Volume 2, Número 3, Set/Dez - 1998
O ano de 1998 representou um grande e importante marco para a enfermagem brasileira em geral e para a enfermagem obstétrica em especial. De um lado, a enfermagem atingia 75 anos de história - se tomarmos como referência a criação da Escola de Enfermagem Anna Nery (1923) pelo eminente médico e cientista Carlos Chagas e com ela fundava-se a enfermagem moderna (modelo Nigthingale) no Brasil. Nesse contexto, para quem não sabe, consagrou-se também um modelo de ensino padrão para a enfermagem obstétrica. De outro lado, nesse mesmo ano fomos surpreendidas com a declaração no "Fantástico" do Ministro de Saúde, o Economista, José Serra, quando comunicou à Nação que a prioridade de. sua gestão seria a Saúde da Mulher e nesta institucionalizava -se a participação da enfermeira obstetra na assistência ao parto normal.
Esses dois fatos representam, na minha opinião, a esperança e o prenúncio dos grandes desafios para o ano 2000. A esperança é marcada, nesta oportunidade, pelo reconhecimento governamental da missão e compromisso social dos enfermeiros (obstetras) devidamente institucionalizados (de fato e de direito) - nas unidades de saúde da rede pública - na assistência ao parto e nascimento, esta missão que há 75 anos a enfermeira aprende enquanto profissional (de nível superior) da área da saúde. No Brasil, há algumas iniciativas que a partir dos anos 80 caracterizam a atuação das enfermeiras na assistência ao nascimento e parto (sem distocia), em hospitais: SP, RJ, MG, CE, PE, PA, e BA. O prenúncio de grandes desafios está relacionado com os quantitativos e qualitativos do pessoal de saúde (e de enfermagem) necessários à assistência, dentre outros, da maternidade sem risco, esta que é reconhecida pela constituição brasileira como um direito do cidadão e um dever do Estado.
Não temos dúvidas que a maior preocupação do governo está relacionada com a redução da mortalidade materna e perinatal pois assim tem sido considerada nos Programas de Assistência dirigidos à Mulher e à Criança desde sua criação (MS, PNSMI, 1974,1978,1984,1991,1994). E, dizemos que não temos dúvidas porque, desde aquela época (até antes) e até hoje ainda, constam em documentos oficiais, dentre outros, três fatos concretos: as mortes maternas representam um problema social grave e de saúde relevante; a mulher durante o período reprodutivo está mais exposta à vulnerabilidade e ao risco de adoecer e morrer; e, sobretudo, que se trata de um problema evitável.
Ao final da década de 80 (1975-1985 Década Internacional da Mulher) as mulheres através de suas organizações têm intensificado seus movimentos (ainda frágeis) no mundo inteiro e têm tomado público graves e sérios problemas sociais e de saúde que até anos anteriores eram (privados) difíceis de colocá-los na esfera pública oficial principalmente por razões político-ideológicas. Estes movimentos propiciaram a formação de redes internacionais e nacionais de defesa dos direitos de cidadania (com destaque para o respeito aos direitos reprodutivos) e dos compromissos assumidos pelos governos nas Conferências Internacionais e Nacionais das mulheres.
Sou testemunha que o governo brasileiro tem feito um grande esforço e muitas campanhas para reduzir a mortalidade materna mas também acompanho (desde 1974) que os efeitos dessas políticas e ações não têm sido positivas. Neste particular, quero registrar - como cidadã e profissional de saúde (29 anos de atuação na área) minha perplexidade - há menos de 500 dias de testemunhar a passagem de século XX para o XXI - refiro-me às posições radicais e contrárias ante a determinação do Ministro por parte dos Médicos.
Retomando a declaração do Ministro de Saúde, anunciava-se a Portaria 2 815, de 29/05/98, que, dentre outras medidas, o governo federal reconhece o direito dos enfermeiros obstetras realizarem o parto normal, de forma remunerada pela tabela do Sistema Único de Saúde (SUS) considerada a Lei do Exercício Profissional de Enfermagem 7 498/86 e o Decreto que regulamenta esta Lei 94 406/87. Este acontecimento suscitou muita polêmica. O que nos chamou mais a atenção foi a reação de protesto inconteste dos Conselhos Regionais de Medicina e das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia alegando inclusive que "se instalará o caos".
Em contrapartida, as reações das enfermeiras ante tais protestos - registrados em jornais e revistas e levados ao público, também, através de radio e televisão -têm sido inicialmente de indignação, depois de revolta e por último de compreensão e tolerância (não de alienação); como costumamos dizer na visão reflexiva da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiras Obstetras (ABENFFO): "um campo aberto para um conflito saudável". Esta afirmação tem sua justificativa nos questionamentos que nos formulamos para analisar a situação - problema: corporativismo x trabalho em equipe? Ou tratar a questão "status profissional" x grave situação de saúde da mulher? Ato médico X processo fisiológico? Trabalho centrado na mulher x trabalho centrado no profissional?
Para o Ministério da Saúde (Manuais dos Comitês de Mortalidade Materna): "é dever de todos os brasileiros, seja qual for sua atividade profissional, reduzir a mortalidade de mães e crianças para que o país possa atingir o bem estar social a que todos têm direito ". Para a Dra. Tizuko Shiraiwa, Sanitarista da Escola Nacional de Saúde Pública, Coordenadora dos Programas da Mulher, Criança e Adolescente da Secretaria Estadual da Saúde: esta portaria vem oficializar algo que já existe nos hospitais mas que institucionalmente não tinha o reconhecimento do governo... Como coordenadora dos Programas de Saúde na área vejo esta portaria com uma função mais ampla porque abre o debate sobre a qualidade da assistência obstétrica. O modelo é hoje centrado no médico fato que ocorreu nos anos 60/70 e que a partir dos anos 80 houve uma interiorização da assistência no médico (Jornal Brasileiro de Enfermagem, setembro, 1998, 3). Nessa mesma publicação, a Prof- Terezinha Pereira dos Santos (Titular do Departamento de Enfermagem materno-Infantil e Psiquiátrica da EE/UFF) e a Professora Maria Antonieta Rubio Tyrrell (Titular do Departamento de Enfermagem materno-Infantil da EEAN/ UFRJ) afirmaram: as enfermeiras em sua formação universitária básica, desde o início da graduação, aprendem disciplinas de enfermagem obstétrica, ginecológica, neonatal, clínica obstétrica e enfim todos os conteúdos básicos e os específicos ao atendimento da parturiente. Mas isto não basta. Elas passam por habilitações e especializações até a realização de parto normal de qualidade, a partir destes cursos tornam-se enfermeiros obstetras (de conformidade com a Lei).
Para a ABENFO Nacional e suas Seccionais (SP, RJ, RS, PI, GO, PA, PR, PR, CE e RN), a missão institucional e associativa é com a sociedade através do engajamento e compromisso social na luta e na defesa da melhoria da assistência à saúde da mulher e do recém-nascido. Sua proposta é de caráter interdisciplinar, multiprofissional e multisetorial.
Nesse sentido, assumimos como desafios a curto prazo as recomendações estabelecidas pela categoria, no Seminário Estadual sobre Ensino de Enfermagem para a Assistência ao Nascimento e Parto, realizado pela ABENFO/SP com apoio da EE/USP/RP (15e 16/10/98) e que destacamos a seguir: reiterar a competência técnica e legal da enfermeira para assistência ao nascimento e parto em hospitais, casas de parto e domicílio; defender e estimular propostas de criação e manuntenção de casas de partos visando a qualidade da assistência e humanização do parto viabilizando campos de estágio e trabalho para enfermeiras obstetras e neonatais; investir, buscando financiamento do governo federal, em cursos de especialização em enfermagem obstétrica que atendam a Res. N° 12/83 do MEC, observando a adequação do preparo profissional conforme o perfil epidemiológico de cada região e seguindo as recomendações da ABENFO Nacional; propor o estabelecimento de critérios para financiamento de cursos de especialização através de convênios entre Universidades, ONGs, Fundações, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde; discutir as perspectivas dos cursos de graduação em enfermagem frente à Lei de Bases e Diretrizes da Educação (LDB e a LEP), no sentido de garantir a formação da enfermeira para a assistência à saúde da mulher, com destaque para a assistência ao nascimento e parto fundamentada nos princípios da humanização; propor a formação de redes de Escolas de Enfermagem visando a união de esforços de instituições e enfermeiros docentes e assistenciais para a capacitação e qualificação de enfermeiras para o nascimento e parto; manifestar posicionamento contrário à aprovação do Projeto Lei N° 3 1 75/97, do Deputado Eduardo Jorge (PT/SP), que regulamenta o exercício profissional do técnico de obstetrícia; defender a criação da carreira da enfermeira obstetra nas secretarias estaduais e municipais de saúde, com concurso específico, visando fortalecer espaço de atuação e apoio financeiro e integrando efetivamente suas ações ao SUS; que a enfermeira obstetra e a enfermeira auxiliem na capacitação e supervisão de outros recursos não médicos (parteiras tradicionais, auxiliares e técnicos de enfermagem) que atualmente assistem o nascimento e parto; desenvolver esforços para atuação conjunta das entidades de enfermagem (associações, sindicatos e conselhos) e para a criação de seccionais da ABENFO, no sentido de trabalhar para o fortalecimento e reconhecimento profissional do enfermeiro obstetra; realizar fóruns de debate semestrais para troca de experiências.
Gostaria de encerrar afirmando que abordar esta temática, neste momento crítico da sociedade brasileira, representa uma ousadia e implica em ter coragem para enfrentar os grandes desafios aqui referidos e que em suma são a missão institucional, o compromisso com a sociedade e o papel de vanguarda para o desenvolvimento. A ABENFO, neste ano de 1999, estará comemorando "10 anos" de inserção na ABO (Associação Brasileira de Obste trizes) e discutindo - no II Congresso Brasileiro de Enfermagem Obstétrica e Neonatal (II COBEON) de 13 a 16 de julho, na UERJ: "qualidade da assistência ao parto e nascimento". A convocação está feita: "a enfermagem na luta pela vida " adotando saberes e práticas no caminho (século XXI) da solidariedade e das alianças.