ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 2, Número 1, Jan/Ago - 1998

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente estudo, inserido na linha de pesquisa Escolas de Enfermagem na Sociedade Brasileira, é o resultado do interesse em mim despertado durante minhas atividades como bolsista de iniciação científica do CNPq, atuando no projeto integrado de pesquisa intitulado A carreira e a profissão de enfermagem na sociedade brasileira1. Seu objeto é a presença de alunas Religiosas Vicentinas na Escola de Enfermagem Anna Nery, nas décadas de 20 a 40.

Esta pesquisa tem como objetivo discutir as relações entre o ingresso e a evasão de Religiosas1 2 na Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), durante as gestões, em sua direção, de enfermeiras norte-americanas e brasileiras.

O desenvolvimento deste relatório de pesquisa estrutura-se da seguinte forma:

 esboço da trajetória da EEAN desde sua criação (1923) até a formatura da primeira turma de Religiosas da Escola (1942);

 descrição do cotidiano das Irmãs Vicentinas e sua inserção nas escolas de enfermagem;

 análise e discussão do cotidiano das Religiosas matriculadas em 1931 e 1939.

Acredita-se que a presente pesquisa possa contribuir para o desenvolvimento dos estudos de história da enfermagem brasileira, esclarecendo o motivo por que somente em 1942 formaram-se as primeiras Religiosas matriculadas na Escola Anna Nery (EAN).

 

METODOLOGIA

O presente trabalho constitui um estudo de abordagem histórico-social.

Seu recorte temporal compreende o período de 1923 a 1942, tendo como marco inicial a fundação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 19 de fevereiro de 1923 e, marco terminal, em 1942, pelo fato de nessa data ter ocorrido a graduação das primeiras Religiosas alunas da EAN.

Seus sujeitos são as Religiosas que ingressaram na EEAN, três em 1931 e onze em 1939, todas pertencentes à Congregação de São Vicente de Paulo.

Utilizaram-se, como fontes primárias, o acervo do Centro de Documentação da Escola Anna Nery, entre os quais dossiês de alunas e documentos produzidos pelas Diretoras (relatórios narrativos3 e das atividades4, cartas, discursos, atas e recortes de jornais da época estudada) e o Livro de Registro dos alunos inscritos na EEAN. Além destas fontes, analisaram-se fotografías que não só serviram para a ilustração do trabalho mas também confirmaram a presença de Religiosas nas escolas de Enfermagem durante o período de tempo estudado.

A seleção dos diversos documentos acima referidos foi determinada pelos conteúdos relativos à presença das Religiosas como alunas da Escola.

A análise do material selecionado objetivou a obtenção de indicadores (motivações, atitudes, valores, crenças e tendências) que permitissem a inferência de conhecimentos, pois, segundo Triviños (1990:160), os documentos à simples vista, não se apresentam com a devida clareza.

Constituem suas fontes secundárias, bibliografia referente à história da enfermagem, ao contexto sócio-histórico da época e à vida das Religiosas dentro desse espaço de tempo. Com a finalidade não só de complementar mas também de esclarecer os dados obtidos, tanto nas fontes primárias quanto nas secundárias, e dar-lhes maior consistência, realizaram-se entrevistas semi-estruturadas, características de uma metodologia qualitativa, partindo de questionamentos básicos, cujas respostas interessavam à pesquisa. Como exemplo de tais questionamentos, pode se citada a escolha da EEAN e o seu dia-a-dia, na época estudada. Das respostas obtidas, surgiam novos enfoques para o desenvolvimento da entrevista.

Realizaram-se três entrevistas que, com a autorização das depoentes, foram gravadas e puderam ser utilizadas para o presente relatório.

Na fase inicial do presente estudo, surgiram três obstáculos que dificultaram a obtenção de dados relativos à totalidade dos sujeitos desta pesquisa. Foram eles:

 a distância entre o Rio de Janeiro e o Estado onde hoje residem algumas Irmãs formadas em 1942;

 a saúde precária e o falecimento de algumas dessas Irmãs;

 a negativa, por parte da Congregação, para o fornecimento de informações a respeito da vida religiosa das Irmãs.

 

AS IRMÃS VICENTINAS E A PRÁTICA DA ENFERMAGEM NO BRASIL

Tradicionalmente, o exercício da enfermagem esteve, desde a Idade Média, estreitamente ligado às Ordens religiosas católicas e, a partir do século XVII, à Congregação fundada por São Vicente de Paulo, por ele chamada das Filhas da Caridade, conhecida com mais freqüência como das Vicentinas ou, ainda, das Irmãs de Caridade.

Antes de a chamada "enfermagem moderna" chegar ao Brasil5, ainda no Império6, eram as Religiosas Vicentinas que cuidavam dos desamparados e doentes, auxiliadas por atendentes desprovidos de qualquer preparo formal prévio. Aliavam aos cuidados de seus pacientes um apostolado que os levasse à conversão religiosa, ajudando, assim, na moralização e na disciplina dos grupos humanos.

Diversos autores, entre aqueles dedicados ao estudo da história da enfermagem e consultados para a presente pesquisa, apontaram inúmeras falhas relativas à formação técnica necessária ao exercício da profissão.

Tratando da constituição dos quadros profissionais da enfermagem anteriores à vinda da Missão Rockfelller, Sauthier (1996:94) atesta que nesta época exerciam a enfermagem as Irmãs de Caridade, enfermeiras estrangeiras (filhas de diplomatas ou pastores protestantes), pessoal treinado na escola do Hospital dos Alienados e nas escolas da Cruz Vermelha, visitadoras preparadas pelos médicos sanitaristas e atendentes (preparadas informalmente, em cada hospital).

Forjaz (1959:317-18) preocupa-se com este tipo de problema, analisando a ação das Religiosas:

... as religiosas recrutavam atendentes entre os próprios indigentes, na falta de elementos mais adequados. Mas apesar do devotamente que as inspirava, as falhas do serviço hospitalar eram enormes...

Devido à importância da dupla percepção do profissional de enfermagem, isto é, daquela tida pelas Religiosas em questão e da que foi instituída por Florence Nightingale, vale retomar uma idéia já anteriormente esboçada.

Em geral, a literatura a respeito dos cuidados de enfermagem, oferecidos na época em foco, estabelece uma diferença ideológica entre o modelo religioso e o "nightingale"7. Este último enfatiza o aspecto fundamental da formação de seus profissionais, valorizando a formação técnica dos enfermeiros. Sua inspiradora, embora de religião Presbiteriana, adepta da seita puritana, adotou princípios básicos preconizados por Luiza de Marillac para as "filhas da Caridade". A diferença básica entre os dois modelos parece ser o objetivo específico das Vicentinas, a saber, o de valorizar o servir primeiro a Deus na pessoa dos doentes e, assim, cumprir a missão de apostolado recomendada por São Vicente de Paulo, seu fundador.

Nunes (1997:501) acrescenta que a mentalidade moderna, nas décadas de 20 e 30, passou a exigir preparo profissional e habilitação técnica específica para o exercício das diversas profissões, atingindo, assim, o próprio cerne da atividade das profissionais em exercício nas Santas Casas da Misericórdia:

Enquanto predominou na sociedade uma visão sacralizada de mundo, foi possível às religiosas, por esse título, exercerem tarefas para as quais não estavam tecnicamente habilitadas. Porque eram "irmãs de caridade " podiam ser professoras, enfermeiras ou assistentes sociais; nenhum diploma ou curso era exigido delas.

Além disso, o Estado tornou-se cada vez mais presente no campo social, ampliando os serviços da previdênscia, o que dificultou ainda mais, para as Religiosas, a manutenção de seu trabalho nas diferentes obras a que se dedicavam.

Pinheiro ( 1962:463) afirma que, quando surgem as Escolas de Enfermagem e a enfermeiras laicas, as Congregações de idéias mais amplas percebem a inaptidão de seu grupo e a inferioridade em que ficariam caso não preparassem seu pessoal hospitalar.

A irmandade de São Vicente de Paulo foi a primeira a tomar a iniciativa. Matriculou Irmãs nas Escolas Ana Neri e Carlos Chagas e pôde, assim, criar, no Rio de Janeiro, seu próprio centro de formação de enfermeiras, a Escola Luiza de Marillac (...) fundada em 1939.

Vale, aqui, traçar a trajetória das Irmãs de Caridade na procura de sua profissionalização.

Em 1931, ao desejarem ingressarem um Curso de Enfermagem, as Irmãs de Caridade tinham-se visto obrigadas a se inscrever numa escola leiga', a escola padrão oficial (EAN), sediada na então Capital Federal (a cidade do Rio de Janeiro), por ser esta a única a oferecer ensino com modelo de enfermagem moderna.

A carência de uma instituição que formasse enfermeiras com orientação católica persistiu até a fundação da Escola Carlos Chagas9, em Belo Horizonte, em julho de 1933, data em que nela se matricularam quatro Religiosas. A permanência em sua Direção, até novembro de 1938, de uma católica convicta, D. Laís Netto dos Reys, viria a favorecer o ingresso de candidatas Religiosas numa Escola de Enfermagem que, apesar de leiga, possuía uma intensa vida religiosa, de orientação católica10 e utilizava, como campo de estágio, um hospital da Ordem de São Vicente de Paulo (Hospital São Vicente de Paulo).

 


Foto 1- em destaque D. Laís N. dos Reys.12

 

Assim sendo, foi a Escola Carlos Chagas a primeira a formar Religiosas enfermeiras no Brasil, entre as quais encontrava-se a Irmã de Caridade Matilde Nina (formada em 1936)11.

A presença da Igreja Católica é tão marcante que, ao analisar a foto da despedida de Laís Netto dos Reys da direção da Escola Carlos Chagas, se verifica a presença de diversas congregações religiosas, entre as quais a de São Vicente de Paulo (Irmãs Vicentinas).

 

O COTIDIANO DAS IRMÃS DE CARIDADE: A DIFICULDADE DE ADEQUÁ-LO A ESCOLAS LEIGAS

Nunes (1997:497-98) traz alguns costumes observados pelas Religiosas Católicas em geral e, portanto, pelas Irmãs de Caridade, antes da "renovação e adaptação" ocorrida nos anos 60, após o Concilio do Vaticano II.

De início, cita a existência da idéia da "separação do mundo", àfuga mundi dos antigos. Comenta o ideal religioso compreendido como negação de valores, comportamentos e normas correntes na sociedade, já que os costumes conventuais e as formas de comportamento das religiosas deveriam marcar essa distinção em relação "ao mundo": modos de vestir, - pesados hábitos religiosos, em muitas congregações inspirados nas camponesas européias; os altos muros ao redor da área conventual e até dos colégios; os horários rígidos; as exigências de silêncio às refeições; a obediência estrita e inquestionável às "Superioras"; as penitências; a primazia dos exercícios cotidianos em comum (base da chamada vida em Comunidade). Tudo isso, enfim, criava um mundo à parte, cheio de mistérios que povoavam a imaginação de quantos se acercavam das pessoas consagradas a Deus.

Essa forma de viver tanto ocorria nos conventos - sede das Congregações e Ordens - quanto nas "obras" - colégios, hospitais e casas de assistência, como asilos e orfanatos, onde grupos de Irmãs trabalhavam e viviam em Comunidade.

A autora anteriormente citada descreve, ainda, o costume do silêncio noturno, o "silêncio sagrado" ou "grande silêncio", quando, do início da noite até a manhã do dia seguinte, as Religiosas permaneciam absolutamente silenciosas, sem se comunicarem umas com as outras, a não ser em casos considerados de real necessidade.

Pelo que acima está exposto, torna-se claro que este tipo de vida dificultava a adaptação das Religiosas às Escolas leigas.

Barbosa (1989:21 ) afirma que até a criação da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac, em 1939, só existiam no Brasil Escolas de Enfermagem leigas e, como a vida religiosa naquela época possuía algumas exigências difíceis de serem cumpridas fora da Comunidade, tornava-se complicado para as Religiosas cursarem Enfermagem.

De sua fundação até 1931, a EAN esteve sob a direção de enfermeiras americanas. Foram elas: Clara Louise Kieninger, Loraine Geneviève Dennhardt e Bertha Lucile Pullen13; esta última retornou ao Brasil após a morte da primeira diretora brasileira (1933) para ocupar o cargo de 1934 a 1938.

É de se estimar que a religião protestante, professada pelas enfermeiras norte-americanas, tenha exercido significativa influência sobre a demanda, por parte das Religiosas católicas brasileiras, pelo Curso de Enfermagem recém fundado.

Durante os anos de exercício de Bertha Pullen na direção da Escola Ana Neri, entre 1928/1931 e 1934/1938, nenhuma Religiosa católica teve ingresso nessa Escola, ao contrário do que se observava por parte de candidatas protestantes.

Segundo Sauthier (1996:193), as candidatas encaminhadas pelo chanceler da Federação das Escolas Evangélicas do Brasil, Erasmo Braga, amigo de Miss Pullen, eram bem vindas.

Ao chegar ao Brasil, as enfermeiras da Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil encontraram o domínio católico da sociedade e, portanto, da prática da enfermagem, já que a religião católica era a religião oficial do país. Ao implantar a enfermagem moderna, essas enfermeiras em sua maioria, apesar da confissão cristã evangélica, souberam conviver com essa realidade, respeitando as autoridades eclesiásticas e as práticas da religião católica (Nimo, 1997:13). Apesar do respeito demonstrado por essas enfermeiras da Missão, nota-se a apreensão de superiores religiosos católicos que não permitiram o ingresso de nenhuma Religiosa na EAN até 1931, data da gestão da primeira Diretora brasileira, Rachel Haddock Lobo.

No período compreendido entre 1921 e 1931, dez anos de permanência da Missão, não se criou outra escola de enfermagem, a não ser a Escola Anna Nery.

Em 1931, a Escola de Enfermeiras Anna Nery foi considerada a escola oficial padrão e cujo propósito era o de garantir um alto nível de formação profissional de enfermagem no Brasil, para equiparação e reconhecimento de outras escolas de enfermagem que viessem a serenadas (Baptista, 1997: 33-4).

Somente quando tomou posse a primeira Diretora brasileira, católica, Rachel Haddock Lobo (1931 a 1933) ocorreu a matrícula das primeiras Irmãs de Caridade14. Isto se deu em 31 de julho de 1931, após entendimentos e acordo mútuo com a Superintendente do Serviço de Enfermeiras e Chefe da Missão, Ethel Parsons (2 de setembro de 1921 a 3 de setembro de 1931, período de sua permanência no Brasil).

Três foram as Imãs então admitidas na condição de alunas externas, já que, conforme visto anteriormente, por serem Religiosas, não podiam permanecer no internato: Imã Margarida Villac, Imã Pinto, com o nome completo de Imã Eugênia Pinto, e Imã Thereza Carvalho15.

Dos Registros da Escola pode-se obter alguns dados sobre cada uma dessas Irmãs:

Helena Villac (Irmã Margarida Villac) possuía o Curso Normal e preparo anterior, com cinco anos de prática em enfermagem na Santa Casa da Misericórdia. É ela quem presta o seguinte depoimento:

A missão da enfermeira é uma das mais sublimes a que pode aspirar uma moça, pois não só lhe permite dedicarse à cabeceira dos enfermos hospitalizados, como lhe dá o grande consolo de ver, abrir-se alegremente as portas das mais vis (..) onde a sua presença voe, como um raio de sol, para confortar e aliviar os males physicos e moraes. Para servir a Jesus na pessoa dos pobres, é que me dedico a esta Arte. (31/ 07/31)

Desistiu da EAN em 15 de outubro de 1931, por motivo de saúde precária, tendo estado com sinusite nos primeiros quatorze dias do mesmo mês.

Apesar de não ter completado o Curso na EAN, formou-se, mais tarde, em outra Escola16, chegando a tornarse uma das diretoras da Escola de Enfermagem Luiza de Marillac.

Eugênia Pinto (Irmã Pinto) também possuía o Curso Normal e preparo anterior, com oito meses de prática de enfermagem no Hospital "École des Peupliers",'em Paris, tendo, por isso, obtido, por ocasião de seu ingresso na EAN, créditos relativos a esse tempo. Apesar da matrícula na Escola, mais tarde foi trabalhar em colégios, não tendo permanecido na profissão de enfermeira. Pode-se presumir que essa desistência tenha-se devido a peculiaridades da vida religiosa, já que, segundo depoimento colhido durante a pesquisa,

As religiosas, ao professarem voto de obediência, a qualquer momento podem deslocar-se de uma região do país para outra, como também mudarem seus ofícios, de acordo com a necessidade da Congregação.

A seguir, seu pensamento sobre os cuidados prestados pela enfermeira:

Nobre e bella é a missão de enfermeira. Auxiliar intelligente e dedicada do médico, cumplidora conscienciosa de suas prescripções, a enfermeira é também anjo consolador que traz alívio às dores physicas e freqüentemente aos males moraes. Irmã de Caridade, sou por vocação, atrahída para os entes que sofrem. Entretanto quero que os conhecimentos technicos andam de par com a caridade que me deve animar como Filha de São Vicente. " ( 1/ 08/31)

Olma Zayla de Carvalho (Irmã Thereza Carvalho) que, da mesma forma, possuía o Curso Normal, não tinha preparo anterior ou prática em enfermagem. Pediu demissão no dia 29 de dezembro de 1932.

Era a seguinte sua opinião sobre a enfermeira:

Ser enfermeira é uma das mais nobres carreiras que se pode seguir. Nesta missão, cujo fim principal é dispensar os cuidados e attenções que exigem o estado dos doentes, a enfermeira dedicada dispensa seus trabalhos e esforços: numa palavra, sacrifica seus dias a suavizar-lhes os sofrimentos physicos e moraes. E a caridade praticada por Jesus que torna esta missão santa em que a mulher exerce sua utilidade para bem das almas e da Pátria. (31/07/31)

 


Foto 2 - Recepção de Toucas da Classe 1934".17

 

Observa-se, na foto da Recepção de Toucas, em dezembro de 1931, ocorrida após o período preliminar de quatro meses, a presença de duas Religiosas, as Irmãs Thereza e Pinto, ainda cursando a EEAN, da qual vieram a se afastar após servir na frente de guerra da Revolução Constitucionalista de 1932.

Em setembro de 1932, segundo Rachel Haddock Lobo18, atendendo à necessidade premente de enfermeiras para os hospitais das frentes do "nosso exército", por indicação da Senhora Superintendente Geral do Serviço dc Enfermeiras do DNSP, Edith de Magalhães Fraenkel, procedeu-se a uma chamada de voluntárias a serem colocadas à disposição do Ministro da Guerra. Destas, um grupo partiu para o Setor Leste e outro para o Sul, com destino ao norte do Paraná, limite com São Paulo. Este último, chefiado pela diretora da EAN, Rachel Haddock Lobo, partiu no dia 10 de setembro, contando ainda com a ajuda de algumas alunas, inclusive as Religiosas.

Terminada a Revolução Constitucionalista, em outubro retornaram as alunas leigas e a Diretora da Escola, Rachel Haddock Lobo, premiou-as com um repouso de dez dias antes de recomeçarem seus estudos. O mesmo não ocorreu, porém, com as Religiosas, que não voltaram, provavelmente por não se terem adaptado às exigências da vida fora do Convento, não enviando nenhum aviso à EAN.

Data do dia 17 de novembro de 1932 um pedido de informações feito pela Diretora da Escola à Superiora das Filhas de São Vicente de Paulo:

Saudações,

Tendo terminado a situação anormal do paiz, e assim também a razão de ser do afastamento das Irmãs Eugênia e Thereza, tendo em vista que as nossas enfermeiras que também estiveram prestando socorro aos feridos durante esta triste luta, já há muito se acham novamente na vida normal, tendo recomeçado seus estudos, desejo me informeis quaes vossos planos a respeito dessas duas alunas desta Escola. Como Diretora que sou desta casa obrigada a zelar pela bôa ordem, disciplina e estatística da Escola, vejo-me no dever de vos escrever para obter qualquer informação vossa, a respeito das Irmãs Eugenia e Thereza, já que após minha última entrevista com Irmã Eugenia não mais fui informada de vossos planos. Estando o ano findo, e querendo meu ficharlo em completa ordem peço-vos responder-me com a máxima urgência para completar minha estatística anual.

" Na foto. nota-se a presença das Irmãs Eugenia Pinto e Thereza Carvalho. Fonte: CD - EEAN/ UFRJ. Arquivo de fotos: Env. 73 N. 32 ( Classe 1934, Pavilhão de Aulas).

Rachel Haddock Lobo. Relatório Narrativo, setembro de 1932.

Em dezembro desse mesmo ano, por não terem respondido a esta carta, as Irmãs de São Vicente de Paulo, da classe 1934, GII, foram excluídas da Escola. Na visão da Diretora, D. Rachel Haddock Lobo, isto se deu porque elas não desejavam mais continuar o curso científico da escola e se contentavam com os poucos conhecimentos rotineiros da prática sem teoria. Ao mesmo tempo, enquanto tinham passado pela escola, não haviam demonstrado nenhum espírito de enfermagem, nem muita dedicação aos doentes (Rachel Haddock Lobo, Relatório Narrativo, dezembro de 1932).

 

AS IRMÃS DE CARIDADE NA ESCOLA ANNA NERY (1939-1942)

D. Lais Netto dos Reys, fundadora da Escola de Enfermeiras Carlos Chagas, exerceu o cargo de segunda Diretora brasileira da EAN, de novembro de 1938 a março de 1950. No exercício da Direção, recebeu, no dia 5 de maio de 1939, uma carta da Visitadora das Filhas de Caridade de São-Vicente de Paulo, Irmã Antoniette Marie Blanchot, que solicitava a reserva de 12 a 15 matrículas para algumas Irmãs cujos nomes seriam enviados em ocasião oportuna. Agradecia à Diretora que garantisse às Irmãs condições especiais que lhes permitiriam cursar uma Escola leiga, apesar dos obstáculos já citados anteriormente no presente estudo. Elas poderiam contar com os aposentos indispensáveis à salvaguarda da liberdade imprescindível à conservação dos exercícios e práticas religiosas que lhes eram peculiares. Tais aposentos constariam de um ou mais dormitórios, contendo 12 a 15 camas, separadas por biombos de fazenda de pouco valor ou cortinas de igual material; de uma "sala decente", que serviria de Capela, facultando-lhes, assim, o livre exercício de suas obrigações religiosas; e do envio de uma Irmã diplomada pela Escola Carlos Chagas, que serviria de monitora, responsabilizando-se pelo grupo perante a Comunidade19 e a Direção da Escola, tanto na parte espiritual e moral quanto no acompanhamento dos estudos. Essa correspondência pedia resposta com a data das inscrições para os exames e a matrícula, assim como o programa exigido das candidatas não portadoras de diplomas dos Cursos Normal ou Secundário.

D. Laís Netto dos Reys considerou grande vitória da Escola Ana Neri a matrícula das 12 Religiosas. A permissão dada por Sua Eminência o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, para o ingresso das Religiosas, como alunas internas, em uma escola leiga, elevava consideravelmente o conceito desta mesma Escola20.

Uma vez que fora criada, no prédio do Internato da EAN, na Avenida Rui Barbosa, em Botafogo, em 31 de julho de 1939, uma ala de Religiosas, solicitou-se a D. Sebastião Leme a permissão para que a Escola mantivesse uma Capela de culto semipúblico de modo a servir às demais alunas católicas. O Internato contava com dormitório, refeitório. a capela com Missa diária à qual compareciam algumas alunas e a diretora da Escola e uma sala de estar

 


Foto 3- internato onde residiram as alunas da EEAN21

 

... era um conventozinho la: três anos ficamos lá (E2)

... era nossa casa... (E3)

Instalaram-se as 12 Irmãs, então matriculadas, no segundo andar do edifício da refeição, nos alojamentos ou-trora ocupados pelas enfermeiras da Missão. Ali as Irmãs ampliaram sua pequena Capela onde, todas as manhãs, às 05h e 30min, era celebrada a Missa por um sacerdote da Ordem dos Lazaristas, também fundados por São Vicente de Paulo, sem perturbar o horário ou o movimento da casa, já que esse alojamento era independente do das outras alunas.

No dia 01 de agosto de 1939, compareceram à aula onze Religiosas: Irmã Vivencia Alvarenga. Irmã Margarida Maria Cola, Irmã Magdalena Telles, Irmã Paulina Costa. Irmã Theresa Silveira, Irmã Ignês Lage, Irmã Cecília Fernandes. Irmã Maria José Santos, Irmã Odila Lima. Irmã Jeanne Saboia e Irmã Elisabeth Cerutti22. Essas Religiosas foram convocadas pela Visitadora Mère Blanchot, como se pode observar nos seguintes depoimentos23:

a nossa Congregação resolveu que um grupo de Irmãs fizesse o curso na Escola Anua Nery (E.1)

 congregação mandou estudar (E2)

E por terem professado o voto de obediência, cumpriram o que lhes fora ordenado, conforme foi visto na opinião que a primeira Irmã entrevistada para este estudo forneceu à Escola, ao preencher a ficha de matrícula, em julho de 1939.

...fui designada a fazer o curso geral de Enfermeira na Escola Anna Nery. ao que me dedicarei de coração...

São palavras de Laís Nctto dos Reys (7/10/39):

Esse fato vem dar novos rumos à Enfermagem religiosa do Brasil, abrindo para as mesmas, de origem nacional, a oportunidade de adquirirem a técnica e os conhecimentos científicos que lhes faltavam para poderem com toda eficiência dedicar-se ao serviço dos doentes, na grande maioria dos hospitais do país.

Como já havia sido acordado com a diretora, a Irmã Eugênia Luna, formada pela Escola Carlos Chagas, foi designada monitora, residindo no internato, embora não tivesse sido matriculada como aluna.

... só podíamos viverem comunidade e foi colocada como Superiora nossa - porque cada casa tem uma Superiora - a Irmã Eugênia Luna (E. 1)

A atuação da Irmã Eugênia Luna foi significativa para que as Religiosas completassem o Curso, já que assistia às aulas, fazia apontamentos, preparava as apostilas e fiscalizava o trabalho das Irmãs nas enfermarias.

...porque o tempo da gente era muito resumido, nós tínhamos de juntar duas vidas, porque também os compromissos com a Congregação ninguém excluiu nada. O tempo era tudo assim, muito apertado; e com essa ajuda dela, facilitava muito, porque, à noite, depois do jantar, a gente descansava um pouquinho e depois podia estudar até a hora que quisesse, porque já "tava" tudo arrumadinho. O que ela fazia com nossos apontamentos, a gente se completava. (E. 1)

Durante a época de estágios, D. Laís facilitava a permanência das Irmãs em grupo, pois sempre as mantinha unidas por turno de serviço em hospitais.

O dia das Religiosas começava às quatro horas da manhã, quando acordavam para fazer os exercícios da Congregação; às cinco horas e trinta minutos assistiam à Missa e, logo após, tomavam café e seguiam de ônibus para o Pavilhão de Aulas (P.A.), ou para o estágio.

O uso do hábito azul e da corneta (espécie de chapéu) eram obrigatórios fora do âmbito hospitalar, sendo, esta última, imprescindível em qualquer lugar. No conjunto das vestes, as Irmãs usavam também uma cota12 que tinha mangas compridas e largas, a saia era de um material pesado, pregueada, que geralmente pesava de três a quatro quilos e que juntamente com a cota quase chegava à altura dos pés.

O hábito pesava entre três a cinco quilos conforme a altura da Irmã. (E. 3)

Durante os estágios em hospitais, a cota era substituída por um camisão branco, de mangas compridas (foto 4) e, nas visitas de saúde pública, as Religiosas dobravam as mangas e colocavam um avental branco.

Apesar das regalias já citadas, as Irmãs seguiam o Regulamento das alunas e deviam estar presentes em todas as atividades da Escola:

 


Foto 4 - Religiosas da Classe 1942 G II25.

 

... nós tínhamos de seguir todo o programa das alunas. Por exemplo, era dia de ginástica, nós não fazíamos ginástica mas tínhamos de ficar em pé assistindo todo o horário da ginástica (E. 1)

Segundo os depoimentos colhidos, o motivo da escolha da EEAN por parte das Vicentinas deveu-se ao fato de que se tratava de uma escola oficial, já que a Congregação não possuía Religiosas enfermeiras nos hospitais e tinha por objetivo fundar escolas de alto padrão.

Deste grupo, classe 1942, G II, formaram-se dez Religiosas que foram trabalhar em hospitais e algumas fundaram escolas. A Irmã Elisabeth Cerutti não concluiu o Curso, tendo-se afastado, por motivo de doença, no dia 16 de setembro de 1940.

D. Laís Netto dos Reys (como citado anteriormente) diplomou as primeiras Religiosas do Brasil, entre as quais encontrava-se Ir. Eugênia Luna. E por essa razão que esta última a considerava "mãe das Irmãs", visto que na Escola Carlos Chagas a diretora era considerada Mestra e Mãe que levava sua vida à imitação de seu Divino Mestre e Pai (Clarízia, 1963:476).

...era uma veneração por Dona Laís (E.3)

...ela já parecia uma pessoa Religiosa (E.1)

D. Laís, por ser uma pessoa tão bem vista pela comunidade católica, em julho de 1948, foi aclamada Presidente dc Honra durante o II Congresso Nacional de Enfermagem, quando foi eleita a primeira diretoria da União Católica de Enfermeiras do Brasil (UCEB).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os achados da presente pesquisa permitem algumas considerações que fornecem pistas para posteriores estudos:

 as três primeiras Irmãs ingressaram no curso na gestão da primeira diretora brasileira, Rachel Haddock Lobo (1931 a 1933), mas não chegaram a se diplomar;

 a primeira Religiosa a desistir pediu demissão por motivo de saúde, não tendo retornado à Escola Anna Nery, diplomando-se, mais tarde, pela Escola Carlos Chagas; .

 na segunda gestão de Bertha Pullen, enfermeira norte-americana (1934 a 1938), não houve ingresso de Religiosas na Escola Anna Nery;

 em 1939, na gestão da segunda Diretora brasileira, ingressaram onze Religiosas, das quais, dez se formaram em 1942.

Tais dados evidenciam que, apesar de essas Religiosas declararem ser a profissão sublime, nobre e bela, dando-lhes a possibilidade de praticar a caridade, confortando e aliviando os sofrimentos físicos e morais, e apesar de terem elas recebido tratamento especial, o cotidiano de uma escola leiga ou não atraiu ou não favoreceu a permanência de Religiosas no Curso, nem sua dedicação ao mesmo. Viu-se que o grupo que ingressou em 1939 obteve privilégios tais como dormitório reservado, monitora e capela, que permitiam o cumprimento dos votos religiosos e os estudos na Escola. Constatou-se também, que a segunda Diretora brasileira teve grande carisma perante a comunidade religiosa, sendo até eleita "por aclamação" Presidente de Honra da UCEB em 1948, devendo-se ressaltar que foi durante sua gestão que se formou a primeira turma com Religiosas no Brasil (1936) e a primeira da EAN (1942). Além disso, levanta-se a questão da possível interferência da religião protestante, professada pelas enfermeiras da Missão, na disposição de essas Religiosas católicas (1936) e a primeira da EAN (1942). Além disso, levanta-se a questão da possível interferência da religião protestante, professada pelas enfermeiras da Missão, na disposição de essas Religiosas católicas freqüentarem a Escola no início da década de 30.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BAPTISTA, Suely de Souza, BARREIRA, leda de Alencar. A luta da enfermagem por um espaço na universidade. Rio de Janeiro: UFRJ/EEAN, 1997.

2. BARBOSA, Escolástica. Faculdade de Enfermagem Luiza de Marillac - 50 anos: breve relato histórico. Rio de Janeiro: Sociedade Beneficente São Camilo, 1989.

3. CLARÍZIA, Irmã Emilia. Histórico da escola de enfermagem Carlos Chagas da faculdade de medicina da Universidade de Minas Gerais. Revista Brasileira de Enfermagem, v.16, n.6, p.472478, dez. 1963.

4. FORJAZ, Marina Vergueiro. Resumo das origens e desenvolvimento das escolas de enfermagem no Brasil: focalizando a interferência do pensamento católico. Revista Brasileira de Enfermagem, v.12, n.3, p.315-329, set. 1959.

5. NIMO, Claúdia Cobas, BATALHA, Marianne Cardoso, BARREIRA,leda de Alencar. A influência da ética religiosa na formação da enfermeira nas décadas de 20 e 30. Rio de Janeiro, 1997.

6. NUNES, Maria José Rosado. Freiras no Brasil In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

7. PINHEIRO, Maria Rosa S. A enfermagem no Brasil e em São Paulo. Revista Brasileira de Enfermagem, v.15, n.5, p. 432-478, out. 1'962.

8. SAUTHIER, Jussara. A missão de enfermeiras norte-americanas na capital da República (1921-1931). UFRJ, 1996. Tese (Doutorado em História da Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.

9. TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

 

1. Projeto Integrado de Pesquisa CNPq (1997-1999) sob a coordenação da Professora Doutora Suely de Souza Baptista
2. No presente estudo, entende-se por Religiosa pessoa que, vivendo em comunidade, profere os votos evangélicos de obediência, castidade e pobreza.
3. Relatórios narrativos correspondentes aos meses de julho e outubro de 1931, setembro, outubro e dezembro de 1932 e setembro de 1940.
4. Relatórios das atividades de julho e agosto de 1939.
5. Com a criação da atual EEAN em 1923.
6. As Religiosas Vicentinas começaram a trabalhar na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro em 1852 (Forjaz, 1959:317-18).
7. Prêmio "A Lâmpada" concedido pelo NUPHEBRAS por ocasião do 5º Pesquisando em Enfermagem, período de 14 a 16 de maio de 1998. Colocação Iº lugar, categoria estudante.
8. O termo "nightingale" deve-se à apropriação do sobrenome de Florence Nightingale, enfermeira inglesa, marco da chamada "enfermagem moderna".
9. Clara Louise Kienenger de 1923 a 1925, Loraine Denhhhardt de 1925 a 1928 e Bertha Lucile Pullen de 1928 a 1931.
10. Rachel Haddock Lobo atuara como assistente da Diretora Bertha Pullen, de dezembro de 1929 a 30 de junho de 1931. A matrícula das três Religiosas deu-se após sua volta dos Estados Unidos, aonde fora aperfeiçoar-se em virtude do convite de Ethel Parsons para que dirigisse a EAN (Carvalho, 1976:16).
11. Eram as Religiosas na vida civil, respectivamente, Helena Villac, Herminia da Luz. Pinto e Olma Zayla de Carvalho.
12. Segundo o depoimento de uma Irmã, obtido em entrevista gravada, esta Escola possivelmente foi a Carlos Chagas, em período anterior a 1942, sem que a ela fosse possível precisar a data.

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