Volume 1, Número 1, Jan/Abr - 1997
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A necessidade de nutrição do neonato, de modo extra-uterino e não mais por via hematogênica, surge com o nascimento, e emerge, assim, a possibilidade do aleitamento materno.
A princípio, tal possibilidade parece natural, considerando-se a característica de todos os mamíferos, e dentre eles o ser humano, como possuidores de glândulas mamárias. Estas são órgãos secretores de leite presentes em ambos os sexos, embora hipotrofiadas ou apenas esboçadas no sexo masculino. Sob o ponto de vista de sua concretização, a amamentação envolverá, essencialmente, mãe e filho.
A amamentação, enquanto processo e procedimento, tem sido estudada sob vários aspectos e por diferentes óticas profissionais. Na instância fenomenológica este estudo, que é a pesquisa por mim desenvolvida como tese de doutorado, focalizou a amamentação enquanto fenômeno situado no ser gestante.
OBJETIVO
A experiência de orientar gestantes sobre aleitamento materno durante o acompanhamento pré-natal foi o ponto de partida da minha investigação. Assim meu objetivo foi compreender o evento da amamentação mostrando que se trata de um fenômeno e que, enquanto tal, é uma possibilidade do campo existencial ou da vivência ou de uma maneira de visar o mundo.
AS CONSEQUÊNCIAS DANOSAS DA NÃO AMAMENTAÇÃO ESTIMULAM QUE SE BUSQUEM SOLUÇÕES E ESTRATÉGIAS CAPAZES DE REVERTER OS ÍNDICES ALARMANTES DE DESMAME PRECOCE.
Entendo que uma abordagem sistematizada, através de atividades de atenção à saúde no período pré-natal e puerperal, favorece mas não garante a concretização da amamentação. Talvez porque se concentre na regra gestar-parir-amamentar, em detrimento das exceções.
A lactação é mediada pelas modificações do tecido glandular mamário durante o período gestacional. E, embora a prática do aleitamento materno seja citado na literatura séculos antes de Cristo, a história também evidência que, há muitos anos a mãe vem tentando desvencilhar-se dessa função. Quer seja através das mamas de leite - mulheres de classe social inferior, que amamentavam outras crianças juntamente com seu próprio filho em troca de benefício ou obrigadas pela condição de escravas; quer seja utilização de outro tipo de leite que não o humano, de origem animal ou vegetal, industrializado ou não, e também pela utilização de outro tipo de equipamento que não a mama materna como veículo desse aleitamento.
As conseqüências danosas da não amamentação estimulam que se busquem soluções e estratégias capazes de reverter os índices alarmantes de desmame precoce. Dificuldades e problemas têm sido discutidos e analisados por organismos nacionais e internacionais, assim como estratégias de incremento das taxas de aleitamento exclusivo e misto vêm sendo adotadas.
Minha experiência profissional, como enfermeira e professora de enfermagem junto à clientela-gestante, parturiente, puérpera e recém-nascido, aponta para dificuldades, enfrentadas pelo binômio, na concretização da amamentação. Assim também, a minha vivência mostra que as orientações, informes e o preparo da gestante não asseguram esta concretização.
METODOLOGIA
A Fenomenología como abordagem metodológica permitiu que emergisse o humano nesta experiência . Considero que a razão de tais comportamentos - amamentar e não amamentar - poderia continuar oculta, velada, caso eu não captasse o caráter fenomênico da experiência que emerge na singularidade do humano.
O caminhar na trajetória fenomenológica, utilizando como respaldo o referencial de Martin Heidegger, oportunizou desvelar este fenómeno.
Para demonstrar o caráter fenomênico do evento amamentação, procurei analisá-la distinguindo-se o seu aspecto repetitivo, e determinado -FATO - daquilo que não se repete - FENÓMENO.
Assim, fui refletindo sobre a amamentação, como ela se dá, como é possível a partir do período gestational durante o qual ocorre a diferenciação manogênese.
Apoiada no pensar heideggeriano que dispõe que manifestações não são o fenômeno, porém que elas anunciam em um não mostrar-se, indicam-no sem mostrá-lo ou mostram-no em seu sentido autêntico.
"PUDE ENTÃO REFLETIR SOBRE O FENÔMENO DA AMAMENTAÇÃO E SUAS MANIFESTAÇÕES"
O caráter fenomênico anuncia-se pela possibilidade de amamentação daquela que gestou e pariu, pela não amamentação daquela que também gestou e pariu e pela possibilidade daquela que nem gestou e nem pariu mas desenvolve a lactação adotiva.
Então, a repetição dos fatos cede lugar à emergência do fenômeno na singularidade da experiência vivida.
Pude então refletir sobre o fenômeno da amamentação e suas manifestações: o colostro como um não mostra-se embora anuncie; a lactação que indica a possibilidade porém não a mostra, e a amamentação mostrando-se em seu sentido autêntico, em si mesmo.
A diversidade de situações que emergem no meu dia-a-dia levou-me a analisar esta temática contextualizada na pessoa, na gestante. Nesse cotidiano, a amamentação aparece como possível, mediada pela disposição e pelo esforço daquela que vai ou está amamentando. Logo, configura-se como um evento cuja ocorrência implica na participação e no envolvido do ser humano - gestante e/ou puérpere, para assumir tal comportamento.
Assim, a percepção da experiência ou da vivência, positiva ou negativa, depende mais do significado do evento do que da capacidade efetiva de a mama produzir leite. Pelos aspectos diferenciados e até contraditórios de experiências com gestantes e puérperes, entendi que o evento amamentação não se esgota biológico que pode explicar o seu determinismo, mas transcende-o na experiência vivida.
"...ENTE É TUDO QUE É, TODAS AS COISAS, E DENTRE ELAS O SEU SER HUMANO É ENTE DOTADO DO SER DA PRESENÇA..."
Para HEIDEGGER, ente é tudo que é, todas as coisas, e dentre elas o seu ser humano é ente dotado do ser da presença, é DASEIN SER-AI lançado no mundo segundo o seu modo de ser. O "SER-AI" não está sozinho e é "SER-AI-COM" no modo de ser da ocupação lidando com os entes envolventes - coisas e objetos -não dotados do ser da presença. Quando se relaciona e interage com os outros seres humanos está no modo de ser da preocupação. O SER-AI - COM é projeto, é poder-ser, é possibilidade. O quem do SER-AI-COM pode estar na autenticidade ou na inautenticidade. Assim, Heidegger dispõe que o ente temos o dever de analisar somos nós mesmos, seres humanos.
Com esta ótica entrevistei as gestantes, depoentes deste estudo, mediada pela empatia e livre de pressupostos. Desenvolvi a redução fenomenológica.
Os depoimentos obtidos permitiram-se captar o significado atribuído pelas gestantes à amamentação.
INTERPRETAÇÃO COMPREENSIVA SEGUNDO O PENSAMENTO HEIDEGGERIANO
A compreensão envolveu o ser na dimensão do existir e o poder ser como inerente à existência. A constituição das unidades de significação permitiu desvelar o fenômeno e o modo de ser da gestante. Estas unidades, aqui apresentadas, constituíram-se num movimento mediado pela intuição e pela imaginação:
- O evento amamentação emergiu via gestação, ou seja, responder qual o significado da amamentação implica em falar da gestação, as gestantes fazem-no através de minuciosa descrição do desenvolvimento e/ou das condições estacionais.
- As modificações anátomo-fisiológicas das glândulas mamárias, em decorrência do processo gestacional, são percebidas e relatadas como preparo do organismo para a amamentação e não, apenas, como sinais e sintomas de gravidez.
- A amamentação indica a própria condição materna, revela-se como laço afetivo e forma de prolongamento da gestação.
- A amamentação é uma relação afetiva ainda no período gestacional. - Ao falar da amamentação as gestantes discorrem sobre elas próprias, quem são, o que fazem, o que pensam, o que esperam, com que se preocupam.
- Há uma relação de presente-futuro-passado, as gestantes refletem sobre a amamentação, enquanto o que vai acontecer entre elas e os respectivos bebês no puerpério e enquanto entre elas e as suas próprias mães.
- As gestantes expressam a amamentação ora como certo, determinado. É uma coisa, pensada, planejada mas não decidida, por isso envolta em interrogação e preocupação.
- A amamentação dá-se ao nível da experiência através do convívio com o outro; as gestantes pensam o evento mediado pelo que ouvem falar sobre e pelas orientações recebidas; a vivência de outras mães é relatada.
- As gestantes expressam a necessidade e a esperança de contar com a ajuda dos outros para conseguirem amamentar; também a ausência de ajuda é relatada como um fator de dificuldade.
"AS GESTANTES EXPRESSAM A NECESSIDADE E A ESPERANÇA DE CONTAR COM A AJUDA DOS OUTROS PARA CONSEGUIREM AMAMENTAR"
Este estudo foi feito segundo um movimento de "volta às coisas nelas mesmas", neste sentido o conhecimento "parte da experiência, porém dela não deriva". Então, a partir da experiência vivida junto com as gestantes, desenvolvendo a assistência de enfermagem, pude chegar, mediada pelo método fenomenológico, a um saber que desta prática assistencial não deriva, é a coisa mesma um saber imánente. Meu pensar caminhou buscando compreender o evento, através dos depoimentos das gestantes. Este não é um falar sobre, é sim um falar da amamentação, a coisa mesma.
Este pensar cuidadoso, direcionado para a compreensão do fenômeno situado no ser gestante, permitiu o desvelamento daquilo que se encontrava oculto no significado, isto é, o sentido.
As modificações mamárias da gestação não são sinais biológicos que determinam a lactação; entretanto, não são manifestações que anunciem a amamentação, ou seja, não a causam. Isto porque o fenômeno mostrou-se existencial e não biológico, no seu des-ocultamento evidencia um sentido próprio que corresponde ao modo de ser de cada uma das gestantes.
"...A AMAMENTAÇÃO É UM FENÔMENO EXISTENCIAL"
Os sinais e sintomas desencadeados pela diferenciação mamária, como não indicam a amamentação, configuram manifestações que velam o sentido, o modo de estar no mundo que funda o comportamento da amamentação. E, exatamente, são estes sinais que correspondem aos aspectos abordados durante o acompanhamento pré-natal quando se busca orientar as gestantes para o aleitamento materno.
Como ficou demonstrado, a amamentação é um fenômeno existencial cuja manifestação, "para dizer o fenômeno no sentido autêntico", mostra-se como um campo de possibilidades de gestar, de nutrir, de amar, de dar origem. Assim as ações educativas de preparo da mama e de manejo da lactação devem levar em consideração a gestante enquanto ser-no-mundo. Este serai lançado no mundo, dotado de liberdade e capaz de decidir-se que sendo, enquanto projeto está, não apenas aberto a um poder-ser como também, respectivamente, outro porque é SER-AI-COM.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Então cabe destacar que a assistência pré-natal com enfoque na promoção do aleitamento deve pautar-se na busca do sentido da amamentação para aquela gestante. Este sentido não se esgota naquilo que pode ser apreendido nesta pesquisa, precisa, portanto, ser aclarado num movimento constante constituído a partir do olhar atentivo e não apenas da observação.
Desta maneira não basta observar a cliente e pre-julgar se ela quer ou não amamentar, se pode ou não "dar o peito". É preciso captar o sentido do ser da presença, ou seja, o outro sendo gestante explicitando suas ansiedades, seu desconhecimento, suas ocupações. A partir daí, haverá uma "abertura para que o profissional, (sendo), ajude o ser-ai~gestante a decidir-se. Esta ajuda, no modo positivo de cuidado, não implica em fazer pelo outro e sim levar o outro a assumir o seu próprio fazer, considerando o modo de ser do outro e não o modo de ser do profissional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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