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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 2, Número 1, Jan/Ago - 1998

"Arte significa maneira de fazer bem, de ocupar-se bem, de entreter-se bem. Para chegarmos à arte, isto é, ao bem fazer, é preciso o confronto com alguma coisa difícil desafiando nossa habilidade. Essa situação de desafio é permanente nos ofícios da vida humana. Por isso, a arte está intimamente ligada aos ofícios. Quando o marceneiro faz bem a mesa, quando o músico toca bem o instrumento, o motorista conduz bem o carro, o atleta joga bem a bola, ..., dizemos que são artistas no seu respectivo ofício ...Na arte o que nos encanta é o produto do bem fazer! A coisa, quando bem feita, se revela naquilo que ela é, está mais na força de seu mostrar-se. Assim, o Estado bem governado, o doente bem cuidado, a flauta bem tocada se mostram mais no que são.(Arcângelo R. Buzzi, 1987)

 

1. À GUISA DE INTRODUÇÃO.

Ao realizar um estudo acerca da arte da enfermagem, deparamo-nos com um objeto cuja trama complexa é urdida no cotidiano das ações dos enfermeiros (Caccavo & Rubet: 1997). Verificamos que a arte da enfermagem implica, dentre outras coisas, num compromisso assumido pelos enfermeiros junto à sua clientela, ao mesmo tempo em que é confundida com a aplicação do conjunto das técnicas de enfermagem, além de outras coisas.

Este tema, gostaríamos de pontuar, não é uma novidade absoluta, posto que há mais de cem anos, Miss Nightingale definia a enfermagem como "a mais bela das artes". A arte à qual nos referiremos aqui não é a mesma arte que vemos nas galerias, nos museus, nas praças públicas. Ela é uma arte específica, justamente porque os enfermeiros, quando desenvolvem suas atividades, nada tem "a ver com cinzéis, mármores, mas sim com seres humanos..." (Nightingale: 1989,163)

A arte da enfermagem, portanto, não se encontra num espaço das similitudes e semelhanças, que é o da reprodução das coisas que estão no mundo, através das pinturas, esculturas ou quaisquer outras formas expressivas dos artistas. Tampouco um espaço que representa o concreto e o abstrato numa tela, e nem um espaço conjectural, onde se tecem considerações a respeito das formas, cores, volumes, que podem levar as pessoas ao gozo estético. O cuidado de enfermagem, de acordo com Almeida & Rocha (1986: p. 120), é o objeto de trabalho dos enfermeiros, sendo também a sua atividade fim. Assim, a arte da enfermagem se dá num plano concreto, cuja maior representadvidade é a do cuidado de enfermagem.

Portanto, o objeto desta tese é a arte da enfermagem através do cuidado. Isto porque, de acordo com o relato de Buzzi (1987), a arte está presente nos ofícios e sempre coloca os seus profissionais perante os desafios gerados a partir de suas atividades. Apesar dessa idéia parecer ao mesmo tempo ambiciosa e reducionista, ela implica na formação de uma trama de significados, resultante de um complexo sistema de entendimentos e interpretações.

Nesta tese, partimos da premissa de que, quando estabelecemos uma comparação da enfermagem com outras ciências, apesar de seus avanços e desenvolvimento, vemos que dado o seu pouco tempo de existência, 137 anos, nela quase tudo ainda está em vias de se descobrir, de se construir e de se consolidar, seja no campo das atividades assistenciais, de ensino ou de pesquisa. Isto porque a enfermagem é uma profissão que demanda uma construção cotidiana, acompanhando o desenvolvimento do ser humano, constituindo, dessa forma, a sua experiência profissional e histórica.

Nosso entendimento é o de que esses três ramos de atividades estão intimamente correlacionados e têm uma mesma finalidade. Afirmamos isto porque os liâmes que se estabelecem entre eles acabam, de certa maneira, por fundamentar os diversos tipos de expressividade profissional, contribuindo para tornar o cuidado mais eficaz, qualificando o produto do ofício da enfermagem, quando entendemos que o ofício é, etimológicamente falando, um dever e significa uma ocupação, um trabalho.

Ao nos abstrairmos das especificidades e complexidades que apresentam cada um desses ramos de atividades, podemos perceber que, mesmo aparentando um certo distanciamento desse produto final, eles acabam por servir de pano de fundo para a sua sustentação.

O cuidado faz parte da tessitura de uma trama, urdida no plano do quotidiano das relações humanas, estabelecida no contato direto e indireto entre os enfermeiros e sua clientela. Ele é direto quando os enfermeiros prestam o cuidado que prescrevem, e indireto quando os profissionais se afastam dos clientes para que possam elaborar as próximas atividades junto deles, além de outras correlatas. Portanto, o cuidado está presente em todas as atividades dos enfermeiros, sejam nos espaços institucionais (de ensino, pesquisa, de assistência), nos comunitários e nos domiciliares.

No que se refere ao ensino e à pesquisa, acreditamos poder ousar dizer que o cuidado paira sobre essas duas atividades, mesmo nos diferentes ramos e processos da produção de conhecimento. Tanto assim que a palavra cuidar deriva do latim cogitare, e um de seus significados é pensar. O conhecimento produzido através dos exercícios intelectuais e práticos dos enfermeiros, contribui para que o cuidado se concretize nos seus mais diversos níveis.

De acordo com esse nosso ponto de vista, o processo ensino-aprendizagem contribui para uma perpetuação e cristalização da noção de que o cuidado é uma atividade fim do enfermeiro, além de permitir a continuidade da profissão. A pesquisa traria em seu cume a busca de reflexões dos pesquisadores sobre essa prática, ainda que os temas aparentemente nada tenham a ver com o cuidado propriamente dito. A junção do ensino, da pesquisa e da prática auxiliam na construção das pontes necessárias à concretização do cuidado de enfermagem, bem como podem traduzir um avanço tecnológico para a profissão, posto que esses elementos são aqueles que constituem a experiência histórica profissional.

Na medida em que o significado da arte dos ofícios em geral seja fazer bem, represente um desafio à nossa habilidade, e de que o produto que diz respeito à enfermagem seja o doente bem cuidado, reafirmamos que este é o objeto de nosso interesse.

Por acreditamos que o significado da arte da enfermagem não esteja ainda muito claro para os enfermeiros de maneira geral, ela acaba sendo relegada ao nível das coisas ocultas, abstratas e obscuras. Nosso trabalho buscará clarificar a noção de que a arte da enfermagem é representada pelo desafio de cuidar bem de pessoas.

Através de uma fonte primária, o livro "Notes on Nursing - what it is and what it is not", de Florence Nightingale, buscaremos encontrar aquilo que ela define como parte intrínseca para a realização e concretização dessa arte. Esta fonte será imprescindível para que consigamos retirar os véus que encobrem a plenitude dos significados da arte para a profissão. Isto porque, através das Notas, é que se pode detectar aquilo que ela considera o que é enfermagem e aquilo que a profissão não é ou não deve ser (Nightingale: 1992). Daí que nosso objetivo principal na construção desta tese é explicitar os conceitos e preceitos originais da arte da enfermagem, contidos em Florence Nightingale.

Confrontando as idéias de Nightingale (1989,1992), Lima (1994) e Buzzi (1987), podemos basear a afirmação de que a enfermagem é a arte da convivência de pessoas em níveis individual e/ou coletivo, intermediada pelos diferentes estados de saúde e/ou doença. Seus profissionais têm como base a compreensão de que a saúde das pessoas depende de seus estilos de vida. Ela é uma profissão dinâmica e contemporânea, por estar inserida na construção dos contextos sócio-históricos, em que pese a saúde dos indivíduos e dos grupos humanos.

Ós enfermeiros incorporam, em seu cotidiano, reflexões novas sobre temas, problemas e ações porque o seu princípio ético é o de manter ou restaurar a dignidade da pessoa em todos os âmbitos da vida, através do cuidado que presta a ela. Por isso, os enfermeiros são partícipes da sociedade, atuando nos campos da assistência, de ensino e de pesquisa.

Um outro objetivo desta tese é investigar de que forma o cuidado prestado à clientela na atualidade tem consonância com os preceitos e conceitos de Florence Nightingale. Abordaremos esta temática, baseados em categorias detectadas nos apontamentos do livro de Nightingale (1992), pois elas contém elementos que sugerem a afirmação de que a arte da enfermagem é efêmera, graciosa e perene.

Esses elementos servirão para que, ao final deste estudo, possamos defender a seguinte tese: "A Arte da Enfermagem comporta três dimensões que a consubstanciam, quer sejam: a efemeridade, a graciosidade e a perenidade. As ações dos enfermeiros, voltadas para o cuidar bem de sua clientela, devem trazer em seu bojo essas três dimensões."

De acordo com nossa vivência e experiência, podemos detectar que, na atualidade, ainda perdura uma certa dificuldade compreensiva da importância do cuidado para a consolidação da arte da enfermagem. Nightingale(1989:163), de uma maneira crítica, apontava, em 1859, um dos impedimentos para que a arte se concretizasse:

O que mais me espanta em relação às senhoras que se autodenominam enfermeiras é que não aprenderam o abecê da educação de uma enfermeira. O a de uma enfermeira deve ser o conhecimento do que significa um ser humano doente. O b é saber como comportar-se com uma pessoa doente. O c é saber que seu paciente é um ser humano enfermo, não um animal.

Ao apontar aquilo que a enfermagem é e aquilo que ela não é, Nightingale retifica a importância de que as enfermeiras lidam com pessoas,3 estabelecendo também os princípios de uma ética profissional.

É certo que, desde Florence Nightingale, a enfermagem tem passado por um processo de refinamento no que diz respeito aos seus princípios e meios, podendo ser concretamente compreendidos através: a) da formulação de leis que regulamentam o exercício da profissão; b) do surgimento de um código de ética e deontologia; c) do nascimento de associações de classe que têm por finalidade a divulgação da cultura e da ciência de enfermagem, além de outras que fiscalizam o exercício profissional e tratam de questões relativas às reinvidicações da classe; d) do surgimento das teorias de enfermagem, que têm sido consolidadas ao longo deste século, além de outros.

Cremos que esta tese poderá trazer à tona aquilo que se compreende por parte da enfermagem na atualidade, principalmente se apoiarmos nossos achados na solidez dos preceitos e conceitos críticos de Florence Nightingale.

Ousamos destacar que mesmo com os avanços consideráveis da enfermagem, alguns de nossos achados podem dar origem a novos significados, principalmente se analisados sob uma óptica compreensiva. Da mesma forma que a senhora Nightingale tecia críticas sobre o estado de coisas da enfermagem à época, seria importante não perdermos de vista a possibilidade da emersão de alguns traços impeditivos para que a arte da enfermagem possa emergir.

Por isso, provavelmente esta tese também desvele aquilo que consideramos como uma contraposição à arte do bem fazer, posto que os enfermeiros podem não se entreterem bem e tampouco se sentirem desafiados em suas habilidades de bem cuidar.

 

I.I. ARTE DA ENFERMAGEM: IMPLICAÇÕES PARA A EMERSÃO.

Não sabemos ainda explicitar em sua totalidade a dimensão arte da enfermagem contida no cuidado. O que podemos perceber é que há um distanciamento compreensivo entre a arte propriamente dita e os ofícios de maneira geral. Esse distanciamento foi solidificado, provavelmente, pela construção de uma mentalidade ancestral, calcada numa ideologia positivista, que ainda apresenta seus reflexos em nosso cotidiano. Segundo Buzzi (1987:171):

Nas antigas academias ensinavam-se e aprendiam-se, juntos, as artes e os ofícios. As universidades de hoje, no esquecimento da identidade do útil e do belo, separam as artes e os ofícios. De um lado estão as escolas de belas-artes que produzem o belo; de outro lado as faculdades de ciências e tecnologia que produzem o útil.

No que diz respeito à formação de profissionais de maneira geral, e mais especificamente a dos enfermeiros, acreditamos poder ousar dizer que esse tipo de mentalidade pode levar à predominância dessa ideologia, fazendo que os profissionais não percebam o conteúdo e a importância da arte para o seu ofício. Isto corrobora para a cisão entre o que tem de arte o ofício, apesar da arte ser o resultado das ações do ofício, posto que possuem a mesma importância no exercício das profissões.

No plano das generalizações, cremos poder afirmar que este tipo de mentalidade concorre para a dissolução da aquisição de uma atitude crítica dos profissionais perante a importância de seu objeto de trabalho - o cuidado. Essa mentalidade também pode fazer com que os profissionais adquiram uma postura contrária à aceitação de que a arte está contida em suas ações. Desde que ela não represente para eles um desafio. A atitude pouco reflexiva dos enfermeiros poderia colocar em risco tanto a geração do saber da profissão quanto a sua aplicação.

A decifração do cuidado, a partir da fonte primária de estudo, citada anteriormente, aliada às possibilidades de descobertas arqueológicas da extensão desse saber, permitirá um aprofundamento das questões relacionadas ao presente objeto de estudo. Cremos que isso facilite a emersão da plenitude concreta e simbólica da arte através do cuidado, partindo de uma investigação e análise acuradas.

Isto é necessário porque, ao fazer com que a enfermagem adquirisse o status de profissão, Florence Nightingale estabeleceu um corte epistemológico que permitiu a constituição da Enfermagem como ciência. Segundo Japiàssú (1979: 19), corte epistemológico é uma "necessidade intelectual de se definir a atitude científica em oposição à atitude pré-científica [...] momento em que uma ciência se constitui "cortando" com sua pré-história e com seu meio ambiente ideológico. "

Através desse corte, ela determinou principalmente as diretrizes da profissão, instituindo o cuidar bem de pessoas. Com isto ela também funda uma nova abordagem à saúde das pessoas, baseada no corpus doctrinae do ofício dos enfermeiros, cujos fundamentos e características especiais corroboraram a transmutação do cuidado aos enfermos numa arte.

Uma outra implicação para a compreensão da arte da enfermagem baseia-se na influência de alguns elementos considerados como essenciais para a profissão. Suas inferências contribuem, numa certa medida, para ocultar essa arte, pois acreditamos que eles sejam baseados na ideologia newtoniano-cartesiana apontada também por Capra (1988). O autor relata que, na atualidade, a assistência à saúde das pessoas baseia-se no modelo biomédico ocidental, derivado dessa corrente ideológica. Ele também ressalta que as enfermeiras fogem a esse paradigma, no momento em que sua assistência aos doentes é diferenciada, pois elas têm uma visão holística das pessoas que apresentam problemas de saúde. Isso faz com que elas cindam com o modelo consolidado, rompendo com a noção de que a patologia é mais importante do que a pessoa que estaria por detrás dela.

Contudo, há na própria definição da profissão alguns modelos que ajudam a criar distorções, como pode ser detectado em Stewart (apud Almeida & Rocha, 1986: 31). Para o autor, a enfermagem, esquemáticamente, tem características de ciência, de arte, intermediadas pelo espírito da profissão. Nesta concepção, esses elementos se complementam, caracterizando os enfermeiros como agentes na promoção da educação preventiva e ação curativa junto ao indivíduo, à família e à comunidade. Esse autor associa a esses três outros elementos que determinariam uma certa expressividade dos enfermeiros, quer sejam, o coração, a cabeça e a mão.

Refletindo acerca desses elementos, pudemos perceber que, na atualidade, eles confundem mais do que explicitam a definição de enfermagem. Tampouco naquilo que residiría a sua arte. Isto porque a etimologia da palavra arte é techne, palavra grega cujo significado representa os ofícios de maneira geral, ou o produto das atividades de seus profissionais. A palavra ciência se confunde, numa certa medida, com a palavra tecnologia, posto que a ciência e a tecnologia são entendidas pelo senso comum contemporâneo como coisas correlatas. A tecnologia é uma palavra que, por sua vez, deriva da palavra técnica.

Ponderando acerca dessa descrição, ela nos faz supor que, por associações e analogias, a similitude existente entre esses conceitos acaba por envolver numa névoa a techne-arte. Como arte e técnica se assemelham, o seu desdobramento faz com que a fôc/zne-técnica perdure como noção de arte. Isto nos nos faz supor que os enfermeiros podem interpretar dessa maneira a verdadeira arte da enfermagem, julgando-a e compreendendo-a como um conjunto de técnicas.

Fazendo outras associações de palavras, com o intuito de refletir acerca da concretude da arte da enfermagem, é possível observarmos que a palavra espírito, de acordo com um dos significados correntemente aceitos pela filosofia, quer dizer o uso da razão ou do intelecto. Talvez o verdadeiro espírito da enfermagem resida não somente na compreensão do espírito-alma, como tem sido feito até então, pois esse fato contribui para que persista a noção de que os seus profissionais, ao optarem por ela, estão exercendo um sacerdócio. Não que a profissão em si não o seja. Mas, o que gostaríamos de ressaltar, é que este tipo de mentalidade possui reflexos não muito positivos na totalidade das expressões dos profissionais. Isto porque ele corrobora o surgimento de um imaginário próprio, o de que seus profissionais devem ser devotados, obedientes, cordatos.

Além desses elementos, não podemos deixar de tecer considerações a respeito das representações e significados de coração, cabeça e mão. Interpretando esses elementos, à luz da concepção de Stewart (In Almeida & Rocha, op. cit.), eles são apresentados de uma forma esquemática e positivista. Nela, eles estão separados uns dos outros, como se não fizessem parte de um mesmo conjunto - o do corpo humano e suas conexões.

Se essa noção perdurasse no imaginário profissional, e se esses elementos fossem compreendidos e interpretados separadamente, isto poderia facilitar a criação de idéias dissolutivas do corpo que, diga-se de passagem, é capaz de uma gama variada de expressividades que transcendem a própria definição em si mesma.

O que tentamos reforçar nesta tese é a idéia de que o cuidado propriamente dito implica numa ação - o cuidar. O cuidar, por sua vez, deriva do latim cogitare, que significa imaginar, pensar, meditar, ter cuidado, tratar.

Estando diante desses impasses elementares, mas transitórios, refletimos ainda sobre o significado de saúde, de doença e de enfermagem. Definir aquilo que seja saúde e doença é difícil para o senso douto, pelo fato de que elas comportam idéias diretamente associadas à uma concepção crítico-filosófica que se adote do homem (Bunge, 1987).

Da mesma forma que para o senso douto é difícil definir saúde ou doença, Florence Nightingale teve dificuldades para definir o conjunto da sistematização do conhecimento que construiu e constituiu, denominando Enfermagem à profissão. Ela partiu de sua própria vivência e experiência para criar as bases da profissão, quer sejam as intrínsecas ou as extrínsecas.

Ela se refere à enfermagem como a mais bela das artes e, sendo assim, perguntamos: se no cenário das instituições hospitalares os enfermeiros são os responsáveis pela arte quando cuidam bem dos doentes, que tipos de aproximações eles fazem com os preceitos e conceitos contidos nas notas de Florence Nightingale para consolidar esta arte?

O questionamento acerca da consolidação da arte da enfermagem no cenário institucional tem importância, na medida em qúe a criação do hospital está intimamente relacionada à diversas influências, segundo a interpretação do senso douto. Dentre elas podemos citar: a catalogação das doenças, a ordenação dos corpos na instituição, a transmutação da mentalidade de salvação das almas em processo de cura dos corpos doentes, a formação de um espírito científico, um espírito racional, que transformou pessoas - os doentes -, em objetos de produção de saber. Permeando tudo isso, houve também uma institucionalização de uma luta concreta pelo poder mediado pelo saber, como pode ser constatado em Luz (1988) e Foucault (1987a e 1989).

A racionalidade fortaleceu a criação e junção de um imaginário e de uma ideologia institucional baseados na eficácia e eficiência. Nesse sentido, reforça-se a idéia contida na crença de que os enfermeiros são bons profissionais quando, dentre outras coisas, lidam com as técnicas, com o aparato burocrático e administrativo, se responsabilizam pela ordem e disciplina na instituição, além de terem de se haver com a parafernália tecnológica que a instituição abriga.

A associação truncada de todas essas coisas acaba por levar os enfermeiros à uma sobrecarga de atividades, contribuindo para o ocultãmento das reflexões necessárias acerca da arte do bem fazer. Isto porque essas coisas fazem parte de uma manipulação de símbolos, possibilitando a criação de um imaginário, dentre outros, de que o trabalho dos enfermeiros é menos nobre do que o de grupos considerados hegemônicos. Não podemos deixar de referir que alguns enfermeiros se utilizam da sua pouca valorização e reforçam esse tipo de imaginário institucional. Percebemos que o pano de fundo desse subterfúgio, corrobora o afastamento deles de seus clientes, impossibilitando a emersão da arte.

O entrelaçamento das ideologias institucionais acaba por retirar os enfermeiros do contato direto com sua clientela, eliminando-se, tanto dos enfermeiros quanto de seus clientes, qualquer possibilidade de expressão sensível (Caccavo, 1993: 08). Parece-nos que a trama complexa que se forma nas instituições hospitalares dificulta a emersão dessa bela arte.

Um novo paradigma, que parece ir de encontro à essa ideologia, é o da enfermeira sensível, que utiliza o seu corpo como instrumento do cuidado (Figueiredo, 1994). Isto porque, segundo a autora, durante as atividades dos enfermeiros, há uma certa predominância da utilização dos órgãos dos sentidos, e podemos citar exemplos como: a) S o tato, quando eles tocam sua clientela, ¿ promovendo a troca de sensações energéticas, como o frio ou o calor das " mãos; b) o olfato, quando detectam disfunções orgânicas dos clientes, que causam odores desagradáveis, ou ainda quando reconhecem seus clientes pelos odores agradáveis que emanam de seus corpos, após o banho; c) o gosto, ao experimentar o alimento que será servido, além da temperatura do mesmo; d) a audição e a visão, quando estabelecem uma interação no processo de comunicação terapêutica. Isso serve apenas para exemplificar alguns dos momentos em que a arte da profissão emerge na complexidade do cotidiano das atividades dos enfermeiros.

Acreditamos que uma certa ausência da elaboração dos elos necessários ao estabelecimento de transações interpessoais das pessoas desse grupo é corroborada pela junção de todos os fatores descritos anteriormente, podendo tornar o processo de assistir em um processo mudo e estéril.

Mudo, porque o imaginário hospitalar exige silêncio das pessoas para que se estabeleça o processo de cura dos doentes, sendo que é, simbolicamente, uma enfermeira a responsável por esse pedido. Além do silêncio, os corpos devem se transformar em dóceis objetos para que se concretize a cura. Segundo Loyola (1987), a docilidade dos corpos é não somente a dos doentes mas também a dos enfermeiros que lá atuem.

Estéril, porque a ideologia constitutiva ancestral, que nele perdura, está pautada na retirada dos efeitos miasmáticos e deletérios que as doenças exerciam sobre a saúde dos indivíduos. O hospital, além de não promover a cura dos doentes, pelo contrário, contribuía para a disseminação das doenças entre os doentes que lá se encontravam. A criação do hospital "moderno" propôs uma transformação na conduta das pessoas, tanto dos profissionais quanto dos doentes. Dentre as modificações consideradas necessárias à época de sua criação, iniciou-se um processo de catalogação das doenças e dos doentes, cristalizando a separação dos corpos (Foucault, 1989). Numa certa medida, isto contribuiu para a criação de um imaginário que afastaria os profissionais dos enfermos, daí a esterilidade do processo.

Permeando esse contexto sócio-institucional, que privilegia a utilização da seriação como forma de produção de trabalho e da aplicação das técnicas, criam-se os chamados vícios profissionais. São esses vícios que se somam aos fatores anteriormente descritos, e fazem com que os profissionais introjetem sua expressividade, repetindo sempre as suas atividades, em atendimento e obediência às rotinas hospitalares.

Neste caso, sob a influência desses fatores, a assistência de enfermagem, que deveria contribuir como mais um fator de integração entre pessoas, pode transmutar-se em mera reprodução de vícios. Isto cria um vácuo no relacionamento entre elas, facilitando o velamento da arte do cuidado.

Um outro fator que nos acorre e que se soma aos anteriormente descritos, é o de que na instituição hospitalar há também a crença na necessidade de um certo distanciamento entre razão e emoção para que a ordem institucional não seja rompida, o que poderia originar a formação de um abismo emblemático entre clientes e enfermeiros. Segundo uma interpretação dessa mentalidade institucional, o cuidado de enfermagem teria de ser prestado sem emoção e de uma forma asséptica, impedindo o rompimento dessa ordem. O peso que isso representa para o cotidiano dos profissionais acaba por contribuir na formação de um imaginário: o de que eles devem colocar suas expressividades no lugar recôndito dos desejos, afastarem-se emocionalmente de seus clientes e não permitirem aos enfermos qualquer tipo de expressão.

Ousamos afirmar isto porque a verdadeira arte da enfermagem ainda situa-se no plano das interrogações, apesar de refletir o bem fazer. Sem que possamos nos dar conta da amplitude desse fato, seu reflexo no cotidiano das atividades dos enfermeiros é imediato, podendo tornar esta parte intrínseca do saber profissional numa coisa fluida, abstrata e distante.

Tendo em vista a complexidade dos significados e significações abrigadas pela instituição hospitalar, questionamos: de que forma, e sob que condições, a arte da enfermagem emerge, face a todos esses impedimentos e implicações ?

De posse das categorias que irão ser constituídas nesta tese e que tratarão da arte da enfermagem, e mais apropriadamente sobre o processo de bem fazer dos enfermeiros, associados aos preceitos e conceitos de Florence Nightingale, iremos em busca da sua graça, do seu efêmero e da sua perenidade.

Buscando encontrar a plenitude de seus significados, cremos poder estabelecer algumas bases para o redimensionamento, a reconstrução e a reelaboração desta área abrangente, e ao mesmo tempo específica, do saber da enfermagem. Nossa opinião é a de que poderemos contribuir para a retirada do véu que recobre este objeto, tornando claro o obscuro, e o bom cuidado dos clientes uma coisa desejável.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1. Este artigo é parte do Projeto de Tese de Doutorado intitulado "A Arte da Enfermagem: Efêmera, Graciosa e Perene", apresentado, em novembro de 1997, ao Curso de Doutorado da Escola de Enfermagem Anna Nery-UFRJ.
2. É importante dizer que Nightingale (1992) descreveu, no prefácio, que o livro continha sugestões para enfermeiras e mulheres que teriam ao seu encargo o cuidado de pessoas enfermas. Por isso, utilizamos a palavra enfermeiras. No que diz. respeito, na atualidade, ao conjunto de profissionais que a compõem, utilizaremos a palavra enfermeiros.

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