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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 6

INTRODUÇÃO

A família, como a unidade básica da sociedade, tem sido o principal foco de interesse da enfermagem para o diagnóstico, planejamento e cuidado à criança. O significado que a família dá para o bem-estar e saúde de seus membros, assim como a influência que exerce na tomada de decisões e na forma de compartilhar idéias, quando ocorre uma doença, fazem com que as enfermeiras considerem o cuidado centrado na família parte integrante da prática de enfermagem (WRIGHT & LEAHEY, 2000). Outras razões são apresentadas como relevantes para que a família seja eleita como o foco central do cuidado (FRIEDMAN, 1998a):

• a família é um importante recurso para prestar cuidado de saúde;

• na unidade familiar, qualquer disfunção que afeta um ou mais membros familiares pode, e freqüentemente irá, afetar em algum aspecto outros membros, bem como toda a família;

• há uma grande relação entre a família e a situação de saúde de seus membros; o papel da família é de extrema relevância para o cuidado de saúde de seus membros, desde as estratégias preventivas até os processos de reabilitação;

• a estratégia do caso índice representa uma boa razão para prestar o cuidado centrado na família, ou seja, a enfermeira freqüentemente parte da necessidade de um membro da família para alcançar outros familiares;

• a compreensão do comportamento ou necessidades de um indivíduo pode claramente ser alcançada, quando o contexto familiar é trazido para o processo de análise da situação;

• como a família representa um importante suporte para os indivíduos, ela deve ser avaliada e incluída no plano de cuidado de cada um desses indivíduos.

Na interação dos indivíduos na esfera familiar, o estado de saúde e doença de cada um de seus membros afeta e é afetado pela família. A doença de uma criança, por exemplo, afeta toda a família e as interações de seus membros. Reciprocamente, a família afeta o curso da doença e a situação de saúde da criança. De algum modo, a família tende a se envolver nos processos de tomada de decisão e na terapêutica quando a doença afeta um de seus membros. Tornar-se paciente e receber cuidados de saúde engloba uma série de eventos que compreendem a interação de várias pessoas, incluindo a família, amigos e os profissionais de saúde. Além disso, o papel que a família assume neste processo pode variar, de acordo com o tipo de problema de saúde e grau de envolvimento dos familiares (FRIEDMAN, 1998a).

A família está entre os objetos de estudo mais complexos, por suas características, ainda que bastante explorada por várias vertentes do conhecimento (GANONG, 1995). Conhecer a estrutura da família, sua composição, funções, papéis, como os membros se organizam e interagem entre si e com o ambiente é vital para a compreensão das relações de seus membros.Os membros da família podem, ainda, auxiliar na escolha de outras fontes de informação que muito contribuem para o planejamento do cuidado. Além disso, é preciso adotar um conceito de família que permita englobar o maior número possível de variações encontradas na prática (ROCHA; NASCIMENTO & MILA, 2002).

Uma definição de família, que situa a criança em relação aos demais membros familiares e nos parece adequada para a enfermagem pediátrica é: "famílias são relacionamentos em que pessoas vivem juntas, comprometidas, formam uma unidade econômica, cuidam dos mais jovens, se identificam entre si e no grupo a que pertencem" (KENDALL, 1998, p.401).

O cuidado direcionado aos indivíduos em suas famílias sempre esteve presente na enfermagem, mas na atualidade, tem recebido atenção especial. De certa forma, o cuidado centrado na família em determinas áreas, como em maternidades e clínicas pediátricas, constitui-se em tarefa relativamente mais próxima do nosso entendimento e operacionalização. Nestes locais, geralmente há a presença de mais de um membro da família e qualquer envolvimento de um familiar no processo de avaliação (assessment), diagnóstico, planejamento, implementação e avaliação do cuidado tem sido descrito como cuidado centrado na família, já que ela foi considerada como um contexto necessário para o cuidado do indivíduo (GILLISS, 1989).

A família como unidade de cuidado

A partir da década de 80, com o reconhecimento oficial da família como unidade do cuidado da enfermagem, pela Associação Americana de Enfermagem, um outro nível de compreensão do envolvimento da família no cuidado se fez necessário. Desde então, principalmente nos EUA e Canadá, observa-se um grande avanço nas questões que envolvem a família e nas determinações das funções da família e indivíduos no processo saúde-doença, além da implementação de intervenções de enfermagem que promovam a saúde do sistema familiar e de seus membros (op cit.).

Mais recentemente, na realidade brasileira, vimos observando um fenômeno que tem sido chamado de "desospitalização", o qual tem contribuído com a expansão da prática de enfermagem centrada na família. Este fenômeno consiste na redução dos períodos de tratamento hospitalar devido ao encarecimento desta prática, com transferência precoce para o domicílio, casas de apoio, serviços ambulatoriais e a seqüência do tratamento através do seguimento (follow up). Agregado a este fenômeno, a implementação de novos procedimentos técnico-científicos na assistência à criança e adolescente trouxe o desafio, para a enfermagem e para toda a equipe, de incluir a família na assistência e no processo diagnóstico/terapêutico. Para tanto, vêm se desenvolvendo estudos teóricos e empíricos sobre abordagens à criança e à família.

Em paralelo às transformações científicas e tecnológicas, a assistência de enfermagem transitou da centralização em técnicas e procedimentos para a construção de referenciais teóricos. Dentre estes referenciais, destacamos aqueles que procuram apreender a família como um sistema.

Na atualidade, há evidências de que a família tem sido objeto de preocupação da enfermagem, pelo crescente número de publicações sobre a temática, aumento dos estudos empíricos que enfocam a família e de eventos científicos cujo foco central também é a família.

O envolvimento das famílias no cuidado pode ser verificado através do grande número de termos que surgiram nas diversas áreas de conhecimento, com a finalidade de identificar a participação da família neste processo. Alguns destes termos são: cuidado centrado na família, cuidado focalizado na família, entrevista com família, enfermagem de promoção da saúde familiar, enfermagem de cuidados de saúde familiar, enfermagem das famílias, enfermagem do sistema familiar e enfermagem da família (WRIGHT & LEAHEY, 2000; FRIEDMAN, 1998b). No nosso meio, identificam-se várias concepções sobre saúde e família e várias abordagens que diferenciam medicina da família, enfermagem da família, programa de saúde da família e estratégias para a saúde da família.

Ao longo da história da enfermagem, a família sempre teve um papel ativo no processo de cuidado de seus membros, embora nem sempre esta participação tenha sido uniforme e gerasse um nome específico que designasse esta atuação. (WRIGHT & LEAHEY, 2000). Já o interesse em pesquisas envolvendo a enfermagem da família é um fenômeno bem mais recente, com aumento significativo desde a década de 1980, de estudos enfocando os principais aspectos metodológicos no desenvolvimento de investigações com famílias (GANONG, 1995; ASTEDT-KURKKI, PAAVILAINEN & LEHTI, 2001; HAYES, 1997; ROBINSON, 1995; GILGUN, 1992; GILLISS, 1991; UPHOLD & STRICKLAND, 1989; GILLISS, 1983).

Compreender estas diferentes configurações da família não prepara as enfermeiras para trabalhar com ela. É desejável que se aproximem de abordagens das ciências humanas e conhecimentos sobre teorias referentes a terapias familiares. Esta necessidade desencadeou três tendências na enfermagem: um aumento de conteúdo nas disciplinas sobre família nos meios acadêmicos, aumento nas pesquisas sobre família e a ampliação da prática clínica, tomando a família como objeto de cuidado (ROCHA; NASCIMENTO & LIMA, 2002).

Embora seja considerável a produção científica sobre o envolvimento da família no cuidado, ainda permanecem lacunas sobre teorias que tratam da enfermagem da família explicitamente (HARTRICK, 1995) e sobre a relação entre teoria, pesquisa e a prática clínica (WRIGHT & LEAHEY, 2000). Como conseqüência, a enfermagem tem se empenhado para desenvolver uma base teórica que sustente a prática da enfermagem da família (HARTRICK, 1995). Esta preocupação tem levado as enfermeiras a tomarem perspectivas teóricas de outras disciplinas para apoiar sua prática, como a Teoria Geral de Sistemas de Bertalanffy (FRIEDEMANN, 1989). A conceituação da família como um sistema tem sido útil para considerar a família como uma unidade e por encorajar um enfoque de interação entre os membros familiares (HARTRICK, 1995).

À medida que as enfermeiras passam a teorizar sobre famílias e a envolvê-las no cuidado, elas modificam os padrões usuais pelos quais exercem a prática clínica. Uma das possibilidades para se determinar se esta prática está sendo alterada é avaliar como as enfermeiras estão envolvendo as famílias no cuidado à SAÚDE (WRIGHT & LEAHEY, 1990).

A prática de enfermagem da família pode ser definida como o cuidado prestado às famílias e seus membros, em situações de saúde ou doença, através do processo de enfermagem, em qualquer local de saúde ou ambiente onde a família possa estar sendo atendida (FRIEDMAN, 1998b). As famílias e seus membros podem estar saudáveis ou experienciando problemas de saúde..

A enfermagem da família deve ser orientada para a saúde, através das perspectivas holística, sistêmica e interacional tendo em vista o fortalecimento das famílias (WRIGHT & LEAHEY, 2000; FRIEDEMANN, 1995). Requer, ainda, a fundamentação teórica para guiar a prática clínica, que sustente o pensar de forma sistêmica e interacional, mudando o paradigma da abordagem individual para a familiar (Hanson; Kaakinen & Friedman, 1998).

A revisão da literatura realizada por Friedman (1998b) revela que, na definição de enfermagem da família, estão embutidos quatro níveis da prática da enfermagem da família. O grau de centralização do cuidado na família, depende de como a enfermeira concebe e implementa intervenções junto à família, porém, cada um destes quatro níveis compõe a enfermagem da família.

Em um primeiro nível, a enfermagem da família é conceitualizada tomando-se a família como contexto para o cliente ou membro da família. O cuidado de enfermagem é focalizado no indivíduo, ou seja, a principal atenção é dada ao indivíduo e a família situa-se como fundo. A prática da enfermeira é centrada na experiência do indivíduo com uma determinada doença, inserido na sua família. Nesta perspectiva, a entrevista com uma criança com câncer seria direcionada à compreensão do significado da sua doença, qual o significado da sua família para ela ou como ela se percebe dentro da família. A enfermeira poderá ampliar sua compreensão da doença da criança buscando informações através da mãe, sobre o que ela sabe em relação à patologia da criança. Neste último caso, apesar das informações terem sido fornecidas por um membro da família, o enfoque maior continua sendo a criança doente.

No segundo nível de prática da enfermagem da família, a família é vista como a soma de seus membros. O principal foco de intervenção é cada um dos membros da família e eles são vistos individualmente, ao invés de unidades em interação. Esta é a abordagem implícita na maior parte da prática do cuidado primário familiar e enfermagem em saúde comunitária, na qual o cuidado é disponibilizado ou oferecido a todos os membros da família e, desta forma, entende-se que foi prestado o cuidado de saúde à família (FRIEDMAN, 1998b). Segundo a autora, não existe nenhum modelo explícito de prática da enfermagem da família neste nível.

No terceiro tipo de prática da enfermagem da família, a avaliação (assessment) e intervenção são direcionadas para o subsistema familiar, ou seja, os subsistemas familiares são os que recebem a avaliação e intervenção de enfermagem. As unidades de análise e cuidado são constituídas pelas duplas, trios e outros subsistemas familiares. As relações entre uma criança e sua mãe e entre marido e mulher são exemplos de subsistemas para a atuação da enfermagem.

Na abordagem que considera a família como cliente - quarto nível de prática de enfermagem da família - a avaliação (assessment) e cuidado são focalizados para toda família. A família é vista como um sistema em interação. O interesse está na dinâmica familiar interna, na estrutura e funções da família, assim como na relação dos subsistemas familiares com o todo e da família com seu ambiente EXTERNO (FRIEDMAN, 1998b). Para a autora, é nesta concepção que a real contribuição da enfermagem da família é evidente.

A enfermagem dos sistemas familiares

Outra abordagem da enfermagem da família cuja fundamentação tem se expandido amplamente por vários países, inclusive em nosso meio, é a enfermagem dos sistemas familiares, proposta por Lorraine M. Wright e Maureen Leahey, ambas da Universidade de Calgary, Calgary, Alberta, Canadá (WRIGHT & LEAHEY, 2000). A primeira obra das autoras, publicada em 1984, atinge a terceira edição em 2000 e, atualmente, reafirma a globalização da enfermagem da família; foi traduzida para o português no corrente ano (WRIGHT & LEAHEY, 2002).

A enfermagem dos sistemas familiares (WRIGHT & LEAHEY, 2000) concentra-se nas relações e reciprocidade das ações, e não em elementos isolados. Representa a Integração da enfermagem, teoria dos sistemas, cibernética, teoria da comunicação, teoria da mudança e teorias de terapia familiar. Enfatiza a família como unidade do cuidado e concentra-se, simultaneamente, no sistema familiar e nos sistemas individuais (WRIGHT & LEAHEY, 2000). A abordagem da enfermagem da família não desconsidera toda sistematização do cuidado já construída para a intervenção de enfermagem. Portanto, ela deve ser considerada no processo de enfermagem, também conhecido como metodologia de assistência (ROCHA, NASCIMENTO & LIMA, 2002). Neste sentido, destacamos a contribuição do Modelo Calgary de Avaliação da Família (MCAF) e do Modelo Calgary de Intervenção na Família (MCIF), que na prática de enfermagem junto às famílias possibilita a realização de dois passos do processo de enfermagem: a avaliação (assessment) e a intervenção de enfermagem.

A prática da enfermagem da família fundamentada no referencial sistêmico tem recebido amplo reconhecimento, talvez pelas avaliações positivas que o MCAF e o MCIF têm possibilitado mundialmente, auxiliando enfermeiras nos processos de avaliação (assessment) e intervenção na prática da enfermagem da família. Eles têm sido freqüentemente citados na literatura especializada, como no Journal of Family Nursing e adotados por muitas faculdades e escolas de enfermagem na Austrália, Grã-Bretanha, América do Norte, Japão, Finlândia, Suécia, Coréia, Taiwan e Brasil (WRIGHT & LEAHEY, 2000).

A diversidade de vertentes apresentadas sobre como a família pode ser envolvida no cuidado de saúde e, em especial, as várias concepções da enfermagem da família, reafirma a evolução e busca da enfermagem para a construção do conhecimento que embase a prática do cuidado centrado na família. Não resta dúvida que a articulação entre o desenvolvimento de pesquisas com famílias, a prática clínica e o referencial teórico que fundamente esta prática deva sustentar a continuidade da produção do conhecimento da emergente especialidade da enfermagem da família.

A contribuição da produção científica

Apesar da crescente contribuição da produção científica sobre enfermagem da família nos últimos tempos, permanece uma lacuna entre o referencial teórico, pesquisa e prática clínica. Algumas variáveis contribuem para este quadro, dentre elas, a dificuldade da enfermeira em conceber o processo saúde-doença como um processo de interação e reciprocidade (WRIGHT & LEAHEY, 2000) e a ausência de linguagem comum que possibilite diálogo crítico entre enfermeiras clínicas e pesquisadoras, clareando sobre o que as enfermeiras realmente realizam em termos de pesquisa, teoria e prática com famílias (ROBINSON, 1995).

O estudo de Nascimento, Hayes & Rocha (2002) ilustra as contribuições e desafios que pesquisas produzidas nos últimos cinco anos, no campo da enfermagem pediátrica oncológica, apresentam para a produção do conhecimento nesta área. A literatura demonstrou progresso na enfermagem e em outras ciências, rumo a produção do conhecimento voltado para as famílias e para as relações entre seus membros. Porém, obstáculos metodológicos têm sido importantes barreiras no desenvolvimento de pesquisas com famílias e na ampliação do conhecimento nesta área. Dos estudos revisados, a maioria era de natureza qualitativa e a Teoria Fundamentada em Dados e a Etnografia foram métodos utilizados pelos pesquisadores que permitiram explorar profundamente as ações e interações dos participantes.

A revisão dos estudos revelou que a maior parte da produção do conhecimento nesta área de interesse é relacionada à família, embora alguns tenham o propósito de produzir resultados e conclusões extensivos à família (NASCIMENTO, HAYES & ROCHA, 2002). O propósito da pesquisa com famílias é obter maior compreensão sobre as mesmas, enquanto que pesquisas relacionadas com famílias têm o propósito de fornecer informações sobre seus membros (FEETHAM, 1984). Estudos que possuem somente indivíduos como informantes são importantes para o entendimento de alguns aspectos da família, porém não podem fornecer uma real compreensão do que se passa na dinâmica da família como um todo (NASCIMENTO, HAYES & ROCHA, 2002).

Nos dias atuais, a implementação do cuidado à criança centrado na família representa o resgate da família na participação dos cuidados de saúde da criança/adolescente. À medida que as enfermeiras envolvem as famílias neste processo, elas vão ganhando confiança e habilidades em seu trabalho e, como conseqüência, os registros de suas experiências irão subsidiar outras intervenções junto à criança e sua família.

A articulação entre prática clínica, pesquisa e referencial que fundamenta a maneira como as enfermeiras conceitualizam as famílias são imprescindíveis para o avanço do conhecimento na área da enfermagem da família. O cuidado à criança e sua família, independente da abordagem adotada, requer embasamento em um conhecimento específico da enfermagem, construído através de pesquisas que possam realmente subsidiar a prática.

No Brasil, a estratégia governamental conhecida como Programa Saúde da Família abre uma possibilidade de extensão das práticas em saúde para a família, ampliando o foco tradicional de assistência individual. Contudo, esta estratégia, por ora, restringe-se às ações básicas. Necessariamente, não inclui o referencial teórico da enfermagem para sua atuação, embora fosse desejável que todas as enfermeiras tivessem formação para aplicá-lo.

Na academia temos grupos de estudo em enfermagem produzindo conhecimento sobre assistência de enfermagem em abordagens à família, trazendo conhecimentos para a prática de enfermagem.

Contudo, ainda teremos pela frente um longo trabalho de investigações, formação de recursos humanos em diferentes níveis (auxiliar, técnico e superior), e de vivências nos diferentes serviços, de implementação de técnicas, instrumentos e inovações para introdução da enfermagem da família na assistência.

 

REFERÊNCIAS

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