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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 3, Número 2, Mai/Ago - 1999

INTRODUÇÃO

O objeto deste estudo são as questões éticas que indicam o cerceamento ou violação do direito do cliente como consumidor. As relações de consumo nem sempre ocorrem de maneira satisfatória atendendo as exigências éticas e legais. Isto ocorre, na maioria das vezes, por ganância, má fé, omissão ou negligência dos fornecedores de serviços. O consumidor não recebe corretamente aquilo pelo qual pagou e tem o direito de usufruir. A responsabilidade dos fornecedores, no caso em tela os profissionais e as instituições de saúde, é objetiva e devem responder pelos prejuízos causados aos consumidores do serviço de saúde, sejam estes tangíveis ou intangíveis.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, sinaliza para a mais completa defesa do consumidor, uma vez que os preceitos do Direito são o de viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu, conforme a milenar conceituação romana.

Conforme o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (1990), os fornecedores de serviços, independentemente da existência de culpa, respondem pela reparação do dano causado. A lei exige que haja transparência e harmonia nas relações de consumo, considerada a situação de vulnerabilidade do consumidor, cujos direitos básicos consistem na proteção de sua própria vida, saúde e segurança, contra os riscos provocados por práticas ou fornecimento de produtos.

O Código, acima citado, contempla inúmeras medidas de proteção, preventivas e repressivas. A lei institui rigoroso dirigismo contratual para as relações de consumo, não permitindo que o fornecedor se beneficie com cláusulas abusivas e coercitivas no fornecimento de produtos ou serviços. No caso do serviço privado de saúde, é facultado ao consumidor o direito de solicitar revisão de cláusulas nos contratos dos planos e seguros de saúde, percebidas como abusivas ou desproporcionais ao serviço prestado. É exigido ainda que todas as cláusulas, que restringem o direito do consumidor, sejam destacadas, redigidas em letras maiores do que o texto, como as que determinam carência ou excluem determinadas doenças de convênios médicos. O orçamento prévio é uma outra exigência a ser considerada na prestação de serviços.

Vale ressaltar que, no Brasil, como programa de governo, estão sendo aplicados e instrumentalizados os postulados da política econômica e de políticas sociais neoliberal. Presenciamos a retração do Estado e a cessão de espaço ao capital privado tanto na esfera econômica como na do bem-estar social (FEGHALLI, 1998).

Galvão (1997) diz que "o neoliberalismo defende a liberdade de mercado e a abertura das fronteiras, acima das liberdades políticas e dos direitos sociais. O povo é chamado a assumir o prejuízo, incentivando a incompetência, a corrupção e a impunidade. Esse mesmo povo é vítima do desemprego e da recessão. Surge um novo contingente de carentes, os novos pobres: os assalariados, os aposentados, os professores, e outros".

Segundo Laurell (1995), as estratégias de implantação da política social são o corte dos gastos sociais, a privatização, a centralização dos gastos sociais públicos em programas seletivos contra a pobreza e a descentralização.

Quando constatamos (Feghali, 1998) que, no Brasil, a política de saúde é claramente alinhada aos postulados neoliberais, surge um grande questionamento: até que ponto os clientes/consumidores dos serviços de saúde têm seus direitos respeitados?

Para responder este questionamento, delineamos o seguinte objetivo: discutir as questões éticas, denunciadas pelos meios de comunicação escrita, que emergem quando o cliente/consumidor utiliza os serviços de saúde.

Quanto à metodologia, o presente estudo, com abordagem qualitativa, retrata a história do tempo presente, e as fontes primárias foram obtidas através dos jornais de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1998. Participaram desse estudo, na qualidade de colaboradores, os alunos da disciplina Ética Profissional da EEAN. Para análise dos dados, utilizamos uma abordagem dialética da realidade social, ou seja, este fenômeno que pretendemos estudar é parte do momento do todo social. Na análise, utilizamos literatura pertinente às políticas sociais e ética.

 

A TRANSGRESSÃO DOS DIREITOS DO CLIENTE

Nas reportagens analisadas, constatou-se a transgressão aos direitos dos clientes, fato este ocorrido em várias situações, como a recusa da instituição em fornecer recibo dos gastos hospitalares e a insuficiência de recursos materiais, que dificultam a oferta de serviços de qualidade.

A recusa da instituição de saúde em fornecer recibo do serviço prestado é uma nítida transgressão ao Código de Defesa do Consumidor. Em matéria publicada no jornal O Globo (17/11/98), intitulada: HOSPITAL MINEIRO NÃO DÁ RECIBO DE ATENDIMENTO, constatamos a recusa desta instituição no fornecimento de recibo no valor de nove mil reais, arrecadados por iniciativa da própria comunidade, onde residia a cliente usuária, causando constrangimento para a família que efetuou tal pagamento. O diretor do hospital, ao ser interpelado, justificou que a verba do Sistema Unificado de Saúde ( SUS ) é insuficiente, que são fornecidos recibos de atendimentos particulares e investigaria o ocorrido. O Ministério da Saúde, quando questionado sobre o caso, informou que a instituição, por ser filantrópica, estava autorizada a cobrar o atendimento, entretanto, não podería recusar a emissão de recibos e esta denúncia deveria ser encaminhada ao Ministério Público para apuração.

Acreditamos que este episódio não seja um fato isolado, principalmente quando se trata de pessoas de baixo poder aquisitivo e, portanto, com pouco ou nenhum poder de barganha. Em outras situações, desenvolve-se uma cumplicidade entre os consumidores e os fornecedores de serviços de saúde, no sentido do não fornecimento de recibo mediante abatimento nos valores destes mesmos serviços, constituindo-se em uma grave transgressão ética e legal.

O AJUSTE ÉTICO, esta matéria referindo-se ao ajuste orçamentário proposto pelo Governo Federal, registra que "numa área como a Saúde - justamente aquela em que o corte de despesas mais parece cruel - gastos malfeitos, desperdício e fraudes estão seguramente longe de terem sido eliminados ou mesmo reduzidos substancialmente... ". O autor afirma que este não é um caso isolado, e não ocorre apenas nos serviços de saúde, e que o ajuste financeiro do Governo so será aceito pela sociedade se acompanhado por ajuste ético.

Evidencia-se, com esta materia, a forma inescrupulosa como é tratado o bem público, em alguns casos atingindo outra vez, de forma mais intensa e desumana, parcela dos desprovidos de poder, apesar de contribuírem, direta ou indiretamente, através do recolhimento de seus impostos para o serviço de saúde, quer seja na manutenção de pessoal especializado, na conservação física da instituição, ou no suprimento de materiais adequados e suficientes para a qualidade das atividades de saúde oferecidas.

O capitalismo, apoiado no teoria neoliberal, converte-se numa ideologia do lucro e do mercado. Não é verdadeiro que o sistema de mercado cria riqueza para todos. Na verdade, ele é um modelo assimétrico, excludente e elitista.

Assim, fica entendido que, enquanto o país adotar uma filosofia excludente e tivermos nos setores públicos pessoas inescrupulosas, que colocam a vantagem e o interesse pessoal como prioridade, continuaremos a nos defrontarmos com denúncias de extorsões e mau uso do erário público.

Galvão (1997) afirma que a dicotomia que o neoliberalismo estabeleceu entre a ética e a economia criou um abismo entre ambas, muito difícil de ser transposto, pois as forças que movem o mercado são utilitaristas e interesseiras. Neste caso, a maioria constituída pelo povo paga pelo bem-estar e pela prosperidade das minorias, as elites.

As reportagens que denunciam o desrespeito ao valor da vida exemplificam bem esta realidade. Várias situações, que se referem à vida, clamam pelo respeito e a mais completa proteção dos clientes/consumidores. Vale ressaltar a denúncia da imprensa na matéria. INFECÇÃO - SUPERBACTÉRIA EM HOSPITAIS DO BRASIL mostrando que o uso inadequado de antibióticos levou ao aparecimento de uma superbactéria responsável por altos índices de infecção hospitalar.

AGROTÓXICOS- RIO TEM PRODUTOS CONTAMINADOS - Esta reportagem refere-se à distribuição de alimentos com resíduos de agrotóxicos acima dos limites toleráveis para o organismo humano.

Nestes casos, a vulnerabilidade do estado de saúde do cliente, consumidor deste serviço, acentua-se, pondo em risco a sua própria vida.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, atenta para os direitos básicos da pessoa, que consiste na proteção de sua própria vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

Assistimos recentemente a uma outra ameaça à vida humana: os veículos de comunicação noticiaram exaustivamente um dos maiores atentados, ou seja, a falsificação de medicamentos e os danos provenientes desta.

MEDICAMENTOS FALSOS -SOCIEDADE DESPROTEGIDA -Nesta reportagem, foi demonstrado que a população não está exposta apenas à ação das quadrilhas que agem na clandestinidade, mas correm riscos também devido ao descaso de algumas indústrias farmacêuticas multinacionais e com estrutura suficiente para evitar que tais fatos ocorressem. Essas ocorrências de falsificação de medicamentos retratam o tamanho do descaso, da irresponsabilidade e da omissão das autoridades responsáveis pela vigilância de um setor tão vital na sociedade.

PACIENTE MORRE SEM CONSEGUIR INTERNAÇÃO EM HOSPITAIS DO RIO - Esta reportagem de Mirtes Guimarães (Jornal, O DIA, 11/12/ 1998) dá conta do drama de um aposentado, que ficou perambulando três dias pelos hospitais do Estado e da União, no Rio de Janeiro, para conseguir atendimento e depois mais quatro dias no corredor da emergência de um destes hospitais até ser acometido de uma parada cardíaca e morrer. Essa transgressão ética evidencia que muitos "corrompem e traficam interesses em nome da Saúde Pública ", diz a matéria da coluna OPINIÃO do Jornal O DIA intitulada: OMISSÃO MORTAL (Jornal, O DIA, 12/12/1998).

Nos países do primeiro mundo (Miami, EUA), "embriões são candidatos a adoção " e BEBÊ PREMATURO DE 385 GRAMAS É UM DOS MENORES DO MUNDO A SOBREVIVER diz a reportagem do Jornal, O Globo, de 02/ 10/1998. Enquanto isso, no Brasil, a polícia estoura clínica de aborto, conforme nos mostra a reportagem de Marcello Gazaneo: A OPERAÇÃO DONA MARIANA motivando um pronunciamento do teólogo Dom Estevão Bittencourt, que diz: "o aborto é sempre um homicídio... a vida humana começa com a fecundação... o novo ser tem pleno direito à vida... o aborto maltrata a sua vítima com crueldade, igual ou pior as do campo de concentração ". Na mesma reportagem, a Deputada Federal Marta Suplicy diz: "A criminalização do aborto traz inúmeros problemas...as mulheres são vistas como assassinas ". Enfatiza que "o aborto é uma questão de Saúde Pública".

Quanto a esta temática, a ética repudia toda e qualquer agressão à vida, porém, Barchinfontaine (1990) cita o estudo do teólogo e filósofo Hubert Lepargneur "O aborto frente a moral católica", onde o autor entende que: "não apenas a caridade, mas a simples justiça exige que não lancemos pedras às mães que julgam não ter condições para criar um filho não desejado, se a sociedade, que integramos, não prevê obras assistenciais de ajuda a estas mães ou de reconhecimento dos filhos que nenhum adulto quer", ou seja, a atitude simplista de condenação moral, perante a uma situação de aborto, precede a exigência de uma profunda reflexão social, na qual estamos inseridos.

Concordamos com Barchifontaine (pp. cit.f uma vez que a mulher submetida a tal agressão pode, na realidade, ser entendida como vítima da própria sociedade, que a princípio a condena.

Como se não bastasse a situação de pobreza no Brasil, com raízes profundas e históricas, contemplamos o esfacelamento da política social resultante de múltiplos fatores despidos de ética e moral. O capitalismo é um sistema mate-rialista-consumista por excelência, e, para o seu sucesso, é necessária a sobrevivência dos mais competentes e a exclusão e sacrifício dos mais fracos. Dizem eles que são sacrifícios necessários (Galvão, 1997).

Nesse contexto, para romper os limites do individualismo, Sung e Silva (1997) afirmam que é possível construir sociedades melhores que esta: "uma ação solidária é necessariamente uma ação coletiva, que se expressa atualmente nos movimentos sociais em defesa dos mais fracos - movimento pelos direitos humanos, ecológico, de mulheres, índios, de combate à fome e tantos outros que se baseiam numa nova ética social, a ética solidária" .

No campo da saúde, essa ética da solidariedade encontra-se distanciada da realidade. A reportagem PESADELO NO HOSPITAL denuncia que "mãe não fez cesariana e bebê morre"; segundo esta matéria, uma mulher de 31 anos, ao ser atendida em trabalho de parto, durante uma madrugada, em um hospital público do Rio de Janeiro, dizia ter indicação do médico, que fez o pré-natal, para cesariana. Na manhã do dia seguinte, teve uma hemorragia e o bebê morreu (reportagem de Sérgio Ramalho).

Quanto à assistência a pessoas idosas, o descalabro não é menor. Está bastante presente na memória da população do Rio de Janeiro a morte de 102 idosos, na Clínica Santa Genoveva, denominada à época "casa de horrores", por deixá-los entregues à própria sorte. Na oportunidade, as autoridades federais e estaduais prometeram "nunca mais" permitir tal fato. Recentemente, dois anos após esta tragédia, uma matéria diz . NUNCA MAIS, DUROU POUCO .Esta matéria mostra, em Santa Cruz, no Lar Unidos de uma Força, onde os anciãos vivem tão abandonados quanto os da Santa Genoveva. Por ironia, foi encontrado um sobrevivente da primeira quase morrendo na segunda.

Esse quadro demonstra o quanto estamos distanciados da ética da solidariedade e a profundidade da crise da ética, exacerbada pelo neoliberalismo, que estimula a exclusão social. Enquanto tivermos uma política setorista e clientelista, aliada a interesses de grupos e cega às necessidades de quem as elegeu, continuaremos a ser espectadores dessas indignidades.

Para Galvão (1997), justiça e paz não é uma utopia, bastando a classe política, habilitada pelo voto consciente do eleitorado, cumprir de forma ética, efetiva e exclusiva seu papel de zeladora do bem comum e dos bens sociais do povo e da nação. Fora disto, diz o autor, ocorrerá o agravamento da crise social.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maioria das denúncias, contidas nos recortes de jornais, fazem referência à vida, valor máximo do ser humano, colocada em risco quando ocorre: fraudes na área da saúde; omissão e negligência, que favorecem o alto índice de infecção hospitalar; a ambição desmedida pelo lucro fácil, o qual motiva, dentre outros fatores, a venda de alimentos contaminados; falsificação de produtos farmacêuticos; o funcionamento de clínicas de aborto e a negligência na assistência ao parto; e por último, igualmente grave, do ponto de vista ético, o desrespeito com a saúde do idoso, tratada repetidamente de forma indigna.

A política de saúde, que se submete à política econômica, é a grande responsável pelo caos que vivenciamos nos dias atuais, aliada à crise de valores éticos da sociedade capitalista, intensificada pelo neoliberalismo.

A política neoliberal do mercado despreza os valores éticos e, quando os invoca, é a seu favor. O neoliberalismo é urna política com algumas características marcantes: a busca do lucro; a conquista do mercado e o aumento do consumo, onde tudo é permitido, mesmo que para isso se atropele a ética, a moral, a dignidade e a vida.

Estamos cientes de que os defensores das teorias neoliberais são fortes e não admitem críticas. Eles consideram que quaisquer manifestações, inclusive as éticas e fundamentadas nos fatos e na lógica, como ingênuas, demagógicas, populistas, anacrônicas e tendentes a ressuscitar o marxismo.

A mais completa proteção do consumidor, prescrita no Código de Proteção e Defesa do Consumidor, fundamentada na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, a qual determina no seu Art. 5º que: " todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à prosperidade", não se faz realidade dentro do contexto social, político e econômico do país, conforme as evidências apresentadas neste estudo.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

1.BARCHIFONTAINE, C. de Paul de, PESSINI Leocir. Bioética e Saúde. 2.ed. São Paulo: CEDAS, 1990.

2.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988.

3.Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 1990.

4.FEGHALI, Jandira. Saúde: uma prioridade estratégica. Brasília: CDICP, 1998.

5.GALVÃO, A. M.. A crise da ética: o neoliberalismo como causa da exclusão social. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

6.LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo. In: LAURELL, Asa Cristina (org.) Estado e Políticas sociais no neoliberalismo. São Paulo: Cortez, 1995.

7.MAGNOLI, D.. Globalização: Estado nacional e espaço mundial. São Paulo. Moderna, 1997.

8.SUNG, J. M. e SILVA, J. da C. Conversando sobre ética e sociedade. Rio deJaneiro: Vozes, 1995.

 

1. Trabalho premiado no 6º Pesquisando em Enfermagem/EEAN. Primeiro lugar. Prêmio Enf. Maria Bernardete B. Dos Santos. Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro.

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