde o cliente aproveita para expor seus sentimentos e sanar suas dúvidas.
O cliente destaca o início da terapia como um momento de vivência do desconhecido, enquanto no momento seguinte consegue vislumbrar uma possibilidade de vida, considerando o impacto mesmo da informação. Dessa maneira, a informação situa o sujeito e o faz apropriar-se da prática dialítica; não obstante o faz ativo na situação que enfrenta, e não um mero expectador.
No começo eu não sabia de nada... e agora [...] levo minha vida praticamente normal. O fato de me informar me ajudou muito. VERDE
O conhecimento é apontado como ferramenta para aceitação da diálise, uma vez que os episódios de dificuldade e de medo estão relacionados às dúvidas e às incertezas. Após conhecer o método, o cliente não apenas dá-se conta de que a diálise é possível, como também passa a experimentar sentimentos de segurança e tranquilidade.
A informação pode ser adquirida por várias formas. O diálogo, uma vez acolhedor e estimulante, tem singular importância no momento do início da diálise. Por outro lado, as informações trabalhadas na prática tornam o evento ainda mais assimilável.
Os dados apontam também para a necessidade de ver mesmo como se dá a DP, na prática, como forma de sanar sua inquietação inicial.
Achava que eu ia morrer mesmo. Pra você ver o pouco conhecimento que eu tinha sobre isso, né? Eu nunca conheci ninguém que fazia isso, nunca tive contato com ninguém. E isso facilitaria, porque eu ia ver que não era nada daquilo. LARANJA
Interagindo com pessoas que realizam o método - Assim como ver o método da DP contribuiu para a compreensão e a aceitação da terapia, por meio da apreensão do conhecimento, ter contato com uma pessoa que realiza o método parece repercutir de forma positiva para o cliente iniciante no tratamento.
Assim, além do destacado desejo em ver a DP, alguns clientes afirmam sentir maior confiança pelo fato de já ter convivido com uma pessoa que realizou o método. E nesse momento, marcado pelo início do método em suas vidas, os clientes recorrem a essas lembranças para lidar com o evento de forma mais amena.
A [vizinha] fez [diálise] manual seis anos e eu já tinha uma experiência um pouco de ver a [vizinha]. Então eu tinha uma confiança. ROSA
Saber que tem uma pessoa que já passou por aquilo que você tá passando... me ajudou bastante. VERDE
Na trajetória do cliente que inicia a DP, muitas serão as concepções e as influências com relação ao método, originadas de experiências diversas. Sobre esse aspecto, pode ser que ele passe por repetidos processos de significação da diálise, até que a consolidação de suas experiências se firmem em uma opinião própria.
Tudo conflui para formar a representação simbólica que o sujeito constrói sobre a DP, e por isso é muito importante aproximá-lo da realidade o máximo possível. Dessa forma ele não se sentirá enganado pela equipe de saúde, o que poderia prejudicar em muito a relação terapêutica.
Contando com a rede de apoio - Uma terceira estratégia detectada como forma de lidar com o início da DP encontra-se na relação com o outro e no suporte oferecido pela equipe. A relação com os profissionais desperta confiança e esse relacionamento se firma como um esteio, uma coluna de suporte para o cliente. Simbolicamente é como se o cliente conseguisse manter-se de pé a partir do momento em que ele tem esse apoio.
No início da DP é comum o cliente sentir-se sozinho, isolado, como se fosse o único a passar pela situação em questão. Com o avançar do tempo e com o início do movimento natural para adaptação, ele percebe a existência de pessoas ao seu redor dispostas a ajudá-lo e a facilitar o início da terapia, por mais que sofra os eventos no seu ser.
O suporte emocional, consolidado a partir do envolvimento com os outros, tem importância significativa no tocante à equipe de saúde. Essa passa a ser considerada a extensão da família do cliente em DP.
De fato, em alguns momentos, o empenho e a atenção necessários ao início do método são de tal nível exclusivos, que somente um familiar poderia fazê-lo. A equipe passa então a assumir simbolicamente a posição de uma segunda família, momento em que os maus sentimentos e as manifestações negativas tendem a se dissipar.
Eu me sentia como se a enfermeira acabasse fazendo um pouco o papel de mãe porque ela conseguia ser firme na hora que ela tinha que ser, mas, também, muito carinhosa, muita atenciosa, e isso é muito importante... Muito, muito, muito importante. Com isso, o que é que foi acontecendo? Eu fui tendo aquele sentimento de... Até mesmo de amor mesmo! Realmente eles cuidam do cliente como se fosse uma família, um membro da família. Foi assim que eu me senti e isso foi fundamental para a minha aceitação, porque aí acabou a minha angústia, foi tirando aquela coisa de dúvida, a incerteza, todos os sentimentos foram... tudo foi se acalmando. VERMELHO
Ao abrir-se para o diálogo, o cliente abre-se também para novas possibilidades, sobretudo se a conversa for entabulada com alguém em quem confia. Quando ele faz questionamentos, expondo seus problemas, permite que o outro possa opinar sobre sua própria vida. Assim, ao falar sobre as dificuldades no método, sobre dúvidas e outras questões, as mesmas podem ser resolvidas.
Então hoje é muito importante até falar do tratamento, como foi o trabalho todo que foi feito... como é que veio a minha aceitação... o sentimento de companheirismo, de saber que eu podia contar com a equipe... isso tudo foi muito importante. VERMELHO
Minimizando os aspectos negativos da DP - Uma forma de aceitar uma dada situação considerada importante ou de grande porte será reduzi-la a uma situação de fácil resolução ou com dimensões menos assustadoras.
Assim, o cliente lança mão desse recurso, de forma a melhor aceitar a DP em sua vida. Pode-se observar uma estratégia de associação a outras realidades de sua vida, procurando alocar a DP a um patamar de significância inferior a outros eventos já vivenciados.
Eu disse: Não, doutor, eu não abuso, porque eu sou diabético... Quer dizer, já não abuso... tenho consciência. Agora a pessoa que não é [diabético]... aí já fica mais difícil. No meu caso, não... porque eu já fazia dieta mesmo. PRETO
Em um universo já ocupado por uma série de exigências, os detalhes da DP passam a ocupar apenas mais um espaço. A história de vida do cliente facilita, progressivamente, a incorporação da terapia, pois ele constrói recursos psicológicos para lidar com o choque, provenientes de experiências prévias em sua trajetória existencial.
Então isso [a DP] seria mais uma coisinha que eu tenho que tomar conta, mais nada. É mais uma lista de alimentos... uma lista de medicamentos... é mais uma lista de diversas outras coisas que eu tenho que fazer, mais nada. [A minha história de vida] me ajudou a passar esse momento. ROXO
Por outro lado, os clientes que não possuíam problemas de saúde também tentam reduzir o advento da DP, minimizando o seu significado de forma a melhor aceitá-lo. Simbolicamente esforçam-se por considerá-la apenas um tratamento de saúde, realizado sempre que possível e com relativo compromisso.
Foi mais fácil ver a coisa como um processo simples, que você acorda, faz e não faz o restante do dia... faz à noite [...] Então foi assim, o fato de ele [o médico] ter simplificado o processo tornou mais aceitável. VERMELHO
É bastante interessante observar que alguns clientes servem-se da racionalização, colocando os sentimentos em segundo plano e sendo bastante objetivos para dar significado à DP. Nesta situação, o método é comparado ao ato de andar ou mover-se.
Até mesmo o cateter de diálise peritoneal, um elemento comumente problemático pelo comprometimento da aparência dos clientes, passa a ser reduzido com vistas à melhor aceitação.
[Então a DP seria como] aprender a andar, a mexer na coisa que iria me tornar uma pessoa normal de novo. Só ia ficar com uma coisa pendurada, com um cinto pendurado no meu corpo, e pronto. ROXO
Buscando apoio em uma força metafísica - De forma distinta, clientes tomados pelo medo e pela incerteza podem optar pelo caminho da emoção para aceitar o método. Assim, por vezes, depositam suas esperanças no divino, no impalpável, como forma, inclusive, de conformar-se com a DP e suas implicações.
No momento de crise, toda estratégia empregada pelo cliente no sentido de incorporar a terapia ao seu cotidiano será válida para ele. Aceitar as restrições, as necessidades e as implicações do método é uma tarefa árdua, e fazê-la apoiada somente nos fundamentos da lógica poderá ser insuficiente.
Acreditar que sua vida é regida por uma força divina superior é uma forma de significar como nobre o seu sacrifício. Aceitar o fato como vontade divina o torna melhor e o faz aceitar a situação vivida como inevitável, por mais que seja incompreensível.
Eu aceitei bem a diálise porque também eu sou da igreja... então, primeiramente, eu pedi muita força a Deus. Eu pedi força desde a hora que eu soube, eu fui pedindo força a Deus. Então eu acho que foi Deus que foi me ajudando e me dando força. VERDE
Nesse momento, para alguns, o que acontece é fruto da vontade divina. Os maus momentos, a força, a coragem, a tristeza, tudo é considerado uma etapa a ser cumprida em função de algum desígnio divino, desconhecido, incompreensível e insondável. De tal maneira, isso é capaz de conferir forças ao cliente, que, de alguma maneira, ele mesmo surpreende-se ao ver sua capacidade de superar aquele momento de crise.
Eu chorei quando eu me vi naquela situação [de ter que fazer diálise], aí eu chorei... mas Deus foi me dando tanta força [...] E eu, graças a Deus, fui aceitando de uma forma que eu acho que muitos nem acreditam. VERDE
Outros clientes passam a creditar o sucesso do tratamento ao divino, como se fosse desígnio próprio a ser aceito. Nesse momento, o cliente faz uma correlação direta entre o fato de ser poupado do sofrimento e a intervenção divina.
Eu pedi muito a Deus que me desse força, que me encaminhasse para o melhor. Pedi muito a Ele... pedi muito, muito, muito a Ele [...] que me aliviasse de muitas coisas, de muitas dores... E você vê que na minha operação eu não senti nada. AZUL
Eu sei que há um Deus superior, que tudo pode... porque senão, pelo que eu já passei... [Minha esposa] diz mesmo: Pelo que você já passou, meu filho... Estar aí é só milagre de Deus. PRETO
Pensando que a hemodiálise poderia ser pior - Nesta categoria, percebe-se que o cliente passa a aceitar a DP pensando no método como melhor se comparado à hemodiálise. É importante ressaltar que não existe, do ponto de vista científico, um método superior ao outro. Ambos possuem uma finalidade em comum e o fazem com propriedade, desde que bem indicados e realizados adequadamente.
Eu fui na sala da hemodiálise conhecer... E eu acho que a hemodiálise é pior porque além de ficar quatro horas sentada filtrando o sangue... E também o risco que corre... Porque eu fiquei sabendo do risco de ter o infarto... E o mal-estar que a pessoa sente quando sai da hemodiálise... nem se compara [com a DP]! LARANJA
Por ser a hemodiálise um método sabidamente mais conhecido, é comum os clientes terem muito preconceito. Desse fato parece decorrer uma preferência em relação à DP, método até então desconhecido.
Até aí ninguém nunca tinha falado desse negócio pra mim... Essa palavra horrível... Assim que você ouve: hemodiálise! Hemodiálise! Parece o bicho papão mesmo! MARROM
Pensando que deixaria a DP se ficasse curado - Conviver com o fato de a DRC não ter cura, o que implica em terapia renal substitutiva até o fim da vida, pode ser uma carga pesada demais para o cliente. Os dados mostram que no afã de encontrar uma forma de aceitar a DP, os clientes podem criar uma falsa ilusão de cura, como forma de melhor suportar sua condição.
Essa é uma estratégia questionável, pois não lida com fatos reais, haja vista as que as possibilidades de cura e a saída do método são remotas. O malefício desse tipo de fuga/negação da doença poderá ser significativo à medida em que os clientes percebem a necessidade de realizar tal terapêutica por um longo tempo em suas vidas, ou até mesmo, pela vida inteira.
Quando algumas pessoas me falaram que a DP poderia não ser pra sempre... Que o meu rim poderia voltar a funcionar, eu fiquei mais animada ainda em começar a fazer a DP. Ele [o médico] me falou isso lá no hospital... E ele me falou que tem casos que volta. E eu fiquei sabendo de uma clínica, que uma médica me falou, que liberou quatro pessoas que faziam a hemodiálise, porque o rim voltou a funcionar. LARANJA
Em casos como esse, cumpre ao enfermeiro esclarecer, com delicadeza e cuidado, que a DRC é um mal progressivo e irreversível. Mesmo nos casos em que os clientes permanecem sem realizar diálise, necessitam de acompanhamento da equipe de saúde a fim de monitorar sua função renal. Reforçar a esperança de cura, nesses momentos, não é uma atitude desejável.
DISCUSSÃO
É interessante observar que algumas estratégias descritas pelos sujeitos do estudo correspondem a formas viáveis, factíveis e verossímeis. Por exemplo, recorrer a informações mais completas sobre o método dialítico, suas limitações e possibilidades é uma ferramenta coerente com a realidade.
Uma vez bem informado, o cliente poderá reforçar sua determinação em seguir o tratamento, percebendo o que é real e afastando pensamentos associados aos mitos e às informações distorcidas. Não raras serão as situações em que o enfermeiro precisará trabalhar para desfazer informações equivocadas.
A busca pelas informações sobre a DP surge como uma das mais relevantes estratégias apresentadas pelos sujeitos do estudo para o enfrentamento da DP. Sobre esse ponto, é importante reiterar que a fonte de informação, por vezes, é outro cliente que realiza o método. Nesse sentido, a fonte de informação não servirá apenas como um divulgador do método, mas, sobretudo, como um descritor de sentimentos e, por assim dizer, um desmistificador. Além disso, poderá proporcionar maior segurança ao cliente face à delicadeza da situação.
Um nível de informação geral bom a respeito da DP e suas peculiaridades pode representar fator de proteção, contribuindo para uma melhor qualidade de aplicação da técnica dialítica.5
Neste sentido, caberá à equipe de saúde, sobretudo ao enfermeiro, como agente educador, veicular os esclarecimentos necessários, direcionados especialmente aos questionamentos de cada indivíduo.
É relevante pensar na equipe de saúde como veículo das informações a respeito da necessidade de diálise, agravantes e atenuantes. A equipe de saúde é quem informa sobre a iminência da necessidade de diálise. Os clientes referem esse momento como sendo de muita fragilidade e no qual a postura dos profissionais parece ter extrema relevância.4
Outro recurso apontado pelos entrevistados está relacionado com o consolo obtido por meio da religiosidade. Em geral a enfermagem enfatiza a necessidade no reconhecimento da religião e da espiritualidade como uma as dimensões do indivíduo13.
Um estudo recente14 reforça a ideia de que a religiosidade deve ser considerada durante o planejamento das intervenções de enfermagem para a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos acometidos por doenças crônicas.
Ao enfermeiro caberá reconhecer essas práticas com o grupo de familiares/pacientes em questão, pois além de compreender o significado que essas pessoas atribuem à doença, poderá intervir positivamente.
A religião oferece um apoio importante para os familiares, por meio do envolvimento da comunidade religiosa, que compartilha o cuidado com a família. Conhecendo as práticas religiosas e espirituais da família, o enfermeiro poderá compreender suas atitudes perante o processo de adoecimento e terapêutico, auxiliando-a a manter práticas que promovam a saúde.13
Caberá ao profissional trabalhar e utilizar-se deste recurso como uma estratégia para promover o acolhimento, conduzindo à aceitação do método. Não é recomendável estimular o apelo religioso com vistas à cura ou ao fim da diálise, dada a situação de cronicidade da doença.
Essa reflexão é importante, uma vez que um dos recursos descritos pelos entrevistados estava relacionado à espera pela cura, como forma de deixar a DP. Em alguns momentos, os clientes chegam mesmo a criar fantasias e ilusões a respeito da cura, como se o método fosse algo transitório em suas vidas.
Essa característica é algo que está relacionado à própria situação de cronicidade da doença renal em fase terminal. A compreensão limitada dessa condição e até mesmo a atenuação dos sinais e sintomas após o início da terapia dialítica parecem levar o indivíduo à crença de que a cura é possível.
Um estudo que discute a adesão de clientes portadores de doenças crônicas ao tratamento15 destaca a dificuldade na compreensão dessas enfermidades como situações de longo prazo.
Para essas pessoas, o tratamento precisa ser significado como atenuante, e não como perspectiva de cura, uma vez que a DP proporciona apenas a remoção de líquidos e solutos indesejados do sangue, e não a restauração da função renal. Os autores destacam ainda que: "a adesão dos pacientes crônicos a um tratamento eficaz é um constante desafio aos profissionais de enfermagem"15.
Com relação à comparação entre os dois métodos, os dados apontam para uma preferência em relação à DP e para a melhor aceitação dele, pelo receio de realização da HD. Há que se relembrar que este estudo foi realizado com indivíduos que nunca realizaram a HD, sendo a DP o primeiro método dialítico para eles.
Um estudo realizado comparando os dois métodos16 destaca que "a qualidade de vida foi semelhante entre as modalidades". Portanto, é recomendável que ambos os métodos sejam apresentados de forma imparcial, de forma clara e objetiva, e apontando as vantagens e as desvantagens de ambos.
Não é desejável exaltar qualquer um dos métodos em detrimento do outro, dada a possibilidade de realização de ambos ao longo da trajetória terapêutica dos indivíduos acometidos pela DRC16. Portanto, essa é uma estratégia para lidar com a DP que não deve ser reforçada pelos enfermeiros.
Outro recurso de ação e interação para a perseverança no método é recorrer à rede de apoio. É fundamental ao cliente sentir confiança no tratamento e na equipe de saúde e, para tal, a interação é uma ferramenta imprescindível: interação positiva resultará em ação benéfica. Este é um dos fatores que garantem o sucesso da terapia domiciliar, conforme apontado pelo trabalho que se segue:
Acredita-se que muitos fatores estão intimamente relacionados ao sucesso da terapia, como: o comprometimento dos cuidadores, envolvimento responsável com o tratamento, seguimento irrestrito às orientações prescritas, boa relação entre a equipe de saúde, paciente e cuidador, apoio familiar e social, condições adequadas de alimentação, de higiene pessoal e do domicílio, entre outros5.
Cabe destacar, ao final desta discussão, que muitos desses achados e observações são específicos ao cenário de estudo apresentado. Trata-se, portanto, de uma limitação do presente estudo o fato de não ter sido aplicado ou comparado a outros centros de diálise. Acreditamos, no entanto, tratar-se de uma tendência e, ainda, que estas reflexões possam colaborar significativamente para o cuidado do cliente que realiza a DP.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminhar do cliente em DP é descrito como cheio de incertezas, medos e dificuldades de adaptação. Nessa trajetória, simbolicamente repleta de sombras e escuridão, as estratégias de ação e interação surgem como uma forma de iluminar o caminho a ser seguido. Se a diálise surge como a escuridão, a confusão de sentimentos, de dúvidas, receios e abandono, serão uma forma de iluminar o seu caminho.
Assim, descritas as estratégias utilizadas pelos clientes para melhor aceitar e conviver com a diálise peritoneal, tem-se a chance de compreender que o cliente que inicia a DP necessita encontrar motivos para seguir em frente, pois dessa terapêutica depende a sua vida.
O conhecimento promove a autonomia do cliente diante de uma situação desconhecida. As formas de adquirir esse conhecimento são as mais diversas. Cabe destaque ao contato com um indivíduo que já realiza o método, pela influência que poderá exercer sobre o cliente no enfrentamento da situação, além do contato com o profissional de saúde e do material educativo apropriados.
Ao conhecer as estratégias utilizadas no enfrentamento da DP, caberá ao enfermeiro participar desse processo em que o cliente dá significado a este método, informando-o, incentivando-o e apoiando-o para que ele possa adaptar-se às exigências do método, ou por outra, facilitando a acomodação da diálise a um universo dotado de inúmeras especificidades, de forma segura e produtiva.
REFERÊNCIAS