Volume 3, Número 2, Mai/Ago - 1999
INTRODUÇÃO
A imagem concreta do álcool presente nos cenários cotidianos do grupo de adolescentes desta pesquisa, materializada nos espaços da praça, do bar, do colégio e da casa, enunciada nas produções artísticas elaboradas pelo grupo no espaço das dinâmicas de criatividade e sensibilidade, e no diálogo grupai, levaram à construção da dimensão coletiva do álcool na comunidade do Engenho do Mato. Se as questões relativas ao álcool toma parte no processo educativo somente num discurso associado ao funcionamento do corpo, não possibilita o surgimento do imaginário do educando.
Teixeira (1997, p.16)1 ressalta que "há um movimento atual da enfermeira em busca de novos modelos de abordagem e de estratégias de intervenção que atendam aos anseios subjetivos dos profissionais e da clientela ", Entendemos que esses modelos de atuação contemplam ações de promoção da saúde, em que as duas vertentes a serem trabalhadas - a educação em saúde e as políticas sociais - definem o compromisso com uma prática social transformadora. Portanto, requer que a enfermeira abra mão de um discurso racional, dotado de um saber, exclusivamente técnico-científico, fundamentado num paradigma mecanicista, centrado apenas nas necessidades básicas dos indivíduos, na patologia e na medicina dos órgãos.
Além disso, no dia-a-dia desses adolescentes há um bombardeio de belas imagens, veiculadas através dos meios de comunicação, associando o uso do álcool no ambiente social à auto-afirmação, conquista, poder e sedução. Esses veículos promovem as bebidas alcoólicas mostrando o lado fascinante e sedutor do álcool às pessoas, elas agem no imaginário e mexem com a fantasia dos indivíduos, estimulando assim o seu consumo.
Cabral (1997:177-178) considera que "o que o sujeito diz e pensa é reflexo de suas ações internalizadas ao longo do processo de desenvolvimento humano; ele é o somatório da sua razão e emoção; é um ser pessoal e social ao mesmo tempo, portanto a sua subjetividade se manifesta no coletivo, na inter subjetividade", e destaca que as sensações resultantes de estímulos externos e internos, que tomam parte na natureza do homem, não devem ser ignoradas no ato educativo e muito menos no processo de pesquisa. A subjetividade está presente no homem e fora dele, e como diz Guattari (1993) ela é produzida pelas "máquinas de subjetividade" nas mais variadas instâncias, dentre elas a mídia, e a própria educação em saúde.
Assim sendo, acreditamos que para o desenvolvimento de qualquer processo educativo em saúde na perspectiva da aliança de saberes, anunciada por Cabral (1998), associado ao diálogo, estão as imagens individuais ou intra-subjetivas. Essas imagens constituem um conjunto de produções maquínicas que tomam parte na subjetividade dos adolescentes. Elas são concretas e coletivizadas no plano inter-subjetivo, no espaço das dinâmicas de criatividade e sensibilidade. A partir da visibilidade das imagens num plano coletivo, há uma fusão delas originando a imagem social do álcool no mundo do adolescente, analógicamente se aproximando do que Freire construiu para a alfabetização de adultos.
Em seu método educacional, Paulo Freire propõe inicialmente a identificação da imagem do contexto de vida dos educandos "a procura temática implica na procura do pensamento dos homens, pensamento que se encontra somente no meio dos homens que questionam reunidos esta realidade" (1980:33),e extraindo o signo da realidade de vida "a decifração da palavra fluía naturalmente da leitura do mundo particular" (1997:15), dando origem a uma imagem materializada, para assim estabelecer o processo de leitura pelos educandos.
Para se contrapor a imagem que o consumo do álcool oferece aos adolescentes, penso no valor do paradigma estético e ético (GUATTARI;1993:18), como proposta para adentrar na subjetividade dos adolescentes e descobrir com eles a localização do álcool no mundo em que vivem, e como as imagens se colocam como máquinas produtoras de subjetividade. Para Guattari, esse paradigma produz rupturas nos conceitos idealistas universais, que impedem a atualização da vida, o sensível, da criatividade e do próprio desejo, que é transformador devido à sua potencialidade criativa.
Nesse sentido, o objeto de estudo a rota do álcool no contexto de vida dos adolescentes da Comunidade Engenho do Mato-Niterói foi encaminhada nessa pesquisa, através do método criativo, de acordo com os seguintes objetivos: descrever a posição geográfica do álcool na comunidade onde vivem, e analisar o impacto da rota do álcool na construção da imagem do álcool na vida dos adolescentes, no espaço da educação em saúde construída na dinâmica de criatividade e sensibilidade.
OS CAMINHOS DO ESTUDO
Diante desta perspectiva buscamos um caminho de atuação da enfermeira na educação em saúde. Cabral (1997:259) vem tentando construir essas novas trilhas, centrando-se num paradigma próprio de pensar e educar em enfermagem, colocando a dimensão subjetiva dos sujeitos como parte do processo de educação em saúde, mediada pelo diálogo, através da descodificação dos signos de linguagem, na compreensão dos significados segundo o modus vivendi de cada pessoa em seu contexto social.
Pesquisas neste campo de atuação vêm sendo realizadas por enfermeiras(os) como Cunha (1997), Teixeira (1998) e Monteiro (1998), Nitschke (1998) apontando para o fato de que se faz necessário apreender o mundo imaginai dos sujeitos, nossos parceiros educandos, priorizando as relações e as interações sociais.
Em se tratando de um estudo qualitativo, procuramos valorizar o diálogo produzido no espaço da dinâmica de criatividade e sensibilidade (DCS), para entender a natureza plural e dialética do fenômeno. A DCS nos serviu, simultaneamente, como espaço produtor de dados para a pesquisa, como cenário da educação em saúde e também de espaço do cuidado em enfermagem. As fontes primárias foram constituídas de relatório da dinâmica, registro das observações e das produções artísticas.
O grupo contou com sete adolescentes, todos residentes na Comunidade Engenho do Mato (Niterói - RJ), os quais foram convidados a participar da pesquisa, quando da nossa visita domiciliar. A eles foi explicado os propósitos da pesquisa e solicitado consentimento escrito para gravar e fotografar. Os participantes não optaram por cognomes, decidimos então que para a apresentação do material produzido usaríamos a letra inicial do nome de cada um, que são: W,I,R, K, A, S,L e Ra.
O PRIMEIRO ENCONTRO
Realizado em 26-08-98, às 19h 30 min. Iniciamos com a apresentação de cada componente, e pude observar que todos estavam curiosos e ansiosos quanto ao que pretendíamos realizar, faziam diversas perguntas, "nós vamos falar de dependências químicas? ", "vai ser como você fez no colégio?" - referindo-se a Valéria - pesquisadora de campo.
Nesse primeiro encontro do grupo, Valéria aplicou a dinâmica "mapa falante da comunidade"1 a fim de dimensionar as relações específicas dos adolescentes no cotidiano de vida de seu grupo social.
O mapa falante da comunidade foi adaptado como dinâmica de criatividade e sensibilidade na perspectiva do método criativo e sensível (Cabral, 1998), tendo em vista que a sua operacionalização aconteceu em cinco momentos a saber: explicação da dinâmica (técnica do mapa falante), desenvolvimento do trabalho individual/grupal, apresentação da produção coletiva e composição dos temas geradores de debate, análise e discussão (descodificação dos temas em subtemas) e validação do estudo através da recodificação.
A técnica adaptada como dinâmica foi uma parte do processo de educação em saúde, quando serviu como desencadeador dos temas educativos e atomizou o debate centrado na percepção dos sujeitos acerca dos aspectos sociais e da rede de relações estabelecida na rota do álcool no contexto da comunidade. Sentimos que essa atividade possibilitou, portanto, uma atitude política e uma participação-reflexiva do grupo.
Após a apresentação da dinâmica e seus objetivos, Valéria dividiu o grupo em dois subgrupos, e orientou para que construíssem um mapa da comunidade destacando os referenciais mais presentes para cada um, através da seguinte pergunta: como você vê a sua comunidade? Sentaram-se todos em colchonetes no chão, pediram para que deixasse a música "tocando baixinho", e iniciaram a atividade que foi desenvolvida concomitante a um intenso diálogo grupai.
O terceiro momento consistiu na apresentação dos mapas (Produções Artísticas 1 e 2) e simultaneamente aconteceu a discussão de grupo. A seguir, Valéria pediu que eles voltassem ao mapa e identificassem na comunidade a presença do álcool, com a seguinte questão estimuladora: como você vê o álcool em sua comunidade? Eles escreveram e colaram no mapa em pequenas tiras de papel.
A.: "Bom, com a minha ajuda e a ajuda deles, nós colocamos aqui uma grande coisa que está acontecendo ... que é a sujeira, os mendigos na praça, que mal ou bem tem gente até com medo, e isso dá uma aparência ruim para o local
Ra: "Eu fiz o desenho da Fundação, eles ficam caídos na pracinha", (apontando para os bonequinhos da Prod. Artística 1)
A PRAÇA
Partindo da produção artística coletiva, A. e Ra. descrevem a praça como eixo central da Comunidade, o primeiro ponto de referência da rota do álcool. A imagem do morador da Fundação Leão XIII caído de tanto beber. O caos trazido pelos habitantes temporários da Fundação, que recolhe e acolhe os moradores de rua no Rio de Janeiro, demarcam o ponto de entrada-saída do álcool e os seus efeitos sobre essas pessoas. A praça da Comunidade é um local de exposição pública de bêbados no espaço onde os adolescentes costumam, passar, freqüentar, reunir-se com sua "tribo", no dizer de Maffesoli (1998).
Na imagem da praça, o grupo situa o primeiro ponto da rota do álcool na sua coletividade e codifica, através do diálogo, o primeiro tema gerador - a dimensão coletiva do álcool na comunidade do Engenho do Mato.
A dimensão coletiva do álcool na Comunidade do Engenho do Mato.
K.: "Esses caras ... da Fundação, tá aqui no mapa. A praça é aonde a gente se encontra, e agora tá sempre suja e eles ficam por lá bebendo, tem gente que tem medo de pegar doença deles".
S.: "A Fundação é centro de recuperação mas na verdade é esconderijo de bandido, que vem até do Rio, tem também dependente químico
A convivência coletiva não harmoniosa entre os adolescentes da Comunidade e os habitantes temporários da Fundação leva S. a trazer para o espaço dialógico, dialético e plural da DCS a expressão dependente químico, muito utilizado no meio científico e popularizada através dos meios de comunicação. O adolescente em sintonia com a linguagem científica veiculada pelos instrumentos de comunicação de massa, relaciona a imagem da pessoa caída de tanto beber àquele dependente químico, surgindo assim o primeiro subtema.
Essa é uma marca do saber científico impregnado no discurso de um adolescente no mundo do senso comum, no sentido colocado por Gramsci, apud Mochcovitch (1992:14), pois a visão de mundo materializado na imagem do homem bêbado caído, faz com que o adolescente explicite representações ocasionais e desagregadas; não há um método sistematizado em que se apoie para concluir o estado de dependência em que aquele homem está. No entanto, a sua observação sensível, mediatizada pela imagem real e concreta que toma parte no seu cotidiano coletivo, o leva a concluir tal circunstância.
I: "É, eles chamam de não sei que lá pra poder recuperar os doentinhos, e tá sendo tipo assim, esconderijo de bandido, entendeu, porque tem muito bandido foragido do Rio? essas coisas assim, pá! se esconde aí dentro. Porque aí, qualquer coisa tá é não sei que lá químico..."
W: "...Dependente químico".
I: "E, dependente químico, essas coisas assim".
A: "Aí começa a assaltar casas por aqui, movimentar tráfico de drogas, já teve casos aqui".
No movimento do diálogo grupai, os outros adolescentes I, W, A, vão se apropriando do enunciado do discurso de S, para contribuir com a discussão do tema, o que leva à codificação do subtema, problemas relacionados à dependência química do álcool, como a criminalidade (assalto, tráfico de drogas, violência).
I: "Aqui tem muito bar e muito bêbado, bêbado caído por af'.
L.: "Só tem bêbado, aonde a gente vai tem barzinho com cachaça (repetindo várias vezes a palavra bêbado).
V: Nos lugares onde vocês costumam se encontrar...
K: "Olha só, aqui dentro tem um sítio ali, na descida da, da... não sei que lá das..."
W: "...Rancho das Rosas".
L: "É, tem sempre festa..."
K: "É, Rancho das Rosas, lá tem um bar, pá! na mesa, entendeu, vem um garçom pra você assim mete o narizão".
OS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS
No prosseguir do diálogo, partindo da produção artística, apresentaram o "bar do Godo" como sendo o principal bar da região, acrescentando que havia muitos bares na região. Apontaram então a segunda referência da rota do álcool, os bares da região onde vivem. I. associa a imagem do bar com a do bêbado, que é reforçada por L., trazem à memória os bêbados e a cachaça como a bebida mais presente no mundo em que vivem. Nessa relação interdialética, na análise de uma situação codificada, K. identifica a naturalização do ato de beber abusivamente pelo adolescente, quando diz que a bebida alcoólica é oferecida (não solicitada) pelo garçom, o acesso fácil ao álcool, permitido no senso comum.
W: "Eu acredito que o uso de drogas ocupa mais o jovem hoje em dia do que o próprio álcool, o álcool se souber controlar, normal..."
I: "Mas o álcool não é droga também".
W: "É,é..."
A: "É, você vê que tem gente falando aí, é festa do cachimbo da paz, toca a maior cachaça".
Nesse espaço de reflexão coletiva, em que prevalece a dialogicidade intragrupal, W. traz, nesse momento, a questão do uso do álcool pelo adolescente. A partir do movimento dialógico W. torna público seu pensamento, seu conceito acerca dos adolescentes e as drogas.
Partindo do pensamento de W., o grupo codifica o subtema, álcool como droga, e na diversidade de conhecimentos intermedia os saberes quando I. não reconhece o álcool como droga, e W. e A. informam o contrário. O surgimento da cultura da "tribo", da noção de grupo, representada por um código de linguagem, o cachimbo, em que todos usam a bebida alcoólica, o copo de bebida como um cachimbo da paz..
K.: "O álcool está em toda parte, na escola também".(Prod. Artística 2. A Escola em destaque)
A: "Dentro de casa, no bar do Godô, no lugar de trabalho..."
L: "Nos colégios também".
W: "Larga de ser dedo duro".
S: "Já rolou até maconha dentro do banheiro do colégio".
A: "É duas coisas que você sabe e você finge não ver, é álcool e droga".
A ESCOLA
Do universo sócio-cultural identificam a presença das drogas no terceiro ponto da rota do álcool, a escola. A situação real vivida pelo grupo e construída na produção artística foi sendo desdobrada, anunciada no espaço da dinâmica de criatividade e sensibilidade. O uso de álcool e drogas nos espaços escolares é apresentada como uma situação freqüente, e que demanda um fechar os olhos para ela, conforme enunciada por A., as leis da tribo.
No próprio espaço da dinâmica, W. chama a atenção para a situação que não deve ser denunciada, e estimula o grupo a repetir a mesma atitude. No espaço das dinâmicas, o pensamento surge espontaneamente, o "tema do silêncio", prática comum nos processos educativos, dá lugar aos temas geradores. O mundo dos adolescentes que está sendo encoberto por eles, se revela, os homens revelam sua visão de mundo, no dizer de Freire (1980:32).
A.: "Dentro de casa".
L: "Em qualquer lugar, nas festas, nos bares, vendendo para as crianças, eles dão liberdade e as pessoas continuam bebendo, até as embriagadas".
L: "O problema é, não são os velhos com álcool, são os jovens".
A: "É o velho que manda uma criança no botequim comprar cachaça".
A partir de uma sobreposição de contextos, e não de urna fuga do contexto, que ocorre nas modalidades de dinâmicas, conforme descrito por Cabral (1998:190), o grupo num movimento de pensamento crítico chega até o quarto ponto da rota do álcool, a casa. E codificam as situações da práxis do adolescente com a bebida alcoólica, no contexto sócio-familiar.
A CASA
O adolescente I. traz para o espaço da discussão grupai as situações ilegais de venda de álcool (a venda de álcool para menores de 18 anos) quando se apropria do discurso de A., que codifica a presença de álcool dentro de casa. O estímulo ao uso da bebida alcoólica é apresentado como problema por A., quando, ao se apropriar do enunciado do discurso de L., num movimento questionador, associa o comportamento dos adultos que estimulam e naturalizam o ato de beber pelo adolescente, destacando que essa prática se dá desde a infância.
K. : "O álcool é alucinógeno".
Ra.:"A pessoa fica viciada na bebida".
L. : "Eu já reparei que as pessoas ficam lerdas".
S.: "A pessoa muda, o rosto fica diferente, fica feio, com cara de mongol".
L.: "Meu pai bebe todo dia, todo dia, e ele não muda, fica a mesma coisa".
A.: "Você é que não nota que ele muda. Ela já está acostumada e não percebe".
Apropriando-se de uma expressão do mundo científico, K. codifica outro sub-tema, atuação do álcool no SNC, definindo-o como alucinógeno. L., porém, dentro de sua visão de mundo, tem a imagem da pessoa alcoolizada com características do uso de uma droga depressora do SNC, marcas do saber do senso comum, em intercruzamento com o saber científico. Do universo sócio-familiar, L. traz a figura do pai como usuário frequente do álcool e A. destaca a naturalização do ato de beber abusivamente. Na sua observação sensível, A. distancia-se da subjetividade normalizada, que coloca o adolescente mentalmente manipulado, para constituir um mínimo de territorios existenciais, conforme descrito por Guattari (1993:14).
A discussão grupai segue então para o subtema dos problemas relacionados ao alcoolismo, quando S. traz uma situação vivida, real, concreta, de problemas econômicos. Surge, novamente, a questão do álcool e outras drogas, agora sendo discutido pelo aspecto econômico. Percebemos que um subtema codificado no início da dinâmica vem sendo descodificado, não de forma linear, mas sim alternado. No momento que descodificam podem estar codificando novo subtema, ou codificam, interrompem para descodificarem a seguir.
No contexto gerado pelo método criativo sensível, conforme apresentado por Cabral (1998:184), a participação dos sujeitos na busca ativa do conhecimento, manifestada no movimento do diálogo e no encadeamento do pensamento, é possível a valorização de tudo o que emerge do pensamento e da percepção dos sujeitos, inclusive aquilo que aparentemente não tem relação imediata e direta com a pesquisa (1998:186).
S.: "As pessoas bebem sem gostar, mas bebem porque os outros bebem".
L.: "Eu por exemplo, detesto cara que chega perto de mim com cheiro de bebida ou que esteja num estado.....".
Alguém falou... "anormal".
L.: Faz sinal de que concorda, com a cabeça. "Você acha que eu vou ficar com um cara bêbado pra chegar amanhã e nem saber que ficou comigo?"
W: "Eu acho que é desgosto na família".
K: "Problemas familiares, eu acho que provoca muito isso".
S: "Eu acho que é pra aliviar os problemas".
L: "Eu acho desculpa isso".
A: "Não é nem desculpa cara, se o mesmo cara encheu a cabeça porque que não vai pro butiquim encher..."
W: "Acredito que isso pode ser por problema financeiro, não é só da comunidade".
Retomam a discussão sobre os motivos que levam as pessoas a usarem a bebida alcoólica, num movimento contínuo do diálogo, a partir de suas visões de mundo, das imagens construídas, das vivências estabelecidas, destacando o que Freire define como sendo diálogo, o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo (1983:82).
O impacto da rota do álcool na vida desses adolescentes moradores do Engenho do Mato pode ser analisado pelas enunciações subjetivas quando a discussão grupai se centrou nos motivos que os levam a usarem a bebida alcoólica, e nos relato de experiências vivenciadas nos espaços da rota. Para Guattari, o espaço de educação em saúde pode ser entendido com uma das máquinas produtoras de signos, de imagens, que permite o surgimento da enunciação subjetiva, levando a uma recomposição das práticas sociais e individuais (1993).
Entendemos que as enunciações apresentadas a seguir, em suas fases de codificação, descodificação e recodificação, representam a imagem concreta do álcool na vida dos adolescentes do grupo dessa pesquisa.
L.: "Se em dez pessoas, nove estão bebendo, como que eu não vou beber?".
A.: "Eu bebo depois do trabalho, é muito bom, relaxa".
I.: "Influência, se não tiver cabeça legal, quem tem cabeça fraca vai, mas por que? Quem começou a beber? Não foram os mais velhos, os adultos? Isso não vem deles?"
K.: "Eu passei agora uma época uma série de coisas na minha vida que até cachaça bebi, tive coma alcoólico. Eu bebo a cerveja porque eu sou o tipo do cara que me acho careta, porque também não gosto de cerveja".
Ra.: "Os jovens acham graça disso, eles acham isso sinônimo de maturidade".
A: "Não sabe beber, não sabe nem qual é o gosto da tequila, não sabe o que é tequila..."
K: "A coisa boa de beber é pegar umas mulhezinhas e falar e..."
I: "A pessoa perder a inibição que ela tem normalmente, que ela tá careta..."
K. : "Tem gente que tem o espírito de boiola e bebe pra liberar, depois diz que fez aquilo porque estava bêbado".
S: "Porque às vezes até os pais não querem que o filho beba, ele mesmo tá bebendo, não tá dando exemplo pros filhos".
L: "E tão comum que todo mundo faz".
L. : "A gente escuta, escuta, escuta e começa a achar que é aquilo".
W.: "É pai, primo, tem dentro de casa".
S.: "Começa a ser uma coisa normal, tem dentro do colégio, as pessoas levam cerveja".
L.: "No Fantástico eles perguntam pra meninas no vinhas sobre virgindade, deviam perguntar pras mais velhas, isso estimula, na novela as meninas novinhas já namorando, igual a beber, a gente vê e dá vontade".
S.: "A propaganda com certeza incentiva".
O grupo permaneceu por algum tempo relatando situações que haviam presenciado com pessoas da coletividade que fazem uso abusivo do álcool, o encontro terminou às 22h 15 min., quando agendamos o próximo encontro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procuramos apresentar dados que atenderam aos objetivos desta pesquisa, ou seja, descrever a posição geográfica do álcool na comunidade onde vivem os adolescentes do grupo pesquisador, e analisar o impacto da rota do álcool na construção da imagem do álcool na vida dos adolescentes, no espaço da educação em saúde construída na dinâmica de criatividade e sensibilidade. Dados esses que comprovaram a prática da enfermeira educadora na comunidade utilizando-se do método criativo sensível como alternativa pedagógica através de uma aproximação com o imaginário do grupo pesquisador numa relação dialógica, dialética.
Consideramos ser significativo o tema gerador de debate, surgido na discussão grupai: a dimensão coletiva do álcool na Comunidade do Engenho do Mato. A partir desse tema, identificamos os subtemas: etiología do alcoolismo, efeitos do álcool no corpo humano, álcool e gênero, limites do uso do álcool, problemas e complicações associados ao uso indevido do álcool, o que leva o adolescente ao uso e abuso da bebida alcoólica.
No espaço dialógico e dialético, o surgimento do saber que permeia o senso comum possibilitou a intermediação de saberes; assim como a troca de experiências vivenciadas pelos adolescentes no meio sócio-cultural ou familiar desmistificou a imagem do álcool somente como o gerador de prazer, facilitador das relações, surgindo situações que evidenciaram os prejuízos causados por seu uso abusivo.
Abordar o uso do álcool com os adolescentes não representa uma tarefa simples, já que o uso do álcool, embora não lícito para os adolescentes, traz ambivalência. Por um lado, é uma droga lícita em nosso país, aceito socialmente permitindo um uso indiscriminado, muitas vezes estimulado, e por outro, o seu uso, dependendo da dose, produz uma sensação lúdica, prazerosa ao consumidor.
Na enunciação dos discursos dos adolescentes, aparece bem demarcada a participação dos "mais velhos", da escola e dos meios de comunicação como fatores contribuitivos na construção e na própria relação deles com a bebida alcoólica. No imaginário do grupo essa influência "estimula", naturaliza e reforça o consumo do álcool.
A diversidade de concepções acerca do álcool ficou claramente evidenciada quando se discutiu os motivos que levam as pessoas a usarem o álcool; para uns o álcool é a maneira "para desabafar os problemas", para outro as classes sociais mais baixas sofrem mais pressão, por isso "bebem mais ". Assim como também a diversidade emergiu quando cada adolescente apresentou o que o leva a usar a bebida alcoólica.
Ao final do encontro, o grupo sugere que "alguém mais experiente tem que conversar, se não ela acha que a mensagem da TVé normal"; e que "na escola devia ter uma orientação sobre o álcool, o que ele faz Ficamos a pensar se esses adolescentes, ao refletirem sobre os seus saberes acumulado ao longo de suas vidas, sobre o álcool, apontaram para a necessidade de se de-senvolver uma prática educativa dialógica que contemple a intrasubjetividade do educando.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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9. MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. 3. ed. São Paulo: Ética, 1992.
10. ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. Organización Mundial de la Salud. Promoción de la salud: una antologia. Washington: Publicación Cientifica, 557,1996.
11. TEIXEIRA, Enéas Rangel. A subjetividade na Educação e Saúde - O desejo e a necessidade no cuidado com o corpo. Orientador: Nébia Maria de Almeida Figueiredo. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. Tese. (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.
1. Relatório da tese em fase de qualificação, apresentado à EEAN/ UFRJ
2. Implementado desde os anos 70, pela Fundação Colômbia Nuestra, o mapa falante é um método e uma técnica que faz parte da investigação-ação e aplicado com modificações em projetos camponeses da América Latina. (Educação em saúde e Mobilização comunitária/ Ministério da Saúde/Fundação Nacional de Saúde.1991,p.122).