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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 1, Número 1, Jan/Abr - 1997

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ao me deter na questão Saúde, que na atualidade é abordada sob um prisma basicamente político-social, observo que esta envolve principalmente a participação, entendida como a expressão do consumidor da assistência quanto à forma de ser prestado o serviço. O perfil da organização dos serviços de saúde permite identificar que predominou, durante muito tempo, um modelo pouco eficaz, ponto de vista este corroborado pelo fato de essas organizações não englobarem os interesses e a expressão dos usuários dos serviços. (ABRASCO. 1985. P.22)

Por outro lado, o têrmo "saúde" não pode ser entendido como mero fruto de intervenções assistenciais ou de um conjunto organizado de serviços, mas sim como resultante de condições de vida - a expressão coletiva de condições objetivas, e principalmente subjetivas, de existência de uma população. As condições de saúde e, conseqüentemente, as necessidades assistenciais de uma pessoa e de uma população não podem ser analisadas somente pelo prisma de acesso a serviços, ao atendimento, porque envolvem algo bem maior: a relação dessa pessoa com seu meio - familiar, de trabalho, sanitário e ecológico. Neste sentido, entendo que a proposição fundamental de um sistema de saúde deve significar a resposta de uma sociedade à expressão de suas necessidades, individuais e coletivas, de modo a permitir a oferta de serviços que respondam à natureza dessas necessidades. (BOLETIM DA 8ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE. 1986. p.4)

Não se pode negar que a idéia central, que perpassa toda a atual proposta de saúde, focaliza a adequação da assistência às necessidades, do cliente e da população. Quais são, contudo, as necessidades expressas pelo cliente? Qual é o significado de necessidade para os profissionais que desenvolvem esta assistência proposta? Qual é o significado do termo necessidade?

A literatura permite identificar que o termo necessidade apresenta diferentes interpretações e aplicações, de acordo com a área de conhecimento e a corrente de pensamento em que esta concepção é utilizada.

No contexto da enfermagem, a representação e expressão das necessidades dos clientes e/ou pacientes de instituições de saúde pode ser identificada, já na década de 70, em discursos e produções científicas dos enfermeiros, a nível internacional (GEORGE, 1980), influenciando marcadamente os enfermeiros brasileiros e, em especial, a enfermeira Wanda Horta. (CIANCIARULLO, 1987, p 100-7)

Ao realizar um levantamento de temáticas apresentadas e publicadas por enfermeiros brasileiros, comecei a identificar que o termo necessidade passou a integrar a teorização e/ou sua prática profissional, seja a nível de serviço hospitalar ou ambulatorial, seja a nível de prevenção primária e/ ou secundária, seja a nível individual ou coletivo. Contudo, uma análise mais detalhada desta produção científica2, que aborda as necessidades assistenciais do cliente, permitiu identificar, por outro lado, uma diversificação na concepção dessas necessidades. Umas focalizam a expressão e o comportamento das pessoas, conduzindo a uma prática assistencial em função do cliente em interação com o seu meio ambiente e com características biológicas, psicológicas e sociais, que o tornam particular, isto é, uma abordagem dirigida à pessoa, ao individual. Outras fundamentam-se nas atribuições do enfermeiro no serviço de saúde, surgindo uma vertente assistencial orientada pelas diretrizes de cada serviço e instituição de saúde, que focalizam o cliente não na sua singularidade, mas como o integrante de um grupo biológico, socialmente e/ou epidemiologicamente concebido e, como tal, assistido em função de características deste grupo, ou seja, com uma abordagem coletiva.

 

"...O TERMO NECESSIDADE APRESENTA DIFERENTES INTERPRETAÇÕES E APLICAÇÕES"

A diversidade de concepções e os questionamentos levantados conduziram-me a querer compreender o significado do termo necessidade no contexto assistencial do enfermeiro.

A aparente divergência entre as questões levantadas - as necessidades (expectativas) do cliente, a assistência de enfermagem prestada e a proposta instituicional - sintetiza-se na prática e, nesta prática, dar-se-á o contato entre o enfermeiro e o cliente. Que vivências são trazidas para este contato? Que necessidades compõem esta relação?

Considerando o exposto, é objetivo deste estudo compreender o significado das necessidades no contexto assistencial do enfermeiro à luz de sua prática na unidade básica de saúde.

Neste sentido, procurei desenvolver as seguintes questões: Que necessidades o cliente expressa, em termos de expectativas, em relação a sua assistência, ao procurar uma unidade básica de saúde? Que necessidades orientam a prática assistencial do enfermeiro em uma unidade básica de saúde? Qual é a relação entre as necessidades expressas pelo cliente e as que orientam a ação do enfermeiro no contexto assistencial de uma unidade básica de saúde?

 

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

As questões levantadas estão pautadas em um marco conceituai de que a prática assistencial do enfermeiro ocorre em um contexto social, influenciada e influenciando as pessoas que o integram de modo dinâmico, quais sejam, o cliente e o enfermeiro. Assim, o tema central compreende a inter-relação entre estas pessoas, tendo por foco estruturador as necessidades na relação cliente-enfermeiro.

Neste sentido, a preocupação localizou-se não na relação causa-efeito de variáveis deste homem, nem na identificação de determinantes da ação do enfermeiro, mas sim na compreensão dos motivos de dois sujeitos com vivências e ações que lhes são próprias e que constituem o ato enfermagem - uma abordagem fenomenológica da relação social cliente-enfermeiro.

Um método para compreender a vida social, o conjunto de ações sociais onde as relações mútuas se dão de maneira consciente, é proposto por Alfred SCHUTZ (1962, 1972, 1976). O autor coloca em questão a relação entre a consciência e a ação, instrumentalizando a objetividade da ciência mediante o reconhecimento das dimensões afetivas e valorativas do sujeito da ação.

 

"O MUNDO DO SENSO COMUM", "O MUNDO DA VIDA" SÃO, SEGUNDO SCHUTZ, EXPRESSÕES PARA DESIGNAR O MUNDO INTERSUBJETIVO

"O mundo do senso comum", "o mundo da vida" são, segundo SCHUTZ (1962, p.xxvii.), expressões para designar o mundo inter subjetivo experienciado pelo homem - a região da ação social, na qual os homens entram em relação um com o outro. Contudo, neste mundo da vida - na matriz para e de toda ação social, cada pessoa se insere de modo particular tendo em vista o que SCHUTZ (1962, p.xxvii) denomina de sua "situação biográfica".

Esta situação biográfica tem como característica principal que, em qualquer momento de sua vida, a pessoa tem o que Schutz denomina de "bagagem de conhecimentos disponíveis" (CAPALBO 1979. p.37). Esta bagagem é construída mediante todas as experiências prévias vivenciadas - as tipificações do mundo da vida, geradas a partir da vida social: o conhecimento se origina, é distribuído e informado socialmente, porém a sua expressão depende do espaço único ocupado pela pessoa no mundo social. E é esta bagagem que define os elementos relevantes para uma determinada ação.

Para SCHUTZ (1962, p. 20-1), a ação

... é uma conduta humana conscientemente projetada pelo ator, enquanto que ato, designa uma ação concluída... a ação envolve uma ordem voluntária... a ação é intencional...

Neste sentido, o aspecto crucial da ação é o seu caráter intencional e de projeção, que tem a sua origem na consciência da pessoa e, como tal, toda e qualquer ação só pode ser compreendida mediante o significado que esta pessoa confere à sua ação - a interpretação do significado de uma ação só pode ocorrer pela subjetividade da própria pessoa.

 

"O CONHECIMENTO SE ORIGINA, É DISTRIBUÍDO E INFORMADO SOCIALMENTE"

O acesso ao significado de uma ação pode ocorrer quando a própria pessoa interpreta seus motivos. Para Schutz este têrmo abarca duas categorias diferentes entre si e que devem ser distinguidas: o motivo-para e o motivo-porquê.

... a ação é determinada pelo projeto incluindo o motivo-para. O projeto é o ato intencionado, imaginado como realizado; o motivo-para é a condição futura de situações a serem realizadas pela ação projetada (SCHUTZ, 1976. P. 11).

A identificação da estrutura comum dos significados conferidos a determinada ação ou ato pode ocorrer quando estes são reduzidos a seus motivos típicos.

... eu posso reduzir a ação ou ato do outro a seus motivos típicos, incluindo as suas referências a situações típicas, finalidades típicas, meios típicos... é suficiente encontrar motivos típicos de atores típicos que explicam o ato como típico a partir de uma situação típica. (SCHUTZ 1976, p. 12-3)

O observador ou pesquisador, como ser humano entre outros seres humanos, se relaciona com outras pessoas numa experiência temporal e espacial direta, o que lhe permite construir um esquema conceituai dos motivo-para ou motivo-porquê daqueles mediante a intersubjetividade - o "tipo vivido". (SCHUTZ 1976, p. 17)

O autor ainda chama a atenção para o fato de que o "tipo vivido":

... se restringe, em seu conteúdo, somente a todos aqueles elementos necessários para desenvolver os atos típicos considerados... os motivos-para invariáveis correspondentes aos objetivos a serem alcançados no mundo da vida pelo ato considerado... (SCHUTZ 1976, p.17) E é neste sentido que "o mundo da vida como objeto de investigação científica será para o investigador predominantemente o mundo da vida de outrens...", o que permitirá construir diferentes tipos vividos, com motivos-para e motivos-porquê que compõem a situação a ser estudada, contribuindo para a construção téorica de uma relação social no mundo da vida, sem perder de vista a subjetividade das pessoas envolvidas nesta relação. (SCHUTZ 1962, p.137)

 

A TRAJETÓRIA DO ESTUDO

"O MUNDO DA VIDA COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA SERÁ PARA O INVESTIGADOR PREDOMINANTEMENTE O MUNDO DA VIDA DE OUTRENS..."

Ao trazer a concepção de ação humana não como mera conduta reativa, mas vinculada ao significado da experiência vivida, fundamentado na concepção de intencionalidade, Schutz desenvolveu seus estudos com a preocupação de compreender o significado subjetivo da ação.

É, portanto, nesta linha de pensamento que a significação estudada compreendeu a forma vivida e experimentada das necessidades no conhecimento cotidiano e nos afazeres humanos dos atores - o cliente e o enfermeiro - e que compõem a relação contemporânea "face a face" Enfermagem, ou seja, compreendeu a explicitação das necessidades que ocorrem na interação no mundo da vida Enfermagem, a partir de situações biográficas qualitativamente diferentes.

Como o alvo da investigação é compreender o significado conferido à necessidade na relação cliente-enfermeiro, o estudo foi desenvolvido mediante três momentos básicos:

1- Obtenção dos depoimentos para a descrição DO FENÔMENO NECESSIDADE VERBALIZADO PELO SUJEITO-CLIENTE E PELO SUJEITO-ENFERMEIRO NO MUNDO DA VIDA

Os dados que deram origem a este primeiro momento foram obtidos na realidade social vivenciada pelo cliente e pelo enfermeiro. A aproximação às vivências e ações dos sujeitos do estudo ocorreu da forma mais natural possível, bem como a relação do pesquisador com os sujeitos , compondo, assim, a realidade social onde os significados foram buscados.

 

APÓS CONCORDÂNCIA, EU PERGUNTAVA O SEU PRIMEIRO NOME, IDADE, E LANÇAVA A QUESTÃO ORIENTADORA: "O QUÊ O(A) TROUXE AQUI?"

As entrevistas com os clientes ocorreram após autorização da chefia de enfermagem e direção do Centro de Saúde, além de contatos com os responsáveis, para obter depoimentos de pessoas no setor de triagem, onde procuravam informações, eram inscritos e/ou pegavam número para atendimento e, ainda, nas áreas de espera dos setores onde o atendimento não dependia de inscrição na Unidade ou de número para atendimento.

Em todas as situações de obtenção de depoimento, cada pessoa era abordada pessoalmente: eu o(a) cumprimentava, me apresentava e perguntava se poderia colaborar com a realização de uma pesquisa respondendo a uma pergunta. Após concordância, eu perguntava o seu primeiro nome, idade, e lançava a questão orientadora: "O quê o(a) trouxe aqui? O quê espera do atendimento?". Para não perder de vista os postulados da interpretação subjetiva e da relevância, já que com esta estratégia a gravação dos depoimentos e o seu retomo ao cliente era impossível, procurei, lego após o registro, confirmar verbalmente o conteúdo falado. Como algumas pessoas pediram que o seu nome não constasse do depoimento, optei por dar um pseudômino a todos os entrevistados.

As entrevistas com as enfermeiras, em dia e hora mais adequados para cada profissional, foram realizadas na sala onde cada uma atendia os seus clientes, não sem antes clarear a característica da abordagem metodológica, o acesso à transcrição e a questão da análise dos depoimentos. Antes de colocar a questão orientadora: " Quando você desenvolve assistência de enfermagem junto às pessoas que procuram esta Unidade de Saúde, que necessidades você atende? Quais as necessidades que orientam a sua ação?" Pedi autorização para gravar o seu depoimento e expliquei que, tão lego fizesse a transcrição, a traria para que fossem feitas as observações e/ou correções necessárias. Ainda a pedido, e tal qual para os clientes, cada entrevistado recebeu um pseudônimo.

2 - Construção dos tipos vividos mediante a análise das descrições e busca de convergências do motivo-para, do significado de necessidades para os clientes e para os enfermeiros.

 

A LEITURA ATENTA E A EXPLORAÇÃO DOS DEPOIMENTOS REPRESENTOU UM PRIMEIRO ESFORÇO PARA COMPREENDER O FENÔMENO NECESSIDADE PARA O CLIENTE E O ENFERMEIRO"

Procurei aqui construir o que SCHUTZ(1962, p.59) denominou de "constructos de segundo nível, isto é constructos dos constructos elaborados pelos atores do cenário social..."

A construção de ambos os tipos vividos teve por fundamento as etapas utilizadas por PARGA NINA (1987. p. 34-89), quais sejam: leitura atenta dos depoimentos transcritos para poder captar aspectos gerais da situação vivenciada e dos motivos-para dos sujeitos envolvidos; identificação de categorias concretas, a partir dos depoimentos analisados; releitura cuidadosa dos depoimentos para a extração e registro de trechos das falas, tendo por referência as categorias concretas identificadas; construção do "tipo vivido cliente" e do "tipo vivido enfermeiro", mediante a acentuação dos aspectos mais relevantes, de maior significado, para os atores da ação.

A leitura atenta e a exploração dos depoimentos representou um primeiro esforço para compreender o fenômeno necessidade para o cliente e o enfermeiro. Esta exploração permitiu identificar o que Lazersfeld, apud PARGA NINA (1976, p.66), denominou de categorias concretas, isto é, "o tipo de categorias que... participantes da situação empregam, trabalhadas (worked out) de forma tão clara e lógica quanto possível." Após identificar estas categorias procurei captar e registrar minunciosamente os depoimentos na íntegra, trechos destes ou ainda expressões equivalentes que poderIam compor a categoria considerada. Posterior a esta primeira organização da experiência verbalizada pelos atores, voltei a reconsiderar a categoria concreta identificada e consequentemente o conteúdo dos depoimentos obtidos, procurando, mediante uma revisão contínua, uma aproximação tanto quanto possível de uma estrutura comum que expressasse a experiência vivenciada pelo cliente e pelo enfermeiro - os tipos vividos.

Em síntese, a partir da análise da invariabilidade, da peculiaridade dos motivos-para, construí o significado objetivo do motivo-para para o "tipo vivido cliente" e o "tipo vivido enfermeiro".

 

"VIM POR CAUSA DO MENINO QUE ESTÁ DOENTE"

O "tipo vivido cliente"

A preocupação, aqui, foi a de procurar captar, sem pressupostos, a estrutura comum da realidade vivenciada pelas diferentes pessoas que procuram a Unidade de Saúde, a estrutura comum de seus motivos-para. Desta forma, e como já foi explicitado anteriormente, da leitura e releitura dos depoimentos das pessoas que procuram a Unidade de Saúde, emergiram as seguintes categorias: PROCURANDO RESOLVER O MAL-ESTAR, A QUALIDADE DO ATENDIMENTO e O FICAR BEM COM REMÉDIO.

O cliente procura a Unidade de Saúde em busca de um serviço, de um atendimento ou de um profissional de saúde pré-determinado por ele mesmo, como pode ser identificado nos depoimentos:

"Eu vim por que precisava fazer o preventivo" CARMEM

"Eu vim pra conversar com a assistente social" FLAVIA

Esta procura ocorre em função de uma situação vivenciada e que envolve principalmente sinais e/ou sintomas, indicando a existência de um problema, de uma doença e como tal requerendo tratamento, requerendo atendimento em uma Unidade de Saúde.

"Hoje ele tá encatarrado" EVA

"Vim por causa do menino que está doente" ISA

A questão central deste atendimento é a sua qualidade, sendo esta qualidade tanto uma expectativa quanto o próprio motivo da procura do atendimento na Unidade. E um bom atendimento ocorre quando estão envolvidas as características pessoais e profissionais daquele que atende.

"Eu espero ser bem atendida... eu já passei por umas situações tão ruins. Eu espero que o médico seja atencioso... ele estudou tanto que pelo menos ele sabe mais... e atenção é muito importante. " BEATRIZ

Paralelamente este atendimento deve eliminar a situação que levou o cliente a procurar recursos na Unidade. Enquanto a situação a resolver e resolvida é vivenciada na sua subjetividade, o atendimento envolve a subjetividade do outro mas também recursos materiais, como medicamentos, o que permitirá que ele passe a se sentir bem.

 

"ENQUANTO A SITUAÇÃO A RESOLVER E RESOLVIDA É VIVENCIADA NA SUA SUBJETIVIDADE, O ATENDIMENTO ENVOLVE A SUBJETIVIDADE DO OUTRO MAS TAMBÉM RECURSOS MATERIAIS"

"Espero remédio pra ele ficar bom." ISA

"Eu espero ficar curada... "ROBERTA

Em síntese, o "tipo vivido cliente" procura a Unidade Básica de Saúde para eliminar um problema vivenciado, mediante um atendimento compreensivo e a indicação de um recurso curativo voltado para o problema trazido.

O "tipo vivido enfermeiro"

Do mesmo modo que para o "tipo vivido cliente", construí o "tipo vivido enfermeiro", isto é, sem pressupostos. Nesta construção tive em vista a estrutura comum da realidade vivenciada pelos enfermeiros que assistem às pessoas que procuram a Unidade Básica de Saúde, a estrutura comum de seus motivos-para da assistência de enfermagem prestada.

Seguindo também a estratégia já especificada, isto é, leitura e releitura dos depoimentos dos enfermeiros entrevistados, emergiram as categorias: O PROGRAMA DE SAÚDE, A ORIENTAÇÃO, O RELACIONAMENTO PESSOAL e O NÃO ATENDIMENTO ÀS EXPECTATIVAS DO CLIENTE.

Ao prestar assistência de enfermagem em uma Unidade Básica de Saúde, o enfermeiro tem por diretriz o Programa de Saúde desenvolvido no setor ou serviço onde atua.

"Então eu procuro, como enfermeira da clínica... de vários motivos que aparecem na clínica, resfriado, atestado médico, quando você descobre a origem, você começa a puxar, aí já começa a puxar pelo lado do diabetes, para a PA, já encaminha para a nutrição que é uma coisa ligada e começa a tentar descobrir outras necessidades dele... de repente ele tem um problema que ele precisa passar pelo psicólogo, por questões da vida dele, pois até o stress influencia na pressão. " REGINA

 

O "TIPO VIVIDO ENFERMEIRO" DESENVOLVE A SUA ASSISTÊNCIA EM UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE, MEDIANTE UMA RELAÇÃO FACE A FACE, CLIENTE-ENFERMEIRO

As suas ações envolvem basicamente a orientação, tendo em vista a realização de exames, a aderência ao tratamento, e a procura de outros serviços dentro ou fora da Unidade.

"Acompanhamos mensalmente o cliente, orientando quanto à necessidade de continuidade do tratamento e agendando para o médico sempre que o cliente necessitar, até o término do tratamento." IVONE

"... com orientações, modo de utilização e garantia desses métodos." WILTON

E esta orientação implica em um relacionamento face a face, cliente-enfermeiro, voltado para as experiências deste cliente.

"Aí eu perguntei; "você está com pressa? ... então senta aí que nós vamos conversar". VANIA (1)

Por outro lado, a ação do enfermeiro nem sempre corresponde ao motivo da procura do setor e/ou da Unidade de Saúde por parte do cliente.

"... de repente a necessidade dele como hipertenso é ir lá, passar no médico, levar a receita e pegar o remédio... "REGINA

Ou seja, o "tipo vivido enfermeiro" desenvolve a sua assistência em uma Unidade Básica de Saúde, mediante uma relação face a face, voltada para as experiências daquele que procura a Unidade, tendo em vista as diretrizes de um determinado Programa de Saúde.

3- Análise comparativa entre os "tipos vividos" e interpretação dos significados de necessidade na relação cliente-enfermeiro.

O desenvolvimento deste momento teve por fundamento que a ação enfermagem ocorre mediante a relação cliente-enfermeiro, relação esta entendida como um estar voltado para o outro. Em outras palavras, ao se propor a assistir às necessidades do cliente que procura a Unidade Básica de Saúde, o enfermeiro tem como motivo-porquê de sua assistência o motivo-para desta procura, as necessidades deste cliente.

Para SCHUTZ (1972, p.231), na relação social entre dois contemporâneos, "cada participante apreende o outro por meio de uma tipificação; cada um dos participantes se dá conta desta apreensão mútua; e cada um espera que o esquema interpretativo do outro seja congruente com o seu." Esta idealização, que inclui o intercâmbio de pontos de vista e a congruência dos sistemas de relevância, constitui o que SCHUTZ (1962, p.12) denominou de tese geral da reciprocidade de perspectivas.

Foi neste sentido que ocorreu a análise comparativa entre o "cliente"1 e o "enfermeiro"3. A partir do motivo-para do "cliente" que procura a Unidade Básica de Saúde, procurei identificar congruências em relação ao motivo-para do "enfermeiro" que assiste necessidades daquele que procura a Unidade, conduzindo à compreensão do fenômeno Enfermagem a partir da inter-relação dos significados que os sujeitos, "cliente" e "enfermeiro", dão à necessidade como vivência concreta.

Assim, e tendo como ponto de partida o "cliente" que procura a Unidade Básica de Saúde, identifique!, à primeira vista, em relação ao "enfermeiro" que se propõe a assistir a este "cliente", que parece existir uma reciprocidade de perspectiva quanto à característica do atendimento, isto é, o "cliente" traz um problema vivenciado e o "enfermeiro" está voltado para a experiência daquele.

Contudo, enquanto o "enfermeiro" tem em vista as diretrizes de um determinado Programa de Saúde, ao se voltar para a experiência do cliente, o "cliente" traz um problema, uma situação vivenciada no mundo da vida, que não precisa estar, obrigatoriamente, prevista por este Programa.

Segundo SCHRAIBER (1990. p.19-21), o modelo assistencial desenvolvido segundo ações programáticas envolve principalmente a promoção e a proteção da saúde, fundamentadadas em uma abordagem epidemiológica de enfermidades, podendo incluir, em situações de intervenção, ações de diagnóstico e tratamento dos casos individuais. E é este modelo assistencial que fundamenta a ação do "enfermeiro". Ou seja, a ação do "enfermeiro" é uma ação programática que tem em vista o "controle sobre a doença/saúde", a dinâmica da doença na população, isto é, a dimensão coletiva da doença e não a dimensão singular da pessoa, doente/sadia vivenciando este processo. (SCHRAIBER 1990, p.19)

 

A AÇÃO DO "ENFERMEIRO" É UMA AÇÃO PROGRAMÁTICA QUE TEM EM VISTA O "CONTROLE SOBRE A DOENÇA/SAÚDE"

Esta questão do coletivo e do singular também aparece quando o "cliente" procura eliminar o problema vivenciado mediante um atendimento compreensivo, voltado para a situação vivenciada e envolvendo as características tanto pessoais quanto profissionais daquele que atende.

Em contrapartida, o "enfermeiro", apesar de estar voltado para a experiência do cliente, mediante uma relação face a face, esta direcionalidade tem por objetivo intervir principalmente no processo saúde-doença a nível individual, e não na vivência daquele que procura a Unidade de Saúde, na sua situação doente/ sadio. O "enfermeiro" também reconhece que esta assistência fundamentada em ações programáticas, voltadas para a situação saúde/doenca, nem sempre atende às expectativas do cliente que procura a Unidade Básica de Saúde. E este não atendimento fica claro quando o "cliente" espera na realidade um pronto-atendimento, um atendimento que indique um medicamento que resolva o problema que o levou a procurar a Unidade.

 

...ENQUANTO "O CLIENTE" APRESENTA COMO NECESSIDADES UM PRONTO-ATENDIMENTO QUE ELIMINE A SITUAÇÃO QUE O LEVOU A PROCURAR A UNIDADE, O "ENFERMEIRO" PAUTA A SUA AÇÃO POR NECESSIDADES EPIDEMIOLOGICAMENTE CONCEBIDAS

Em síntese, e tendo em vista a reciprocidade de perspectivas, não existe congruência entre o motivo-para do "cliente" e o motivo-para do "enfermeiro": enquanto "o cliente" apresenta como necessidades um pronto-atendimento que elimine a situação que o levou a procurar a Unidade, o "enfermeiro" pauta a sua ação por necessidades epidemiologicamente concebidas, e mais especificamente, voltado para necessidades de diagnóstico e tratamento, a nivél individual, de enfermidades objeto de ações programáticas.

Esta não congruência fica mais patente ao considerar que as necessidades de pronto-atendimento trazem em seu bojo, como necessidade, a resolutividade imediata, e que esta não é atendida quando o cliente é assistido pelo "enfermeiro" mediante ações de diagnóstico e/ou aderência ao tratamento, indicadas pelos Programas de Saúde. Inclusive porque estas ações visam a necessidades de grupos de risco, isto é, necessidades assistenciais concebidas na dimensão coletiva e de intervenção frente a uma determinada enfermidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo foi desenvolvido entendendo que um sistema de saúde deve estar voltado para as necessidades assistenciais, individuais e coletivas, preventivas e curativas, de uma população.

Surgiu, assim, o objeto de análise deste estudo: Qual é a relação entre as necessidades expressas pelo cliente e as que orientam a ação do enfermeiro no contexto assistencial de uma unidade básica de saúde?

A análise comparativa entre o significado conferido à necessidade pelo cliente e pelo enfermeiro permitiu identificar que este não está voltado para as expectativas, para a necessidade assistencial daquele que procura a unidade. E esta situação se confirma mais concretamente, quando a demanda da clientela é basicamente espontânea, visando a um pronto-atendimento, e como tal, desvinculada da ação programática, onde se insere a ação do enfermeiro.

Depreende-se, assim, que existe um distanciamento entre as perspectivas de quem oferece e de quem procura assistência e, consequentemente, não poderá ocorrer atendimento às necessidades assistenciais, isto é, resolutividade mediante a ação enfermagem.

Do momento em que o propósito da ação do enfermeiro diverge do motivo da procura por parte do cliente, que o enfermeiro está voltado para necessidades concebidas em um contexto objetivo da enfermidade, limitando-se à descoberta de casos neste contexto e desvinculado das necessidades assistenciais vivenciadas e expressas pelo cliente, este cliente é mero objeto de sua assistência.

 

"...A AÇÃO ASSISTENCIAL DO ENFERMEIRO NÃO DEVE SE LIMITAR À DEMANDA INSTITUCIONAL CURATIVA E ORIENTADA POR UM PROGRAMA DE SAÚDE"

Entendo, como já referido anteriormente, que as ações desenvolvidas em uma unidade básica de saúde, como porta de entrada aos níveis de assistência secundária e terciária, devem estar voltadas para a situação de saúde da população da área de abrangência desta unidade. Esta direcionalidade implica na integração de ações de cuidado individual e coletivo mas, principalmente, em uma relação permanente com as pessoas, para que as necessidades assistenciais possam ser compreendidas a partir da vivência destas pessoas. Paralelamente, esta relação não pode ocorrer somente com aqueles que procuram a unidade, senão a compreensão se limita ao individual curativo. Deve, sim, estender-se a toda a população da sua área de abrangência, oportunizando também a compreensão de necessidades assistenciais a nível coletivo, abarcando tanto o nível preventivo quanto o curativo.

E, neste sentido, a ação assistencial do enfermeiro não deve limitar-se à demanda institucional curativa e orientada por um Programa de Saúde, mas se estender às condições de vida desta população, ao seu dia-a-dia, ao seu mundo da vida. Pois é no mundo da vida que se originam as necessidades assistenciais das pessoas, sejam necessidades individuais ou coletivas, sejam necessidades curativas ou preventivas.

Somente quando o enfermeiro não estiver apenas voltado para a troca de experiências individuais delimitado por um Programa de Saúde, mas aberto para as situações vivenciadas pelas pessoas da área de abrangência da unidade, somente assim ele terá a oportunidade de desenvolver ações de saúde voltadas para as necessidades assistenciais da população. Somente assim o cliente poderá ser sujeito da assistência prestada pelo enfermeiro em uma Unidade Básica de Saúde.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRASCO. Pelo direito universal à saúde. Rio de Janeiro: PEC/ENSP, 1985.

BOLETIM DA 8ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE. íntegra do Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Boletim Informativo n.4, p.3-6, Brasília, 17 a 21 de março 1986.

CAPALBO, Creusa. Metodologia das Ciências Sociais: a fenomenología de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Antares, 1979. p.37.

CIANCIARULLO, Tamara I. Teoria das Necessidades Humanas Básicas - um marco indelével na enfermagem brasileira. Revista da Escola de Enfermagem da USP v.21, n. especial, p. 100-107, 1987.

GEORGE, Julia B. Nursing Theories: the base for professional nursing. New Jersey: Prentice Hall, 1980.

PARGA NINA, Luiz. (Coord.) Estudo das informações não estruturadas do ENDEF e de sua integração com os dados quantificados. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1978. Mimeogr.

SCHRAIBER, Lilia Blima (org.) Programação em Saúde hoje. São Paulo: HUCITEC, 1990. p. 19-21.

SCHUTZ, Alfred. Collected Papers I - The Problem of Social Reality. The Hague: Nijhoff, 1962.

SCHUTZ, Alfred. Collected Papers II - Studies in Social Theory. The Hague: Nijhoff, 1976.

SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia del mundo social. Buenos Aires: Paidos, 1972.

 

1. Resumo da Tese intitulada "As necessidades na relação cliente-enfermeiro em uma Unidade Básica de Saúde - uma abordagem na perspectiva de Alfred Schutz".Curso de Doutorado em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery - UFRJ, Rio de Janeiro, 1993. fissional, seja a nível de serviço hospitalar ou ambulatorial, seja a nível de prevenção primária e/ ou secundária, seja a nível individual ou coletivo. Contudo, uma análise mais detalhada desta produção científica2, que aborda as necessidades assistenciais do cliente, permitiu identificar, por outro lado, uma diversificação na concepção dessas necessidades.

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