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CAPES

Volume 1, Número 3, Set/Dez - 1997

Vou me valer de uma idéia de Michel Foucault, para iniciar esta conferência e dimensionar a necessidade de uma retrospectiva histórica para a abordagem de uma temática de nossa atualidade, a Reforma Psiquiátrica no Brasil e sua interlocução com a enfermagem.

"A loucura não é um fato da natureza, mas um fato da civilização. Sempre, em determinada sociedade, a loucura é uma conduta outra, uma linguagem outra"

Por conseguinte, não pode haver história da loucura, ou de suas aproximações e tentativas de intervenção nas vidas dos indivíduos, sem uma história das culturas que a definem como tal e a perseguem.

Trata-se portanto de ver o que uma sociedade arrisca em seu debate com a loucura2.

E porque então, mesmo, a história?

Porque, ainda com Foucault, a história é, efetivamente, "a região mais erudita, mais informada, mais desperta, mais atulhada talvez da nossa memória; mas é igualmente, o fundo de onde todos os seres vêm à existência, e ao seu cintilar precário"3.

Teremos então que nos haver com a tessitura de três versões do passado: aquele que nos deu um ethos profissional e que nos identificou como enfermeiras, a partir do mito de origem da Enfermagem Moderna, com Mrs. Florence Nightingale; um outro segmento de herança mais recente, que nos formou como enfermeiras psiquiátricas, no Brasil da Nova República; e, como pano de fundo, a constituição de uma rede histórica e social, vazada na elaboração do discurso médico-psiquiátrico sobre a loucura, que vai nos envolver com uma identidade formada, não como seqüência de reminiscências, mas por terem sido retidas em uma única teia retrospectiva.

 

"TEREMOS ENTÃO QUE NOS HAVER COM A TESSITURA DE TRÊS VERSÕES DO PASSADO"

Uma análise histórica que propomos colocar em discussão, é a análise dos sistemas de pensamento, ou seja, para o que aqui nos interessa, como se conformaram e se organizaram algumas idéias, que nutrem ainda hoje a identidade profissional da enfermeira, esta mesma enfermeira que tem que se haver agora, no Brasil, com uma Reforma Psiquiátrica que coloca em discussão as práticas assistenciais e as autoras destas práticas.

Nesta perspectiva de análise histórica da formação da identidade profissional da enfermeira4, estou partindo, na realidade, de duas biografias, que se contrapõem, mas que se apoiam no mesmo tempo social, no mesmo tecido cultural, na Inglaterra Vitoriana, e nos mesmos eventos, para o que vamos fazer um recorte aqui, de um interesse maior, para a promulgação da New Poor Law(1834) e a criação da Escola de Enfermeiras Florence Nightingale (1860), entendendo que estes fatos, minimizados como acontecimentos, representam uma bolha de superfície, para acontecimentos de longa duração, aí entendida a formação das idéias e mentalidades que constituíram a Inglaterra vitoriana como a Oficina do Mundo, e que, com certeza, têm um lastro histórico.

As duas biografias, as duas histórias de vida, são a de Florence Nightingale, uma das mais instigantes personagens da era vitoriana e a de Mrs Sairey Gamp, personagem elaborada pelo talento literário de Charles Dickens, onde os fatos, comportamentos, habilidades, e características da personagem, não são obra do acaso ou mera coincidência, porque Mrs. Gamp não existiu materialmente como Florence Nightingale, mas teve vida, na experiência de muitas pessoas que vieram a necessitar de cuidados de enfermagem ao longo do século XIX e na imaginação de muitas estudantes de enfermagem, nas aulas da disciplina de história de enfermagem, ainda em nossos dias.

O sentido da biografia de Florence Nightingale, do estudo de sua vida, é o pressuposto de que, para entender a sua vida pública, suas realizações e a Reforma Sanitária proposta por ela, e nesta Reforma, a criação da primeira Escola de Enfermeiras, é preciso entender a sua vida enquanto mulher, a partir de um quadro claro das pressões sociais que agiam sobre o seu comportamento individual.

 

"...MEMÓRIA, HISTÓRIA, RELÍQUIAS DE TEMPOS ANTERIORES PODEM ILUMINARE PASSADO"

Este tipo de estudo só pode ser convincente, se levar em conta, além do destino individual, um modelo das estruturas sociais da época, e as coerções inevitáveis que resultam da operação destas estruturas.

O ponto central metodológico que utilizo, e que acho que vale destacar, por ser uma abordagem ainda pouco utilizada na enfermagem, é a análise sócio-histórica de dois livros de Charles Dickens, utilizados como fontes primárias, Oliver Twist e Martin Chuzzlewitt, onde usamos o texto ficcional, como um documento sócio-histórico de apoio.

O discurso ficcional de Dickens foi tomado, não como factual, ou como aquele que retrata a verdade dos fatos da sociedade, mas como um portrait sociológico, que tem a literatura como um contexto com consistência histórica.

É uma proposta de análise que busca explorar certa perspectiva sobre o mundo social, e que não pretende exaurir, a descrição ou a análise de todos os dados contidos na totalidade do campo dos fenômenos, mas que se oferece como um meio, entre muitos meios possíveis, de revelar certos aspectos desse campo.

A análise da narrativa ficcional obedece à orientação dada por alguns autores da Nova História4, cuja característica marcante é a dilatação do campo de documento e a sua capacidade de interrogar os silêncios da história, fazendo entrar em cena os documentos do imaginário.

As duas biografias se envolvem na questão central de uma investigação de abordagem histórica, que é a tentativa de reconstrução do passado, de uma realidade que já não existe mais, que já deixou de ser. Então temos uma realidade histórica (a biografia de Florence Nightingale) tão sui generis, quanto a irrealidade da ficção (a história de Mrs Gamp). Nesta, os acontecimentos inventados, formando um mundo fictício, escapam a qualquer espécie de confirmação empírica. Naquela, os dados empíricos (documentos), signos de um mundo que foi real, remetem a acontecimentos passados, conhecidos por inferência, e que só se confirmam fora de toda comprovação empírica, pela reconstrução deste mesmo mundo.

 

"...NO CENÁRIO DE BAIRROS POBRES E DE CONDIÇÕES DE HIGIENE PRECÁRIA, É SEMPRE PESADA, CRUEL, CORRUPTA, GULOSA, PROMÍSCUA E BÊBADA."

Na verdade, concordando com o que diz David Lowenthal, "memória, história, relíquias de tempos anteriores podem iluminar o passado. Mas o passado que elas revelam, não é simplesmente o que aconteceu: ele é em larga medida, um passado da nossa criação, modelado por uma erosão, por um esquecimento e por uma invenção seletiva"5.

Para o contexto social-politico, a promulgação da New Poor Law em 1834, representa uma vitória absoluta do pensamento liberal inglês que, juntamente com as work houses, vai estabelecer inequivocamente que:

-a questão da pobreza não é mais do domínio das relações econômicas e não é mais um problema do Estado, o qual não continuará a suplementar os salários, conforme estava previsto na antiga Poor Law;

-a pobreza passa então a pertencer às relações sobre a doença, como um fenômeno natural, agora no campo do saber médico, devendo portanto habitar os asilos ou as work houses, as chamadas "prisões sem crime".

A promulgação da New Poor Law vai revelar em Dickens um dos mais ferozes críticos da sociedade inglesa da época.

Em 1837, ele publica o romance Oliver Twist, que desempenhará um papel poderoso como pólo de discussão na sociedade londrina, a ficção atuando como denunciadora da New Poor Law, no seu conteúdo essencial, que estabelece a pobreza como crime.

Ao longo de toda sua obra literária, notadamente nestes dois romances, Dickens vai tratar de algumas personagens femininas, cujas tarefas são, assistir, cuidar e disciplinar, tanto no espaço público como no privado, mas registrando a forma como esta pessoa que cuida não deveria ser ou proceder, ou seja, traçando um perfil negativo, que vai assumir um aspecto de satirização completa na personagem Sairey Gamp, que o próprio Dickens reconhecia como uma crítica explícita ao modelo pré-Nightingale de enfermeiras, segundo o escritor, "uma corporação que deixava muito a desejar6.

Dickens descreve Mrs Gamp, como uma profissional de enfermagem que, no cenário de bairros pobres e de condições de higiene precária, é sempre pesada, cruel, corrupta, gulosa, promíscua e bêbada.

O Boletim Moral, oficializado por Florence Nightingale na sua Escola de Enfermeiras e presente até hoje nas escolas de enfermagem do Brasil, de forma estilizada, é descrito minuciosamente por Dickens, a partir da infração completa destas regras de comportamento.

 

"FOI UMA ÉPOCA DE DESTRUIÇÃO, QUE FERIA TIDO UM DESTINO SOCIAL HEDIONDO..."

Mrs Gamp utiliza uma linguagem, um inglês, com uma pronúncia e uma sintaxe, que não se assemelhavam ao inglês falado em nenhum lugar do mundo à época.

Além do mais, misturava alusões e citações bíblicas ou aproximadamente bíblicas, aos seus propósitos cotidianos e usuais. A linguagem de Mrs Gamp expressa o seu caráter: tirânica com os mais fracos, bajuladora e servil com os poderosos, indignada ou gemente quando os seus próprios interesses materiais ou o seu apetite guloso estão em causa, Mrs Gamp produz sempre uma impressão edificante. Beberrona, falante com suas estropiadas palavras de sabedoria, ela provoca o riso e a simpatia do leitor, apesar de sua atuação motivada sempre no interesse próprio. Ela é uma personagem que sintetiza com arte o seu tempo e provoca o riso, não apenas como simples explosão pessoal, mas, ao contrário, porque ela é ao mesmo tempo um produto da cultura, e um comentário a ela, um gesto social.

A era vitoriana, foi uma era de importantes redefinições de algumas noções muito amplas como pecado, crime, doença e problema social, tendo alguns conceitos transmutado de uma categoria para outra, no decorrer do século, apontando para a transformação de algumas práticas, em associação com a emergência de novas configurações.

Foi um século onde atitudes conscientes e litigiosas com relação à agressão, coexistiram com idéias e atos agressivos, nem todos reconhecidos como tais: as afirmações de controle sobre matérias primas e altas finanças, o controle e a exploração da terra, a organização dos negócios e os riscos à saúde, as comunicações à distância e os mistérios científicos, foram atividades que exigiram um altíssimo nível de agressão ao homem e à natureza, mas que, na maioria das vezes, foram avaliadas como puramente construtivas.

Podemos chamar os vitorianos de agressivos, não apenas porque sua caça ao lucro e ao poder implicava em graves custos sociais para os trabalhadores exaustos, funcionários explorados, artesãos tornados obsoletos e nativos expropriados e ultrajados, mas também porque eles despendiam muita energia para controlar o tempo, o espaço, a escassez, a abundância e a eles mesmos, como nunca ocorrera antes. Exibiram o fato familiar de que a agressão, não importa quão benigna em intenções e resultados, deixa cicatrizes e vítimas em seu lastro. Foi uma época de destruição, que teria tido um destino social hediondo, se não tivesse sido também, uma época de preparação para a reconstrução.

Dickens marca a grande disposição de Mrs Gamp para aceitar as solicitações do mundo exterior, uma dupla disponibilidade para cuidar da vida ou da morte, emoções que vão trilhar uma mesma via de acesso, que é apenas uma certa disponibilidade de tempo da enfermeira. A impressão que passa ao leitor, é que, vida e morte, são justo duas opções de um mesmo trabalho, desgastante e cansativo, cujas marcas serão a impessoalidade e a indiferença.

 

"A ESTRATÉGIA ERA A HIPOCRISIA..."

Mrs Gamp era uma viúva, e seu físico dizia muito sobre as suas condições emocionais. Vale ressaltar que as duas enfermeiras retratadas por Dickens, nos dois romances, são viúvas, esta alternância entre a fantasia e a realidade para a vida sexual de uma enfermeira, que oscila entre a prostituta e a irmã de caridade, é uma dualidade de tradição histórica.

O álcool era presença diária e frequente na vida de Mrs Gamp, em pequenas doses para possibilitar o trabalho difícil e inebriar uma vida que se mesclava de realidade e de sonho, de personagens irreais, estratégias individuais para driblar uma realidade coletiva avassaladora.

As preocupações da enfermeira no plantão dificilmente incluíam as condições do doente, e esta era a realidade do cuidado de enfermagem que se prestava à época, a ricos e pobres, uma indiferença de qualidade que possuía a característica imprudente de não respeitar as diferenças de classe social.

Era freqüente e sabido que as enfermeiras fossem amigas pessoais e trocassem clientes com o agente funerário local: um convívio profícuo, que estabelecia regras garantidas de sucesso para o trabalho de um ou de outro, mas sempre com um lucro para a enfermeira.

A força física era comumente utilizada, como método de convencimento para pacientes recalcitrantes, e a pouca tolerância para com a situação crítica do paciente era uma prática de enfermagem aceita, e que parecia fazer escola. Mrs Prig é uma segunda enfermeira síntese destes atributos, e nela, humanidade e ternura eram consideradas inépcias.

O trabalho desenvolvido por Mrs Gamp, era uma estratégia de sobrevivência para uma mulher pobre sem nenhuma qualificação profissional.

Obediência, devoção, estudo, disciplina, soavam como ruídos, ou como construções lingüísticas desprovidas de qualquer sentido para uma enfermeira.

Mrs Gamp vestia-se, tossia, piscava, comia e dormia conformando um variado repertório de técnicas que incluíam lágrimas, ataques histéricos, exibições ostensivas de vulnerabilidade e delírios. A estratégia era a hipocrisia, uma prática de professar um ideal e conscientemente violá-lo.

O romance Martin Chuzzlewitt termina com alguns conselhos do velho Martin que apontam para alguns tópicos importantes na formação da identidade profissional da enfermeira, abordando sem rodeios a necessidade de uma enfermagem como uma CIÊNCIA e como uma ARTE.

 

"O PESO DO SEU TALENTO E A FORÇA COM QUE EMPREENDIA E REALIZAVA SUAS IDÉIAS, ATESTAVAM A SUA ENERGIA..."

A necessidade de alocar e controlar, corretamente, o que era objetivo e o que era subjetivo na profissão.

À ciência, o aprendizado teórico-prático sistematizado; à arte, a subjetividade contida no controle do comportamento através do Boletim Moral.

"...diz o velho Martin olhando Mrs Gamp estupefata...: sugira-lhe que seria conveniente que ela consumisse um pouco menos de álcool e que mostrasse um pouco mais de humanidade, que se preocupasse um pouco menos com sua própria pessoa e um pouco mais com os seus doentes, e talvez que se mostrasse um bocadinho mais honesta..."

Se aceitarmos que um conselho é uma advertência que se emite, Dickens estava advertindo para basicamente quatro questões para as enfermeiras: menos álcool, mais humanidade, menos egoísmo e maior preocupação com os outros, no caso, os doentes.

Eram deformações cujas correções passarão pela formação profissional - a questão da ciência da enfermagem- e pela subjetividade de um cuidado que é sensual, e por uma disciplinarização do Boletim Moral a serem propostos por Florence Nightingale em um futuro não tão distante dali.

Já estava traçada, neste texto, que pode operar como um pré-texto, a necessidade de uma arte e de uma ciência de enfermagem que, através da subjetividade da arte, organizasse as emoções represadas no XIX, e que através da objetividade do conhecimento científico pudesse racionalizar o cuidado de enfermagem.

O Boletim Moral assume, assim, uma importância igual ou maior do que a necessidade do conhecimento científico à época.

Florence Nightingale foi uma das mais espetaculares mulheres da era vitoriana.

Nasceu em 1820 e morreu em 1910, após ter inscrito a presença de mulheres-enfermeiras no exército britânico, e de ter baixado a mortalidade nos hospitais militares de 40 para 2%.

Era uma mulher de contradições. Embora interessada em melhorar as condições de saúde da população mais pobre, nunca se aliou aos movimentos de massa dos trabalhadores lutando por mudanças; dedicou sua vida aos soldados feridos mas nunca questionou os motivos de uma guerra imperialista como foi a Guerra da Criméia; o peso do seu talento e a força com que empreendia e realizava suas idéias, atestavam a sua energia, entretanto, permaneceu quase cinqüenta anos presa de invalidez em uma cama; falava com eloqüência sobre o sofrimento humano, mas tinha pouca paciência ou tolerância para com as pessoas mais próximas de si; criou as condições para uma ocupação do espaço público pelas mulheres, através da profissão de enfermeira, mas nunca participou do movimento das mulheres e fazia críticas duras ao movimento feminista.

 

"A IMAGEM DO SOLDADO E DA ENFERMEIRA COMO BÊBADOS E EMBRUTECIDOS HAVIA-SE MODIFICADO."

Embora tenha sido uma das mais importantes personalidades da era vitoriana, o mundo afetivo e pessoal de Florence Nightingale era controverso e tumultuado.

Não teve na mãe uma aliada e nem foi a sua filha preferida, mas foi com as mulheres que dividiu seus mais íntimos sentimentos: de amizade, com a tia e com a prima; de amor, com a outra prima, Marianne, mas não sonhou e nem lutou pelas causas feministas publicamente.

Com a grande parcela de mulheres com quem conviveu, disciplinou e fez-se obedecer na Escola de Enfermeiras.

No mundo masculino, foi a preferida do pai e teve o seu apoio possível, mas recusou duas situações de uma relação erotizada e íntima com homens (com o primo Henrye com o poeta Milnes).

No espaço público relacionava-se preferencialmente com os homens, vencendo-os, tanto em uma imagem metafórica, como de uma forma objetiva (Sir Herbert, Dr Hall, e todos os soldados feridos).

Em 1907, o Rei Edward VII tributou-lhe a Ordem do Mérito, em nome do governo britânico e ela foi a primeira e única mulher a recebê-la.

O Sistema Nightingale de treinamento de enfermeiras estendeu-se para quase todos os países do mundo, determinando os caminhos da enfermagem moderna.

Da guerra da Criméia surgiram duas figuras modificadas como heróicas e guerreiras no imaginário popular dos ingleses: o soldado e a enfermeira.

Em ambos os casos produziu-se uma mutação na avaliação social e pública destes personagens, e, nos dois casos, esta transformação foi cunhada por Florence Nightingale.

A imagem do soldado e da enfermeira como bêbados e embrutecidos havia-se modificado.

No século XIX cunharam-se palavras como indústria, operário, greve, capitalismo, fábrica, mas deu-se à palavra nurse um novo significado, que obrigou as pessoas a repensarem hábitos culturais solidificados e a reorganizarem um contexto de crenças sobre o que vinha a ser enfermeira, como profissional e como mulher.

 

"A PROPOSTA DE INVESTIR MACIÇAMENTE EM UMA ESCOLA PARA FORMAR FUTURAS FORMADORAS DE ENFERMEIRAS, FOI UMA ESTRATÉGIA INOVADORA E HABILIDOSA..."

A suposição de que existia um tipo humano específico de mulher, que correspondia à enfermeira tão minuciosamente descrita por Charles Dickens, e que é confirmada pelos historiadores da época, este tipo humano, designado por um substantivo comum, foi modificado.

Não sem razão, Florence queixava-se que chamava aquelas novas mulheres, de enfermeiras (nurses), porque não encontrava termo melhor, já antecipando a resistência da linguagem em aceitar um novo significado para as palavras, que são reféns de hábitos linguísticos arraigados na cultura.

O que Florence percebia, mas não explicitou, é que um termo é dependente do hábito linguístico que o criou, e toda vez que o empregamos, continuamos pensando, falando e agindo inspirados no sentimento e na crença que moldaram aquele termo.

Havia uma carga de preconceito contida no uso da palavra enfermeira, e Florence queria erigir uma nova subjetividade para aquela personagem, e para a sua designação.

Criou uma Escola de Enfermeiras em 1860, e em 1897 já era proibida na Inglaterra a contratação de enfermeiras não diplomadas para trabalhar em hospitais públicos.

Florence foi uma mulher que entendeu que, uma das possibilidades de ser uma mulher normal, sem ser casada e sem ser mãe, sem ser freira ou professora, no século XIX, era ser enfermeira. Uma mulher que optou por não se casar em plena era vitoriana; uma mulher rica, instruída e poderosa em termos de relações sociais, que pertencia por berço à gentry, uma mulher que conhecia de perto todas as instituições de saúde mais importantes da Europa e que propôs uma reforma sanitária para a capital do Império Britânico; uma mulher que carregava consigo um homoerotismo impossível de ser expressado à época; uma mulher que não estava impregnada pelas teorias dominantes de degenerescência e pelo darwinismo social, que descredenciavam a mulher com suas categorias.

Esta mulher deu um significado diferente à palavra nurse.

Florence criou uma metáfora nova para a enfermagem, a partir de novos fatos e de outras relações de semelhança, entre estes fatos e sua interpretação. Metáfora, no sentido conferido por Donald Davidson, é um elemento fundamental para compreendermos como a linguagem se renova.7 Metáforas vivas, são marcas e sons que não pertencem convencionalmente aos jogos de linguagem pré-existentes, sendo portanto, causa de modificações de vocabulários e produtoras de novas formas de viver.

 

"...AS REGRAS DO CONVÍVIO INDIFERENTE QUE A ERA VITORIANA SOUBE PLASMAR COM EXCELENTE DESEMPENHO."

A proposta de investir maciçamente em uma escola para formar futuras formadoras de enfermeiras, foi uma estratégia inovadora e habilidosa, porque oferecia ao setor público os trabalhos desta nova profissional, cuja eficiência e competência para cuidar não necessitavam de propaganda, mas apenas da garantia de cenários para atuar.

Se pensarmos no espaço constrangido para a profissão de mulheres no XIX, e na inércia natural das mentalidades para alterar esta situação, é surpreendente que, trinta e sete anos após a criação da primeira escola de enfermeiras (1860-1897) se inicie na Inglaterra um movimento proibindo a contratação de enfermeiras fora do modelo Nightingale.

Sem dúvida havia condições históricas e sociais para a profissão, mas a figura de Florence foi fundamental para a conformação deste momento, e, sem ela, não teria havido nem culminação e nem auge.

O modelo da enfermagem moderna na Europa, conformou-se apenas na Inglaterra, e não teve condições de ser exportado para o continente, nem para a França e nem para a Alemanha, que mantêm até nossos dias um outro modelo de formação de enfermeiras.

No relato histórico, convivem, um só tempo, e dois imaginários: Mrs. Sai rey Gamp e M rs Florence Nightingale.

A enfermeira de Dickens exemplifica a visão conservadora que denuncia, mas não consegue ultrapassar a realidade dos fatos cotidianos.

Quem vai apresentar o inovador será Florence Nightingale.

A enfermeira de Dickens, pela tradução do próprio nome, GAMP, é grande, volumosa, deveria proteger mas também poderia ser mortal.

O nome da personagem Gamp, e sua tradução para guarda-chuva, pelo uso do significado na linguagem ordinária e o sucesso do romance, é revelador do poder de penetração social das idéias organizadas genialmente por Charles Dickens nos seus romances sociais..

A apresentação de Mrs. Gamp, através de um trio, Harris-Gamp-Prig, tendo Gamp como núcleo, possibilita a apresentação da situação e da crítica, quase que simultaneamente.

A primeira delas, a superficialidade das emoções para com a miséria do outro, as regras do convívio indiferente que a era vitoriana soube plasmar com excelente desempenho.

 

"A CRUELDADE CARACTERIZAVA A ENFERMEIRA, PORQUE ELA DEVERIA CUIDAR DO OUTRO, UM OUTRO ANÔNIMO, NÃO FAMILIAR, DESCONHECIDO"

Quando Mrs. Gamp apresenta um pacote de emoções para cuidar de um morto, e este pacote inclui a toilete do morto, uma fisionomia triste, a expressão " Ah! le pauvre cher homme\", uma roupa de luto surrada e mais um par de meias para lama e um guarda chuva cor de folha morta, está-se falando do aparelhamento formal para expressar um montante conveniente de respeito indiferente.

Esta mulher é velha, grande, tem voz esganiçada, um olho úmido que gira muito mostrando apenas o branco, tem pouco pescoço. Usa sempre um vestido de um preto alterado pelo tempo e pelo tabaco, e mais um chale, um chapéu, um nariz vermelho e grosso, um odor de álcool e é uma viúva.

O álcool não só a revigorava, mas ele é quem dava condições para o trabalho da enfermagem, porque esta era uma função que solicitava alguma letargia para garantir a conduta expectante, de quem acompanhava mais a consternação da morte do que os desafios da vida.

O espectro da morte, sempre presente na qualidade da vida das camadas mais pobres da população, autorizava socialmente Mrs. Gamp a treinar com os vivos os futuros " belos mortos" que eles poderiam vir a ser.

Ser enfermeira era ser mulher e viúva, ou ser mulher solteira e estar ao lado do doente. Nada mais do que isso.

Poderia ser "dormindo como um perdigueiro" ou interessada na ceia, na cerveja, nos pepinos, no chá e no salmão marinado.

O pobre, ainda não percebido como importante para os interesses da nação, era o alvo de muitas crueldades, portanto não havia, para as enfermeiras, nenhuma importância em ser brutal e violenta para com eles: sufocar, mandar calar a boca e sacudir como a uma ameixeira.

Dickens descreveu com detalhismo a realidade cotidiana desta enfermeira ou do cuidado de saúde não médico que a população recebia.

Embora tenha sido uma descrição exuberante, que não deixou dúvidas quanto à necessidade futura do Boletim Moral, o romance não adiantou-se de modo a superar a realidade e apontar para outras possibilidades.

Quem inovou, rompendo com a realidade da época, projetando para o futuro de forma totalmente imprevisível, tendo em vista a realidade das teorias de degenerescência e evolucionistas que auxiliaram, no século XIX, o cultivo de um ódio para dentro e para fora do Império Britânico, foi Florence Nightingale.

Com a promulgação da New Poor Law, a mulher que cuida ficou em evidência, porque as comunidades fragilizadas ficaram mais expostas, e a análise crítica da atuação da enfermeira propicia esta visibilidade social.

 

"OS SÉCULOS XVII E XVIII MARCAM, NA INGLATERRA, UM GRANDE MOVIMENTO DE MORALIDADE, COMUMENTE CHAMADO DE PURITANO..."

A crueldade caracterizava a enfermeira, porque ela deveria cuidar do outro, um outro anônimo, não familiar, desconhecido. Mas esta distinção não era exclusividade da enfermeira; os diretores dos asilos, das work house, das prisões e dos internatos escolares também eram duros e cruéis.

A análise de Dickens deixa pronta uma síntese da situação.

A necessidade de controlar o consumo do álcool, ou em outras palavras, a exigência de as enfermeiras deixarem de ser bêbadas, terem menos egoísmo e maior preocupação com os doentes e terem mais sentido de humanidade, são questões diretamente ligadas à arte da enfermagem, à porção subjetiva da profissão, ao não racional-científico, que atende ao lado subjetivo do cuidar e portanto puderam ser controlados pela implantação do Boletim Moral, pela avaliação do comportamento e dos sentimentos da enfermeira, ou como disse Florence, "se eu ao menos pudesse estar por dentro das suas cabeças".

O tabaco, o álcool e a vida sexual necessitariam ser disciplinados.

A era vitoriana foi eficaz nesta proposta, e não foi preciso inventar muito para isso, pois afinal, todo um esquema de normalização dos corpos e de controle da expressão da sexualidade já estava organizado.

A instituição por Florence Nightingale do Boletim de Avaliação Individual, que vimos chamando de Boletim Moral, para as suas alunas, foi avalista do poder disciplinar.

O despreparo técnico para lidar com as situações de doença não era exclusividade da enfermeira, e o próprio texto de Dickens aponta as dificuldades da ciência médica da época, e dos médicos, em intervir com eficácia nas situações de doença.

O ensino sistematizado com aprendizado clínico - hospitalar, com aulas com médicos assistentes e irmãs nos hospitais, e rigoroso estágio clínico, foi suficiente para capacitar tecnicamente a nova enfermeira.

A equação, passou então a ser, Formação Científica mais Boletim Moral, igual a Ciência e Arte de enfermagem.

Embora seja compreensível que não se faz boa enfermagem apenas com o instrumental da ciência, foi preciso provocar uma dobra, forçar uma outra segmentação, nova clivagem, expondo as faces possíveis de um cristal.

A enfermagem é uma ciência e uma arte, talvez a mais bela das artes.

Esta definição pertence a Florence Nightingale.

Na verdade, a Revolução Nightingale ou a Enfermagem Moderna por ela instituída recebeu como componentes de sua estruturação, não somente uma nova racionalidade científica que se impunha, e um poder disciplinar altamente eficaz na docilização dos corpos. Estamos falando do dispositivo da sexualidade, esse conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais.

 

"AO RECONSTRUIR O NASCIMENTO DA ENFERMAGEM PSIQUIÁTRICA NO BRASIL, ESTAMOS ENSAIANDO UM ESTUDO DA HISTÓRIA DESTES SABERES..."

Os séculos XVII e XVIII marcam, na Inglaterra, um grande movimento de moralidade, comumente chamado de puritano, caracterizado por uma constância moral e emocional em todas as áreas da vida. A compreensão deste movimento é fundamental para a compreensão da mentalidade inglesa do século XIX, berço do nascimento da Enfermagem Moderna.

A Revolução Nightingale não é, em absoluto, contemporânea do mutismo sobre o sexo e sim de um erotismo discursivo, com depuração do vocabulário autorizado, novas regras de decência e toda uma economia restritiva.

Dificilmente a formação da nurse teria conseguido escapar deste impacto, e a ética do órgão formador determina como deve ser o comportamento da enfermeira: antes de tudo assexuada, anjo branco, silenciosa, generosa e firme, discreta e incansável, gentil e competente, atenciosa e objetiva.

Entretanto, o hospício e o doente mental, sobre o qual o internamento clássico com Phillipe Pinei já havia criado um estado de alienação e o início da legalização do discurso médico-psiquiátrico sobre o louco asilado, esta clientela não foi objeto de interesse explícito para a Enfermagem Moderna, nem na Revolução Nightingale da Inglaterra vitoriana, abarrotada de hospícios, nem na implantação deste modelo no Brasil do século XX, como veremos a seguir.

A Escola de Enfermeiras Dona Anna Nery (EEAN) é implantada no Brasil a partir da gestão do Professor Carlos Chagas junto ao Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) e da Missão Técnica de Cooperação para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil do Serviço Internacional de Saúde da Fundação Rockefeller.

A Escola de Enfermeiras do DNSP foi criada em 1922 obedecendo aos princípios norteadores do modelo Nightingale.

Embora o Regimento Interno do Serviço de Enfermeiras do DNSP, do ano de 1926, dispusesse sobre a parte geral do Curso, e este contivesse "a arte de enfermeira em doenças venéreas e mentais", sabemos, por estudo realizado a partir destes documentos, que tal disciplina não era oferecida, havendo no seu lugar, sobrescrito, "doenças venéreas".

A EEAN, considerada Escola Padrão no Brasil, também não considerou o louco como clientela passível de receber cuidados das enfermeiras. Na realidade, o ensino de enfermagem psiquiátrica, no âmbito da EEAN, e com atividade prática, só se dará quase vinte anos depois, no final da década de 40.

 

"A HISTÓRIA DA LOUCURA É A HISTÓRIA DE UMA PRÁTICA E DE UM SABER CONCEBIDOS E ARQUITETADOS COLETIVAMENTE..."

Para conseguir alinhavar todos estes dados apontados até agora, é preciso que nos aproximemos da construção do imaginário coletivo sobre a loucura e o louco.

Ao reconstruir o nascimento da enfermagem psiquiátrica no Brasil, estamos ensaiando um estudo da história destes saberes, o estabelecimento de uma relação entre as teorias e as práticas políticas, as teorias e o imaginário e as representações coletivas, não em termos de exterioridade ou de justaposição, em que o poder se apropriaria de uma neutralidade científica e a utilizaria segundo objetivos que lhe são extrínsecos, mas de imanência, dimensão política e constitutiva dos discursos.

História, não de fenômenos essenciais do seu domínio, mas o estudo das heranças e sua continuidade, das perdas e das rupturas - de onde, de quem, de quando vem esse hábito mental, essa expressão, esse gesto ? - a tradição, ou dito de outra forma, as maneiras pelas quais se reproduzem mentalmente as sociedades, as defasagens, produto do retardamento dos espíritos em se adaptarem às mudanças e da inegável rapidez com que evoluem os diferentes setores da história. A inércia, força histórica capital, mais referente ao espírito do que à matéria, uma vez que esta evolui frequentemente mais rápido do que o espírito.

Assim o louco faz uma caminhada da Antiguidade até o século XIX, e vamos pontilhar um parentesco imaginário entre dois discursos aparentemente dissociados: o científico, e o outro, aquele que rege os comportamentos, os medos e a coragem das pessoas, as guias do imaginário.

A história da loucura é a história de uma prática e de um saber concebidos e arquitetados coletivamente, em conexão com os tempos, as culturas e as sociedades dos homens, e do cotidiano minúsculo de suas relações e representações significantes.

Não há a verdade, mas uma sucessão de discursos complementares e contraditórios, que rompem e constroem a cada momento do tempo, um olhar diferente sobre a loucura.

A lepra, será a primeira grande herança que vai instruir a loucura, marcando o princípio básico da exclusão. As cidades malditas da lepra se multiplicam na alta Idade Média. A lepra é uma manifestação da existência de Deus, indica a sua cólera e a sua bondade. O leproso é uma testemunha sagrada da manifestação de Deus e obtém salvação na exclusão e pela mão que não lhe é estendida, sendo que este gesto de abandono é que lhe permitirá alcançar a salvação. A verdadeira herdeira da lepra, dos medos seculares, das relações de divisão, de exclusão e de purificação, será a loucura, que ainda aguardará dois séculos de latência para ter esse parentesco mais definido.

 

"...TODA A NATUREZA SE SUBVERTE PELA MALDADE..."

Nesse período, vai se apresentar ligada às representações culturais da Renascença.

É a "Nau dos Loucos", que desliza ao longo dos rios calmos da Europa Ocidental.

Das Narrenschiff, de Brant, é uma composição literária que teve existência real. Esses barcos, que levavam uma carga insana, erravam, escorraçados de um porto a outro. O confiar os loucos aos marinheiros, é, antes de tudo, afastá-los, ter a certeza de que irão para longe, é torná-los prisioneiros de sua própria partida. A navegação traz em si a marca da incerteza da sorte, onde cada um é confiado a seu destino, e todo embarque é, potencialmente, o último.

Esta imagem literária e prática, impregnará uma representação simbólica presente até hoje: a água e a navegação manterão a idéia de incerteza, de desenvolvimento e de descontrole do futuro, do espaço fechado do navio, de onde não se escapa, prisioneiro da imensidão da maior das estradas. Sua verdade e sua prática são essa extensão de limbo estéril, entre dois portos que não lhe podem pertencer.

É esse o parentesco, que da noite dos tempos fixou o rito do embarque, e onde a água e a loucura permanecerão associadas nos sonhos do homem europeu.

Na era clássica haverá uma explicação para a relação estabelecida entre a melancolia inglesa e o clima marinho, entre as diversas modalidades de apresentação da água ( frio, umidade, instabilidade do tempo, finas gotículas de água que penetram no corpo ), e a conseqüente perda da firmeza, predispondo à loucura.

O "lunatismo" também é familiar a este tema. A lua, cuja influência sobre a loucura e outros fenômenos foi admitida durante séculos, é o mais aquático dos astros. A lua simboliza para a nave e sua tripulação, a orientação do tempo e o sentido do espaço, as condições de viagem e as possibilidades de qualidade da chegada. Essa instrução simbólica vai guiar por algum tempo, a qualidade do acompanhamento do louco na sua caminhada para e através da internação.

No final da Idade Média, uma onda de misticismo abala os alicerces materiais e as concepções ideológicas.

A pintura de Hyeronimus Bosch será a sua expressão mais perplexa. O temor do inferno, da morte iminente, da punição dos pecados, estruturava o palco de ação do homem medieval. A relação com os belos animais batizados por Noé se invertera: a besta se liberta, escapa do mundo da ilustração moral para adquirir um fantástico que lhe é próprio: toda a natureza se subverte pela maldade. A partir do século XV a face da loucura assombrou a imaginação do homem ocidental. E com ela, o temor do fim dos tempos e do homem, que se refletem nas figuras da guerra e da peste.

 

"...O MANICÔMIO, POR SI SÓ, É O INSTRUMENTO DE CURA, E A RECLUSÃO, É URNA MEDIDA NECESSÁRIA..."

Neste momento breve, entre a Idade Média moribunda e a Reforma nascente, Erasmo de Rotterdam foi a expressão literária da encruzilhada do pensamento do seu tempo. A expressão da loucura é a de uma sátira moral. No Elogio à Loucura, Erasmo utiliza a ironia, o jogo duplo e transparente do riso, o sério escondido sob o jocoso, síntese de contrários numa sátira à vida da Europa em tempo de transição: em cortejo de auto quase medieval, a loucura vai apresentando os atores no palco da vida.

Nestas duas formas de experiência da loucura, experiência trágica dos homens e considerada no universo do discurso como consciência crítica, um espaço irá aumentar com a formação de um vazio que não será jamais preenchido. Eis, então, a loucura, amarrada solidamente entre as coisas e as pessoas, e segura, nessa retenção. Não existe mais a barca, mas o hospital, onde o internamento é uma sequência do embarque. A loucura volta-se timidamente para iniciar o que será a Desrazão.

O pecado, ná Idade Média, era de natureza religiosa-moral e apontava para o orgulho e a avidez. No século XVII, na burguesia incipiente, o pecado é de natureza econômico-moral, apontando para a ociosidade, e é esta falta que o classicismo tenta avidamente excluir, incluindo-os nas casas de internamento, um pouco como a Idade Média inventou a segregação dos leprosos. A miséria passa de uma experiência religiosa que a santifica, para uma corrupção moral, que a condena: laicização da caridade e também um castigo moral da miséria.

A loucura, por muito tempo manifesta e loquaz, entra num tempo de silêncio.

A partir da metade do século XVII a inquietação renasce com a denúncia política das sequestrações arbitrárias do mundo correcional.

Com a Revolução Francesa de 1789, o internamento toma uma significação de caráter médico. Pinei contribui para a história da medicina e da clínica da psiquiatria, como adventos de uma ciência finalmente positiva e do humanismo.

A loucura passa a ser vivenciada como uma oposição à Razão, e portanto, como uma Desrazão, que deixa de se fazer para o homem, na dimensão da liberdade, para tornar-se uma natureza. O olhar se converteu.

Chega-se ao relativo consenso que irá marcar a Europa durante a primeira metade do século XIX: o manicômio, por si só, é o instrumento de cura, e a reclusão, é uma medida necessária. Mas este consenso, no caso francês, encontra sustentação e justificativa teórica na própria reorganização conceituai do saber psiquiátrico que apontamos. O saber dos alienistas não pode prescindir do manicômio, assim como o manicômio, não pode prescindir do saber dos alienistas. Uma coisa não vai sem a outra. Na França, a nosografía e o tratamento moral de Pinel e Esquirol foram marcos teóricos-clínicos que surgiram concomitantemente à transformação dos antigos Hospitais Gerais em manicômios especializados. Isto equivale a dizer que, o novo olhar clínico resultante destes marcos permitiu que o manicômio fosse pensado como uma instituição diferente dos antigos hospitais gerais ou dos depósitos de desviantes.8

 

"PROGRESSIVAMENTE HOUVE UMA ORGANIZAÇÃO E AGRUPAMENTO DE UMA ELITE MÉDICO-PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA"

No Brasil do século XIX, importava-se da Europa, mais precisamente da França, as pautas da saúde e modelos acadêmicos de pensar e de fazer. Os loucos daqui eram recolhidos aos porões insalubres das Casas de Misericórdia, recebendo cuidados de religiosas, voluntários e escravos.

No caso do Brasil, observa-se que o discurso científico do alienismo impõe-se e organiza-se lentamente, numa instituição asilar já em pleno funcionamento, e só assume o status de principal formulador da gestão do hospício, no final do século XIX. A dissimetria entre a influência dos alienistas e o funcionamento asilar fica evidente no caso brasileiro. O Hospício Pedro II é construído dentro das normas arquitetônicas mais adequadas para a tarefa do tratamento moral, mas funciona, por quase cinqüenta anos, como depósito indiferenciado de desvalidos e desviantes de todos os gêneros, onde o discurso da medicina mental praticamente inexiste. Esta também é a percepção social que se estabelece no Rio de Janeiro, e no resto do país, quanto à função institucional do palácio da praia vermelha. No Brasil, o poder médico, laico e científico, precisou disputar ( e vencer) o controle técnico e administrativo do Hospício de Pedro II com as freiras da Santa Casa. O Hospício nasce, no caso brasileiro, com cara de hospital geral europeu do século XVIII9.

Progressivamente houve uma organização e agrupamento de uma elite médico-psiquiátrica brasileira, aliada ao então Provedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, para que se construísse um lugar próprio para o doente mental, onde ele pudesse receber um tratamento físico e moral condizente com a natureza da sua doença.

 

" NASCE ENTÃO A ENFERMAGEM PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA "

Em 30 de novembro de 1852, inaugura-se o Hospício Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro, construído pela Santa Casa de Misericórdia. O Dr. Cruz Jobim é nomeado seu primeiro diretor (1842-1852). O tom hiperbólico quanto à fundação do hospício é corrente nos registros de época ou mesmo nos atuais. Chamado de "mais belo edifício das Américas"ou "suntuoso palácio da Praia Vermelha", seu desenho, de grande requinte arquitetônico, foi inspirado no hospital criado pelos padres de São João de Deus nos arredores de Paris que, laicizado pela Revolução Francesa, passou a chamar-se Maison Nationale de Charenton10.

As relações entre as categorias médica-psiquiátrica e as religiosas não iam bem. Os médicos aspiravam pela construção de um saber psiquiátrico positivo, reconhecido na Academia, que só o hospicio-científico poderia dar. A antiga aliança com o Provedor da Santa Casa estava abalada: os médicos ansiavam pelo controle do doente mental, e isto não seria possível sem o poder de mando sobre a alta e a admissão no hospício.

Vence o discurso médico-psiquiátrico nascente, e a Santa Casa de Misericórdia separa-se do Hospício Pedro II (1890). As religiosas são expulsas do hospital e mesmo com a contratação de enfermeiras leigas francesas, a situação é caótica.

Nasce então a enfermagem psiquiátrica brasileira, de um passo equivocado de forças muito superiores a ela. Não foi criada para atender a um investimento na melhora da assistência ao doente mental. Na verdade, foi um sub-produto do jogo de cabo-de-guerra entre o poder clerical, hegemônico na questão assistencial durante toda a época da colônia e representado principalmente pelas Casas de Misericórdia ( visão assistencialista, poder religioso, caritativo e "não científico") e o Novo Estado Republicano, incipiente, que apoiava-se num grupo de médicos-psiquiatras, uma elite acadêmica, que impacientava-se em assumir o controle da exclusão social dos loucos e a gestão de suas vidas, transformados em discurso científico-organicista.

Para administrar esta estrutura de hospicio-científico, impunha-se a necessidade de um profissional que organizasse, cadastrasse, fizesse fichamentos, reproduzisse mecanicamente o que já se tinha importado como saber médico-psiquiátrico, e vigiasse, controlasse e registrasse tudo o tempo todo. Para esta prática, em acordo com o que se considerava para aquela clientela, não era necessário muita formação profissional.

Em 1890, cria-se a primeira Escola de Enfermagem do Brasil, junto ao Hospício Nacional de Alienados Pedro II. Embora distante do modelo Nightingale, e portanto fora da enfermagem moderna, a assistência de enfermagem no Brasil formaliza-se quase que simultâneamente ao alvorecer do século XX, dentro do asilo e para prestar assistência ao louco brasileiro.

 

"FICAMOS COM ALGUMAS REPRESENTAÇÕES HERDADAS DO TEMPO"

O que se insinua nestas repetições frequentes, é na realidade um parentesco de idéias: para Pinel, para a Reforma de Mrs Nightingale, para a Fundação Rockefeller e sua Comissão de Especialistas na estruturação da primeira Escola de Enfermeiras dentro do modelo Nightingale, para a expulsão das irmãs de caridade das Casas de Misericórdia e sua substituição por enfermeiras leigas francesas com a criação da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras para atender diretamente à demanda do hospício, escola esta que não contemplava as exigências da Enfermagem Moderna, à esta época já exportada para além-mar, para toda a América do Norte, o esquecimento do louco como clientela que não necessita de assistência qualificada, é da mesma modalidade de mágica que transforma réus em culpados. Não é que ele não necessite de assistência qualificada por sua loucura, mas sim, a sua deformação, a inferioridade de uma qualidade: pelo fato de ser louco, não é necessária uma assistência qualificada.

Ao longo de sua trajetória, a loucura e o louco provocaram piedade, indiferença, riso, medo( Idade Média); exaltação, ironia, crítica ( século XVI); exclusão, menorização, reeducação, discurso moral, patologização, produção de saber médico( séculos XVII,XVIII e XIX).

Este saber médico poderia significar uma assistência qualificada na medida da depuração do seu discurso e da evolução da psicofarma-cologia como auxiliares de sua prática. Mas não foi e ainda não vem sendo, na maior parte dos casos, uma assistência qualificada que tenha dado garantias, que tenha tornado transparente e dado dignidade à voz do louco.

E tampouco a enfermagem tem sido capaz de garantir ao louco uma assistência qualificada ao longo de todos estes anos.

A permanência dessas representações, que da noite dos tempos nos espreitam, são traços invisíveis e poderosos na construção e solidificação de um cotidiano, agora não mais majoritariamente asilar, que queremos mudar.

Ficamos com algumas representações herdadas do tempo. Essa Nau dos Loucos, que permaneceu no lamento dos pacientes que não chegam a se despedir dos familiares, e que sabem que cada despedida pode ser a última. E que a partir da porta de entrada, a sua voz será silenciada, embora se fale muito sobre ele. Que também se sente como um caranguejo, que anda para frente e para trás, melhora e piora sem sair do lugar.

Parece pairar ainda sobre nós, da equipe de enfermagem, quero enfocar agora, mais puntualmente, uma instrução histórica semelhante à do leproso, que será salvo pela mão que não lhe é estendida.

 

''OS PARADOXOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA NA VIRADA DO SÉCULO, TAMBÉM SÃO OS PARADOXOS DA PSIQUIATRIA"

Passados mais de cem anos deste início de assistência de enfermagem psiquiátrica, o que mudou e qual a mão que temos estendido?

Mais do que qualquer outro ramo da medicina, as doutrinas psiquiátricas ofereciam à sociedade uma forma de cálido reconforto, porque se apresentavam como científico-racionais, para controlar seus elementos desordeiros ou marginais. Um controle refinado, para além da simples repressão de delitos, porque previa um método diagnóstico capaz de separar, dentre os desafiantes das regras sociais, aqueles que eram doentes dos não-doentes." E entre os considerados doentes, separar os tratáveis dos intratáveis. E mais, através da noção de periculosidade, avançar para além do delito visível, efetivamente constatado, passando a controlar a virtualidade, um delito que só existe como uma possibilidade indicada.

A psiquiatria já nasce, portanto, social, e com linhagem consanguínea direta com a antropologia criminal e com a medicina legal.

O seu monumento é o manicômio, onde se expressa a loucura e se constroi a ciência, graças ao que a psiquiatria vai tomando corpo como especialidade. É neste templo que vão se formar as primeiras gerações de psiquiatras brasileiros, quando ainda nem havia uma cátedra de psiquiatria nas Faculdades de Medicina.

Os paradoxos da sociedade brasileira na virada do século, também são os paradoxos da psiquiatria: um estado que se queria moderno, portanto branco e europeu, e, ao mesmo tempo, escravocrata. Um "palácio da loucura", para servir como um depósito autóctone de grupos sociais indesejáveis.

Com o tempo, a psiquiatria sofistica suas classificações, mas não obtém o mesmo sucesso com seus métodos de tratamento. Seu principal instrumento terapêutico - o manicômio - afirmará por muitos anos ainda, uma exuberância nacional, como instrumento de pura exclusão. Uma exclusão física, que duplica, no plano concreto, a exclusão simbólica do universo da cidadania. À pujança do asilo corresponderá a produção de um saber, agora não mais apenas sobre o doente mental, mas sobre a normalidade, avançando sobre as formas tradicionais de sociabilidade, habitação, casamento, educação, expandindo-se em círculos concêntricos cada vez mais ávidos.

 

"VAMOS OBSERVAR UMA ORDENAÇÃO PARA A ORIENTAÇÃO DA PSIQUIATRIA NO DECORRER DESTE SÉCULO"

Esta expansão de área de conhecimento da psiquiatria, será de grande valor para a compreensão dos impasses que ocorrerão no âmbito da prática assistencial em saúde mental, assim como para o estudo de novas formas de subjetividade, que por sua vez, influirão na polarização entre, o cidadão- senhor-de-si da sociedade de contrato, e o cidadão- passível- de- tutela, e de internação involuntária, pelo complexo médico-psiquiátrico.

De forma sintética, e, correndo o risco, simplificadora, vamos observar uma ordenação para a orientação da psiquiatria no decorrer deste século, lembrando que trata-se de uma ponte, para chegarmos à situação da Reforma Psiquiátrica atual, visto que já tecemos e traçamos a teia histérico-social que nos coloca neste momento como enfermeiras e como enfermeiras-psiquiátricas, enredadas com a formação do discurso médico-psiquiátrico sobre a loucura.

As reformas posteriores à reforma de Pinei, procuraram questionar o papel e a natureza, ora da instituição asilar, ora do saber psiquiátrico, e surgem após a Segunda Guerra Mundial, quando novas questões são colocadas no cenário histórico mundial. A psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas, representando as reformas restritas ao âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva, representando um nível de superação das reformas referidas ao espaço asilar; por fim, a antipsiquiatria e as experiências surgidas a partir de Franco Basaglia, enquanto instauradoras de rupturas com os movimentos anteriores, colocando em questão o próprio dispositivo médico-psiquiátrico e as instituições e dispositivos terapêuticos a ele relacionados12.

Conforme pode-se perceber, a psiquiatria não possui um consenso teórico que oriente suas práticas de intervenção, ou um perfil claro, como outras áreas da medicina. Para fins de facilitação e de avanço, podemos dizer que as várias tendências da psiquiatria estão divididas em três grandes blocos, para explicar o sofrimento psíquico e possibilitar uma intervenção terapêutica sobre o indivíduo que sofre12.

Uma vertente organicista/biológica, onde o objeto da psiquiatria é a química do corpo do doente mental; uma outra vertente técnico-psicoterápica, com variadas formas de organização para se aproximar de um saber sobre a saúde mental; e a vertente da psiquiatria democrática, de orientação predominantemente política e empalidecimento da clínica psiquiátrica, tendo como princípio a defesa dos interesses ético-políticos do louco como cidadão. Estas vertentes convivem nas instituições psiquiátricas, colocando seus agentes, ora como debatedores sagazes na defesa de suas idéias, ora como adversários ensandecidos em desqualificar o discurso do outro.

 

"TEREMOS QUE CRIAR UM PAPEL NOVO PARA A ENFERMAGEM QUE QUEREMOS"

Ao longo destes mais de cem anos, a enfermagem também transformou seus conceitos, agora mais influenciados pela psiquiatria social, enfatizando o relacionamento individual com o paciente, a manutenção do ambiente terapêutico e a ampliação do seu raio de atuação para famílias e comunidade, e ambulatórios e hospitais-dia. Esta afirmação, entretanto, precisa ser relativizada, como uma generalização quanto ao conteúdo teórico, abordado pelas escolas, uma vez que em pesquisa recente, Rocha14 nos aponta que "não preparado e não tendo escolhido trabalhar em psiquiatria, o enfermeiro encontra, na realidade da instituição, a prática da tutela custodiai dos pacientes. E, apesar de ter como referência, teoricamente, os conceitos de enfermagem da psiquiatria social, é com esta experiência concreta que ele entra em contato. O ponto de apoio que ele tem para criticá-la, é a percepção do senso-comum, em torno da solidariedade humana. Assim, as infrações que ele comete às normas asilares, são feitas em torno dos sentimentos de simpatia e piedade, da idéia de tratar o doente como ser humano"15.

Os desafios para a enfermagem psiquiátrica começam a nos revelar uma parcela da sombra do seu tamanho. Teremos que criar um papel novo para a enfermagem que queremos, sem esquecer o peso histórica da herança que herdamos na constituição da profissão, que sabemos, expressam-se mais do que em idéias sobre doença e loucura, mas em comportamentos de resistência e por vezes franca oposição a mudanças.

A Reforma Psiquiátrica brasileira parte de uma crítica contundente ao princípio de exclusão e isolamento social do paciente psiquiátrico, o qual é ancorado no modelo clínico que funda suas ações terapêuticas no reconhecimento de manifestações sintomáticas como índice exclusivo de disfunções biológicas, acabando por fazer equivaler doença e doente e, por consequência, desconsiderando ou destituindo de qualquer de sentido ou manifestação de subjetividade a fala do paciente. Esta questão, imposta pela Reforma Psiquiátrica, em linhas gerais, pretendeu a reversão do modelo nosocomial e a instauração de uma nova clínica.

 

"O RECONHECIMENTO DO DESIGUALDADE POSSIBILITA A EMERGÊNCIA DO NOVO"

Esta nova clínica, substituí a cura pelo cuidado e inclui, então, a cogestão da vida cotidiana dos assistidos, como parte do tratamento.

Esta posição denota urna forma particular de conceber a doença mental, ou seja, acreditar que ela refere-se ao sujeito, e não a um agente externo ou a uma disfunção, que poderiam ser, respectivamente, extirpados ou corrigidos, restabelecendo uma certa normalidade.

O diagnóstico adquire importância diversa15.É construído ao longo do tratamento, como um fio condutor que tateia pelos meandros e acidentes do discurso do paciente no processo terapêutico.

O sintoma deixa de ter a função de identificar a doença, passando a ser, o seu sentido, problematizado e interrogado, na história do paciente.

Mais do que índice da essência de uma doença, o sintoma inclui o sujeito. Uma orientação que pretenda romper com a equação doença-doente, confere um estatuto positivo à fala do paciente, que passa a ser acolhida como expressão de sua condição existencial.

Não se trata de se recusar o saber acumulado da clínica, mas reside aí o enfrentamento, entre a universalidade do saber científico e a singularidade de cada caso.

Esta renúncia em atribuir um poder absoluto às classsificações, em sua função de mera rotulação, se associa também a um distanciamento quanto à procura da verdadeira essência da doença ou à obstinada busca por uma verdadeira etiología. Tal distanciamento, em nenhum momento, equivale ao desconhecimento da especificidade da psicose, mas a matéria prima com a qual o terapeuta irá se defrontar e problematizar, é a fala do psicótico, e tudo que ela comporta, englobando conflitos psíquicos, até problemas relativos a lazer, moradia e trabalho.

Sustentar a vocação operativa da clínica passa a ser o compromisso de produzir modificações no quadro clínico do paciente.

Sustentar uma prática que ative trocas simbólicas, daí a valorização da linguagem, dado o reconhecimento de sua importância em sua articulação com o sujeito.

A novidade reside, antes de tudo, numa disposição de operar mudanças, não se apoiando em esquemas pré-estabelecidos.

Há uma tensão constante entre o saber universal e a especificidade de cada caso a ser manejada. O que vale para um caso pode não valer para um outro. É importante o tratamento desigual, evitando-se a padronização. O reconhecimento da desigualdade possibilita a emergência do novo, da invenção de soluções diferenciadas. Para se atingir soluções diferenciadas, lança-se mão de diferentes recursos, desde que revestidos de finalidade terapêutica.

Quanto ao funcionamento das equipes, busca-se uma alteração no sentido de questionar uma hierarquização de seus integrantes. Tradicionalmente, e mesmo no início das experiências de reversão do modelo hegemônico médico, os integrantes faziam uma certa figuração de defesa de especificidades, mas acabavam por se homogeneizar, aparentemente, para se opor ao poder médico em torno do qual, acabavam por ser organizar e atuar como coadjuvantes.

 

"CONSTITUIU-SE UMA PERSPECTIVA MAIS PROVISÓRIA"

Constituiu-se uma perspectiva mais promissora, de deslocar-se acento de problema da identidade profissional, para o dilema a ser enfrentado: cuidar dos pacientes. O sentido terapêutico emerge a partir do seu potencial de mobilizar trocas e implicar cada sujeito na construção do seu cotidiano.

A definição das prioridades objetiva alterar a qualidade da relação entre cuidados e cuidadores, pressupondo o campo transferencial.

Promove um deslocamento na perspectiva da noção de tratamento e cura, para a noção de cuidado ampliado. Tal perspectiva terapêutica implica em cuidados mais abrangentes, produzindo uma noção de cuidado que integra múltiplas ações, situadas em diferentes planos de intervenção. O tratamento vai se constituindo, incluindo-se a participação do paciente na construção de projetos terapêuticos, e da configuração de seu cotidiano

O esboço de uma nova clínica pode ser traduzido, num acordo entre diferentes integrantes de uma equipe, em torno de algumas premissas fundamentais: disposição para se romper com o saber apriorístico, não por uma atitude ingênua e sim por uma posição crítica de submetê-lo a ser confrontado pela singularidade da clínica, submetendo o curso de cada tratamento a retificações constantes. Essa renúncia à acomodação e o enfrentamento de questões, cujas respostas são construídas no percurso de cada projeto terapêutico a ser conferido continuamente, só é possível ser sustentada pelo compromisso ético, de desejar efetivamente cuidar para operar mudanças.

Embora saibamos que a Reforma psiquiátrica prevê a diminuição progressiva de leitos de internação, e a sua substituição gradativa por formas abertas de tratamento, não podemos reduzir o alcance do Projeto da lei Paulo Delgado, que instrumentaliza indiretamente a Reforma, no caso do Brasil, à questão pura e simples de leitos hospitalares. O projeto é mais amplo. Primeiro pretende garantir o tratamento mais adequado ao paciente sem excluir a possibilidade de internação. Aliás, sempre permanecerá a necessidade de internação, para alguns casos, em tempo breve, e orientada pela boa clínica, que aproxima ao toque, a psiquiatria da psicanálise.

O termo "reabilitação psicossocial", tão comumente usado entre nós, e pela WAPR (World Association for Psychosocial Rehabilitation), é derivado do termo, em inglês, habilitation ou housing, ou rehousing. Reabilitar não é meramente arrumar um outro lugar para o doente mental, mas realojar mentalmente aqueles que cuidam da pessoa mentalmente doente.

A reabilitação psicossocial pode e deve começar na internação. Nesta perspectiva, a equipe de enfermagem precisa ser urgentemente revista. Muito mais do que entender o sofrimento psíquico a partir de um outro enfoque, que autoriza outro tipo de cuidado, temos que instituir nas situações de internação, a figura do técnico de referência, que antes disso, deverá ter sido escolhido, de modo geral pelo próprio paciente, como técnico de transferência. A constituição desta figura, é uma estratégia também para superar os especialismos, nominação que estou dando a esta série de conhecimentos em paralelo sobre o paciente, mas que não conseguem se tocar, quando não entram em disputas acirradas e desqualif¡cantes sobre suas cientif¡cidades. E este papel, a meu ver, será definidor da especificidade da enfermeira psiquiátrica, porque a internação se autoriza pela necessidade de permanecer em cuidado permanente, mesmo que temporariamente, e esta é justamente a característica diferencial da jornada de trabalho da enfermeira e que deve instrumentalizar o seu trabalho, com uma escuta que permite a duração, a permanência, o vínculo e a continuidade.

 

"A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL PODE E DEVE COMEÇAR NA INTERNAÇÃO"

Teremos que rever duas afirmações, que são válidas para a enfermagem generalista, mas que não são adequadas para a especificidade da enfermagem psiquiátrica. Atender às "necessidades bio-psico-sociais"de um paciente, não é acessível para o sujeito psicológico, estando ou não em sofrimento psíquico. Se estiver, caso de nossos pacientes, é bom ter claro que estamos sempre lidando com um sujeito de falta, para o qual o inconsciente não cessa de se inscrever com uma demanda. - E aí, não há satisfação possível, porque somos sujeitos desejantes.

Também não podemos antecipar o cuidado à demanda, como fazemos na assistência de enfermagem com outras clientelas, porque, no nível mental, é preciso, primeiro, haver uma demanda, e toda proposta de atendimento será construída a posteriori.

Esta tem sido uma situação problemática para o cuidado de enfermagem, que vem se fazendo excessivamente intervencionista, até porque esta é a expectativa institucional, com ações por vezes desnecessárias, que mais atendem à disciplina e à ordem, ou a uma dificuldade de lidar com aquilo que é sempre novo, um texto que nunca se escreve, ou nunca se inscreve, como forma ideal de se proceder para cuidar destes pacientes.

Este é o maior desafio da Reforma Psiquiátrica para a enfermagem. Entregar as atividades, que vou chamar de "estáticas", para os profissionais de direito e incumbir-se de cuidar do paciente, transformando a sua jornada especial de trabalho em uma vantagem em vez de um handicap. Para isso precisamos de medicação individualizada, p.ex., porque num hospital de cem leitos de internação, manipulamos em média/dia, mil comprimidos, e quase cinco mil gotas de haloperidol, tomando quase quatro horas de trabalho/dia de um profissional que poderia estar em contato com o doente.

Sem querer negar a especificidade de cada profissional da equipe de trabalho, é fato que a relação terapêutica (independente, se, com pacientes internos ou externos), não se dá exclusivamente com os ditos terapeutas (psicólogo, psiquiatra e terapeuta ocupacional), mas com todos os funcionários, aí incluída a enfermagem. Relação terapêutica se aproxima de função terapêutica, que é diferente de função de terapeuta. Reconhecidas algumas especificidades, é preciso que se some a elas, algumas reflexões sobre o significado do acolhimento enquanto instância terapêutica.

 

"SEM QUERER NEGAR A ESPECIFICIDADE DE CADA PROFISSIONAL"

Todos os funcionários exercem função terapêutica. Como a transferência acontece em várias direções, pela sua dissociação no fenômeno psicótico, todos e tudo pode ser alvo de relação afetiva.

Há, na esquizofrenia, um "desbaratamento" mental que necessita de atenção integral, para que o esquizofrênico possa estar em algum lugar, porque, por essência, ele não está em lugar algum. Isso em função do "corpo despedaçado", que são aspectos essenciais da existência esquizofrênica. Essas características nos remetem à questão da transferência. Como ela se passa com essas pessoas? Da mesma forma, é uma transferência dissociada, estilhaçada, de investimentos multirreferenciais- e é preciso, a partir disso, reagrupar os "pedaços" daqueles que perderam a sua unidade, que estão à deriva.

A enfermagem psiquiátrica tem que ser entendida como uma especialidade a ser aprendida pela observação e pela vivência clínica, sistematizadas, instruídas também por um conhecimento psicanalítico. Para que possam aprender que, se somos agentes terapêuticos, não há lugares específicos para isso, estes lugares nos quais o encontro, necessáriamente, tem que ocorrer. Com a necessidade de desinstitucionalizar a loucura, e suas estruturas, há uma necessidade de inventar a cada dia as possibilidades de encontros.- Lugares de sociabilidade dispersa, núcleos difusos de expressão de solidariedade humana que auxiliem a transformar as pequenas e variáveis "disabilidades" (disabilities) causadas pelo impacto da doença mental.

Por fim, relato o resultado parcial de uma pesquisa que venho desenvolvendo no Instituto de Psiquiatria da UFRJ há mais de dois anos, denominada "Novos materiais na assistência de enfermagem psiquiátrica " Construímos um salão de beleza completo, dentro de uma das enfermarias, e este sub-projeto, do Salão de Beleza, compõe uma parte da pesquisa-ação maior acima denominada, na qual as enfermeiras supervisoras, são, em princípio, auxiliares de pesquisa.

Os dados foram colhidos através de quarenta e cinco horas de observação participante, realizada por duas bolsistas, e foram registrados sob forma de diário de campo com roteiro mínimo de observação. Trata-se de pesquisar e de ensinar a pesquisar, mas sobretudo de colocar uma prática assistencial em permanente discussão, pela transparência da pesquisa e pela sistematização na análise dos dados obtidos.

Estamos discutindo o estatuto terapêutico do Salão de Beleza, para além do que ele já produz: investimento na auto-estima do paciente, melhor desempenho nas atividades da vida diária, e investimento na imagem corporal e estética, fator este importante na cultura brasileira, sobretudo para mulheres.

 

"OS RESULTADOS QUE TEMOS ENCONTRADO POSSUEM UMA CERTA CLAREZA"

Os resultados que temos encontrado possuem uma certa clareza. Dos pacientes que frequentam o salão, os homens querem ficar barbeados, as mulheres querem seus cabelos cortados, penteados, a maquiagem feita. Há um investimento inquestionável na vontade de apresentar-se melhor, estar mais bonita, e olhe, estamos falando de uma clientela majoritariamente psicótica.

Ir para o salão é também um pedido de acolhimento, de mais atenção, muitos querem apenas ficar lá . É um lugar de encontrar-se com os outros, todos que chegam cumprimentam quem já está, e estes fazem as "honras da casa", explicando regras de espera, mostrando as revistas espalhadas e que muitos leêm. E conversa-se muito sobre a vida ( para além do sintoma), há uma troca do que é vivido, não direcionada para diagnóstico. Muitos pacientes dançam, outros fazem discretos jogos de sedução com as estudantes de enfermagem. Apenas uma paciente não quiz se olhar no espelho, por se achar "gorda, feia e velha". Isto me lembra as palavras do Dr Sarraceno "os loucos gordos e fumantes do hospício...", o que parece ser uma adjetivação atrelada. Teremos que nos haver com o excesso de peso de nossos pacientes, por que não ? Mas os que se olham no espelho, veêm a imagem de alguém que não está só. Nunca houve uma cena de heteroagressividade no salão, e há espelhos, tesouras, alicates. A minha discussão é que o Salão de Beleza é realmente um "Beauty Parlour", conforme traduzimos, quando apresentamos em Congressos internacionais. Ele é um pré-texto para fazer falar. Deixar que a palavra do paciente apareça através das possibilidades que um lugar de sociabilização difusa promove. Precisamos fazer com que a enfermagem consiga trabalhar nestes espaços menos adoecidos, mais frouxos em termos de hierarquização.

Termino com as palavras do Professor Jurandir Freire Costa: " - Esta psiquiatria sem inibições intelectuais de ordem dogmática é, por isso mesmo, otimista. Apóia-se no princípio pragmático que diz: onde encontrar contradição na teoria, redescreva o problema. Onde encontrar contradição na prática, experimente novos modos de agir, Experimente seguir outras regras de ação, definindo o problema a partir de outras crenças. Ao cabo desta operação, se o sentimento de impossibilidade permanecer, retome o procedimento. Mais cedo ou mais tarde o enigma será visto de um prisma onde algo de interessante e humanamente útil poderá ser feito".17

O resto, como diria Tosquelles, o essencial que se tem que fazer em relação à loucura é ajudá-la a se colocar a salvo da miséria, da opressão e das mentiras sociais. O resto é 25% de conhecimento, 25% de inspiração e 50% de suor.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ROCHA, Ruth M. Enfermagem psiquiátrica -que papel é este ? Rio de janeiro: Tê Corá/IFB, 1994.

RUSSO, Jane Araújo. A psiquiatria e os saberes "psi': uma abordagem interdisciplinar IN Textos para discurssão.Rio de janeiro: Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, s/d.

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