Volume 6
INTRODUÇÃO
Para iniciar, faz-se necessário destacar que as conceituações acerca da tecnologia decorrem de diferentes vertentes do pensamento permeadas pela polêmica inerente aos interesses histórico-sociais, políticos e econômicos de épocas distintas.
As palavras técnica e tecnologia, muitas vezes, não são diferenciadas claramente e podem ser entendidas de diversas maneiras. A técnica é uma habilidade humana de fabricar, construir e utilizar instrumentos, enquanto a tecnologia é uma ciência aplicada, com o sentido de técnica em geral (NIETSCHE, DIAS & LEOPARDI, 1999).
Quanto à tecnologia, existem inúmeros conceitos e definições na literatura especializada. Fleury apud Castellano (1996, p.10) ressalta como: "um pacote de informações organizadas, de diferentes tipos (científicas, empíricas...), provenientes de várias fontes (descobertas científicas, patentes, livros, manuais, desenhos, entre outras), obtidas através de diferentes métodos (pesquisa, desenvolvimento, cópia, espionagem) utilizado na produção de bens e serviços".
A tecnologia pode influenciar e modificar nosso modo de vida e determinar influências em diversos campos, tais como o social, o econômico e o ambiental. Para o autor "a tecnologia é compatível com a ciência e controlável pelo método científico, e é empregada para controlar, transformar ou criar coisas ou processos naturais ou sociais". Neste contexto, a tecnologia é capaz de determinar o estilo de vida de toda a sociedade, e em situações extremas, transformar o próprio homem em um objeto de controle da tecnologia (Resenblueth apud SANCHO, 1998, p.31).
Em relação a evolução do próprio conceito da tecnologia. Na Grécia antiga, os termos téchne (arte, destreza) e logos (palavra, fala) estavam relacionados no sentido de arte. No entanto, como ressalta Sancho (op. cit. p.28) "a téchne não era uma habilidade qualquer, mas aquela que seguia certas regras, pelo que também o termo tem sido usado como ofício. Em geral, a téchne acarreta a aplicação de uma série de regras por meio das quais se chega a conseguir algo".
A autora prossegue afirmando que a primeira abordagem do concerto da téchne foi encontrada em Heródoto que a conceituou como "um saber de forma eficaz".
Com Aristóteles, o conceito evolui. Para ele, a téchne é superior à experiência, mas inferior ao raciocínio puro. Sendo assim, a tecnologia, como conceito avança para um fazer que envolve o logos (raciocínio). A téchne ainda pode ser diferenciada da epistéme, enquanto a primeira representa um conhecimento prático que almeja a um fim concreto, a outra é um conhecimento teórico (op. cit, p.29).
No final da idade antiga, a tecnologia é considerada ciência regida por normas da arte.
Na idade moderna, o conceito de técnica começa a assumir o sentido que possui na atualidade. Francis Bacon (1561-1626), filósofo naturalista, é considerado o precursor da compreensão do conceito de técnica. Ele entendia a ciência e a tecnologia como instrumento para entender e dominar a natureza (EBERSOLE, 1995; SANCHO, op. cit.).
Bacon em sua obra New Atlantis, datada em 1627, constitui a primeira utopia na qual invenções são profetizadas. Nela, o autor descreve que o avanço da cidade devia-se a avanços técnicos e não ao refinamento sócio-político.
Outros contemporâneos de Bacon como René Descartes (1596-1650), G. W. Leibniz (1646-1716) e Blaise Pascal (1623-1662), na qual a tecnologia e a ciência apresentavam-se como instrumentos para entendimento e domínio do mundo. E ainda na idade moderna que a fusão entre ciência e técnica determina a origem de um novo espaço de conhecimento, o da tecnologia como uma técnica que emprega conhecimentos e que, por sua vez, fundamenta a ciência que lhe dá uma aplicação prática (SANCHO, op.cit., p.29).
Até a metade do século XVIII, a tecnologia era definida nos dicionários, como a "ciência das expressões artísticas ou terminus technicis". Em 1777, Johan Beckmann, em sua obra Instrução sobre Tecnologia, apresenta um conceito mais avançado, declarando que "a tecnologia é a que explica todos os trabalhos de maneira completa, clara e ordenada, assim como suas conseqüências e fundamentos".
A primeira revolução técnico-científica ocorreu no final do século XVIII e no início do século XIX, quando a energia das máquinas substituiu a força física do homem.
Nesta época, a tecnologia é uma atividade que utiliza teorias, métodos e processos científicos para a solução de problemas técnicos relacionados com fabricação de produtos industriais, organização do trabalho, entre outros (Schaff apud SANCHO, 1998).
No setor saúde, a influência da tecnologia torna-se evidente através da utilização de instrumentos para a cirurgia, bandagens, infusões, e no caso dos cuidados aos prematuros, os primeiros inventos estão relacionados as incubadoras ainda bem rudimentares.
No século XX, os termos técnica, e tecnologia assumem diversos significados. Particularmente, na visão de Ellul apud Ebersole (op.cit), a técnica é definida como a totalidade de métodos racionalmente organizados para se ter absoluta eficiência em cada campo da atividade humana.
O avanço tecnológico no contexto mundial teve grande impulso, principalmente, após a 2ª guerra mundial (1942-1945) ganhando dimensões significativas no Brasil. A crescente industrialização no pós-guerra possibilitou avanços em determinadas áreas, como a saúde, além da importação e utilização em grande escala de equipamentos, em destaque, as incubadoras e os respiradores.
As diferentes definições de tecnologia apontam, principalmente, para dois enfoques opostos entre si. O primeiro de natureza otimista e instrumental e o segundo substantivo e pessimista (FEENBERG, 1996).
A primeira corrente, denominada de teoria instrumental, predominou nos anos 50 e 60 esteve baseada na positividade do progresso da ciência e da tecnologia (DELUIZ, 1995, p.29). Os que advogam em favor desta corrente preferem encarar a tecnologia sob o ponto de vista instrumental, isto é, a tecnologia é representada por um conjunto de instrumentos que estão prontos a servir aos propósitos do uso humano (FEENBERG, 1996).
Na visão instrumental, a tecnologia é encarada como um instrumento ideológico, social e politicamente neutro, não sendo responsável pelo uso que se faça dela. A tecnologia possui uma neutralidade em si, não sendo nem boa nem ruim, assim, a aplicação humana é que determinará sua natureza positiva ou negativa (CHANDLER, 2000). Nesta visão, quando a tecnologia falha ou quando tem conseqüências negativas, não podemos culpar a tecnologia e sim o uso impróprio desta. Esse enfoque instrumental é ainda hoje o mais amplamente difundido.
A segunda posição, a substantiva, demonstra uma revolta contra as influências prejudiciais da tecnologia nas relações sociais. Para os adeptos desta corrente, também denominada de teoria pessimista, a tecnologia é uma força cultural autônoma, capaz de reestruturar todo o mundo social, como se fosse um objeto de controle tornando-se um ambiente, um estilo de vida de verdadeiro impacto substantivo (SANCHO, 1998; EBERSOLE, op. cit.).
Uma terceira perspectiva Waldow (1999, p.29) aponta que a tecnologia vem sendo utilizada em substituição a alguns cuidados antes realizados manualmente pela enfermagem. Nossa preocupação se pauta nesta "substituição" referida pela autora que, ao nosso ver, pode gerar um afastamento na relação entre a enfermeira e o cliente, já que a máquina traduz uma série de dados clínicos que, antes dos adventos tecnológicos só eram possíveis de serem verificados através do toque. Ainda pode-se refletir se esta substituição possa estar redirecionando a enfermeira para realização de funções administrativas e burocráticas. Logo, pode-se inferir que a incorporação das tecnologias de ponta nos cenários de assistência implicou em um redimensionamento do espaço do cuidado.
Na enfermagem, a criação dos inventos e as adaptações tecnológicas surgem, nos anos 60, do cotidiano da prática assistencial e até mesmo de projetos científicos.
No final da década de 70, do século XX, a Conferência Internacional sobre os Cuidados Primários de Saúde/Alma - Ata preconizava a tecnologia apropriada cujo um dos enfoques era voltado para ações de baixo custo, como por exemplo, a administração de soro caseiro para o controle das diarréias nas crianças.
No campo da enfermagem, os conceitos de técnica e tecnologia vêm despertando interesse de algumas estudiosas. Destaca-se, no momento, os apontamentos de Locsin apud Waldow (1999, p.28-29), nos quais a autora preocupa-se em diferenciar tecnologia e técnica. A autora indica uma visão ampliada de tecnologia, transcendendo a questão da técnica, considerando os sujeitos que nela estão envolvidos.
"Tecnologia inclui pessoas, instrumentos e técnicas, organizadas em sistemas interativos que visam a obtenção de algum (ns) objetivo (s). As pessoas são descritas como aquelas envolvidas na invenção, disseminação, aplicação e uso de tecnologia. Incluem pacientes, consumidores de serviços de saúde em geral, enfermeiras, médicos, técnicos, vendedores e pessoal de manutenção. Os instrumentos incluem ferramentas e dispositivos, aparelhos e máquinas, desde termômetros até scaners de tomografia computadorizada. Técnicas se referem aos procedimentos que utilizam instrumentos para uso clínico, tais como função venosa, cateterismo cardíaco e cirurgia".
Um possível motivo que justifica o apego das enfermeiras à máquina pode ter origem na crença de que o profissional que domina a tecnologia ocupa uma posição privilegiada dentro de uma instituição hospitalar. Crença esta que confere status às unidades de terapia intensiva, em relação aos demais setores hospitalares, e aos profissionais que atuam nestes setores altamente supridos com tecnologia. Marden apud Barbosa (1999, p.14) compartilha da mesma opinião ao defender que o avanço tecnológico impõe respeito e autonomia a quem os domina.
As influências do determinismo/fascínio da tecnologia podem modificar o cuidado de enfermagem. Na visão de Vries e Barroso (1996), a inserção da inovação tecnológica pode gerar conseqüências negativas advindas do mau uso da tecnologia. As autoras exemplificam sua afirmação com base em exemplo de um caso verídico onde as enfermeiras obstetras realizaram a aspiração de fluído gástrico de um recém-nato saudável e sem nenhuma indicação clínica para realização deste procedimento. Após investigação do caso ocorrido, as autoras constataram que as enfermeiras sentiram uma irresistível, mas irracional necessidade de utilizar o equipamento de sucção, apesar de não haver nenhuma indicação para seu uso.
Vale ressaltar que, atualmente apresenta-se a tecnologia em duas categorias: as de produto, cujos resultados são componentes tangíveis e facilmente identificáveis, tais como: equipamentos, instalações físicas, ferramentas, entre outros; e as de processo que incluem as técnicas, métodos e procedimentos utilizados para a obtenção de um determinado produto.
Pode-se observar como a tecnologia pode interferir nas relações sociais, e em especial na relação enfermeira-cliente trazendo impessoalidade, formalismo, frieza, e desvalorização deste cliente (WALDOW, 1999, p.166), que não significará nada mais do que um leito, um prontuário ou uma patologia. Porém, acredita-se que a tecnologia possa ser empregada de forma a aproximar a enfermeira do cliente, trazendo uma humanização no cuidado prestado e aliando a tecnologia ao cuidado da enfermagem, isto será possível quando esta tecnologia for utilizada de forma crítica e racional.
Como síntese, considero a incorporação da tecnologia no cuidado das crianças como uma das facetas da prática da enfermeira pediatra, que deve ser enfocada de maneira criteriosa, considerando os valores políticos, econômicos e sociais a fim de minimizar possíveis efeitos desastrosos, que possam trazer prejuízos para a saúde de nossas crianças brasileiras.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, S.F.E A transcendencia do emaranhado tecnológico em cuidados intensivos-a (re) invenção possível. Blumenau (SC): Nova Letra, 1999.
CASTELLANO, S. Proposição de um modelo para planejamento e desenvolvimento de projetos em empresas de alta tecnologia. 1996. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Engenharia e Produção e Sistemas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1996.
CHANDLER, D. Technological or media determinism. Disponível: http://www.aber.ac.uk/media/documents/tecdet/tecdet.html. (capturado em 09 de dezembro de 2000).
DELUIZ, N. Impacto da tecnologia sobre o trabalho sobre o trabalho humano e as qualificações profissionais - os rumos do debate. In Formação do trabalhador: Produtividade e cidadania. Rio de Janeiro: Shape, 1996.
EBERSOLE, S. Media determism in cyberspace. Disponível: http://www.regent.edu/acad/schcom/rojc/mdic/md.html. (capturado em 10 de outubro de 2001 ).
FEENBERG, A. From essentalism to constructivism: philosophy of technology at the crossroads. Disponível: http://www.agora.qc.ca/textes/feenberg.html. (capturado em 08 de agosto de 2000.
NIETSCHE, E. A.; DIAS, L.PM. e LEOPARDI, M.T. Tecnologias em enfermagem: um saberem compromisso com a prática? In: Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem, 10,1999, Gramado - RS. Anais... Gramado - RS: ABEN, 1999. p. 25-38.
SANCHO, J.M. A tecnologia: um modo de transformar um mundo carregado de ambivalência. In Para uma tecnologia educacional. Porto Alegre: Artmed, 1998.
VRIES, R.G; BARROSO, R. Medwives among the machines: secreating midwifery in the late zoth century. Disponível: http://www.stolaf.edu/people/devries/does/midwefery. (capturado em 05 de Janeiro de 2001.
WALDOW, V.R. Atualização no cuidado: na busca da integralização. In Cuidado humano: o resgate necessário. 2 ed. Porto Alegre: Sagsa Luzzato, 1999.
Notas
Este texto apresenta diferentes aspectos sobre tecnologia que fundamentam o projeto integrado de pesquisa - "A prática da enfermagem nos hospitais pediátricos: a influência da tecnologia nos anos 70", financiado pelo CNPq.