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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 2, Número 1, Jan/Ago - 1998

Quero agradecer a vocês a honra que me foi conferida de proferir a aula inaugural dos 75 anos de sua Escola. Eu espero que este momento se constitua no início de uma frutífera colaboração entre as enfermeiras do Brasil e de Québec.

Desejo agradecer especialmente à professora Laura Tavares2 que traduziu com muita sensibilidade meu texto do francês para o português.

Para melhor compreender os desafios que as enfermeiras e os enfermeiros de Québec deverão enfrentar, é essencial, em primeiro lugar, conhecer melhor o sistema de saúde canadense: como se implantou e se desenvolveu e quais são suas dificuldades atuais relativas a isto que chamamos de globalização.

Em seguida, examinaremos a situação específica do sistema de saúde de Québec e suas transformações atuais. Mesmo que os objetivos do governo sejam louváveis e desejáveis, o contexto socioeconómico no qual eles se situam apresenta riscos importantes para a saúde das populações e grandes desafios para as enfermeiras. Como a profissão de enfermagem pode superar esses desafios?

 

1.O SISTEMA DE SAÚDE CANADENSE

O Canadá é um país federal, composto de dez provincias. Segundo a Constituição oficial, a saúde e os serviços sociais pertencem somente às províncias. Todavia, o governo federal tomou as iniciativas mais importantes, nos anos 50 e 60, que transformaram totalmente o sistema e fizeram dele um dos melhores dos países industrializados, na opinião dos especialistas.

Nos anos 50, o governo federal teve muitos recursos, já que ele criou um imposto especial durante a última guerra mundial, o qual ele não queria repartir, evidentemente. Sabemos que os países industrializados tiveram nos anos 50 um crescimento econômico que nos faz sonhar agora. O governo federal tinha, então, somas colossais, e diversos fatores levaram-no a investir uma grande parte desses recursos na implantação gradual do sistema universal e gratuito de saúde. Entre outros, as grandes empresas queriam um sistema de saúde compatível entre as diversas províncias, para facilitar a mobilidade dos trabalhadores, muito-desejada nessa época. As populações requeriam o novo sistema porque os serviços de saúde, todos privados, custavam muito mais, e uma doença severa podia empobrecer muitas famílias. Também o governo federal da época, de tendência centro direita, temia ser ultrapassado pela sua esquerda, já que a província de Saskatchewan, governada por um partido de centro esquerda, iniciara um sistema universal e gratuito. O governo federal descobria, então, uma vocação de centro esquerda, totalmente conforme a ideologia do Estado de Bem-Estar Social, ideologia em expansão nos países ocidentais à época.

Em 1957, o parlamento federal votou a lei do seguro da hospitalização, pela qual ele pagava a metade dos recursos para financiar os cuidados hospitalares, sendo que cada província deveria assumir a outra metade. Este foi o primeiro dos muitos programas conjuntos que nasceríam. Para ajudar as províncias menos ricas, o governo federal introduziu um sistema de repartição, pelo qual as províncias mais ricas, recebiam menos recursos federais que as províncias mais pobres.

Em 1965, o parlamento federal votou a lei do seguro-doença para garantir o acesso universal e gratuito dos serviços médicos e sociais por todo Canadá, através de outro programa conjunto. Esse sistema implantou-se durante os anos 70: os serviços são universais já que ninguém, rico ou pobre, paga diretamente os médicos e os serviços hospitalares, à exceção dos serviços luxuosos "como a cirurgia estética". O sistema fez inveja a muitos países e foi fortemente apreciado pela população canadense.

Infelizmente, com a crise do petróleo dos anos 80 a 82, seguida das crises financeiras sucessivas que continuam nos anos 90, os recursos tornaram-se insuficientes para financiar convenientemente o sistema de saúde. Essa situação será atribuída ao fenômeno da "globalização". Segundo esta concepção, as empresas devem competir entre elas em nível mundial, e os governos reduzirem seus déficits, sob a autoridade formal do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetario Internacional), bem conhecidos no Brasil. Mas, do meuto de vista, o mais importante são as pressões dos especuladores: para eles, os investimentos devem produzir muito mais lucros, com as empresas reduzindo os custos da produção e aumentando seus lucros, e os governos devendo financiar ponessa ação sob pena de verem desvalorizadas suas moedas. Não posso, infelizmente, me estender sobre esse fenômeno que eu chamaria de "globalização da especulação" no lugar de uma simples "globalização".

Dessa forma, os governos do Canadá não têm dinheiro suficiente para financiar convenientemente o sistema de saúde. O governo federal reduziu de modo drástico sua participação no programa conjunto de saúde: de 50% para 30%. As províncias devem enfrentar a crise porque elas são responsáveis pelos serviços de saúde, prestados diretamente às populações. Paradoxalmente, foram as províncias mais ricas que cortaram com mais brutalidade as despesas de saúde. Desde 1994, a província de Alberta, que tem o melhor produto nacional bruto per capita do Canadá, fechou dezenas de hospitais e impôs tarifas para a utilização de muitos serviços de saúde. Mais de 3000 enfermeiras perderam seus cargos. Em 1995, a província de Ontario fazia o mesmo. As duas províncias utilizam a ideologia neoliberal para justificar-se: segundo ela, a sociedade deve permitir aos cidadãos o livre exercício das suas escolhas e incitar a diminuição da intervenção governamental, porque esta intervenção asfixiaria toda iniciativa dos cidadãos. É, no entanto, paradoxal constatar que são as sociedades mais ricas que adotam essa ideologia: parece que as sociedades menos ricas desconfiam de um sistema que favorece as mais potentes em detrimento das mais fracas.

A situação em Québec se apresenta de forma diferente e eu dedicarei, doravante, a continuação das minhas análises ao sistema de saúde de Québec.

 

2- O SISTEMA DE SAÚDE EM QUÉBEC

Depois de muitos anos, o governo de Québec adotou diversos procedimentos para reduzir os custos do seu sistema de saúde, que eu prefiro designar como um sistema de "tratamento das doenças", já que a maior parte dos recursos estão investidos no tratamento das doenças e não na sua prevenção, e menos ainda na verdadeira promoção da saúde das populações. Graças aos rearranjos administrativos, à compressão das despesas e à utilização das novas tecnologias para cirurgias menores no lugar das maiores, Québec, que alocou 11% do seu produto nacional bruto em despesas relativas á saúde, destina agora apenas 9%1, ainda um dos melhores percentuais do mundo depois do Japonês. Se consideramos que o vizinho Estados Unidos destina 14% do seu PNB2 para um sistema arruinado e que atende menos de um terço de sua população, devemos aplaudir o sistema de Québec que está totalmente acessível e gratuito para toda a sua população. Infelizmente, a manutenção deste sistema parece impossível: a carga fiscal dos cidadãos do Québec atingiu o seu máximo e não podemos contar com melhores receitas fiscais com uma taxa de desemprego oficial em torno de 11 %. A situação criada por especuladores parece incontestável: o governo de Québec deverá reduzir ainda mais suas despesas, e como a saúde e a educação nacionais respondem pela maioria dessas despesas, há que cortá-las, dizem as grandes empresas e as agências financeiras.

O governo atual de Québec, com tendência social democrata, está resistente à ideologia' neoliberal e sua população mais ainda. Quatro anos passados, o governo anterior, de tendência centro direita e com uma parte dos seus partidários favorável à ideologia neoliberal, tentou aliviar o peso financeiro da saúde fazendo pagar tarifas por alguns serviços de diagnóstico e tratamento. Isto provocou um protesto imediato por parte da população, e seu governo teve que retirar seu plano numa situação de catástrofe. Há alguns meses, as empresas privadas anunciaram a possível privatização da água nas grandes cidades: no entanto, o governo teve que confirmar que nenhum plano existia, já que a população de Québec não admitia que bens essenciais como saúde e água estivessem nas mãos interessadas das empresas privadas.

Em uma tal conjuntura, o governo atual adotou, há três anos, o plano global para a reorganização dos serviços de saúde que favorecem a saúde no lugar das doenças: o objetivo é transferir os serviços de alto custo hospitalar em favor dos recursos menos caros para as comunidades: os Centros Locais de Serviços Comunitários - que são equivalentes aos postos de saúde no Brasil - e os organismos comunitários, sem lucro, controlados pelos cidadãos das comunidades. Esse projeto, designado " Virage ambulatoire " e que eu traduziría por "mudança ambulatorial", pretenderá evitar ao máximo a hospitalização e a institucionalização, bem como reduzir a duração delas quando inevitável. Esse projeto significará a diminuição do financiamento do sistema hospitalar e institucional, tornando disponíveis os recursos para as comunidades. Muitos hospitais já fecharam (dez em Montréal) e outros agruparam-se para repartir alguns custos como alimentação e lavanderia. Muitas enfermeiras deixaram os hospitais, indo para os Centros Locais de Serviços Comunitários.

Esse projeto de mudança ambulatorial é magníficoe desejável: sua orientação é concordante com todas as análises das décadas passadas. Todavia, esse projeto apresentará grandes perigos na atual situação socio-econômica na qual se insere. Neste contexto, dois grandes problemas se apresentam:

1. As comunidades não estão prontas e nem suficientemente equipadas para receber as pessoas desospitalizadas, como nos casos pós-cirúrgicos, crônicos, físicos ou mentais. Os recursos já são mais do que insuficientes. Mais ainda, as comunidades não estão preparadas para evitar ao máximo a utilização dos hospitais e das instituições. A maioria dos Centros Locais de Serviços Comunitários não têm emergência em Montréal.

2. Muitas famílias não têm os recur-sos suficientes para evitar a hospitalização e a institucionalização, bem como para reduzir sua duração. A província de Québec apresenta um nível elevado de separação de casais: 47% dos casamentos8 terminaram em divórcios. Ainda mais: 25% das famílias têm um só chefe de família e, em 75% das famílias que possuem como chefes os dois cônjuges, ambos trabalham fora de casa3. Em tal contexto, cuidar em casa de um parente mais velho, um cônjuge ou uma criança doente representará uma situação muito pesada, tanto no plano psicossocial como no financeiro. O risco real é de aumentar a carga das mulheres que são,'segundo todas pesquisas, as principais responsáveis pelo cuidado da doença nas sociedades.

Frente a tal situação, o governo deverá, a partir de agora, e com urgência, investir recursos suplementares nas comunidades e no apoio às famílias. É ilusório acreditar que a mudança ambulatorial economizará dinheiro a curto prazo. Por um lado, é certo que nos próximos 10 ou 15 anos o governo poderá dispor de dinheiro, muito dinheiro, na medida em que melhore a saúde das populações; e, por outro lado, é certo que o governo deverá investir agora: quem diz investir, diz dinheiro novo. Ora, segundo o governo, esse dinheiro não existe.

Durante a preparação desta aula inaugural, o desastre que eu vinha detectando há muito tempo está em curso: as emergências dos hospitais estão totalmente saturadas e o governo deveria, urgentemente, dar milhões de dólares aos hospitais, somas que ele tinha que ter investido nos serviços comunitários. O governo alega que não tem dinheiro para as comunidades, mas ele o tem para financiar tratamentos muito caros e desnecessários. A insuficiente preparação das comunidades, denunciada há muitos anos por todos os especialistas, cria uma pressão insuportável sobre os hospitais e as instituições, mostrando ser impossível cortar muito mais seus recursos, já que as alternativas comunitárias não existem. Não podemos deixar que uma pessoa morra na emergência de um hospital, como ocorreu no mês de fevereiro deste ano, em Montréal.

Se não se investir rápidamente nas comunidades e nos serviços familiares, é grande o risco que dois mecanismos se desenvolvam.

Em primeiro lugar, o sistema hospitalar e institucional utilizará essa crise para receber financiamento de urgência para investir nos serviços das comunidades. Esta situação certamente levará a uma hospitalização e a uma institucionalização das comunidades no lugar de uma "comunitarização" dos cuidados. Os hospitais e as instituições criarão os serviços nas comunidades, os quais serão controlados por eles e não pelas próprias comunidades. Exatamente a situação que nós vivemos com a rápida desinstitucionalização dos doentes mentais durante os anos 70. Assim, o custo será muito grande, muito maior do que investir agora nas comunidades. E as doenças continuarão a crescer, porque sabemos que os hospitais e as instituições sustentam a doença. Um exemplo concreto pode ilustrar a diferença entre uma "comunitarização" e uma hospitalização. Em Montréal, la Maison Plein Coeur (que eu designaria como "A Casa Coração Pleno") é o organismo criado e controlado pela comunidade do Centro Sul de Montréal. Ela presta os serviços de saúde às pessoas que vivem com AIDS: serviços de cuidados no domicílio, um centro comunitário com atividades sociais e um almoço comunitário; todos estes serviços são realizados graças ao pessoal de enfermagem, social e médico e muitos residentes benfeitores, sob a autoridade de um conselho de administração e de uma assembléia geral. Faz-se tudo para que as pessoas fiquem o máximo possível em suas casas e permaneçam integradas na comunidade, com a melhor qualidade de vida possível. As pessoas se reagrupam para defender seus direitos e melhorar suas condições de vida, e portanto, de saúde. Essa Casa encaminha lutas para obter os melhores serviços por parte dos hospitais; para levar os empregadores e as empresas a rearranjar seus horários e organizar o trabalho; e para favorecer a integração das pessoas. Creem vocês que um hospital poderia fazer tudo isso com um serviço de cuidado domiciliar ? Eu não acredito. Ele prestará um serviço profissional que permanecerá no âmbito estrito do combate à doença. Infelizmente, não existe nenhum outro recurso como a "Casa do Coração Pleno", em Montréal, e se necessitaria muitos outros. Isto é, concretamente, o que eu entendo como a "comunitarização" dos cuidados.

Por outro lado, a privatização gradual de muitos serviços corre o risco de se efetuar para dar uma resposta paliativa urgente às carências das comunidades e das famílias. Diante da ausência concreta de cuidados e da urgência da situação, as pessoas que dispõem de dinheiro suficiente irão pagar do seu próprio bolso para obter serviços. Muitas agências privadas se multiplicarão como "erva daninha" para oferecer cuidados de enfermagem domiciliar para aqueles que podem pagar. Isto já está em vias de começar. Uma "privatização gradual" levaria à criação de um sistema de saúde em três velocidades, como nos Estados Unidos.

Uma primeira velocidade diz respeito a pessoas ricas que terão um acesso rápido e eficaz aos cuidados de melhor qualidade.

Uma segunda velocidade refere-se às pessoas carentes que terão acesso gratuito a serviços distribuídos de forma parcimoniosa, com grandes esperas, com controle burocrático minucioso, e a quem se repetirá sem cessar, explícita ou implícitamente, que elas são preguiçosas e que se aproveitam dos esforços de pessoas honestas.

E, finalmente, uma terceira velocidade relativa àquela das classes médias menos favorecidas: as pessoas que se agarram a trabalhos menos qualificados e mal pagos para não cair no sistema de dependência pública e que não terão os meios para pagar os serviços privatizados. Uma doença cara, e sabemos que elas ocorrerão cada vez mais, irá precipitar na miséria famílias inteiras. Assim, o sistema de saúde corre o risco de contribuir para o empobrecimento gradual das populações no lugar de ajudar as pessoas carentes a sair da pobreza.

Isto acentuará uma tendência inquietante de empobrecimento das populações. Darei o exemplo de Montréal. Nos anos 70, a pobreza era repartida na Ilha de Montréal segundo o que chamamos um T invertido7. Após o censo de mil novecentos e oitenta e um, o T invertido se alargou transformando-se num S7. No final dos anos 80, vimos aparecer focos de pobreza por toda a ilha, que aparece como uma constelação em torno do S5. Em lugar de diminuir, a pobreza aumenta. Atualmente, cerca de 20% das crianças, em Québec, vive em famílias pobres, segundo a definição estatisticamente aceita9.

Muitas aulas inaugurais poderiam explicar esse fenômeno de empobrecimento e seus laços com a saúde, o que constitui meu principal tema de pesquisa. Contentemo-nos em dizer, por agora, que esse empobrecimento parece obedecer a dois fatores principais: de um lado, a chegada massiva e contínua de imigrantes provenientes de países de grande pobreza, fenômeno que o governo federal tenta conter sem muito sucesso. Se confiamos nos estudos, essa pobreza é transitória, salvo para certas populações migrantes. Por outro lado, a dita "GLOBALIZAÇÃO" provocou, após o início dos anos 80, uma perda impressionante de emprego, em Montréal, e precipitou milhares de famílias operárias na pobreza. Algumas famílias puderam escapar, mas para a maioria delas nós assistimos atualmente uma "cronicização" da pobreza: tudo leva a crer que esta pobreza se transmitirá de geração, em geração o que constitui, nós o sabemos, a pior ameaça para a saúde!

 

3. DESAFIOS PARA AS ENFERMEIRAS E OS ENFERMEIROS DE QUÉBEC

A situação atual dessa mudança ambulatorial apresenta, assim, grandes desafios para a profissão da enfermagem, desafios que reagruparei em três categorias:

1) Em primeiro lugar, um enorme aumento de carga do trabalho do pessoal de enfermagem nos hospitais e uma intensificação da desqualificação da profissão de enfermagem da mudança ambulatorial. O aumento da carga de trabalho é constante há muito tempo, mas ela ocorreu com mais intensidade desde a crise de 19802. Esse aumento é ainda mais acentuado a partir da mudança ambulatorial. Muitas enfermeiras abandonam a profissão. Sobre a desqüalificação do trabalho de enfermagem não há nenhuma dúvida: definindo-a como o fato de dar a qüalquer um cargos ou funções abaixo de sua qualificação profissional: estudos mostram que as enfermeiras utilizam pelo menos 30% de seu tempo de trabalho para efetuar tarefas que não são de enfermagem, como atender o telefone ou fazer a limpeza do quarto do paciente3 4. Esta desqüalificação é também ligada a um problema maior: atualmente, existem duas formações para tornar-se uma enfermeira em Québec - uma técnica e uma universitária. A maior parte (78%) das 63 mil enfermeiras possuem apenas uma formação técnica. Com muita vergonha, tenho a declarar que a Ministra da Educação Nacional de Québec, com o apoio do Ministro da Saúde, anunciou, em março de 1998, que, a partir do ano 2002, a formação, técnica será a única maneira de tornar-se enfermeira, o que levará ao desaparecimento de uma graduação universitária em enfermagem. Isto demonstra como o governo se aproveitará da crise para contratar apenas enfermeiras sem formação universitária no intuito de economizar dinheiro. Qualquer que seja a decisão final, o aumento da carga de trabalho, a desqüalificação profissional e a divisão entre as técnicas e as universitárias constituem os maiores desafios para as enfermeiras, desafios que existem já há muito tempo, mas que são exacerbados com a mudança ambulatorial.

2) Em segundo lugar, num contexto de penúria e diante da urgência de responder rápidamente às necessidades de pós-hospitalização, o envolvimento das enfermeiras na promoção à saúde, nos Centros Locais de Serviços Comunitários, corre o risco de diminuir de forma dramática. Todas as enfermeiras que trabalham nesses Centros "tocam o alarme" após o começo da mudança. Nas minhas pesquisas em Promoção da Saúde, constato que as enfermeiras não podem mais participar das mesmas alegando falta de tempo. A situação me parece muito grave, pois, se existe alguma coisa relacionada profundamente à enfermagem, é a promoção da saúde das populações.

3) Em terceiro e último lugar, as enfermeiras devem ter receio, acima de tudo, da privatização gradual dos serviços de saúde, principalmente dos serviços domiciliares: isto levará ao crescimento das agências com fim lucrativo que pagarão menos às enfermeiras e as utilizarão como mão-de-obra barata. Atualmente, estas agências parecem, antes de mais nada, oferecer melhores condições que no sistema público para captar um corpo de elite a fim de se apoderar do mercado, constituindo um monopólio. Qüando isto estiver concluído, as enfermeiras viverão o pior.

 

4. O QUE PODEM FAZER AS ENFERMEIRAS DE QUÉBEC DIANTE DE TAIS DESAFIOS

As enfermeitas já começaram a reagir. Elas foram as primeiras a denunciar, em outubro 1997, a queda da qualidade da assistência e os perigos reais para a saúde das pessoas. Seu grito de alarme foi recebido com ceticismo pelas autoridades públicas, que se apressaram em denunciar o "privilégio" de uma profissão que estaria apenas protegendo seus interesses, utilizando-se da saúde das populações. Com a escalada gradual e, do meu ponto de vista, inevitável da crise, e os perigos que são veiculados à saciedade pela mídia - a morte de uma pessoa na urgência de um grande hospital que não pôde ser evitada pelo pessoal médico e de enfermagem, afetou toda a população - as denúncias das enfermeiras serão necessáriamente escutadas. As enfermeiras que, no passado, não ousavam assumir seu poder face à opinião pública, demandaram e receberam um apoio inequívoco durante sua greve memorável de 1989 por causa da deterioração de suas condições de trabalho. O governo apressou-se em declarar essa greve ilegal e tentou dividir as enfermeiras entre elas, recusando-se a receber a partir de então as cotizações sindicais. Em resposta, todas as enfermeiras pagaram diretamente sua cotização no seu sindicato e, pela primeira vez, o Conselho Profissional apoiou o Sindicato2.

As enfermeiras são muito apreciadas pela população. Não é verdade que elas não tenham poder. Sabemos, como o grande filósofo Michel Foucault, que o poder não se exerce de modo unilateral a partir de forças que se sobrepõem aos mais fracos. Segundo Foucault, e eu o cito, "O poder está por toda a parte; não quer dizer que ele englobe tudo mas que ele vem de toda a parte.... o poder não é uma instituição e não é uma estrutura, não é uma potência qualquer onde alguns serão dotados: o poder é o nome como que designamos uma situação estratégica complexa numa sociedade dada"4.

As enfermeiras têm poder para reverter a situação atual. Primeiramente, elas devem unir-se entre elas e evitar as divisões, como o fizeram em 1989 e no seu grito de alarme em outubro 1997. Em seguida, elas devem fazer uma aliança frutífera com a população: não há luta política vitoriosa sem alianças, particularmente nas complexas sociedades como as nossas. A população de Québec quer conservar seu sistema de saúde e se recusa a adotar uma ideologia neoliberal. Apoiando-se na sua imagem pública de fiadoras da saúde e na grande força do feminismo em Québec, eu não duvido que as enfermeiras permitirão evitar o pior, ou seja, a degradação irreversível da qüalidade da assistência à saúde. Mesmo que os recursos faltem, o governo pode realocar de outra forma suas despesas pois acaba de prová-lo injetando milhões suplementários nas urgências dos hospitais.

Eu possuo, no entanto, perguntas sobre o caminho que as enfermeiras tomarão face aos desafios. No contexto atual, é necessário, na minha opinião, investir rápidamente nas comunidades, particularmente nas mais carentes. O discurso oficial das enfermeiras vai nesse sentido. No entanto, se analisarmos o contexto atual em função das alianças possíveis numa situação de enfrentamento de poderes - e vivemos atualmente tal situação, as enfermeiras não poderiam conservar seu discurso oficial. Utilisarei para a minha análise crítica o excelente estudo do cientista político Vincent Lemieux, retomado pelo sociólogo Marc Renaud10. Segundo eles, o sistema de saúde de Québec é objeto de lutas incessantes entre qüatro grandes alianças. Primeiramente, a aliança médica, que eu prefiro chamar "mé-dico-hospitalar", reagrupando os hospitais e os médicos que visam controlar o sistema para seus próprios fins, conservando a anarquia nesse sistema. Eles serão os mais fortes enquanto reine a anarquia, ou seja a ausência ou a fraqueza do planejamento decisório. Existe, em seguida, a aliança "socio-comu-nitária" formada pelos Centros locais e pelos organismos comunitários que visam uma estruturação mais colegiada do sistema com decisões acordadas entre os estabelecimentos de saúde. Uma terceira aliança denomina-se "aliança burocrática", constituída por funcionários do Ministério da Saúde e por administradores regionais de saúde cada vez mais poderosos que visa uma estruturação hierárquica do sistema com tomada de decisões segundo escalões de autoridade. Finalmente, temos a "aliança empresarial", formada por empresários do setor privado, que querem apoderar-se do lucrativo mercado da saúde, e por alguns políticos neoliberais. Essa aliança propõe a privatização, inicialmente parcial, do sistema para sair da crise.

Atualmente, a aliança empresarial não possui nenhuma força. A aliança médico-hospitalar parece estar em grande dificuldade. A aliança burocrática aproveitou-se de crises sucessivas para reduzir o poder médico nos hospitais, provocando deliberadamente tensões entre os gestores e os médicos, e chegando mesmo a utilizar as enfermeiras para barrar o poder médico no sistema hospitalar. Brevemente, a aliança burocrática parece ter conseguido até o momento dividir essa aliança potencialmente poderosa. A aliança socio-comunitá-ria está em plena ascensão e a aliança burocrática serviu-se da mesma para enfrentar a aliança médico-hospitalar. Mas muitos indícios recentes confirmam minhas antigas apreensões de manobras burocráticas visando dividir a aliança entre os Centros Locais de Serviços Comunitários e os organismos comunitários.

Na situação atual, fica claro que as enfermeiras, por causa de seu ideal de Saúde Comunitária, deveri am juntar-se à aliança socio-comunitária. Gostaria muito que isto fosse verdade, mas eu duvido pelas seguintes razões, passo a expor.

Em primeiro lugar, o poder da enfermagem, relativamente tão frágil, repousa sobre as Chefias de Serviços de Enfermagem no sistema médico-hospital ar. O apoio das enfermeiras à aliança socio-comunitária vem se manifestando há muito pouco tempo, e por uma série de razões que eu não possuo aqui o tempo para explicá-las, as enfermeiras nas comunidades não tomaram o lugar que deveriam tomar no conjunto do poder de enfermagem. Pior, elas não desenvolveram, infelizmente, uma aliança clara e transparente com os organismos da comunidade. Diante da urgência da situação atual e da amplitude dos desafios para a profissão que corre o risco, como acabamos de ver, de uma degradação de suas condições de exercício profissional, tudo nos leva a crer que as enfermeiras irão apoiar-se na aliança médico-hospitalar para salvar seus interesses fundamentais, escolhendo a hospitalização das comunidades como a solução mais rentável no curto prazo. Com efeito, esta solução salvaguardará rápidamente a qualidade da assistência e tornará mais lenta a desqüalificação e o aumento da carga de trabalho das enfermeiras.

Em segundo lugar, a aliança socio-comunitária é ainda muito frágil mesmo estando em plena ascensão.

Por último, se nos baseamos nas teorias e nos estudos de sociologia das profissões, todas as profissões, não apenas a de enfermagem, têm medo, na realidade, de dar poder aos cidadãos, qualquer que sejam seus belos discursos. Infelizmente, minhas pesquisas em curso parecem confirmar essas teorias.

Eu não quero assumir o papel de profeta. Um sociólogo como eu prefere as análises à distância, "a frio", como se diz. Mas, com um tema como o desta aula inaugural, devo fazer uma análise "a quente". Eu simplesmente tentei realizar uma análise crítica dos desafios para as enfermeiras de Québec. Espero qüe essa análise possa ser útil para a situação brasileira, que apresenta, muito provavelmente, desafios tão grandes como os aqui apresentados, mesmo que eles possam aparentar diferenças à primeira vista.

Muito obrigado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. CANADÁ. Santé Canada. Dépensés nationales de santé au Canadá: 1975-1996. Otawa: Ministère des Travaux Publics et Servies Gouvernementaux, 1997.

2. DALLAIRE,Clémence, O'NEILL,Michel, LESSARD, Christine. Lesenjeux majeurs pour la profession infirmière. In: LEMIEUX,V., et al Le système de santé au Québec: organisation, acteurs et enjeux Sainte-Foy: Les Presses de ('Université Laval, p.245-272, 1994.

3. DREYFUS,Hubert, RABINOVE, Paul. Michel Foucault: un parcours philosophique. Paris: Gallimard, p. 122-123, 1984.

4. DUCHESNE.Louis La situation démographique au Québec. Québec: Bureau de la Statistique du Québec, 1996.

5. MAYER-RENAUD, Micheline, RENAUD, Jean La distribution de la pauvreté et de la richesse dans la région de Montréal en 1989: une mise à jour. Montreal: Centre de Services Sociaux du Montréal Métropolitain, 1989.

6. MAYER-RENAUD,Micheline Le statut socio-économique dé la population du territoire 6A. Montreal: Centre de Services Sociaux du Montréal Métropolitain, 1980.

7. La distribution de la pauvreté et de la richesse dans les régions urbaines du Québec: portrait de la région de Montreal. Montreal: Centre de Services Sociaux du Montréal Métropolitain, 1986.

8. QUÉBEC. Ministère de la Santé et des Services Sociaux.Politique de périnatalité. Québec: Direction Générale des Publications, 1993.

9. QUÉBEC. Statistiques sur les allocations familiales. Quebec: Régie des Rentes, 1997.

10. RENAUD, Marc. Le Québec en débat: enjeux et perspectives dans le domaine socio-sanitaire. Sciences Sociales et Santé, v.7, n.4, p.11-38, 1989.

 

1. Aula Inaugural proferida em 20/03/98 no Auditório Quinhentão do Centro de Ciências da Saúde UERJ, alusiva a abertura do semestre letivo de 1998 na Escola de Enfermagem Anna Nery.
2. Professora adjunta do Departamento de Enfermagem e Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ.
3. Em primeiro lugar, um enorme aumento da carga de trabalho do pessoal de enfermagem nos hospitais e uma intensificação da desqüalificação da profissão de enfermagem. O aumento da carga de trabalho é constante há muito tempo, mas ela ocorreu com mais intensidade desde a crise de 19804. Esse aumento é ainda mais acentuado a partir

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