Volume 1, Número 2, Mai/Ago - 1997
INTRODUÇÃO
O contar e recontar histórias faz parte de nossa memória, no qual lembramos e reproduzimos aquilo que nos sucede.
Qual de nós já não ouviu a estória de Adão e Eva? Em que a mulher, desde sua criação, já era configurada como um apêndice, uma "costela" masculina. Com o passar dos séculos várias são as justificativas de explicar e manter a subordinação feminina.
Este trabalho visa apresentar um breve levantamento de fatos que estabelecem a correlação das práticas e, posteriormente, das políticas de saúde na determinação do papel da mulher na sociedade, em especial a brasileira.
Para que a assistência prestada à mulher seja desenvolvida buscando contemplar as reais necessidades desta clientela, faz-se necessário que os profissionais de saúde vejam a mulher como "sujeito" e "ser integral", pois isto significa entender qual é o papel feminino e o que ele significa para esta sociedade.
ORIGENS HISTÓRICAS
A arte de cuidar marca a existencia do ser humano na face da Terra, seja quando a mulher amamentava seu filho ao peito ou quando, na disputa por territórios, havia homens feridos.
A mulher, por apresentar, dentro do seu ciclo vital, situações diferenciadas, especialmente falando - a gestão e o parto, conviveu de certa forma com esta questão. Na maioria das sociedades ficava a cargo de outras mulheres a assistência no período perinatal, ou ainda, a própria mulher era agente do seu autocuidado.
Na Idade Média, a mulher dominava a prática no manuseio de medicamentos, de ervas e da assistência obstétrica. Estas mulheres eram consideradas "mulheres sábias" (Sages -femmes, Wise Women)1. Cabe ressaltar que, até hoje, alguns medicamentos utilizados naquela época ainda fazem parte de nossa farmacopéia; como analgésicos, digestivos e tranquilizantes (ex.: ergotina, beladona e digitalis). Neste período da história a mulher desempenhava papel importante na administração da empresa doméstica, realizando tarefas múltiplas e devendo estar capacitada a tomar conta de tudo na ausência do marido.
Por muitos séculos a história se deu assim. A mulher desempenhou papel de destaque como enfermeira, conselheira, aborteira e parteira.
Entretanto, em meados do século XII estas práticas, até então exercidas livremente, passam a ser consideradas como bruxaria ou práticas demoníacas.
A condenação da mulher pela Igreja é antiga e a ela se unirá a profissão dos médicos, que a partir do século XIII fará companha contra as curadoras de aldeias e algumas médicas praticamente, nas cidades. Este quadro irá se consolidar no século XV com a instauração da medicina como uma nova profissão.
O saber médico tornou-se o único discurso legítimo no campo da Saúde, tornando todos os outros saberes em empíricos. Assim, a mulher que manejava ervas, fazia partos e preparava poções, foi associada às bruxas e, então, obrigadas a aplicar seus conhecimentos e aptidões de forma marginal e clandestina.
Em 1484, com a publicação de uma bula que classificava toda bruxaria como heresia, por significar um pacto com o demônio, a mulher passa a ser perseguida por estar associada às bruxas. Faz-se necessário dizer que, no auge do período de "Caça às bruxas", que compreende os anos de 1550 até 1650, nove dentre dez acusados eram mulheres2. Desta forma, milhares de mulheres foram queimadas em fogueiras, com a acusação de exercício da cura. O discurso clérical e inquisidor andava de braços dados com o discurso médico. Durante este período a Igreja legitimou a profissão dos médicos.
Devido a esta perseguição houve um afastamento destas práticas, até mesmo do parto, no qual durante séculos a mulher tinha o monopólio absoluto. Interessante frisar que, nos séculos XVII e XVIII, surge a especialidade médica <=> Obstetrícia.
Observa-se uma forte tendência em delimitar o papel que deveria ser exercido pela mulher, pois a possibilidade de ingressar na universidade lhe é negada. A distinção entre superstição "mulheril" e medicina "varonil" fica estabelecida. A função feminina, até aí exercida, passou a ser vista como competidora do monopólio da cura.
Já no século XVI, o discurso médico busca justificativas para manter a subordinação da mulher, afirmando que o sexo feminino apresenta "defeito" tornando-se perigoso e impuro. E ainda, que o organismo feminino é a prova da inferioridade da mulher.
Torna-se importante registrar que tais informações afetaram de forma marcante a situação social da mulher, seja na participação no mercado de trabalho ou em decisões políticas da esfera pública. É notório observar que a relação entre a desarticulação da economia feudal, a reintrodução do Direito Romano com o conceito de "Páter - famílias" e a centralização do poder político serviram como bases do capitalismo; e também como fatores determinantes de um importante retrocesso na condição social da mulher.
Todo este processo podemos entender como táticas e estratégias utilizadas pelo poder, a fim de delimitar as fronteiras institucionais da Igreja e da Ciência Médica, onde o poder eclesiástico tem o monopólio de intermediar com o sobrenatural, e a instituição médica tem o monopólio da cura.
Temos a certeza que, nesta delimitação de saberes e fronteiras, as mulheres foram as grandes perdedoras.
NO BRASIL DO SÉCULO XIX
A Medicina Social no Brasil surge no século XIX, com o objetivo de gerir a vida dos indivíduos determinando a normalização e controle do corpo social.
Com a finalidade de conter possíveis focos de transmissão de doenças, o discurso médico tenta uma intervenção nos costumes e hábitos familiares. O compromisso básico do casal é a manutenção da higidez dos filhos. A higiene inaugura um novo discurso sobre a condição feminina e masculina, visando à preservação da vida e da saúde.
Neste contexto a mulher passa a receber atenção especial. Buscando diminuir os índices de mortalidade infantil, a medicina descobre a relação mãe e filho. Este é o ponto de partida para que surja um projeto de intervenção médica que tentará regular toda a vida da mulher. Com argumentos "científicos", os médicos tentam demonstrar que a mulher deve permanecer no lar e favorecer a maternidade. Com relação à mulher de família a intenção é resgatá-la da submissão paternal para um novo lugar dentro da organização familiar. O poder médico passa a valorizá-la como agente familiar do projeto médico de perpetuação e proteção da infância. Ela passa à submissão da vigilância médica, para torná-la capaz de desempenhar a tarefa que lhe foi confiada.
O discurso médico coloca o sexo feminino como agente dos cuidados com as crianças. No entanto, não se trata de uma posição livre, mas sim a de submissão de todo o núcleo familiar a uma nova ordem médica. Ou seja, ela passa de uma tutela paterna para uma tutela higiênica. Sendo assim, a medicina fala pela mulher e diz como ela é, e de que forma deve viver.
Utilizando argumentos para afirmar esta condição de submissão, o poder médico afirma a inferioridade do organismo e do intelecto femininos, estabelecendo, dentro da sociedade, ocupações mais delicadas e frívolas, pois a medicina necessita fixar a mulher no papel materno e de esposa. Torna-se evidente que a mulher tem sua condição definida e delimitada como reprodutora.
Em relação à sexualidade, não é considerada a sua satisfação pessoal, pois o que importa é a manutenção conjugal. Neste período o discurso médico determina o papel de reprodutora saudável, esposa e núcleo familiar de reprodução de hábitos higiênicos. Este discurso se estende por toda a Primeira República.
O século XIX trouxe de forma gradativa uma modificação na vida das mulheres, que favoreceu, no início do século XX, uma modificação marcante no papel social da mulher. Alguns agentes facilitadores foram a urbanização e o crescimento de uma parcela feminina dentro da população economicamente ativa. Entretanto, as atividades sociais e produtivas se tornam alvo das preocupações médicas. Sendo assim, os médicos constroem um novo tipo de saber sobre a mulher. Nos estudos de fenômenos sociais, os "doutores" procuravam demostrar no organismo feminino sinais de uma monstruosidade peculiar e de anomalias latentes.
Neste contexto a estratégia médica de intervenção junto à mulher visa, além de fixá-la num determinado papel, obter um maior controle sobre o corpo feminino, numa tentativa de evitar desvios. Partindo deste pressuposto, a medicina a classifica como raça inferior, por possuir características degeneradas que estão intrínsecas a sua constituição orgânica e psíquicas. Vários são os traba-Ihos médicos3 que estudam a estrutura e composição do organismo feminino e masculino, onde demonstram o superioridade do homem.
Com este pensamento a mulher é desqualificada e torna-se incapaz de exercer qualquer tipo de poder ou função social.
NO BRASIL DO SÉCULO XX
Sabe-se que, apesar de a história da medicina registrar sua existência desde o século XV, é entre os séculos XIX e XX que o sistema médico de saber e poder se configura definitivamente. Logo, sua relação com os sujeitos sociais vai sendo determinadas pelo poder hegemônico.
Como já nos referimos no tópico anterior, no fim do século XIX, numa tentativa de fixar a mulher no lar e controla-lá de forma castradora, a medicina utiliza como argumentos a incapacidade intelectual e psíquica. Contudo, existem registros dos movimentos de mulheres desde esta época, que eclodem na luta dos anos 30 pelos direitos legais e políticos, pois após várias décadas a função reprodutiva continuava a determinar seus direitos e deveres, como também sua participação social e política. Numa tentativa de buscar um novo papel para a mulher nesta sociedade contemporânea é que o movimento feminista encontra divergências com o poder médico e o sistema de saúde.
A segunda Grande Guerra atua de forma marcante em todo o mundo. No pós-guerra encontra-se a valorização da maternidade, numa tentativa de reposição das vidas (força de trabalho) perdidas. Neste período a mulher mantém o seu papel de "dona do lar", porém o mercado passa a utilizar em larga escala a força de trabalho feminino, por necessidades de recompor os interesses do poder hegemônico. Este fato não assegura uma melhor condição social. Pelo contrário, as condições de trabalho como a remuneração eram inferiores ao dos homens. O mercado de trabalho a elas oferecido era constituído de ocupações de baixo prestígio. Neste período o discurso sani-tarista predominava. Logo, o papel desempenhado pela mulher, no final do século XIX, ainda contemplava os interesses do poder instituído. Desta forma, a figura de mulher-mãe era preservada e cultuada.
Nas décadas de 20 e 30, o movimento de mulheres já apresenta sinal de resistência no desenrolar da luta pelos direitos legais e políticos. No âmbito da saúde, surge inicialmente o programa do leite e, num momento seguinte, o materno-infan-til que vem até os nossos dias. Este programa tem a criança como foco, porém utiliza a mulher como veículo para melhorar a qualidade do material humano destinado a fazer funcionar o nascente capitalismo industrial. É neste cenário que se defi-ne o que seja "saúde da mulher", pelas instituições. São priorizados pela atenção médica os cuidados com a gestação e com o recém-nascido.
É, a partir da década de 60 que o movimento de mulheres se consolida com o "novo feminismo"4. Com uma proposta de discutir o real papel que a mulher anseia ocupar na sociedade, este movimento assume o discurso de que o exercício livre da sexualidade é sinônimo de liberação. Com isso repete o discurso do poder vigente no século XIX, no qual relaciona à função reprodutiva a limitação na participação feminina, na política e na sociedade.
No contexto nacional, este período é marcado por uma evidente reordenação de poderes e saberes, o que favorece o crescimento do movimento feminista. Paralelo a este fato, o desenvolvimento dos métodos contraceptivos e, em particular, a disseminação da pílula anticoncepcional, caracteriza esta "liberação" como mais uma estratégia de controle do organismo feminino, já que os métodos contraceptivos em sua esmagadora maioria são usados pelas mulheres.
A utilização destes métodos anticoncepcionais associado ao desconhecimento do funcionamento do organismo, faz com que a mulher continue em condição de submissão ao saber médico e científico. Porém este acesso é limitado e com isso também as informações são limitadas. Entretanto, passa a ser exigido que a mulher tenha um controle sobre sua fertilidade. Sendo assim, a mulher busca mecanismos para evitar a concepção, que por motivo de facilidade de acesso à "pílula" passa a ser o método mais simples, não sendo levadas em consideração todas as restrições que envolvem este método. Outra forma de manter o controle sobre seus corpos é buscar na clandestinidade as práticas abortivas e ligaduras tubárias.
No início dos anos 80, o discurso social com relação às políticas de saúde dirigidas à mulher envolviam questões relacionadas à "Saúde reprodutiva"5. Este pensamento se concretiza em 1984, com o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), elaborado pelo Ministério da Saúde que servirá como diretriz da assistência a ser prestada à mulher até os dias de hoje. Este programa é divulgado com um enfoque progressista de que a mulher é considerada um "ser integral" na ação de saúde, porém até hoje não passou de práticas de acompanhamento pré-natal e prevenção do câncer cérvico-uterino. Visto que até mesmo estes subprogramas não oferecem uma cobertura desejada.
No que se refere aos métodos contraceptivos, estão cada vez mais sob o controle do Sistema Médico, e as mulheres cada vez mais distantes da informação e do controle de seus próprios corpos.
CONCLUSÃO
No atual momento, fins do século XX, é evidente a constatação de que a mulher ocupa cargos na esfera pública e privada que eram exercido somente por homens. Esta incorporação da mulher à força de trabalho brasileira está relacionada com as mudanças provocadas pelo processo de modernização ocorridas a partir da década de 60. Contudo, a discriminação ainda vivenciada pela mulher é fundamentada em argumentos do século passado, como questões acerca da fragilidade do organismo feminino e dos impedimentos que envolvem o processo de reprodução.
O sistema de saúde a considera integrante do grupo prioritário de assistência, porém muito lhe falta para considerar a mulher um "ser integral". É preciso que as instituições de saúde e seus profissionais conheçam e analisem bem a situação feminina em todas as suas nuances, para que possam agir com eficácia e eficiência.
Um dos principais problemas relacionados com a vida e a saúde das mulheres em nosso país é a desinformação e as dificuldades encontradas na busca de atendimento nos serviços de saúde. Nos nossos dias, estes são instrumentos que os profissionais de saúde utilizam para exercer o poder, já que todo saber constitui formas de poder.
Nesta disputa de poderes e saberes, que faz parte da convivência em sociedade, a mulher não pode ser utilizada como simples objeto de projeção de categorias profissionais ou de auto-afirmação masculina, pois as fraturas vividas do papel que lhe cabe socialmente adoeceram nela a possibilidade de pensar si mesma.
Logo, conclui-se que é preciso que as instituições de saúde e seus profissionais conheçam a situação das mulheres em nossa sociedade e estabeleçam uma relação com os dados históricos da evolução da posição feminina, para melhor compreensão da problemática existente. Assim agindo, os profissionais de saúde poderão ser agentes facilitadores na solução do dilema, onde as mulheres se vêem por um lado compelidas ao desempenho rigoroso de seu papel social e, de outro, pensando e desejando o que não encontra lugar no instituído.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
O1- BERNARDES, Maria Thereza C.C. - Mulheres de ontem? Rio de Janeiro, Século XIX . São Paulo: Queiroz, 1988.
O2- BORGES, Sherrine M. N. ATIÊ, Eliana - Vida de mulher: estratégicas de sobrevivência no cotidiano In: MINAYO, M.C (org) et al. Demandas Populares, Políticas Públicas e Saúde. Petrópolis: Vozes, 1989. v. 2: Movimentos Sociais e Cidadania.
O3- BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de Assistência á Saúde da Mulher. Brasília: MS, 1984.
O4- CHAVES, Regina Rodrigues - Identidade do gênero feminino frente ao poder institucional. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.
O5- LOYOLA, Maria Andrea - Sexualidade e reprodução. Physis - Revista de Saúde Coletiva, v. 1, n. 1, 1992.
O6- MUNIZ, Jaqueline - Feminino - A Controvérsia do Óbvio. Physis - Revista de Saúde Coletiva, v. 2, n. 1, 1992.
O7- NUNES, Silva A. - A medicina Social e a questão feminina - Physis -Revista de Saúde Coletiva, v. 1, n. 1, 1991.
O8- PITANGUY, Jaqueline - Medicina e bruxaria: algumas considerações sobre o saber feminino - In: LABRA, M. L. (org) Mulher, saúde e sociedade no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1989.
O9- TELLES, Norma - Ronda das feiticeiras. In: SEMINÁRIO TEMÁTICO: Mulheres em seis tempos, 2. ,1991, Araraquara: UNESP.
10- XAVIER, D. , AVILA, M., B.,e CORREA, Sônia. Questões feministas para a ordem médica: o feminismo e o conceito de saúde integral. In: LABRA, M. L. (org) Mulher, saúde e sociedade no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1989.
11- YDALGO, Tereza - Morte materna e pressões da realidade. Rio de Janeiro: UERJ / IMS, 1994 (Estudos em Saúde Coletiva; n.° 81)
12- Mulher e desenvolvimento: o que significa ver a mulher como sujeito. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Serviços Urbanos. Núcleo de Estudos da Mulher e Políticas Públicas, 1991.
1. TELLES, N - Rondas da Feiticeira. Em Mulher em seis tempos. Seminário Temático III - UNESP/Araraquara-SP, IML
2. NUNES, S.A - A Medicina Social e a questão feminina - In: PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva, vol. I,n.° 01,1991.
3. XAVIER, D; AVILA, M.B & Correa, S - Questões feministas para a ordem médica: o feminismo e o conceito de Saúde ntegral. In: Mulher, Saúde e Sociedade, Ed. Vozes /ABRASCO, Petrópolis, 1989.
4. Utilizamos esta terminologia para caracterizara relação da mulher com a reprodução.