ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 3, Número 3, Set/Dez - 1999

Nestes textos que apresento será discutido o trabalho de enfermagem, portanto, poderemos estar falando de pesquisa, ensino e assistência.

Serão abordados aspectos característicos do cuidado sensual prestado pelas enfermeiras, registrando que o trabalho de enfermagem ainda permanece desconhecido para uma parcela da população; que ele sofre influências diferenciadas conforme se realiza no serviço público ou no serviço privado. E um trabalho que se expõe, que se contamina nos muitos contatos que estabelece na rede do imaginário e na sustentação da vida real, construindo, neste processo, prazer e sofrimento, alegria e dor, parceiros da cronicidade da vida.

Discutiremos também o preço do trabalho moderno que é o risco de mal viver, a ousadia de vir a ver o trabalho de perto.

Nas últimas décadas, temos assistido a drásticas mutações nas relações sociais. A crescente ausência de lugares e postos de emprego faz com que aumente o sofrimento dos indivíduos, ainda mais quanto mais individuais eles sejam.

Como aceitar o fato de sermos bem nascidos, bem dotados, bem ensinados e não nos darmos bem?

Por que, diante de tanto desemprego, não desempregamos o trabalho como valor de todos os valores, assim desfazendo a oposição entre uma ética do trabalho e uma estética do não-trabalho, que tanto impede os trabalhadores de se empregarem na construção de prazeres em suas vidas ?

E as trabalhadoras tanto busquem uma virtude ( mérito do homem, virilidade) impossível ?

Uma questão que se coloca para a pesquisa no campo da saúde mental e trabalho é como o trabalho vem a ser constitutivo do sujeito moderno intermediando ordem individual e ordem coletiva.

O modo de intervenção do homem sobre a natureza é certamente uma questão cultural e portanto histórica. As configurações de valores que constituem a ordem simbólica de uma determinada sociedade podem atribuir ao trabalho diferentes lugares. Na Antiga Grécia, trabalhar era um oprobio, na Idade Média trabalhar era uma função qualquer como comer ou dormir, no ethos camponês ocupar-se com uma tarefa fazia parte do dever de ser de um bom camponês, contribuindo para a manutenção do equilíbrio produtivo do grupo, não havendo separação entre aquilo com que se ocupava e o papel que se desempenhava no seio do grupo.

Para que o trabalho venha a ser a medida do valor nas sociedades modernas, ou seja, para que se possa trocar tempo por dinheiro, foi necessária uma mudança na

configuração de valores, uma transformação cultural lenta e gradual ao longo dos séculos. Foi preciso laicizar o trabalho, destituí-lo do caráter de sagrado, tirar-lhe a transcendência e atribuir-lhe um caráter de bem terreno, que pode ser acumulado. Portanto, dotá-lo de um espírito de calculabilidade, que prevê ou provê um futuro antecipado, orientado por uma visão de mundo caracterizada por um tempo linear, por oposição ao tempo mítico circular, onde passado e futuro estão inscritos no presente. Mas não basta dessacralizar o trabalho, há que fazê-lo produzir de acordo com uma nova ordem: a da utilidade e da produtividade. O trabalho não vale mais pelo papel que desempenha no equilíbrio de um determinado grupo, mas pelo a mais que produz. Para isso, foi preciso (a partir dos séculos XVII e XVIII) adestrar os corpos e as almas. A prática disciplinar, regulada por um tempo separado para cada atividade, herdada dos monastérios, transforma-se em elemento de uma tecnologia política da duração, e dos corpos que se individualizam e se articulam, compondo as forças de um aparelho eficiente, cujo objetivo não culmina num mundo além, mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar.

O poder disciplinar estipula formas de apreensão e de tratamento dos sujeitos que resultam em efeitos individualizantes. Produz-se indivíduos trabalhadores que se dizem livres e iguais. Entretanto, numa sociedade que se diz igualitária, o trabalho produz diferenças entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre patrões e empregados, entre trabalhadores e profissionais, entre profissionais e intelectuais e entre quem tem trabalho e quem está desempregado.

Vou tomar como segundo objeto de trabalho a questão da ética e vou dispensar uma discussão sobre a natureza histórico-filosófica da ética. Acredito que possamos estar de acordo em utilizar o solo ético comum de nossa cultura, e que , dito de uma maneira simples, postula que ética é tudo que diz ao bem, ao justo, ao digno, àquilo que é moralmente adequado.

Chamo de ética, então, toda ação, estado ou intenção, que podem ser interpelados no âmbito do "isto é certo, isto é errado", ou que podem ser justificados com base em razões dessa ordem.

Como aproximar ao toque estes dois conceitos de ética e de trabalho ?

Primeiro, nós da enfermagem, enfermeiras, técnicos e auxiliares, não nascemos trabalhadores de enfermagem, mas nos tomamos trabalhadores. Por isso temos que pensar nas inúmeras variáveis que nos tornaram aptas a entrar no mundo da formação do profissional, seja nível médio ou superior, porque estou falando do sujeito do trabalho e não de nível de escolaridade.

Depois temos que nos conscientizar que, ao nos formarmos como enfermeiras, técnicas ou auxiliares de enfermagem, estamos de posse de um mandato social de cuidado. E aí temos que nos haver com uma ética da responsabilidade, uma ética dos cuidados.

Como ela seria?

Uma ética do sofrimento. E uma máxima simples, negativa porque não formula preceitos, mas prescritiva quando diz que é a crueldade aquilo que de pior podemos fazer aos outros. Nada do que você faça pode atentar contra a integridade física e moral do seu semelhante. Estes parâmetros são importantes para colocar permanentemente em discussão, o que de nossas práticas, para além da garantia da competência técnica, tem permitido aos indivíduos sob nossos cuidados voltarem a agir como sujeito moral: isto é o bom, o útil, o acertado, o verdadeiro.

A ênfase no indivíduo ou no individualismo faz com que percamos absolutamente de vista tudo aquilo que diz respeito a compromissos outros que não sejam com nosso umbigo. Estamos criando, cada vez mais, populações e tipificações específicas. Cada vez mais somos especialistas em aidéticos, em velhos, em homossexuais, em negros, em mulheres, em crianças, etc. Cada vez mais estamos criando um mundo de tribos, onde praticamente não existe uma espécie de referência ao "nós", que não precisa ser metafísica. Mas é um mundo onde cada vez mais enfatizamos uma felicidade física, corpórea, determinada medicamentosamente.

Cada vez mais ressaltamos as particularidades dos indivíduos e poderiamos perguntar: para quê?

Para empregar os sãos?

Onde?

Com que objetivo?

Com o objetivo de viverem, como as pessoas em grandes cidades onde 50% são absolutamente sozinhas?

Com o objetivo de não encontrar o outro, pois perderam o código da interlocução?

Eu acho que estamos vivendo uma miséria banal, e é esta atrocidade que, em suma, nos faz muitas vezes pensar no que queremos com nossas teorias, e se vamos ou não ser capazes de criticar o sintoma social.

Eu acho que a pergunta que todos devemos fazer, quando se trata de ética, é a pergunta que a personagem Macabéa, de Clarice Lispector, fazia para o Olímpico de Jesus:

"Feliz, serve pra quê?".

As idéias têm conseqüências.

Os que reivindicam falar ou pensar em nome do campo do trabalho precisam, mais do que acordar, poder sonhar acordados.

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1