Volume 13, Número 4, Out/Dez - 2009
PESQUISA
Crianças em situação de violência de um ambulatório do Rio de Janeiro: conhecendo seu perfil
Children under violence situation followed-up in the outpatient setting at Rio de Janeiro: knowing their profile
Niños en situación de violencia de un ambulatorio en Rio de Janeiro: conociendo su perfil
Lucia Martins de Magalhães Pierantoni I; Ivone Evangelista Cabral II
I Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Enfermeira do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ. Especialista em Enfermagem Pediátrica pela Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade de Educação/UERJ. Brasil. Email: l-pierantoni@hotmail.com,
II Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Materno Infantil da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Pesquisadora do CNPq e do Núcleo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança (NUPESC). Brasil. E-mail: icabral44@hotmail.com
RESUMO
Buscou-se caracterizar as crianças envolvidas em situação de violência e seus familiares, e analisar o papel social do agressor/protetor no círculo da violência. Estudo quantitativo descritivo foi desenvolvido no Ambulatório da Família de um Hospital do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2007. Dados do prontuário de 44 crianças demonstraram intensa relação entre pobreza, baixa escolaridade e gênero na matriz social da violência. Houve maior registro de meninos (64%) expostos a violência do que meninas. A violência física foi a queixa mais recorrente (33,3%). Paradoxalmente, a mãe foi a principal agressora (39,1%) e protetora (57,1%). Conclui-se que tanto a criança como o agressor/protetor precisam de intervenção, apoio e monitoração do serviço de saúde, e que o duplo papel social (agressor/protetor) implica uma abordagem de cuidado centrado na família.
Palavras-chave: Criança. Enfermagem. Violência
ABSTRACT
The objectives of the study were to characterize children under violence situation, and their family members; and to analyze the social role of relatives as an aggressor and protectors in the circle of violence. A quantitative descriptive study was developed in the outpatient setting at Rio de Janeiro during 2006-2007. Data from 44 children charts showed that there was a strong relation among poverty, low background and gender to the social matrix of the violence. Boys were the main victims (64%) of violence. Physical aggression (33%) was more reported. Paradoxically, mothers were the main relatives who caused the aggression (39.1%), and assumed the social role as children protector (57.1%). It concluded that children, aggressor/protector need to be assisted, followed-up and supported by healthcare facility. Consequently, the double social role aggressor/protector implies family center care approach in order to break the circle of violence.
Keywords: Child. Nursing. Violence
RESUMEN
Pretende caracterizar los niños implicados en la situación de violencia y sus familiares y analizar el papel social del agresor/protector en el círculo de la violencia. El estudio cuantitativo descriptivo fue desarrollado en el ambulatorio de Familia de un Hospital de Río de Janeiro entre 2006 y 2007. Datos de los registros médicos de 44 niños señalan una intensa relación entre pobreza, bajo nivel de escolaridad y género en la matriz social de la violencia. Existe un mayor índice de niños expuestos a la violencia (64%) en comparación con las niñas. La violencia física es el factor que más se repite (33.3%). Paradójicamente, la madre es la principal agresora (39.1%) y protectora (57.1%). Se concluyó que tanto el niño como el agresor/protector necesitan de ayuda, apoyo y supervisión de los servicios de salud. En consecuencia, la doble función social del agresor/protector implica un enfoque del cuidado centrado en la familia.
Palabras clave: Niño. Enfermería. Violencia
INTRODUÇÃO
Três aspectos são fundamentais para compreender a violência contra a criança. Primeiro, a violência estrutura-se em uma relação opressor-oprimido1, pois resulta da dominação do forte sobre o fraco e da subordinação do fraco às regras e às leis do forte. Segundo, a violência se estabelece e adquire expressão na interface das relações de forças e de poder que se opera no mundo adulto-criança. E, finalmente, a violência na infância é um fenômeno complexo e revelador da fragilidade clínica e da vulnerabilidade social da criança. Em geral, é o efeito do ato violento sobre o corpo que leva a criança até a unidade de saúde, evidenciando a natureza clínica da sua fragilidade. Já a vulnerabilidade da criança decorre da exposição social ao círculo da violência, muitas vezes sob a égide do silêncio e situada no interior da família e nas relações de amizade.
A violência representa uma experiência negativa sobre a vida do ser humano, portanto a possibilidade de a criança superar essa experiência depende de fatores de proteção, como, por exemplo, a legislação de proteção à infância, as pessoas que retiram a criança do círculo da violência, as instituições sociais, entre outros.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA. Lei 8.069/90)2 é um desses fatores de proteção, pois estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos sociais. No conjunto desses direitos está aquele referente à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes. No caso de estes direitos serem ameaçados ou violados, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis ou em razão da própria conduta das crianças e adolescentes, as medidas de proteção que estão contidas no ECA devem ser aplicadas.
Na trajetória de vida da criança exposta a violência, as pessoas que assumem o papel social de protetor contribuem para a superação dos efeitos deletérios da violência sobre a formação social da mente. Por conseguinte, esse protetor pode ser um membro da família consanguínea da criança ou alguém do círculo familiar do autor da agressão, portanto, ambos precisam de proteção contra o(a) autor(a) da agressão. Nos serviços de saúde, o atendimento a ambos, criança vítima de violência e protetor, há um confronto diário com muitos dos dilemas dessas pessoas em decorrência dos caminhos por eles percorridos até a chegada à instituição de saúde e às de proteção à infância e adolescência.
A abordagem terapêutica a essa clientela implica a necessidade de se conhecer quem são essas pessoas, prover suporte e intervenções com menos riscos possível à integridade física da criança e seu (sua) protetor(a). O enfrentamento dos efeitos da violência sobre a saúde da criança leva os profissionais de saúde em geral, e o de Enfermagem, em particular, a desenvolver estratégias criativas para lidar com a violência enquanto uma problemática social complexa.
Nesse sentido, criança e protetores apresentam demandas de cuidados que se estendem do individual para o social e do social para o individual. Isso implica um suporte e proteção a ambos repensando o papel do setor saúde como parte dos demais setores da sociedade. A invisibilidade de uma rede social articulada para assegurar o suporte necessário às iniciativas do(a) protetor(a) no atendimento a essa criança e ao seu(sua) protetor(a) faz com que, em vários casos, ambos busquem o serviço de saúde quando a marca da violência já determinou disfunção orgânica.
A rede social aplicada a esse contexto do estudo tem origem no conceito de redes comunitárias, que buscam a efetividade das ações sociais especializadas, específicas e próprias de cada participante, unindo saberes e práticas complementares e potencializando esforços individuais e coletivos.3
As instituições de saúde se constituem um ponto na tessitura dessa rede comunitária. Simultaneamente, pode ser o último ponto dessa rede ou o primeiro, ao desenhar um novo percurso na interrupção da matriz da violência. Essas instituições, na relação com as famílias e crianças em situação de violência, podem contribuir decisivamente para potencializar esforços individuais e coletivos. Portanto, o perfil desse grupo nos permite situar o lugar de cada um nessa rede, bem como favorece uma abordagem terapêutica multidisciplinar e intersetorial.
Nesse sentido, o estudo tem por objetivos: a) caracterizar as crianças envolvidas na situação de violência e seus familiares; e b) analisar o papel social do protetor na interrupção do círculo da violência contra a criança.
No Brasil, o crescimento da violência afetou todos os setores da sociedade nas duas últimas décadas do século XX. Ela faz parte das grandes questões sociais, sendo o setor da saúde um tambor de ressonância das resultantes desse fenômeno.4
A relevância em distinguir quem é o(a) protetor(a), e quem é o(a) agressor(a) da criança, quando da busca de cuidados de saúde, baseia-se na premissa de que a violência familiar requer uma ampla rede social, interinstitucional e intersetorial de suporte, da qual o setor saúde participa na prevenção, no diagnóstico e no tratamento das vítimas.
O entendimento de que o setor saúde é uma encruzilhada para onde convergem a maioria das lesões e traumas físicos, emocionais e espirituais produzidos pela sociedade, orienta-nos para uma política de cuidados em que a atuação interinstitucional, mais que um princípio, é uma necessidade diante da complexidade da violência como um problema social e cultural.5
Além disso, o atendimento deve ser sistêmico, envolvendo a família como foco principal, e não apenas a criança vítima de maus-tratos; isto, porém, ainda é um ideal, e não a realidade. Há a necessidade da consolidação de uma atuação em rede, que integre vários equipamentos sociais em suas necessidades de integração social e de desenvolvimento.6-7
MATERIAIS E MÉTODO
Estudo quantitativo descritivo realizado em um Ambulatório da Família de um Hospital Universitário do Município do Rio de Janeiro, que é referência para o atendimento à criança vítima de violência. No município do Rio de Janeiro há dois serviços com esta denominação com a finalidade de atender a criança e sua família em nível ambulatorial, ambos de hospitais universitários.
A amostra do estudo se constituiu da totalidade (44) das crianças atendidas entre janeiro de 2006 e 2007. Foram incluídas no estudo todas as crianças inscritas no serviço e que frequentavam as consultas profissionais ininterruptamente, no mínimo uma vez ao mês, e que eram clientes da consulta de Enfermagem.
As fontes de informação foram os prontuários das crianças com idade até 12 anos, em acompanhamento nesse serviço. A produção de dados orientou-se por um formulário contendo variáveis relacionadas à criança e aos seus familiares.
Em relação à criança, levantaram-se dados relativos ao sexo, idade, escolaridade, procedência de residência, renda familiar, pessoas envolvidas na situação de violência (protetor e agressor), queixa principal na primeira consulta, tempo de atendimento na instituição, origem do encaminhamento, tipo de violência e necessidade de indicação de outros profissionais no atendimento. Em relação aos familiares da criança, buscou-se conhecer a idade, escolaridade e o seu papel social em relação à interrupção do ciclo da violência.
O tratamento estatístico é apresentado na forma de frequências absolutas e relativas. Os dados referentes a idade, escolaridade, anos de estudo e renda familiar foram distribuídos conforme nomenclatura e classificação da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.8
Em se tratando de um recorte de dissertação de mestrado,9 a aprovação do estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (Protocolo No.1674-CEP / HUPE), deu-se nos termos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
A distribuição por local de moradia foi classificada por área administrativa do município do Rio de Janeiro10 e Unidade da Rede Estadual.11
APRESENTAÇÃO DOS DADOS
Quanto à variável sexo, os meninos representaram 64% e as meninas 36%; 80% das 44 crianças encontrava-se em idade escolar (6-12 anos) e tinham entre quatro e sete anos de estudo.
As mães com menos de 40 anos representaram 73%. As que tinham entre um e sete anos de estudo eram 61%, entre oito e 11 anos corresponderam a 25%. Os dados paternos apontaram que 20% estavam na faixa etária de 36 a 40 anos. Os que tinham entre um e três anos de estudo eram 20%, e entre quatro e sete anos de estudo corresponderam a 20%.
Sobre o local de moradia, das 32 crianças residentes na Região Metropolitana I11 24 habitavam no Município do Rio de Janeiro, oito residiam em diferentes municípios dessa região (Queimados, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti). Apenas uma criança vivia na Região Metropolitana II no município de São Gonçalo. As demais crianças (12) residiam em outros municípios do Estado do Rio de Janeiro ou não foi informado.
Das 24 crianças residentes no Município do Rio de Janeiro, 20,8% procediam da AP2.2 e AP3.1, e 16,7% da AP3.3, portanto na área de adscrição do Ambulatório da Família.10
Embora os dados sobre a renda familiar não constassem na maioria dos prontuários (29), entre os que informaram a renda, observou-se que 12% (n=5) pertenciam a famílias com renda entre meio e um salário mínimo e 13% (n=6), entre um e dois salários mínimos. Todos foram classificados como pertencentes a famílias de classe média baixa e pobre.
Quanto às pessoas responsáveis pela agressão à criança, as mulheres (mãe, avó, irmã, prima) foram responsáveis pela maioria das agressões à criança, com destaque para as mães (18). Simultaneamente, as mulheres foram as que protegeram essas crianças, ao retirá-las do círculo da violência em família. Paradoxalmente, a maioria das mães (28) foi a pessoa da família que exerceu o papel social de protetora da criança. No Quadro 1, os resultados demonstram que uma criança pode ter sido vítima de agressão de mais de uma pessoa, de suas relações familiares e sociais, o que aumenta a vulnerabilidade social e exposição da criança a novos episódios violentos.
A relação entre a queixa principal, mobilizadora do atendimento no Ambulatório da Família, e a natureza da agressão, se física, sociofamiliar ou psicológica, é observada na Tabela 1. Houve um predomínio das queixas de origem psicológica (n=26), seguidas pelas relacionadas à convivência sociofamiliar. O comportamento agressivo da criança foi o que levou a protetora da criança a buscar o serviço de saúde, seguido pela agressão física.
O Quadro 2 relaciona o diagnóstico médico inerente à situação de violência, de acordo com a nomenclatura dos maus-tratos constante na 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID 10).12 Relacionaram-se os diagnósticos mais recorrentes, com base nos seguintes códigos; T 74.0 (negligência e abandono), T 74.1 (sevícias físicas, abuso físico), T 74.2 (abuso sexual), e T 74.3 (abuso psicológico). Nesse sentido, a violência física (33,3%) e a negligência (27,5%) foram as mais diagnosticadas.
A pessoa responsável pelo maior número de encaminhamentos ao setor especializado foi o estudante do internato de medicina (48%), seguido pelo residente de medicina com 11%. A equipe de enfermagem foi responsável por 8% desses encaminhamentos.
Quanto ao tempo de seguimento ambulatorial (Quadro 3), 51% das crianças tinham menos de um ano de atendimento; 20%, entre três e quatro anos; e 7%, entre quatro e cinco anos.
No Quadro 4, verifica-se que dos 65 atendimentos especializados, a psicologia (17) foi a que mais recebeu encaminhamentos, seguida pelo Conselho Tutelar, serviço social e neurologia. Os dados desse quadro são indicativos de que as crianças precisam de atendimento psicológico, seguido pelo clínico (neurologia, fonoaudiologia, pediatria), legal e social. Esse achado demonstra que a violência afeta mais o comportamento da criança, criando maior demanda para atendimento psicológico.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
As crianças em idade escolar foram as vitimas de violência de maior atendimento no Ambulatório da Família, pois 80% delas estavam na faixa etária de 6 a 12 anos. A concentração de violência na idade escolar ocorre em virtude de ser a faixa etária de maior exposição física e afetiva ao meio social, para além do ambiente familiar, ao mesmo tempo em que permanece dependente dos cuidados dos pais e ou responsáveis. As crianças até os 9 anos de idade são consideradas as vítimas silenciosas mais frequentes da violência doméstica.5,13
Com relação ao sexo das crianças vítimas de violência, os dados apontaram um predomínio de meninos em relação às meninas. Cinco milhões de pessoas morreram por causas externas em 2000; desse total, a mortalidade masculina foi duas vezes mais elevada que a feminina. No Brasil, temos, para cada cinco mortes masculinas, uma feminina. Um estudo que relacionou violência na infância com expectativas sociais em torno dos papéis sexuais indicou que a sociedade espera do menino maior preparo para lidar com a agressividade. Consequentemente, isso estimula o tratamento agressivo voltado para eles, expondo-os mais a violência.14
O hospital, onde funciona o Ambulatório da Família, está localizado na área adscrita AP2.2 do município do Rio de Janeiro, possui boas condições de acessibilidade (ônibus, trem e metrô) e é referência no atendimento às crianças vítimas de violência para todo o estado do Rio de Janeiro. Isso explica a demanda de um quinto das crianças em seguimento ambulatorial que residem em outros municípios do estado. Entre as que residem em outro município, a maioria habita na Região Metropolitana I, que inclui os municípios de Queimados, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo e São João de Meriti. A ausência de recursos locais, nesses municípios, para o atendimento dessa criança e sua família implica a necessidade de a pessoa que protege a criança vítima de violência se deslocar até uma unidade de saúde de outro município para ter assegurados seus direitos de cidadania. Entre as crianças residentes no município do Rio de Janeiro, a maioria reside em bairros pobres da área adscrita onde faz o acompanhamento ambulatorial.
A residência em bairros pobres dos diferentes municípios do Estado do Rio de Janeiro situa essas crianças vítimas de violência em contexto de pobreza. Além disso, entre os que informaram a renda familiar, observou-se que um quarto dessas crianças vivia em famílias com rendas entre meio e dois salários mínimos, demonstrando uma relação estreita entre violência e pobreza.
A criança (con)vive dialeticamente com a violência no seu cotidiano familiar, porque ele é parte representativa da totalidade social. Nesse sentido, não se pode estudá-la fora da sociedade que a gera, porque ela se nutre dos fatores históricos, políticos, econômicos e culturais traduzidos nas relações micro e macrossociais.
Os dados apontam ainda uma condição de gênero feminino associada à violência na infância que se manifesta no interior da família. Embora as mulheres fossem as pessoas do grupo familiar da criança registradas no prontuário como as principais agressoras (mãe, pai, tia, avó, prima, cunhada, etc.), o que está em seu entorno exerce uma forte influência na determinação dessa matriz familiar e de gênero. A maioria das crianças pertence a famílias cuja escolaridade é baixa, que têm baixa renda familiar e residem em bairros mais pobres e distantes do local de atendimento de saúde. Nesse sentido, na matriz familiar do círculo da violência da criança existe uma matriz social na gênese dos atos violentos. Uma possível explicação para o fato de as mulheres, em especial as mães, serem as principais agressoras e protetoras das crianças vítimas de violência é que elas, por exercerem o papel social de cuidadoras, convivem a maior parte do tempo com as crianças. Quanto mais prolongado é o convívio com as pessoas que provocam o ato violento, maiores são as possibilidades de a criança se expor à agressão.
As mães foram as maiores responsáveis pelas agressões às crianças. Na maioria das vezes, foram as principais cuidadoras, tendo, portanto, maior contato com a criança, e mais oportunidades de cometer atos violentos. A permanência contínua e a rotina do lar, muitas vezes, provocam frustrações para a mulher, quando também desejaria para si outros horizontes de realização pessoal.
O IBGE cruzou informações dos censos de 1991 e 2000 e detalhou a situação da mulher na população brasileira. Com base neste estudo, ficou evidenciado o aumento em 37% de domicílios chefiados por mulheres; um em cada quatro lares tem uma mulher como chefe. Em conjunto com a liderança feminina nos lares, aumentou a participação delas no orçamento doméstico. Apesar de a entrada da mulher no mercado de trabalho ter significado um grande avanço, os dados deste estudo apontam que elas têm se concentrado em ocupações consideradas extensões da vida doméstica, que geram uma renda mais baixa, cerca de 30% menos do que os homens recebem. Um fator que contribui para isto é o baixo número de anos de estudo das mães.
Paradoxalmente, ela foi também a principal protetora; entretanto, os dados relacionados a idade, anos de estudo, renda familiar e município onde reside apontam um perfil de agressora e protetora marcado pela baixa escolaridade e baixa renda familiar.
Em relação ao papel masculino na gênese da violência, observou-se que a maioria dos pais estava na faixa etária de 36 e 40 anos; apresentava menos de sete anos de estudo e com menor escolaridade que as mães; era o provedor principal da família; e foi menos relacionado como agente agressor da criança.
A violência é um dos maiores legados do nosso passado, está presente em todos os segmentos da sociedade e evidencia-se nas suas variáveis manifestações, visíveis ou encobertas.15 Ela está presente em todas as classes sociais e em todas as culturas, entretanto existe uma maior visibilidade nas classes populares por estas procurarem atendimento em serviços públicos, e com isto passam a ser o maior número de casos registrados. As classes economicamente mais favorecidas encobrem mais a violência; se não procuram as instituições públicas, não há registro de ocorrência, portanto, as situações de violência não são notificadas. A classe social economicamente menos favorecida tem sua violência identificada, bem como os fatores que a determinam (como o estresse, desemprego, baixos salários, entre outros). Devemos estar atentos à desigualdade econômica aguda que leva à exclusão de um grande número de pessoas de seus direitos de cidadania.
O diagnóstico médico da criança em situação de violência mais comum foi o abuso físico, a negligência e o abuso psicológico. A maior prevalência de violência física pode ser explicada pelo modelo cultural que aceita o castigo corporal como instrumento pedagógico, e pela facilidade de se identificar este tipo de violência, já que deixa marcas no corpo da criança. A violência reflete culturalmente as relações entre adultos e crianças que têm como cerne a fabricação da obediência. 16
A negligência deve ser avaliada com cautela, pois na maioria das vezes a condição econômica da família a impossibilita de prover à criança a condição mínima de sobrevivência. A família está inserida em uma realidade política e socioeconômica. No caso brasileiro, especificamente, a família está mergulhada em uma sociedade capitalista extremamente excludente e espoliadora, que pouco se ocupou de forma lúcida da real questão social. Embora se considere que a violência psicológica acompanhe costumeiramente todas as outras formas de abuso, é importante este destaque, pois ele dificilmente é identificado na sua forma isolada pela dificuldade em ser diagnosticado.17
A relação entre a queixa que motivou o atendimento no serviço e o diagnóstico médico aponta uma vertente de análise controvertida. Enquanto as de natureza psicológica foram as que mais se destacaram, em segundo lugar destacam-se as de natureza sociofamiliar e, em último, as causas físicas. No que diz respeito ao diagnóstico, há maior destaque para as causas físicas do que o abuso psicológico, que ocupa o terceiro lugar. Entretanto, a relação entre a queixa principal (natureza psicológica), a definição diagnóstica (abuso físico) e o profissional (psicólogo) que mais recebeu encaminhamento de crianças por outros profissionais aponta a problemática complexa e multifatorial que envolve o reconhecimento da violência na vida da criança e as intervenções para interromper o círculo a que está exposta. Esses achados nos permitem inferir que a mudança do comportamento da criança é uma fonte mobilizadora da família na busca de atendimento no serviço de saúde.
A violência urbana e a violência psicológica (o conflito familiar) foram responsáveis por 12% das violências sofridas pelas crianças em atendimento no Ambulatório da Família. As consequências emocionais para a criança, que vive a experiência da violência, podem determinar eventos pós-traumáticos piores que o efeito imediato da própria violência. Tal como na violência dirigida diretamente a criança, estes tipos de violência ocasionam distúrbios emocionais, cognitivos e comportamentais. 18
Os estudantes de medicina do internato foram responsáveis pela maioria dos encaminhamentos. Por tratar-se de uma instituição de ensino, esses estudantes participam do primeiro atendimento do ambulatório de pediatria, como parte do seu treinamento profissional; consequentemente, são eles os que realizam a maioria dos atendimentos de primeira vez. A equipe de enfermagem, e não apenas a enfermeira, foi responsável por 8% dos encaminhamentos, o que demonstra a sensibilidade da equipe como um todo pela criança em situação de violência. A suspeita e identificação de crianças em situação de violência permanecem como um grande desafio para os profissionais de saúde, pois em muitas situações não existem evidências físicas que permitam confirmar a sua existência, e muitos dos sinais são inespecíficos. Cabe ao profissional ter um olhar crítico e sensível para analisar cada situação, sendo fundamental a abordagem multidisciplinar.
Como o primeiro atendimento é realizado por pessoal clínico (internos de medicina, residentes médicos e médicos) em sua maioria, a marca corporal da violência impressa no corpo (causa física) adquire maior expressão na definição diagnóstica do que a marca comportamental impressa na imaginação da criança (a dor, o sofrimento, a angústia, agressividade etc). Há uma maior valorização dos sinais objetivos da violência em comparação com os sinais subjetivos na determinação do diagnóstico final.
Quanto ao tempo de seguimento ambulatorial, a maioria das crianças estava em atendimento há menos de um ano; um quinto, entre três e quatro anos; e menos de um décimo, entre quatro e cinco anos. Portanto, demonstra a complexidade no atendimento dessas crianças e suas famílias, quando por vezes é necessário o seu acompanhamento por vários anos.
As crianças foram encaminhadas para diferentes profissionais e permaneceram em monitoração do estado de saúde por um período mínimo de um ano e máximo de cinco anos, decorrente da diversidade de agravos (físicos, psicológicos, cognitivos e comportamentais) que elas sofreram. Nesse sentido, suas necessidades de cuidados contínuos, dependência do serviço de saúde e atendimento por vários profissionais as incluem no grupo das crianças com necessidades especiais de saúde7. Porque as crianças vítimas de violência estão expostas a uma diversidade de agravos físicos, psicológicos, cognitivos e comportamentais, dependem de monitoração restrita do serviço de saúde especializado e por diferentes profissionais de saúde, elas pertencem ao grupo de crianças com necessidades especiais de saúde (CRIANES). As CRIANES apresentam limitações no seu estilo de vida e nas suas funções normais para a idade e requerem cuidados contínuos ou temporários do serviço de saúde para manter seu estado de saúde7. Portanto, focalizar essa criança como possuidora de necessidade especial de saúde redireciona a nossa intervenção sobre os tipos de demandas de cuidados, com ênfase sobre os habituais modificados e os de desenvolvimento. A monitoração contínua do modo de vida dessa criança em seu ambiente sociofamiliar é um compromisso da sociedade, por meio das instituições de saúde e seus profissionais, para a proteção dos direitos da criança. Intervir no ciclo da violência sempre que ela reaparecer é atuar sobre as marcas deixadas na formação social da mente.
CONCLUSÃO
As crianças em atendimento no Ambulatório da Família foram incluídas no grupo das CRIANES devido a sua fragilidade clínica e vulnerabilidade social.
A fragilidade foi evidenciada pela necessidade de monitoramento clínico comportamental, cognitivo e psicológico por diferentes membros da equipe de saúde, no serviço ambulatorial especializado em violência contra a criança.
A vulnerabilidade social pôde ser constatada pelo círculo da violência a que a criança está exposta no seu meio familiar e social. Em geral, as pessoas da família assumem o papel social de agressor e de protetor, com destaque para as mulheres, em especial a mãe. Enquanto à mãe cabe o papel social de cuidadora da criança, ao pai cabe o de provedor financeiro. Consequentemente, a mãe, por conviver mais intensamente com a criança, assume simultaneamente o papel de agressora e protetora.
Em geral, protetores e agressores pertencem ao mesmo grupo familiar da criança, portanto, ambos precisam de proteção. Nem sempre a protetora pode contar com uma rede social de proteção próximo ao seu local de moradia, levando-a a buscar um serviço de saúde fora de sua área de adscrição.
As questões de gênero e família se somam às condições de pobreza e baixa escolaridade na matriz social da violência na infância. As mulheres e homens com baixa escolaridade têm poucas oportunidades de acesso a emprego, e quando têm, eles percebem baixa remuneração. Famílias expostas ao sofrimento e estresse formam o círculo da violência, em que a mulher oprimida oprime seu filho recorrendo à violência. Elas frequentemente têm baixa autoestima, vivem isoladas, com estresse devido ao desemprego ou atividades mal remuneradas, vivências inadequadas, divórcios, pobre utilização de recursos da comunidade e passividade excessiva.
As famílias que vivenciam situações de violência não devem ser divididas entre agressores e protetores. Os dados do presente estudo apontaram que, na maioria das vezes, a mesma pessoa que agride é aquela que realiza ações de proteção. Quando o agressor pertence à mesma família do protetor, a criança manterá contato íntimo com ambos, agressor e protetor. Consequentemente, tanto um quanto outro necessita de suporte para enfrentar as situações de violência no seu cotidiano.
Com o propósito de retirar a criança do círculo da violência, a intervenção deve se dirigir à criança, ao protetor e também ao agressor. Quando esta família é devidamente assistida, esta continua sendo a melhor referência para a criança. Devemos ter o entendimento de que a abordagem da dinâmica familiar é essencial para intervir no processo de violência instalado contra a criança, uma vez que permite entender de forma mais global as causas e as consequências do abuso. Diante desta constatação, fica reforçada a premissa de que a família deve ser preservada e tratada como alvo de atenção, sendo na maioria das vezes o melhor ambiente para a criança. Torna-se urgente a implementação de políticas públicas que favoreçam a qualidade de vida das famílias de crianças em situação de violência de modo a interromper o círculo da violência em que elas estão imersas. Uma abordagem de cuidado centrada na família pelos diferentes membros da equipe de saúde precisa articular-se com os demais setores da sociedade com o intuito de promover o bem-estar da criança e o seu desenvolvimento saudável. Medidas de acompanhamento dos efeitos pós-traumáticos da violência na vida da criança precisam ser incluídas na consulta de Enfermagem.
As limitações do estudo estão na investigação do perfil de crianças e seus protetores, considerando o recorte temporal de um ano e a restrição a apenas um cenário de atendimento ambulatorial. Esses dois aspectos também determinaram uma amostra insuficiente para o estabelecimento de generalizações. Portanto, mais estudos precisam ser conduzidos, com amostras mais ampliadas, para conferir maior visibilidade às pessoas que assumem o papel social de protetor da criança vítima de violência.
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Recebido em 07/08/2008
Reapresentado em 01/12/2009
Aprovado em 11/01/2009