Volume 6
INTRODUÇÃO
Discutir as dimensões teóricas e práticas do cuidar implica em refletirmos sobre a complexidade do cuidado na enfermagem. Esta complexidade vem exigindo um necessário investimento no sentido de incrementar a produção intelectual da enfermagem, principalmente, para a conceituação do cuidado, o que refletirá na construção de um saber próprio da enfermagem, um dos pilares para a sua construção e solidificação como ciência. Daí a importância de estarmos atentas às teorias e conceitos que norteiam as nossas ações e decisões no cuidar, à nossa visão de mundo e aos referenciais que nos orientam no cotidiano da nossa prática como enfermeiras, docentes e/ou pesquisadoras.
Neste sentido, aponto que a minha posição teórico-conceitual é do cuidado como filosofia de vida e, no campo profissional, que é do que nos ocuparemos de discutir no momento, esta concepção nos faz entender que o cuidado transcende à sua prescrição e execução.
O CUIDADO COMO FILOSOFIA DE VIDA
Como filosofia de vida, o cuidado revela uma atitude de ocupação, preocupação, zelo e desvelo para com o outro, conforme bem ressalta Boff (1999) e a teórica Jean Watson (TALENTO, 1999). Com esta concepção, não penso o cuidado como uma entidade isolada do contexto no qual ele se insere e é praticado. Para tanto, há que se considerar o meio e as pessoas nele inseridas, que são os sujeitos do nosso cuidado. Isto nos remete ao conceito de cuidado relacional, abordado por Waldow (1998a; 1998b), que se objetiva na inter-relação que se estabelece com o outro que participa conosco deste cuidado.
O caráter relacional do cuidado implica em considerarmos a intersubjetividade que se estabelece na relação interpessoal. A consideração ao outro, às suas particularidades e individualidade e, ainda, o caráter expressivo manifestado na emoção, imprime a qualidade do humano no cuidado. Qualidade esta presente, não no fato de ser praticado por um ser humano, mas na expressão das características subjetivas e, portanto, emocionais - da esfera dos sentimentos, das pulsões e sentidos - exclusivos dos seres humanos.
Neste ínterim, destaco que, esta breve explanação sobre o aporte teórico-conceitual humanista que marca este texto, nos conduz a um conceito de cuidado como a própria expressão da ética, pois, se concebermos o cuidado como o objeto da prática da enfermeira, que se materializa e se torna objetivo para e com o outro, não podemos compreendê-lo fora do paradigma da ética. Então, o cuidado inexiste se não respeitarmos o outro e a nós mesmos enquanto pessoas e profissionais. Inexistindo respeito, inexiste cuidado. Logo, o cuidado é ético por princípio e natureza mesma.
Estas questões são importante na abordagem do cuidar da enfermeira de um modo geral e, em especial, no cuidado à criança. Isto porque a criança, pela própria condição de sê-la, exige cuidados, e a criança cidadã, qualidade conquistada legalmente desde 1990 no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), tem o direito de ser cuidada e de participar de cuidados de qualidade, tanto técnica, quanto humana. Portanto, essas considerações iniciais visam a uma introdução ao temário central sobre as dimensões teóricas e práticas do cuidar.
O SUJEITO DO CUIDADO
Quando falamos do sujeito do cuidado, não o concebemos como entidade isolada, genérica, universal e sem raízes, ao contrário, o consideramos como ser único, imerso em um contexto que o torna agente e sujeito de uma história socio-cultural. Neste sentido, no atendimento à criança, ressalta-se uma concepção de cuidado cuja abordagem centra-se na família. Isto implica na adoção de uma posição teórica determinada e determinante que orientará todo o cuidado desenvolvido com a família e a criança, sujeitos daquele cuidado. A família, considerada como um núcleo contextual importante nesta abordagem, oportunizará a compreensão da situação da criança e, com certeza, um cuidado muito mais individualizado, objetivo e resolutivo. A necessária compatibilização do contexto ao cuidado à criança, possibilita que nos afastemos da generalização e da simplificação às quais, muitas vezes, o cuidado é remetido, principalmente por aquele que dele não entende. A complexidade está no próprio cuidado, fruto da ação e objeto de trabalho da enfermeira, compartilhado com um sujeito também complexo.
Nesta complexidade do cuidar e do cuidado de enfermagem, destacamos as vertentes técnica e tecnológica que contribuem para a materialização do cuidado na nossa prática cotidiana e que, se não forem aplicadas de forma crítica, podem imprimir impessoalidade, distância e frieza, tornando o cuidado desumano e o cliente desubjetivado.
Se a técnica e a tecnologia são importante e, por vezes, imprescindíveis na promoção da saúde e manutenção da vida, a vertente expressiva cria a necessidade do contato, do encontro face à face, oportunizando a construção e reconstrução das relações interpessoais, tão ricas nos processos humanos de convivência. A vertente expressiva (emocional), torna o cuidado humano e valoriza a presença do sujeito, tanto daquele que cuida - a enfermeira, quanto daquele que participa do cuidado - o nosso cliente.
O cuidado, como estou abordando-o, ocorre em uma via de mão dupla, ou seja, somos sujeitos cuidando de outros sujeitos. Desta forma, o cuidar da enfermagem é uma prática complexa, e não o penso como um ato que envolve, somente, e simplesmente, eu diria, o domínio de técnicas e tecnologias, mas como um ato que envolve a complexidade do lidar com outro ser humano, o que implica em conhecer a sua história de vida e o seu momento na vida (destaco aqui a criança e seu contexto, objeto de discussão deste seminário), as suas crenças, seus sentimentos, seus desejos, valores e tabus que permeiam a relação entre as pessoas. É nisso, principalmente, que, na minha concepção, reside a complexidade do cuidar, pois cuidar do outro envolve sentir o seu espírito, o seu olhar, a sua impaciência, a sua dor, a sua revolta, as suas tristezas e também as suas alegrias e prazeres. E tudo isso, com a tarefa de lidarmos, também, com as nossas próprias emoções.
Portanto, refletir sobre as dimensões teóricas e práticas do nosso cuidar, implica em uma incursão sobre as concepções que adotamos sobre enfermagem, o cuidar, o cuidado, o cliente, a sua família, a administração do serviço, a liderança que praticamos com a nossa equipe entre outras questões. Conceber a enfermagem como ciência humana e o cuidado como uma filosofia de vida, implica em buscarmos paradigmas de cuidar que atenda a nós mesmos e ao outro, na justa medida do que seja humano, promovendo e protegendo a vida.
REFERENCIAS
TALENTO, B. Jean Watson. In: GEORGE, J. B. & Cols. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática profissional. Tradução de Regina Machado Garces. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 254-267.
BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela Terra. Petrópolis: Vozes, 1999.199 p.
WALDOW, V. R. Examinando o conhecimento na enfermagem. In: MEYER, D. E" WALDOW, V. R. & LOPES, M. J. M.(Org ). Marcas da diversidade: saberes e fazeres da enfermagem contemporânea. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998a, p. 53-85.
______. Cuidado humano: o resgate necessário. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998b, 204p.