Volume 1, Número 3, Set/Dez - 1997
Em minha preocupação ao estudar o fenômeno cuidado, busquei interpretá-lo desde a pré-história, considerando-o sob uma dimensão mais abrangente, ou seja, não apenas como uma atividade ou tarefa realizada no sentido de tratar uma ferida, aliviar um desconforto e auxiliar na cura de uma doença. Busquei captar o seu sentido mais amplo, como uma forma de expressão, de relacionamento com o outro ser e com o mundo, enfim, como uma forma de viver plenamente e que tentarei a seguir, de forma reduzida, compartilhar nesse encontro.
Posteriormente, ao final, exporei algumas definições sobre cuidar, cuidado e processo de cuidar, que resultaram de várias reflexões, discussões e pesquisas sob o tema.
De modo informal, o cuidar se inicia, ou se expressa, predominantemente de duas formas: como um modo de sobreviver e como uma expressão de interesse e carinho. O primeiro modo faz-se notar em todas as espécies e sexos. Homens e mulheres, bem como plantas e animais, desenvolvem formas de sobrevivência que, dada a capacidade de raciocínio do ser humano, se aprimoram e se sofisticam com o tempo. O segundo modo ocorre entre os humanos, predominantemente considerando sua capacidade de usar a linguagem, entre outras formas, para se comunicar com os outros.
Desde o início da espécie, os estudos sobre o desenvolvimento mostram que o ser humano, independente de sexo, tinha uma preocupação principal: sobreviver e para isso precisava primeiro de alimento e água. Posteriormente, buscava abrigo e proteção contra inimigos e, mais tarde ainda, contra frio e chuva. Construía abrigos onde se refugiava e fabricava indumentárias para cobrir o corpo.
AS MULHERES PARECEM TER ADQUIRIDO UM COMPORTAMENTO DIFERENCIADO DOS HOMENS
Em geral com pele de animais, folhas e fibras tecidas. Desenvolveu instrumentos para a caça e a pesca e artefatos e utensílios para o preparo e o consumo dos alimentos.
Cada período do desenvolvimento humano ilustra como os artefatos e os instrumentos vão-se aprimorando e como outros materiais são acrescentados e trabalhados. Sofisticam-se e tornam-se, além de peças utilitárias que registram cada cultura, obras de arte. Adornos são também introduzidos e, além do cuidado com a vida, marcam uma preocupação com a estética.
A socialização é iniciada quando os humanos deixam de ser nômades e passam a conviver em grupos ou comunidades. As relações se ampliam, e inclusive os humanos compartilham habilidades, alimento e vestuário.
As mulheres parecem ter adquirido um comportamento diferenciado dos homens mas assemelhado entre elas, nas diferentes épocas, devido à maternidade. Quase que de forma universal, entre os diversos clãs, tribos e civilizações, ao longo da história, os "cuidados" com o parto ficavam a cargo das mulheres. À semelhança dos animais, a mulher lambia sua cria, nutria e protegia. Entre as práticas de higienizar e de alimentar, foram introduzidos comportamentos de tocar, cheirar e gestos rudimentares de afago.
O segundo modo de expressar o cuidado, ou seja, a demonstração de interesse e de afeto, parece ser mais evidente entre as mulheres. O macho é menos gentil e parece que as relações ocorriam através da lutas e jogos, onde o toque se fazia presente de maneira bastante rude, e mesmo com os membros da família.
A humanidade tem evoluído. A história testemunha e registra isso, e as previsões são de que continuaremos o processo evolutivo.
Recentemente, em janeiro de 1997, a televisão americana anunciou a última descoberta com relação à evolução humana: foram encontradas na Etiópia pedras manejadas pelo ser humano cuja data é anterior às já anteriormente encontradas. As evidências parecem comprovar que a espécie humana é bem mais antiga do que se pensava em termos de existência.
Vários estudos na área da antropologia, como os clássicos de Margaret Mead e Claude Lévi-Strauss, entre outros, têm registrado como algumas sociedades vivem seu dia a dia, seus hábitos, tradições, mitos, tabus, incluindo-se aí as práticas religiosas, de saúde e de cuidado.
Ao pinçar alguns momentos da evolução humana e os sucessivos eventos através dos séculos, não foi possível caracterizar, de forma mais acurada, o comportamento das pessoas nas suas culturas, relativamente a aspectos mais específicos, como os de cuidado. Alguns registros na história fornecem uma idéia; outras culturas, infelizmente, não deixaram registro. Além disso, para obter-se uma idéia mais fidedigna, seriam necessários estudos de observação e de entrevistas, a exemplo do que se faz hoje em dia, dados os avanços na área da investigação científica.
PASSANDO DE GERAÇÃO A GERAÇÃO ATRAVÉS DOS TEMPOS.
Os estudos de LEININGER (1991) e de outras pesquisadoras da área da enfermagem, que têm investigado comportamentos de cuidar entre algumas culturas, ilustram, de certa forma, como atualmente pessoas mantêm muitos dos rituais de cuidar que representam os valores de suas culturas. Mesmo com alguns supostos acréscimos e modificações, muitos desses rituais de cuidado permanecem fiéis às suas origens, passando de geração a geração através dos tempos.
O ser humano, infelizmente, em sua história apresenta paradoxos e ambigüidades entre comportamentos de cuidado e não cuidado: as guerras, os progressivos e cada vez mais sofisticados arsenais para uso militar, verdadeira obsessão por parte do ser humano e responsável pela dizimação de milhares e milhares de pessoas. As descobertas científicas e o avanço industrial e tecnológico, de um lado, têm beneficiado populações no mundo inteiro, e, de outro, acarretam tragédias em função da incontrolável ganância e do prazer do ser humano em exercitar seu poder. Em comparação à Bíblia, parece que o ser criado por Deus tenta inclusive ultrapassá-lo.
FOLEY (1995) recorda que, desde o final do período Pleitosceno, há cerca de 10.000 anos, o meio ambiente tem sido transformado pela atividade humana. Ele menciona a destruição de florestas; a modificação do curso ou o desaparecimento de rios em função das necessidades humanas; o incrível aumento da população; e a alteração de tamanho e forma das plantas e animais, a criação inclusive, de novas espécies. A engenharia genética e a biotecnologia têm acelerado esse processo e possibilitado coisas inimagináveis até certo tempo atrás. Em outro sentido, observa FOLEY, o desaparecimento crescente de muitas espécies e a redução da biodiversidade parece não só uma ameaça mas uma realidade.
Em contrapartida, doenças têm sido erradicadas, a mortalidade tem sido reduzida, o trabalho simplificado, e as oportunidades de realização parecem ter-se ampliado. A criatividade, a abnegação e o heroísmo tornam a miséria, a criminalidade e a destruição ambiental apenas um sonho mau.
Considerando a idéia inicial de caracterizar o cuidar como um modo de sobrevivência, a humanidade ainda demonstra essa forma de cuidado, agora bastante mais exigente e sofisticada. Por vezes, não mede conseqüências, pois a luta agora é bem mais competitiva e o ser humano torna-se mais individualista. O bem-estar, via de regra, significando TER, possuir coisas, bens é desejado e por vezes não importa a que custo. Nesse cuidar, a saúde, por exemplo, está incluída. No entanto, só há uma real preocupação na sua ausência e medidas são tomadas quando a saúde está ameaçada.
O CUIDAR SEMPRE ESTEVE PRESENTE NA HISTÓRIA HUMANA
Quanto ao cuidar como uma forma de se relacionar, parece que vivemos um paradoxo. A hostilidade, o ódio, a violência, a desonestidade e o medo convivem com a solidariedade, a afetividade, o amor, a luta pela paz, pelo respeito, pela esperança. No final, quem vence?
ROACH (1993) afirma sua crença no cuidado como uma forma de ser, lembrando que a espécie humana tem sobrevivido justamente pela existência de seres que apresentam comportamentos de cuidado. Essa humanidade mencionada por ROACH deveria vencer todas as dificuldades de um mundo em crise, pois, segundo ela, o cuidar precisa ser fortalecido, impedindo que comportamentos de não cuidado prevaleçam.
O cuidar sempre esteve presente na história humana. O cuidar como forma de viver, de se relacionar. O cuidado tecnológico, também, de certa forma, está presente nas diversas civilizações, porém de maneira indiferenciada, às vezes, das práticas de cura, ou seja, da medicina.
O cuidar, cumpre lembrar, sempre fez e ainda faz parte da medicina (ou deveria fazer), com a única diferença de que a sua ênfase atual está no procedimento, na tarefa e obviamente, visando a um objetivo, um resultado: a cura.
A enfermagem nasce depois, ou seja, começa a tomar forma e adquire realmente o status de uma ocupação distinta, com a formalização do seu ensino feita por Florence Nightingale. Anteriormente, desenvolvia-se, através de "treinamento" de pessoas para desempenhar atividades de conforto, de administração de medicamentos e de limpeza de unidade, cozinha e lavanderia.
Contrariamente a DONAHUE (1985) que, no processo de evolução, reconhece a enfermagem como mais velha do que a medicina, po-der-se-ia dizer que, na realidade, o mais velho é o cuidar.
O cuidar foi, por um período, uma característica da enfermagem e, hoje, tenta-se resgatá-lo, tanto no seu conhecimento como em sua arte.
No Brasil, a enfermagem, pode ser ainda considerada uma profissão nova e em vias de estudo, constituindo terreno fértil para incluir, em seus currículos, o cuidado humano. Da mesma forma, constitui espaço privilegiado para discussão, estudo e debate nos cursos de pós-graduação, atualmente em franca expansão no país.
DA DIGNIDADE HUMANA E DA NOSSA ESPIRITUALIDADE
Ainda há muitas controvérsias sobre o que consiste o foco da enfermagem no Brasil e em que modelo, ou modelos, fundamentar sua prática. O cuidado humano, com certeza, pode ser a base fundamental, independente do modelo utilizado, evidentemente acompanhado de seus aspectos técnicos e científico, assim como estético e ético.
O cuidado humano, cumpre destacar, a despeito de algumas crenças equivocadas, não pode ser prescrito, não segue receitas. O cuidado humano é sentido, vivido, exercitado.
Cuidado humano como já definido (WALDOW, 1998, p.75) "consiste em uma forma de ser, de viver, de se expressar". (...) É um compromisso com o estar no mundo e em contribuir com o bem-estar geral, na preservação da natureza, da dignidade humana e da nossa espiritualidade; é contribuir para a construção da história, do conhecimento, da vida".
Um aspecto diferencial da enfermagem no Brasil diz respeito ao afastamento gradativo das enfermeiras em relação ao paciente, pois são solicitadas, devido à formação universitária e ao reduzido número, a liderarem a equipe de enfermagem, organizando e planejando as tarefas, controlando a equipe e os gastos de forma a tornar o serviço eficiente, prático e econômico. O cuidado direto passou a ser desempenhado pelas demais categorias de enfermagem. É necessário apontar que isso contribui mais ainda para a desvalorização do cuidado no Brasil: por longo tempo, o maior contigente de trabalhadoras na enfermagem, responsáveis pela maioria das ações, era constituído por atendentes de enfermagem, categoria não profissional, sem preparo profissional.
Outro aspecto a destacar é a forma de o cuidado ser ensinado e desenvolvido na prática de campo: com ênfase na técnica, ou seja, intervenções de enfermagem que, em última análise, dependem de uma prescrição médica e cujo objetivo é o de tratamento de uma enfermidade.
Estudo conduzido por ALMEIDA (1986) caracteriza a prática profissional de enfermagem no Brasil em três fases de desenvolvimento em conexão com o cuidado. As primeiras expressões organizadas e sistematizadas do saber na enfermagem são constituídas, segundo a autora pelas "técnicas de enfermagem" comumente conhecidas como "cuidados de enfermagem". Para ALMEIDA (1986, p.29) "as técnicas consistem da descrição do procedimento de enfermagem a ser executado, passo a passo, e especificamente também a relação do material que é utilizado".
OS PRINCÍPIOS PSICOLÓGICOS E SOCIAIS SÃO GERAIS
No que tange ao ensino, os livros de Fundamentos de Enfermagem e os Manuais de Técnicas de Enfermagem eram as Bíblias dos estudantes. Algumas escolas produziam e vendiam às alunas volumosos polígrafos com todas as técnicas essenciais que deveriam ser treinadas e executadas. A habilidade manual, a capacidade de memorização, a postura e a mecânica corporal na realização das técnicas eram aspectos imprescindíveis, além do capricho, organização e perfeição. O objeto da enfermagem "não estava centrado no cuidado ao paciente, mas na maneira de ser executada a tarefa". (ALMEIDA, op.cit, p.35).
A segunda fase, por volta da década de 50, caracteriza-se pela introdução dos "princípios científicos", que eram guias norteadores de todas as ações de enfermagem. Prevaleceu a ênfase nos aspectos biológicos, embora com uma preocupação em incluir alguns aspectos psicossociais. Os princípios de anatomia e de fisiología são os mais freqüentes, seguidos dos princípios de microbiologia, de física e de química. Os princípios psicológicos e sociais são gerais, impessoais e vagos, pois dependem da situação específica e da individualidade da clientela.
A década de 50 trouxe modificações no cenário da enfermagem nos Estados Unidos, de onde a enfermagem brasileira tem-se inspirado.
A introdução da alta tecnologia tem um forte impacto no mundo hospitalar. A eficiência em administrar tratamentos sofisticados e novos medicamentos tornam as ações de enfermagem mais complexas.
No Brasil, o sistema previdenciário, a infiltração de organizações estrangeiras, a introdução de tecnologias e o crescimento da indústria farmacêutica forçam o consumo dessas últimas no âmbito hospitalar, direcionando assim os agentes de saúde para a produção de tecnologias para o manuseio e consumo destes materiais que cria também novas necessidades (ALMEIDA, 1986).
A enfermeira brasileira para atender à demanda e controlar as atividades assume totalmente a função administrativa, ou melhor, de gerenciamento. Consequentemente, as escolas de auxiliares de enfermagem sofrem um incremento. Auxiliares de enfermagem são preparados para prestarem o "cuidado de enfermagem", auxiliados, nas tarefas menos complexas, pelos atendentes de enfermagem. No final da década de 60, surge o técnico de enfermagem.
Nas escolas de enfermagem, o ensino continua priorizando o conhecimento médico, acrescido de uma ênfase nas teorias administrativas, segundo os princípios de Taylor e Fayol, os quais orientam ações de planejamento, organização e supervisão do cuidado administrado pelas demais categorias. Gradativamente, as atividades administrativas passam a ser desenvolvidas mais em torno das carências da instituição, em detrimento das necessidades da clientela.
ALGUMAS TEORISTAS REMETEM À IDÉIA DE ASSISTIR
As especialidades médicas ganham espaço. Os livros textos na enfermagem, em geral refletem essa tendência.
Mais recentemente os textos têm apresentado o cuidado de forma mais humanística, priorizando o cuidar, a pessoa, o meio ambiente e não somente procedimentos, patologias, ou problemas.
Em meados da década de 60 e 70, inicia-se a terceira fase, de desenvolvimento da enfermagem denominada "teorias de enfermagem". Várias tentativas são realizadas por algumas lideranças na enfermagem Mundial no sentido de humanizar a assistência, ou o cuidado. A enfermagem agora busca o status de ciência e, com isso, sua identidade.
Algumas teoristas remetem à idéia de assistir (ou ajudar) o indivíduo como um todo, ou seja, incluindo aspectos biológicos, psicossociais e inclusive espirituais; criticam a objetificação do paciente e advogam pela independência da medicina.
No Brasil, as teorias começaram a tornar-se fonte de interesse por volta de 1970. A maioria dessas teorias foi desenvolvida por enfermeiras americanas, com ênfase nos aspectos biomédicos: adaptação, homeostasia, necessidades básicas. Algumas buscam apoio em outras áreas de conhecimento e seu enfoque predominante é o aspecto psicológico, ou social. É comum, mesmo utilizando um enfoque positivista, considerarem-se "holísticas", o que revela ambigüidade e, inclusive, contradições.
Parece que a atual fase por que passa a enfermagem é justamente a de discutir e de questionar o seu conhecimento. As influências político-sociais e econômicas, a própria história da enfermagem e das práticas de cuidar e a sua interrelação com a categoria gênero são atualmente o foco das discussões. É uma fase revolucionária. Teoristas e estudiosas tentam acompanhar as mudanças sociais e as tendências do mundo contemporâneo e das idéias do pós-modernismo.
Alguns estudos começam a discutir e a estabelecer a associação de gênero na enfermagem. Alguns denunciam, desvelando as relações de poder, outros analisam e discutem como a categoria gênero conjuga-se com o trabalho no ambiente de saúde, revelando um jogo de forças, cheio de artimanhas e simbolismos entre o masculino e o feminino.
E NECESSÁRIO CONHECER MELHOR ESSE FENÔMENO
Desvelar o que realmente ocorre no cenário da enfermagem entre seus protagonistas e entender o como e o porquê das relações de dominação-submissão, não só entre enfermagem e medicina, mas entre as diferentes categorias, auxilia na busca de caminhos que possibilitem manejar os sentimentos de frustração, desvalia, culpa e quiçá, redefinir ou reconstruir ações e saberes, e portanto, comportamentos.
A questão do cuidado, visualizado e entendido na perspectiva de gênero, é uma questão política que enfermeiras, principalmente, começam a conscientizar como inevitável de ser enfrentada no momento em que buscam seu reconhecimento social.
Uma das questões que surge é justamente a de clarificar o cuidar. Apesar de seu uso freqüente e de sua reconhecida indissociabilidade com a prática de enfermagem pouco, na verdade, tem sido estudado a respeito do cuidado como fenômeno.
O cuidar não é privilégio da enfermagem, então o que o distingue das outras atividades? RADSMA (1994) questiona se para algumas, ou para a maioria das pessoas na enfermagem, o cuidar consiste na sua essência e porquê isso ocorre.
Como é definido o cuidar, como é percebido por parte de quem cuida e por parte de quem é cuidado, quais suas características?
O fato é que existem muitas controvérsias ao considerar o cuidado como objeto, foco central, essência ou imperativo moral da enfermagem. Mesmo o sendo, é necessário conhecer melhor esse fenômeno, explorando o seu significado.
O cuidar, como já referido em outros trabalhos (WALDOW, 1995, 1998), compreende comportamento e ações que envolvem conhecimento, valores, habilidades e atitudes, empreendidas no sentido de favorecer as potencialidades das pessoas para manter ou melhorar a condição humana no processo de viver e morrer. Como cuidado, entende-se o fenômeno resultante do processo de cuidar.
O processo de cuidar representa a forma como ocorre (ou deveria ocorrer) o cuidar entre cuidadora e ser cuidado.
O cuidar envolve verdadeiramente uma ação interativa. Essa ação e comportamento, está calcada em valores e no conhecimento do ser que cuida para e com o ser que é cuidado e que passa também a ser cuidador. Cumpre salientar que essa experiência, ocorrida em um dado momento, resulta em uma situação de cuidado. Entendendo dessa forma, o ser - recipiente do cuidado - participa (quando possível) ajudando-se. Assim ele passa a cuidador de si, responsável, em certa medida, total ou parcialmente pelo seu próprio cuidado.
NÃO RESPONSABILIDADE NO SENTIDO DE OBRIGAÇÃO
O processo de cuidar envolve crescimento e ocorre independentemente da cura. É intencional e seus objetivos são vários, dependendo do momento, da situação e da experiência. Por ser um processo, não há preocupação com um fim.
Os objetivos de cuidar envolvem, entre outros aliviar, confortar, ajudar, favorecer, promover, restabelecer, restaurar, dar, fazer, etc. A cura pode ocorrer ou não, assim como a morte. O cuidado é imprescindível em todas as situações de enfermidades, incapacidades e durante o processo de morrer. Na ausência de alguma enfermidade e no cotidiano dos seres humanos, o cuidado humano também é imprescindível, tanto como uma forma de viver como de se relacionar.
A finalidade do cuidar na Enfermagem é prioritariamente aliviar o sofrimento humano, manter a dignidade e facilitar meios para manejar com as crises e com as experiências do viver e do morrer.
O cuidar se desenvolve entre pessoas através de uma experiência relacionai que engloba responsabilidades. Não responsabilidade no sentido de obrigação, mas de um compromisso para o eu e o outro. Neste compromisso, o ser está com o outro e ambos se desvelam. Watson (1988) refere a isto como intersubjetividade, ou seja, o encontro real e autêntico entre seres humanos. Buber (1987) define a esfera onde se dá o encontro entre dois seres humanos em um processo dinâmico de tornar-se. Este encontro é presença aberta, honesta, autêntica, onde cada um é confirmado e afirmado pelo outro.
A enfermeira na relação exprime e compartilha seu conhecimento, sua sensibilidade, sua habilidade técnica e sua espiritualidade elevando o outro, ajudando-o crescer. O outro, em sua experiência genuína, acrescentará e compartilhará o seu ser, seu conhecimento, seus rituais, suas características que auxiliarão no processo transcendente de cuidar. Este último, contribui no processo de atualização da enfermeira, no seu aprimoramento, ou seja, no seu vir a ser mais.
A bibliografia apresenta inúmeras pesquisas e relatos de experiências sobre o significado do cuidado nas diferentes culturas, percepções de cuidado sob o ponto de vista dos profissionais de saúde (enfermeiras) e percepções de cuidado sob o ponto de vista da clientela - dos recebedores ou recipientes de cuidado. É interessante constatar que alguns estudos mostram divergência entre as percepções e que muito freqüentemente as expectativas da clientela são diferentes das dos cuidadores.
Não há necessidade de desenvolver um relacionamento íntimo e profundo mas, sim, uma relação que fortaleça o self do outro, capacitando-o para a sua autocura e a saúde. O relacionamento entre cuidadora e ser cuidado, de acordo com BISHOP & SCUDDER (1996),é capacitar o bem-estar que significa o sentido da enfermagem e que caracteriza um relacionamento intencionalmente terapéutico.
PARA QUE O CUIDADO REALMENTE OCORRA NA SUA PLENITUDE
Urna cuidadora que demonstre extrema eficiencia mas que seja rude ou indiferente pode transmitir ao paciente sentimentos de solidão e de carencia, agravando sua vulnerabilidade. Por outro lado, alguém extremamente delicada, interessada e afetiva, mas com falta de experiência, conhecimento e habilidade técnica, pode produzir no paciente sentimentos de insegurança, desconforto e ameaça.
Para que o cuidado realmente ocorra na sua plenitude, a cuidadora deve expressar conhecimento e experiência na performance das atividades técnicas, na prestação de informações e na educação ao paciente e sua família. A isso deve conjugar expressões de interesse, consideração, respeito e sensibilidade, demonstradas por palavras, tom de voz, postura, gestos e toques. Essa é a verdadeira expressão da arte e da ciência do cuidado: a conjugação do conhecimento, das habilidades manuais, da intuição, da experiência e da expressão da sensibilidade.
O cuidado mesmo no silêncio é interativo e promove crescimento. Ajudar o paciente a crescer envolve ajudá-lo a enfrentar momentos difíceis, mantendo-se presente e solitária, e auxiliando-o a extrair significado da experiência vivida.
O cuidado auxilia no processo de cura, acelerando-o e tornando-o menos traumático.
O processo de cuidar já referido e definido em outra obra (WALDOW, 1998) compreende o desenvolvimento de ações, atitudes e comportamentos com base em conhecimento científico, experiência, intuição e pensamento crítico, realizadas para e com o paciente/cliente/ ser cuidado no sentido de promover, manter e/ou recuperar sua dignidade e totalidade humanas. Essa dignidade e totalidade englobam o sentido de integridade e a plenitude física, social, emocional, espiritual e intelectual nas fases do viver e do morrer e constitui, em última análise, um processo de transformação de ambos, cuidadora e ser cuidado.
O processo de cuidar é descrito, em maiores detalhes, e representado graficamente no livro "Cuidado Humano: o resgate necessário".
Recentemente, em seminários, congressos e outros eventos de enfermagem, assim como em dissertações de mestrado e teses de doutorado, colegas têm, também, apresentado idéias e definições e que infelizmente, ainda não foram publicadas. Penso que, à semelhança do I Encontro Brasileiro sobre o Cuidado e o Conforto em Enfermagem, ocorrido em Itapema, Santa Catarina em 1996, um próximo encontro possa agregar estudiosas, pesquisadoras e cuidadoras interessadas no tema para discutir e divulgar idéias, dúvidas e questões que certamente enriquecerão nossa prática.
Por vezes, mais do que as palavras, gravuras que representam a realidade e que documentam a arte e a história, podem ser mais eloqüentes. Assim que, a seguir, apresento uma sessão de slides que representam minha forma de olhar o cuidado humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, M. C. P. O saber da enfermagem e sua dimensão prática. São Paulo: Cortez, 1986.
BISHOP, A. H.; SCUDDER, JUNIOR; J. R. Nursing ethics: therapeutic caring presence, Boston: Jones & Bartlett, 1996.
BUBER, M. I and thou. New York: Collier Books Macmillan 1987.
DONAHUE, P. M. Nursing, the finest art: an illustrated history. St. Louis: Mosby Company, 1985.
LEININGER, M. M. (Ed.). Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: National League for Nursing, 1991.
RADSMA, J. Caring and nursing: a dilemma. Journal of Advanced Nursing, n.20, p.444-449, 1994.
ROACH, S. S. The human act of caring; a blueprint for the health professionals. Ottawa: Canadian Hospital Association , 1993.
WALDOW, V. R. Cuidar/Cuidado: o domínio unificador da enfermagem.In: WALDOW, V. R. et al. Maneiras de cuidar, maneiras de ensinar: a enfermagem entre a escola e a prática profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p.7-30.
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WATSON, J. Nursing: human science and human care. A theory of nursing. New York: National League for Nursing, 1988.