Volume 13, Número 2, Abr/Jun - 2009
PESQUISA
O tornar-se cuidadora na senescênciaa
Becoming caregiver in the old age
Conviertendo cuidador en la vejez
Elizabeth BrazI; Suely Itsuko CiosakII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Aluna do Curso de Pós-Graduação - nível Doutorado da Escola de Enfermagem da Universidade São Paulo, área de Concentração Saúde Coletiva. Brasil. E-mail: ebraz1560@terra.com.br,
IIEnfermeira. Professora Livre-Docente do Departamento de Enfermagem e Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade São Paulo. Brasil. E-mail: siciosak@usp.br
RESUMO
Este estudo, desenvolvido no município de Cascavel PR, com senescentes cuidadoras domiciliares de idosos dependentes, teve como objetivo verificar os motivos que as levaram a executarem esse papel. A metodologia utilizada foi a qualitativa, e a Representação Social foi eleita como caminho teórico. Foram critérios de inclusão: sexo feminino; idade superior ou igual a 60 anos; cuidadores domiciliares principais de idosos dependentes por um período igual ou superior a três meses. A coleta de dados deu-se entre novembro de 2006 a janeiro de 2007. A população constituiu-se de 13 senescentes, sendo 46,1% esposas, o que atribuímos a própria representação social construída. A representação social também está relacionada à figura da mulher, geralmente a mais velha da família, viúva ou solteira. Sem recursos e tratados com desigualdade pelo sistema, o idoso cuidador e, nesse caso, a idosa cuidadora senescente tornam-se mais um ponto vulnerável em nossa sociedade.
Palavras-chave: Geriatria. Idoso. Saúde do Idoso.
ABSTRACT
The present study, carried out in the district of Cascavel in the state of Parana, with caregivers in the old age of domicile elderly dependents, in which aimed to verify the reasons that had taken them to perform the role of caregivers in the old age. The qualitative methodology was applied and as for means of theory Social Representation was elected. The criteria included for this study was being female sex, age 60 or superior, domicile caregivers mainly of elderly dependents, for the equivalent or a superior period of three months. Data collection occurred within the months from November, 2006 to January, 2007. The crew was composed by 13 caregivers, whose 46, 1 % were housewives, to which the trully social representation was atributed. Social representation is also related to the figure of a woman, generally being the oldest of the family, widow or single. Out of resources and aids, and treated with inequality by the society, the elderly caregiver and in this case the female elderly caregiver in the old age, becomes another vulnerable point in our society.
Keywords: Geriatry. Elderly. Healthcare in elderly people
RESUMEN
Estudio, desarrollado en la ciudad de Cascavel-PR, con los cuidadoras ancianas domiciliarios de dependientes envejecidos, tenía como el objetivo, verificar las razones para ejecutar este papel. La metodología usada era cualitativa y como camino teórico la representación social. Los criterios de inclusión fueran: sexo femenino, edad igual o superior a los sesenta años, cuidadores principales domiciliarios de dependientes envejecidos, por un período igual o superior los tres meses. La recogida de datos fue hecha desde noviembre de 2006 hasta enero de 2007. La población consistió en 13 envejecido, siendo 46.1% esposas, qué atribuimos la representación social construida. La representación social también está relacionada, a la figura de la mujer, generalmente más vieja de la familia, viuda o soltera. Tratados sin recursos, el cuidador envejecido y en este caso, la cuidadora envejecida, se convierte en más un punto vulnerable en nuestra sociedad.
Palabras clave: Geriatría. Anciano. Salud del anciano.
INTRODUÇÃO
As modificações no perfil da faixa etária, sofridas na estrutura populacional, em decorrência do declínio das taxas de fecundidade e de mortalidade infantil, aliado ao desenvolvimento tecnológico e terapêutico no tratamento de doenças, especialmente as crônicas, têm provocado o aumento proporcional do número de idosos, propiciando o envelhecimento populacional em um curto espaço de tempo1.
A presença ou instalação de processos patológicos em idosos, provocando alterações em seu quadro funcional, podem conduzi-los a situações nas quais o indivíduo, até então totalmente independente, passa à condição de dependência. Este processo, em seu período mais crítico, na maioria das vezes e, por características inerentes do idoso, exige um período de internação hospitalar de duração variável. Entretanto, passada a fase de maior risco, com a melhora ou estabilização do seu estado clínico, é dada a alta hospitalar, retornando-o ao convívio familiar, ainda dependente de terceiros para o atendimento às suas necessidades básicas, seja ela total ou parcial, cujo caráter pode variar de temporário a definitivo. Para Chaimowicz2, questões de perda ou diminuição da capacidade funcional e de autonomia no idoso podem ser mais importantes que a própria questão de morbidade, uma vez que estas estão relacionadas diretamente à qualidade de vida.
O cuidar é definido como "comportamentos e ações que envolvem conhecimento, valores, habilidades e atitudes, empreendidas no sentido de favorecer as potencialidades das pessoas para manter ou melhorar a condição humana no processo de viver e morrer" 3:127.
Segundo Párraga Diaz4, cuidadores são aqueles que se ocupam em suprir as necessidades de autocuidado e atenção a indivíduos portadores de um certo grau de dependência, em um intervalo de tempo que pode variar do diário e contínuo até a um longo período de tempo. O cuidador é quem assume a responsabilidade de cuidar, de dar suporte ou de assistir alguma necessidade de um indivíduo cuidado, objetivando a melhoria de sua saúde. Observa-se, portanto, que o ato de cuidar envolve o comprometimento de alguém para com outro alguém.
O ser cuidador neste estudo é compreendido como sendo aquele que possui a "capacidade e a prioridade de se relacionar com o outro para o alcance da homeostasia e satisfação mútuos", sendo capaz de "transformar, de criar e se utilizar de alternativas, de forças e de sentimentos ocultos diante das várias situações que a vida exige ou impõe" 5:28. Assim, será considerado como ser cuidador o indivíduo que cuida e se sente responsável pelo ser cuidado, ou seja, o idoso acamado.
OBJETIVOS
Conhecer os motivos que levaram as senescentes a se tornarem cuidadoras de idosos dependentes a nível domiciliar.
METODOLOGIA
Para o desenvolvimento da presente pesquisa , optamos pelo caminho da metodologia qualitativa, por entendermos que esta, dentre as existentes, melhor traduz a percepção do significado do cuidar, considerando que não se pode ignorar que existe uma interdependência significativa entre o mundo real e o individual.
De acordo com Minayo6, este tipo de abordagem responde a questões particulares, cujas respostas não são passíveis de quantificação, tendo em vista que é trabalhado um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
A técnica empregada para a obtenção de dados compreendeu a entrevista semiestruturada dos integrantes da amostra do estudo, uma vez que as colocações poderiam favorecer a busca pela compreensão do cotidiano do idoso cuidador, adentrando em sua fala, entendendo sua história, sua vivência, sentimentos e expectativas, que nem sempre são expressos de forma clara.
No presente estudo, a Representação Social (RS) foi eleita como o caminho teórico a ser trilhado, uma vez que, neste, a análise deixa de ser centrada no indivíduo como sujeito individual para se voltar aos fenômenos gerados através das construções particulares das realidades sociais, ou seja, do social enquanto totalidade, envolvendo uma dinâmica diferente de um simples agregado de pessoas.
Na Gerontologia Social, a análise das RS é de grande valia para esta especialidade, uma vez que possibilita, de modo compartilhado, a identificação do pensar e atuar em relação a esse processo, ao caracterizar seus conhecimentos e crenças, em que as características do sujeito e do objeto são manifestas, considerando que esta é sempre a representação de algo e de alguém7.
O presente estudo foi desenvolvido no município de Cascavel PR, localizado na região oeste do estado do Paraná, com os cuidadoras senescentes de idosos em situação de dependência para o atendimento de suas necessidades básicas diárias, atendidos pelo Programa de Saúde da Família (PSF) e pelo Programa de Assistência e Internação Domiciliar (PAID), ambos ligados à Secretaria Municipal de Saúde.
Constituíram-se critérios de inclusão: indivíduos do sexo feminino, com idade superior ou igual a 60 anos; cuidadores domiciliares principais de idosos dependentes por um período igual ou superior a três meses.
Os sujeitos foram selecionados com base em informações obtidas a partir de 15 agentes comunitários de saúde (ACS), integrantes de duas equipes do PSF e de prontuários do PAID. Foi realizado contato telefônico com cada um dos cuidadores para a verificação da faixa etária (critério de inclusão), uma vez que tanto no PSF como no PAID não constava a idade deles. Aqueles que não possuíam telefone foram contatados pessoalmente, por meio de visitas no domicílio.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (Processo nº 587/2006/CEP-EEUSP) e submetido à apreciação da Secretaria Municipal de Saúde do município de Cascavel, para a devida liberação do campo de pesquisa .
A participação deu-se de forma voluntária, após a leitura do termo de Consentimento Livre e Esclarecido para o sujeito do estudo e a solicitação da sua anuência por escrito, incluindo a permissão para a gravação da entrevista.
Para a coleta de dados, utilizou-se um instrumento, com os dados de identificação do ator social e uma questão norteadora sobre como ela havia se tornado cuidadora.
A coleta de dados foi desenvolvida entre os meses de novembro de 2006 a janeiro de 2007, sendo realizadas, em média, três entrevistas por tarde, obedecendo a um agendamento prévio, mediante confirmação telefônica.
O registro das falas foi efetivado por meio da gravação, uma vez que as colocações poderiam favorecer a busca pela compreensão do cotidiano do idoso cuidador. A opção por este recurso se deu por se entender que, não havendo a preocupação por parte do pesquisador no registro imediato dos discursos, ou na memorização destes, seria possibilitada uma maior liberdade de observação das expressões e gestos do entrevistado, que muitas vezes complementavam o discurso, sem os quais poderia incorrer a perda de algum detalhe significativo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dos 111 cuidadores matriculados no PSF e PAC contatados, somente 13 (11,7%) se encontravam dentro dos critérios de inclusão estabelecidos para este estudo. Destes, 6 (46,1 %) eram esposas, 5 (38,5%) filhas, 1 (7,7 %) irmã e 1 (7,7%) sobrinha, sendo a média de idade 76,8 anos.
O papel da mulher como responsável pelo cuidado é visto como natural, uma vez que este está inserido socialmente no papel de mãe. O cuidar, para a mulher, constitui-se em mais um dos papéis assumidos dentro da esfera doméstica, sendo muitas vezes passado de geração a geração.
A escolha de um cuidador principal implica um processo que envolve todo o sistema familiar, movimentando todo o núcleo, culminado por influenciar na decisão de quem vai cuidar.
Dentre os motivos que levaram as senescentes deste estudo a se tornarem cuidadoras, foram identificados o conformismo/resignação, o medo da perda, o compromisso, a compaixão, a imposição familiar e do ser cuidado, além da questão de gênero.
Segundo Nóbrega8:13, conformismo é a "mudança de comportamento de um indivíduo (minoria) em direção às posições adotadas pelo grupo (maioria)". Este autor refere que, no desejo do sujeito em ser aceito socialmente, uma vez afastando-se do senso comum, está fadado a ser privado de recompensas, sofrer punições ou até mesmo ser rejeitado pelo grupo. Destarte, o conformismo passa a ser a saída inevitável para aqueles que se encontram sob dominação de outrem.
Me pediram se eu podia cuidar... se eu podia cuidar.. sim eu cuido... desde que vocês me dêem uma mão... eu cuido... (E1)
Embora o conformismo e resignação sejam sinônimos, o tom empregado em algumas falas determina a intensidade do sentimento experimentado:
Eu tenho que cuidar porque ninguém cuida... nora não cuida, filha não cuida, filho não cuida... somos só nos dois....Então tem que ser só eu mesmo... (E2)
Em se tratando de vida familiar, Néri e Carvalho9:979 afirmam que existe "uma hierarquia de compromisso em relação ao cuidado", e há, nas famílias, uma espécie de determinação velada de tarefas que devem ser desempenhadas por cada um, em determinadas situações.
No cuidado do idoso a nível domiciliar, a sociedade tradicionalmente impõe que este seja realizado por um familiar, com certa influência no senescente, que aceita esta condição e que tampouco é questionada pela família. Assim, na vigência de um agravo à saúde, o cônjuge, por ser o indivíduo mais próximo do doente é quem assume o papel de cuidador. Esta decisão parece obedecer normas de solidariedade entre os membros de uma mesma geração, partindo do pressuposto que participaram de projetos pessoais e familiares, comuns a ambos9.
Cuidando do jeito que a gente fazia, sendo que precisava fazer, fazia e faço com o maior cuidado. Fico meio triste, mas... Sai tudo bem... (E5)
O cuidar do idoso pela filha também é uma norma socialmente construída e aceita:
Ah, eu acho que... eu me sinto na obrigação de cuidar [...] (E4).
Agora por que que... por que que eu não vou cuidar dela? (E7)
Nota-se, em ambos os discursos, um forte sentimento de retribuição, acompanhado por uma passividade, em que não é permitido nenhum questionamento quanto ao fato de ambas terem se tornado cuidadoras.
A ideia de perda desencadeia mecanismos que protegem da dor, da angústia, do medo e do sofrimento causado pela falta do outro, além daquele provocado pela necessidade de enfrentamento do desconhecido. A adaptação dos familiares às situações que envolvem o processo de terminalidade de um doente crônico é semelhante à vivenciada pelos próprios pacientes.
Assim, a negação, o primeiro estágio desse processo, surge em falas de algumas das entrevistadas.
Ah, pra mim é bom. Pra mim é bom porque enquanto eu tô cuidando dela eu sei que eu tenho ela aqui nesse mundo. Porque o dia que ela partir desse mundo pra outro, quem vai ficar na saudade sou eu. E quando eu ver que ela partiu, fica a saudade pra mim (E7).
A responsabilidade chamada para si pela cuidadora E7 em relação à sobrevida do idoso denota uma negação do morrer e do seu despreparo quanto à finitude do outro. Observa-se, também, um apego excessivo associado ao medo da perda, gerando um sentimento de impotência.
Apegar-se, segundo Houaiss, Villar e Mello Franco10, é agarrar-se, grudar-se, pôr-se sob proteção de alguém ou de alguma coisa. No discurso acima, percebe-se que o medo da perda e do sentimento gerado por ela provoca, na cuidadora, um apego excessivo ao dependente.
Compromisso, assim como a responsabilidade, retrata uma obrigação assumida10, que é mais arraigada e observada na geração da população em análise:
[ ] é compromisso...pra mim é compromisso...porque se eu não cuido... (E1)
O compromisso, percebido como a obrigação assumida e anunciada pelos cônjuges, parece estar ligada ao pacto feito por ocasião do matrimônio. Tendo em vista a faixa etária destes atores sociais e os costumes da época, esse compromisso firmado era entendido como sendo para toda uma vida, e o ato de cuidar passa a ser visto como uma consequência normal, intrínseca ao próprio matrimônio.
Acho que é obrigação de esposa. Porque eu acho que também a hora que ele tá doente tu não deixa ele aí, né? [....] e somos só nós dois. Se eu não fizer quem que vai fazer? (E10)
O ato de cuidar é mútuo entre cônjuges e remonta do acordo feito por ocasião do casamento, no qual são identificados contratos, promessas e marcas de uma época em que a maioria dos casais se manteriam juntos até a morte.
A figura socialmente imposta e aceita da obrigatoriedade, de retribuição pelo cuidado recebido como filha, surge nas falas de algumas cuidadoras:
Agora têm que cuidar os filhos..... (E7)
Em se tratando do cuidar desempenhado pelas filhas, o propulsor é o dever moral da responsabilidade filial, baseada na reverência, débito de gratidão ou reciprocidade, amizade e amor9.
Ah....porque ela me ajudou muito, também, quando ela tava bem...ela sempre ficou do meu lado.... E4)
A ideia da obrigação de filhos cuidarem de seus pais é também baseada na crença do bom relacionamento entre as gerações.
Para Boff11:126, "com-paixão, como a filologia latina da palavra o sugere, é a capacidade de compartilhar a paixão do outro e com o outro". Discursos, nos quais a aceitação do papel de cuidador parece inevitável, surgem expressos motivados pela compaixão.
[...] a gente sempre levou uma vida humilde, mas eu sempre disse: enquanto eu tiver feijão e farinha, a minha mãe vai comer comigo, né? Isso aí é uma coisa assim... que eu não meço, como eu vou dizer, me esforço também, enquanto eu puder, eu vou fazer... (E4)
Faze o que? Não entende? Eu vou e faço, porque eu sei o que custa à pessoa... (E7)
No processo da vida, os laços de afetividade desenvolvidos, além dos de consanguinidade existentes, determinam atitudes racionais, movidas pela compaixão. Assim, mesmo enfrentando situações desconfortáveis, ou até mesmo adversas, os indivíduos procuram apoiar seus próximos, mesmo que em detrimento de sua qualidade de vida.
Quanto ao idoso, é na família que ele tem o seu mais efetivo meio de sustentação e pertencimento, e onde o apoio efetivo e de saúde faz-se necessário e pertinente.
Assim, é na esfera familiar que recai a busca inicial para a figura de um cuidador, e, nesta procura, seus membros lançam mão de diferentes recursos, os quais, algumas vezes de forma impositiva e outras de forma velada, são pedidos e aceitos pelo idoso como algo inevitável:
Ela veio do hospital direto pra aqui [...] O meu cunhado pediu.. se eu podia cuidar [...] porque ele foi lá. E eu falei: ó compadre, quando ela receber alta me avise... porque daí a gente vai ver... eu não me ofereci...eles pediram [...] (E1).
Eu me tornei cuidadora porque ele precisava de mim. Não tinha quem cuidasse. As filhas todas trabalham, então eu que tive que cuidar. (E10).
Outra forma de escolha é quando os integrantes do próprio núcleo indicam um membro da família como sendo aquele de maior aptidão para esta tarefa, ainda que este não esteja preparado e disponível:
[...] os parentes vieram. Aqueles lá que não acharam jeito para cuidar dela. Mas passou [...] passou tudo. Eu não guardei mágoa de ninguém.(E14)
Neste mesmo discurso, observa-se um sentimento de mágoa velada relacionado à "sua escolha" como cuidador, que, embora referido como ultrapassado, ainda parece existir; ou seja, a ela coube esta função em decorrência da "falta de jeito" dos demais familiares quanto à prestação de cuidados (grifo nosso).
Há situações em que a tarefa de cuidador é assumida como consequência de um arranjo familiar anterior, como observado a seguir.
Pela convivência...sim, eu acho que sim, é, também, que já vem de longa data.(E4)
É por causa que ele morava comigo (E 15)
Nestas falas, pode-se notar que não houve uma consulta prévia quanto à manutenção da situação até então vivenciada pelo ator social e, tampouco, uma outra opção de escolha.
A escolha do cuidador principal muitas vezes não parte dos familiares ou mesmo de sua própria vontade, mas especialmente por parte do idoso objeto do cuidar.
[...] uma que ela só quer eu [...] (E4).
Cuidadora? Ela nunca quis os outros, aí eu me sinto assim, eu vejo, ela nunca quis outra... ela nunca quis os outros... [...] (E7)
Estas falas vêm corroborar a afirmação de Floriani e Schramm12 sobre cuidadores, quando referem que a escolha não acontece ao acaso e que a opção nem sempre é dada a eles, sendo que, muitas vezes, esta é a expressão de um desejo de um paciente.
Portanto, fatores como proximidade, laços afetivos e convivência diária são considerados primordiais pelo ser cuidado, na escolha do seu cuidador.
A questão ligada ao sexo do ser cuidador (o familiar eleito geralmente é a esposa ou filha mais velha) sugere que, intrínseca, a questão do cuidar é relacionada, também, à questão de gênero, refletindo a determinação cultural dos papéis apropriados ao sexo, pelos quais "a função social e as relações de poder no interior da família atribuem à mulher o lugar de subordinação e aos homens o da autoridade e dominação" 13:74;
Porque sou a única filha (E11)
Ah, foi assim, porque ela não tinha quem cuidar. E eu a única filha. Eu, única filha, assumi de cuidar (E14)
Neste sentido, o depoimento a seguir deixa transparecer o poder cultural sobre as diferentes gerações de mulheres de uma mesma família, em relação ao tornar-se cuidador:
[...] muita coisa passou por nós... e isso também passei paras minhas filhas, também... até as meninas [...] é sempre assim é que vai para frente. (E4)
Observa-se ainda, nesta fala, a preocupação em afirmar que a ideia de ajuda mútua entre os membros da família foi passada aos filhos. Este aspecto é destacado por Domingos Sobrinho14 quando referem que as representações sociais são vivenciadas e transmitidas de uma geração a outra, sendo impostas de forma não consciente.
Para Karsch15:863, o cuidado domiciliar do idoso é uma prática que deve ser estimulada e preservada; porém, a tarefa do cuidar de um idoso dependente, diuturnamente e sem pausa, não é "tarefa para uma mulher sozinha, geralmente com mais de 50 anos, sem apoio e nem serviços que possam atender às suas necessidades e sem uma política de proteção para o desempenho desse papel".
Neste sentido, o papel socialmente construído para a mulher a partir de seu enquadramento na família e no ambiente doméstico é baseado na justificativa de que "é assim que deve ser" (grifo nosso), podendo significar ônus, além de senso de competência para o enfrentamento dos desafios da vida familiar.
Oliveira et al.16:187 comentam que não é somente em nosso país que as mulheres são consideradas grandes cuidadoras de idosos dependentes, pois "salvo por questões culturais muito específicas, a mulher é cuidadora tradicional".
Assim, o aumento de idosos decorrente do envelhecimento populacional, adicionado a mudanças do padrão de morbidade, faz com que aumente a possibilidade de que, nas famílias e dentro delas, as mulheres de diferentes faixas etárias, mas mais especificamente as idosas e as de meia-idade, passem a se dedicar ao cuidado do senescente a nível domiciliar. A estas mulheres caberá o cuidado de pais, maridos, sogros, ou até mesmo de outros parentes, exercendo, com isso, inúmeros papéis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel da mulher como responsável pelo cuidado é visto como natural, uma vez que este está inserido socialmente no papel de mãe. O cuidar, para a mulher, acaba se constituindo em mais um dos papéis assumidos dentro da esfera doméstica, muitas vezes passado de geração em geração, como um ritual.
Nas famílias, existe uma forma velada de definição de tarefas, que devem ser executadas por cada um dos seus membros em determinadas situações, de forma que quem já exerceu o papel de cuidador muito provavelmente deverá repeti-la em outro momento, sugerindo que o cuidar é também função de variáveis culturais9, além de socialmente construídas.
Espera-se que o cuidador idoso assuma uma postura de "quieto em seu canto", no momento de sua "opção" em assumir o cuidar, seja ele esposa, marido ou filho (a), posição esta que assume de maneira passiva (grifo nosso). Em nenhum dos discursos foi referida revolta ou algum sentimento negativo em relação ao fato de ter sido eleita cuidadora, o que acreditamos ter sido em decorrência da própria representação social construída, uma vez que a figura do cuidador é ligada à imagem de uma mulher, geralmente a mais velha da família, viúva ou solteira.
Considerando que, numa sociedade "onde tudo é possível, que abre mão da intersubjetividade como critério fundamental da vida humana e propõe a solidão disfarçada" (...) "como alternativa aos ecos do autoritarismo" 17:82, há necessidade da construção de saberes sociais sobre esse estrato da população, visto que este se encontra em franca ascensão.
O cuidar de um paciente idoso a nível domiciliar requer, dentre outras coisas, respeito, afetividade, entendimento sobre o envelhecimento e organização de tarefas diárias que envolvem o cuidador e o idoso.
Para melhorar a situação dos idosos, intervenções a favor do cuidador familiar devem ser priorizadas, visando fortalecer essa relação de cuidado, uma vez que o cuidador senescente é um indivíduo com necessidades próprias e particulares de atenção à saúde. Desta forma, faz-se necessário ampliar as ações visando o cuidador, de modo a possibilitar o benefício de ambos: ser cuidador e ser cuidado18.
No presente estudo, as representações sociais evidenciaram a subjetividade da mulher idosa cuidadora do senil dependente a nível domiciliar, interpretando os diferentes motivos que a levaram a vivenciar tal papel.
Nossas considerações finais remetem à articulação entre os seres sociais e o processo social que constrói as representações, principalmente para a enfermagem que acompanha este processo nos PSF e PAID, podendo nortear as estratégias a eles direcionadas, uma vez que, atualmente, a maior preocupação é voltada ao idoso dependente em detrimento de seu cuidador, também idoso, situação essa cada vez mais frequente em nossa sociedade.
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Nota
a Extraído do Projeto de pesquisa apresentado à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, por ocasião do exame de qualificação ao nível de doutorado da Pós-Graduação na área de concentração Saúde Coletiva.
Recebido em 13/03/2008
Reapresentado em 20/01/2009
Aprovado em 11/09/2008