Volume 1, Número 2, Mai/Ago - 1997
RELEVÂNCIA E OPORTUNIDADE DO ASSUNTO
Cumpre-me tratar, neste trabalho, "dos valores ético-profissionais da enfermagem contemporânea". Um tema instigante (com certeza!) e que me foi indicado para uma conferência de interesse dos colegas enfermeiros do Rio de JaneiroC). Diante do mesmo, imaginei-me frente às questões dos valores e de suas implicações, e perguntei-me:
- Se existe uma enfermagem contemporânea, em que sentido difere da enfermagem moderna que aprendemos a exercer e que juramos praticar?
- quais são seus atributos?
- em que tipo de ética fundamentam-se seus valores? e
- a que moral ela se atém?
Ao tentar responder às perguntas, dei-me conta de que entre o que se pode ter por certo e o indubitável há muita distância, sem falar nas implicações. Fiquei perplexa e tentei recusar-me à reflexão. Mas há uma justificativa. Porquanto sendo enfermeira, sinto-me moralmente comprometida com a profissão, porém não sou especialista da Ética. Admito, pois, a dificuldade de me haver com o tema, na base de um conhecimento mais profundo. E, enquanto professora de filosofia, tenho dúvidas quanto ao poder dos argumentos aplicados a uma primeira discussão. Também o fato de estar afastada (já faz algum tempo) da prática assistencial é um limite, e sei bem o quanto nós enfermeiros não aceitamos, facilmente, explicações teóricas que ponham em causa a prática da enfermagem. Além de que, em época de incertezas como esta de final de século XX, em se tratando dos valores e dos interesses humanos, a experiência passada permite-nos apenas supor.
Neste sentido, e forçando a reflexão, a pergunta mais imediata é: até que ponto experiências anteriores ou suposições arriscadas, podem ajudar-nos na compreensão do tema de final, em nenhum lugar está declarada e aceita, universalmente, a denotação "dos valores ético-profis-sionais da enfermagem (designada no tema) contemporânea". Ainda assim, vejamos como percebo as coisas de interesse da enfermagem relacionadas com o assunto e com as perguntas levantadas.
Para mim, "os valores ético-profissionais estão integrados no "corpus" do conhecimento da enfermagem. Eles estão nas leis e nos códigos, e fundamentam os processos éticos, as disposições e as normas que regulam a enfermagem, independentemente de sua contemporaneidade. Supostamente eles são ensinados e aprendidos, mesmo se mal ensinados e mal aprendidos. Podemos questioná-los, é verdade. Mas, na vida profissional, somos obrigados moralmente a considerá-los, a respeitá-los, a ponderá-los, e a cumprir suas determinações. Tal como entendo, os valores da enfermagem fundamentam-se em uma ética que tem por centro "a dignidade do homen", e por princípios os que constam dos "documentos básicos da profissão" os quais são aprovados e adotados, coletivamente, pela classe profissional. É preciso reconhecer-se a necessidade do estudo continuado da Ética e da Lei para compreender tais valores à luz das contingências da época e das necessidades fundamentais da prática da profissão.
Os que me convidaram foram insistentes. O tema lhes parecia oportuno, de vez que a enfermagem como prática assistencial está posta em causa. Juntamente com as questões da saúde, a enfermagem está em pauta, pelas reivindicações dos clientes, pelos protestos e demandas das comunidades, pelos conflitos interdisciplinares, e pelas críticas da imprensa. É pública e notaria a adversidade da área da saúde no mundo de hoje. Particularmente, neste país, nenhuma das profissões da área está isenta ou imune. Eu, particularmente, tenho ouvido muito, de colegas e alunos; e as coisas são colocadas, às vezes, com muita emoção, o que dificulta a justa apreciação.
Todavia, com as mudanças do sistema de saúde, a situação da enfermagem, no Brasil, não está devidamente clara. Os colegas afirmam que a fiscalização da prática não acontece de modo transparente, e torna-se mais difícil e mais delicada a situação ética da enfermagem. Os processos empilham-se nos conselhos regionais e no órgão central. Há de tudo: negligências, omissões, falhas humanas e técnicas, má administração, transgressão de normas e de leis. Por outro lado, vale lembrar, também, as queixas e as reivindicações dos profissionais. E o que eles dizem? Vejamos algumas de suas reclamações:
- "Só apelam a nossos deveres e obrigações";
- "Ninguém pensa em nossos direitos";
- "Ninguém pensa nas condições nocivas que enfretamos e que atingem a qualidade da assistência e o trabalho executado";
- "Os cuidados de enfermagem não são valorizados, no contexto da assistência à saúde";
- "As más condições de trabalho, os subempregos, os salários indignos, as jornadas extenuantes e a insuficiência do pessoal de enfermagem não são considerados, devidamente, pelos dirigentes dos Serviços de Saúde";
- "A enfermagem é discriminada ou relegada a plano secundário, nos programas de saúde";
- "Nas situações de falência e/ ou de risco da assistência prestada aos clientes, cobra-se sobremodo a qualidade da enfermagem, quando nem mesmo seus critérios e requisitos de quantidade são respeitados".
Por tudo isso, e pela insistência do convite, aceitei o desafio do tema. Todavia, não posso tratar do mesmo como o fariam melhor os filósofos da ética ou os que se dedicam ao estudo dos valores. Também não posso indicar soluções para as questões éticas ou problemas morais da prática profissional. Na medida das possibilidades e dos limites, devo adiantar que minha intenção é a de ressaltar alguns aspectos críticos que interessam à enfermagem. Mas que fique assentado, aqui, que as questões dos valores éticos e da moral profissional são suscetíveis de maior aprofundamento por todos aqueles que aceitam comprometer-se com a enfermagem e sua prática, numa época decisivamente marcada pelo ritmo das mudanças. No que me concerne, que o compromisso moral com a enfermagem fale mais alto. Posto que, não sendo pelo profundo conhecimento, ainda tenho, para com Deus, o dever de compartilhar com os colegas e os herdeiros da profissão as inquietações filosóficas.
ASPECTOS DISTINTIVOS DA ÉPOCA ATUAL
Se vivessem de novo, os filósofos do Século das Luzes ficariam atônitos diante de nossa época. Menos de 200 anos e suas previsões se tornaram realidade. Mudanças científicas e tecnológicas, sociais e psicológicas, morais e religiosas demarcam, flagrantemente, a época contemporânea. Hoje, temos a consciência de que o mundo não é mais aquele de que falavam nossos avós. As marcas das revoluções científicas e tecnológicas estão por toda parte. É corrente a idéia de que, após a revolução industrial, o mundo mudou mais do que teria mudado nos dez séculos anteriores. Contudo, as principais vias expressas e estradas de monotrilho espantariam menos o homem do século XVIII, do que o espetáculo em que o mundo se tornou. Hoje, máquinas pensam por nós. Os aviões quebraram a barreira do som e já podem se tornar invisíveis. Os sinais luminosos e sincronizados, nas grandes cidades, impõem a todos a idéia elementar da cibernética.
Os que discutem nossa época são unânimes quanto à ciência e à tecnologia terem transformado a terra e seus habitantes. A nota predominante é a mudança: de tão veloz desloca-nos a todo instante, e nós mudamos de posição e de perspectiva. A sensação é a que nos permite uma ótica deslocada. Gaëtan Picón (1958) alerta-nos: "em nossa época é a própria terra que palpita e está em trabalho. O elétron e o átomo a remodelam, continuamente. O tempo é a cada dia mais raro, o espaço mais espremido, as distâncias mais curtas. O mundo já se aproxima, ele próprio, de uma unidade tecnológica". René Dubos (1972) pondera: "as maravilhas da ciência não têm mais parâmetros. A medicina está a ponto de resolver problemas antes incuráveis. A nutrição já determinou as necessidades alimentares essenciais do homem. A pesquisa científica já superou dificuldades metodológicas, e os pesquisadores afirmam que o homem avança célere no controle de sua própria natureza".
Para qualquer de nós, a existência parece não ter sentido sem o progresso científico e as novidades tecnológicas. Não saberiamos viver sem a TV a cores, o videocassete, o som disc-laser, a geladeira, o freezer, o forno microondas, o computador, e esta parafernália que faz de nossa ambiência um cenário de ficção científica. Alguns jornais noticiam que existem pessoas com reserva de passagem para a primeira viagem interplanetária, e que outros compraram o próprio congelamento para serem despertados 100 anos adiante. Enquanto isso, a energia atômica ainda mantém a política e o planeta sob controle.
Apesar da crença geral em maiores progressos, o futuro parece incerto. René Dubos (1972) diz que Max Weber foi profético, no início do século, ao afirmar que o desencanto seria, também, uma marca de nossa época. Ao lado das maravilhas, vivemos a era da incerteza, um tempo de ansiedade. As duas grandes guerras e as outras esporádicas abalaram nosso século, transformaram a humanidade e a feição do mundo. Com tantas mudanças, o mundo vive uma crise sem igual. Nos últimos 30 anos, as violências contra a natureza, a má distribuição da riqueza, as guerrilhas, a economia consumista, a superpopulação e a diminuição de alimentos perturbaram-nos ao ponto do risco de perdermos a noção de equilíbrio. Os governos não dão conta de seus orçamentos, nem dos gastos nem das despesas. Já não sabemos para onde vai nossa vida ou nosso trabalho. Não temos garantia de segurança nas ruas nem em nossas casas. A sociedade atual convive com a violência, a falta de privacidade, a corrupção, a contravenção, o tráfico de drogas, e o trabalho marginal, o desemprego, e os dilemas de uma política desumana que não convence, nem permite o conforto de um equilíbrio mínimo.
Ontem ainda e podíamos ensinar e aprender de cartilhas e textos manuscritos, de livros passados de pais a filhos, de irmãos a irmãos. Obras seletas eram baseadas em princípios de uma ordem fundamental e dos prolegómenos de uma sabedoria unificadora. Mas, confiabilidade e credibilidade podem servir-nos, agora, de hipótese ou de conjecturas arriscadas. Quando dormimos, pensamos em um mundo que é de uma forma. Acordamos e ele se tornou um outro, tão dividido que nada sabemos de sua geografia ou da nacionalidade de muitos dos habitantes. A ciência de Copérnico, Kepler e Newton, que tinha a ver com o entendimento da natureza e do mundo, não consegue mais apoiar nossa compreensão das coisas. Estamos no último decênio do século XX e somos arrastados por dúvidas, temores e tremores, em vista de problemas que dão origem a outros. Tudo muda, continuamente, e nós também mudamos. Mudamos em nossas atitudes, comportamentos, crenças e na forma de ver o mundo. Mudamos o modo de pensar. Mudamos de endereço e de partido político. Mudamos de vida e de filosofia.
Com efeito, nossa época é de progresso, mas vivemos também com nosso desencanto. Parafraseando Eugene S. Schwartz (1975), podemos dizer que o que existe é uma contradição generalizada. Construímos hospitais e clínicas, e há sempre mais doentes. Construímos escolas, e o analfabetismo floresce. Erguemos fábricas e produzimos máquinas que nos escravizam. Derrubamos florestas, dilapidamos os recursos naturais e supersolapamos a terra. Envenenamos lagos e rios, poluímos o ar e transformamos a terra em labirinto de concreto. Levantamos edifícios para milhares de pessoas, e passamos uns pelos outros como estranhos. O homem contemporâneo se agita, tenta fugir dos problemas que formula, descobre-se como estranho em seu ambiente, e como solitário na multidão. O pior de tudo: os ricos ficam mais ricos, os pobres mais pobres. Os saciados adoecem de consumo, os famintos morrem de inanição. E a máquina tecnológica continua a produzir o que o homem não precisa, ou não pode adquirir.
Em "O Desafio de Nosso Tempo" Arnold J. Toynbee (1975) examina, em detalhes, a trajetória do homem no planeta, e ressalta pontos importantes da crise a que chegamos. Ele afirma que "é preciso considerar crimes as diretrizes que se orientam para a destruição da vida. Talvez sejam crimes sem premeditação, mas, nem por isso, são menos crimes. Não é possível tolerar os crimes contra o homem e a natureza, em nome dos resultados do progresso. Não é possível aceitá-los como produtos da ciência e da tecnologia que evita os valores e a ética. Não se deve permitir que as leis da ciência e o mito do progresso sirvam de capa à irresponsabilidade".
Com base nesses autores, podemos dizer que a palavra progresso foi corrompida. Agora ela é mais empregada para designar mudanças no padrão da vida não na qualidade da vida; refere-se mais à abundância de coisas. O progresso hoje não significa um nível mais alto de instrução, nem sequer melhores condições de saúde. Enquanto o poder da ciência e o-uso da tecnologia aumentam, seus produtos se tornam mais triviais e, às vezes, mais brutais e mais imorais. Embora não nos convenha uma posição simplista, diante das maravilhas da época não se pode negar o progresso atingido. Ainda assim, nenhuma ética substancial, nenhuma estabilidade interna puderam ser alcançadas. A pouca estabilidade que nos resta, as raras delicadezas que nos sensibilizam são o remanescente de uma ordem cristã antiga. A cada dia, elas são mais apagadas de nossa memória e de nosso sentimento.
Para compreender a época em que vivemos e as implicações quanto aos valores, as perguntas que podemos fazer abrangem o destino do homem e seu lugar no universo. E eis aí uma questão filosófica: O que nos cabe esperar? Na situação da enfermagem, as possíveis respostas convergem para os assuntos e os interesses humanos e, conseqüente-mente, para os valores e a ética da profissão. Queiramos ou não, "os valores ético-profissionais da enfermagem contemporânea" merecem a nossa atenção.
SOBRE A CRISE DE NOSSO TEMPO, OS VALORES E A ENFERMAGEM
Na área da filosofia, dizemos que, em nossa época, o pensamento humano - racionalidade moderna -vive a sua crise mais complexa. Crise da contemporaneidade. Crise de um pensamento em crise. Crise de uma razão sem razão. Crise do pensar em busca de si mesmo e de sua história. Crise da reflexão nas tentativas para superar limites ao conhecimento e à percepção dos significados - meios e fins - inerentes à ação e à profundidade da vida. Crise da perplexidade frente à esperança de explicar a filosofia. Crise da angústia em face dos problemas do trabalho humano escravizado e do viver sem razão. Crise do homem contemporâneo, cujo maior desafio já não é encontrar a razão de viver, mas alcançar a felicidade e o sentido da existência mesma.
Entendido como crítica da filosofia, o pensamento contemporâneo é, também, o questionamento radical do mundo, do lugar do homem no universo, de sua consciência, e de suas relações com a natureza, o inusitado, o Absoluto. Na dimensão atual, é inquietação, angústia e desencanto acerca da realidade e de seus fundamentos. E é desejo de romper com as estruturas e de atingir a esperança de encontrar, para o homem - sujeito concreto e situado na história, o sentido real capaz de lançá-lo para além da vida e da morte. Acima de tudo, é liberdade de "ser" e de "pensar" a um só tempo. É a vontade deliberada de tornar-se - essa expressão que implica a recusa aos termos da subjetividade racionalista. " Tornar-sd1 significa descobrir-se, construir-se e reconstruir-se no cotidiano real do saber-fazer ou do pensar o que fazerno âmbito de vivências únicas, porque historicamente determinadas e, assim, irrepetíveis.
Do ângulo filosófico, "nada" no mundo de hoje escapa à grande crise. Nenhum sistema de idéias, nenhum conjunto de princípios, nenhuma regra normativa ou critério de valor. Mudanças e contradições submetem tudo e a todos. A enfermagem que conhecemos e praticamos, submetida às estruturas de poder e às dificuldades da questão de gênero, pelos percalços de sua evolução, sofre descompassos e, em face das novidades da ciência e da tecnologia, enfrenta contradições e vive sua própria crise.
A conta do ponto de vista, tenho afirmado, em várias ocasiões, que a crise da enfermagem impõe-nos algumas questões principais: 1) a de saber ou conhecer mais sobre si mesma e seus termos teóricos e práticos, 2) a do dever de valorizar-se nas relações com os assistidos e os pares, e 3) a de identificar-se como profissão, no mundo, e como o que há de melhor para a sociedade ( Brown, 1949).
Entendo que essas questões, resumidamente, apelam não só ao reconhecimento público de fato e de direito, inegável em todas as contingências da realidade concreta, mas principalmente aos termos de um "estatuid' universal, compatível com uma profissão insigne, marcadamente comprometida com o social.
Em relação à coerência do assunto, cabe-me destacar alguns pontos críticos relativos aos valores e à ética, mormente em que pese a enfermagem. Ou seja, a ética como disciplina filosófica trata das relações das pessoas, em geral, e dos valores das ações dos indivíduos entre si. O objetivo da ética é a moral. Os problemas da ética apelam ao teórico e dizem respeito à vida humana. A moral diz respeito ao cotidiano e ao prático das situações concretas e circunstâncias individuais. A ética e a moral implicam-se e complicam-se, pois as soluções éticas influem na moral vivida. Segundo Adolfo Sanchez Vazquez (1990), "a função da ética é igual à de toda teoria: explicar, esclarecer, investigar determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. A moral varia historicamente e, com ela, seus princípios e normas. A ética toma de partida a diversidade de morais, no tempo. Como teoria, ela não se identifica, particularmente, com nenhuma moral nem pode permitir posições ecléticas diante do fato moral. Um aspecto complicado é que a ética não cria a moral, como também não estabelece valores para determinada comunidade ou classe. Mas a ética é a ciência da moral enquanto se atém à atmosfera do comportamento humano. As proposições da ética (como teoria) devem ter o mesmo rigor, coerência e fundamentação das proposições científicas. Já as proposições da moral não têm esses traços. Em senso estrito, a ética não é a moral, não se reduz a prescrições normativas, mas ela explica a moral e pode influir na moral".
A moral compreende normas e regras de uma dada comunidade. Seu significado, função e validade variam, historicamente, nas diferentes sociedades, e como essas se sucedem no tempo, as morais concretas se substituem umas às outras. Sendo a moral um fato humano, a ética não pode concebê-la, mas tem de considerá-la como aspecto da realidade das mudanças sociais.
Como não se pode, numa primeira análise, abarcar o conjunto de uma ciência, nem examinar todas as teorias aplicáveis à mesma, cumpre destacar - no interesse da prática da enfermagem -, que a moral surge no contexto social e quando os comportamentos individuais e as relações dos homens entre si exigem. Ou, então, quando tais relações impõem aos indivíduos um acordo mediante normas ou prescrições que os governam em grupo. Um exemplo simples é o regulamento dos condôminos de um edifício, ou as normas adotadas pelos membros de um clube de lazer ou de uma entidade profissional.
Quanto à compreensão dos valores, vale dizer, ainda, que eles correspondem às essências, significados ou atributos concernentes às coisas e aos atos humanos. É difícil simplificar, mas os valores surgem e manifestam-se à percepção à medida em que "coisa" e "atos" nos sensibilizam, como "utilidade" ou "inutilidade". Conforme diferentes correntes filosóficas, os valores são entendidos ou "em si mesmos" ou como "propriedades potenciais va-liosae que interessam à realidade humana. No primeiro caso, os valores pertencem a um reino particular, independente das coisas e dos atos. No segundo, os valores não existem "em si" são propriedades adquiridas graças às suas relações com o homem e o social (Hessen, 1967).
De modo geral, em nossa época, entende-se que os valores são criações do homem, isto é, existem em razão e por necessidade de se compreenderem as atividades e as questões práticas, e se realizam no homem e pelo homem. As coisas da natureza (não criadas pelo homem) só adquirem valor se relacionadas com assuntos e interesses humanos. Alguns filósofos da ética contemporânea defendem, para o homem, as características decorrentes de sua historicidade e concretude social. Adolfo Sanchez Vazquez (1990) refere que "os valores têm - não a objetividade do idealismo platônico ou do idealismo alemão de Max Scheller e Nicolau Hartmann, mas uma objetividade especial - a da realidade humana e social -, que não ultrapassa o âmbito das atividades práticas, em sua significação histórico-social. Nesse sentido, os valores existem, para o homem contemporâneo, na medida e em decorrência das mudanças sociais, às quais ele se encontra submetido, e na razão dos problemas e vicissitudes de sua época."
Outro destaque é pertinente à avaliação moral. Sendo questão de atribuir valor aos atos e produtos do homem, isso implica a consideração acurada das situações concretamente vividas, antes mesmo que sejam levados em conta os elementos práticos que interessam à avaliação. As condições adversas do trabalho humano, na área da enfermagem (por exemplo), devem ser avaliadas antes mesmo que sejam avaliadas as atividades executadas indevidamente ou incorretamente. As novidades científicas e tecnológicas, lançadas nas situações emergentes ou de cuidados intensivos, podem esbarrar com o sério descompasso técnico a que estão submetidos os profissionais da enfermagem. Todos sabemos que, além da insuficiência de pessoal, a enfermagem ressente-se da falta de liberação para a educação continuada. No Brasil, e em outros países da América Latina, esta questão é grave e merece toda a consideração nos processos éticos relativos à falência dos atos de assistir aos clientes. Os atritos interdisciplinares também não devem ser avaliados sem que se considere a hegemonia do poder formal, nas instituições de saúde, e a discriminação que pesa sobre a profissão.
Nas últimas décadas, o Conselho Internacional de Enfermeiras (CIE) vem se dedicando, juntamente com as Associações Nacionais afiliadas, ao estudo de questões da enfermagem, na época atual. As questões são examinadas, em detalhes, intrínseca e extrínsecamente. Há documentos produzidos que tratam de dilemas éticos, conflitos, direitos e deveres profissionais, e de recomendações sobre melhores condições de trabalho para o pessoal da enfermagem. Sabemos que a profissão, em nossos dias, ressente-se ainda da falta de conhecimento mais objetivo para demonstrar-se frente aos clientes, ou para interpretar-se socialmente. Nesse particular, cabe referir que, em muitas partes do mundo, os profissionais da enfermagem ainda carecem de leis próprias e dos recursos de uma ética tangível ao exercício da profissão.
Em 1973, tive a oportunidade e a honra de representar a Presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn-Nacional), Dra. Glete de Alcântara, no 15° Congresso Quadrienal Internacional/CIE, no México. Ali, aprovamos o atual "Código para Enfermeras" (CIE, 1977). Embora esse Código não seja propriamente um "estatuto", que assegure aos profissionais da enfermagem a importância de sua posição no mundo, suas proposições resumem conceitos éticos aplicáveis às ações profissionais em todas as partes.
O referido Código destaca proposições principais para a responsabilidade da enfermeira, a saber:
- são quatro os aspectos fundamentais (dessa responsabilidade) -manter e restaurar a saúde, evitar as doenças e aliviar o sofrimento;
- a necessidade dos cuidados de enfermagem é universal, razão por que devem ser assegurados a todos sem nenhuma distinção;
- os serviços de enfermagem devem ser prestados aos indivíduos, às famílias e à comunidade (como um todo), mediante ações integradas com atividades de outros profissionais.
Mas, o "Código para Enfermeiras" detalha, além do mais, os tipos de relações que interessam ao âmbito profissional, ou seja: a) da enfermeira com o indivíduo, b) da enfermeira com o exercício da enfermagem, c) da enfermeira com a sociedade, d) da enfermeira com seus colegas, e) da enfermeira com a profissão.
Na relação com o indivíduo, exige-se da enfermeira consideração aos cuidados de enfermagem, não só pela promoção do conforto físico, emocional, espiritual, mas pelos requisitos adequados a um ambiente terapêutico e propício ao respeito aos valores, costumes e crenças individuais. Quanto à relação com o exercício da enfermagem, exige-se da enfermeira a competência responsável e atualizada, a qualidade da assistência, o uso da crítica na delegação de atividades e uma conduta irreprovável que dê crédito à profissão. Na relação com a sociedade, cabe à enfermeira compartilhar, com seus concidadãos e assistidos, a responsabilidade por iniciativas e ações orientadas para satisfazer as exigências sanitárias e sociais das coletividades. Para a relação da enfermeira com seus colegas, o Código estabelece a necessidade da ajuda e cooperação técnica e do intercâmbio, intrínseco e extrínseco. Nesse aspecto, dispõe-se: "quando os cuidados que recebe um cliente são postos em perigo por um colega ou outra pessoa, a enfermeira deve tomar a decisão mais adequada e atuar em consequência". (O que pode abranger muitas implicações). No que concerne à relação com a profissão, o Código estabelece, para a enfermeira, a responsabilidade pela definição de normas aplicáveis aos serviços e ao ensino de enfermagem, bem como a de zelar pelo desenvolvimento do acervo histórico dos conhecimentos próprios da enfermagem. E ainda recomenda a participação nas entidades associativas e nas lutas reivindicatórias por condições econômicas e sociais justas para o trabalho na área da enfermagem.
Desafortunadamente, numa época como a nossa, não há muito tempo para pensar, e nenhuma regra permite-nos fazer previsões confiáveis. Mas todos estamos cientes de que nos falta muito para o progresso social almejado. Precisamos todos refletir sobre os assuntos e os interesses da enfermagem. Precisamos pensar, individualmente e em grupo. E precisamos tomar decisões coletivas. Segundo José Ortega Y Gasset (1973), "nós somos, cada um de nós, o centro de suas próprias circunstancias. Porém, na vida social (e no coletivo da prática concreta), nós quase nunca somos solitários, É necessário não esquecer que nós somos apenas com os outros". E "nós" na vida profissional, nos relacionamos com outras pessoas nas experiências de trabalhar, de ensinar e de aprender, de apoiar e ajudar o crescimento individual e coletivo. Tampouco devemos esquecer que "a enfermagem é uma profissão insigne - profissão de ajuda, dedicada ao bem social e ao alcance de melhores níveis de saúde" (Carvalho, 1980).
No Brasil, "a enfermagem subsiste, atualmente, em meio a toda sorte de contradições, e de permeio com todas as mudanças do sistema de saúde. Há uma insatisfação generalizada. Todos se queixam das deficientes condições de trabalho, dos péssimos salários, da falta de recursos materiais e humanos, e da falta de oportunidades ou de liberação para os estudos continuados. Mas faltam também os programas substantivos, os projetos específicos e os critérios adequados a uma assistência de qualidade, que seja demonstrada pelos seus resultados nos programas globais de assistência à saúde" (Carvalho e Müller Dias, 1988). Faltam recursos orçamentários e apoio financeiro de órgãos de pesquisa. Faltam mecanismos gerenciais mais leves e flexíveis, e tecnologias adequadas de apoio e de manutenção imprescindíveis aos cuidados oferecidos aos clientes. Falta segurança quanto aos planos de coordenação da assistência e, talvez, aos esquemas da fiscalização do exercício profissional. E o pior de tudo: às vezes, falta a competência adequada às responsabilidades profissionais e, sobretudo, falta "trato" nas relações interpares.
No cotidiano da prática, sabemos que a lista de problemas concre-tos cresce, assustadoramente, e abrange até as dificuldades relativas às atividades mais comezinhas. As entidades profissionais realizam muitos eventos (nacionais, regionais e locais), onde são discutidos temas emergentes e relevantes, mas raramente chega-se a um consenso sobre os rumos da prática e o futuro da profissão. As implicações são sérias e convergem, com certeza, para a posição profissional da enfermeira na sociedade.
O QUE NOS CABE ESPERAR
Em vista do exposto, não cabe propriamente, aqui, apontar direções. Mas talvez precisemos refletir sobre os objetivos profissionais estabelecidos nos documentos da enfermagem e nos códigos adotados. A dignidade do homem e os direitos humanos merecem todo o crédito. A pergunta que se coloca é:
- Quem sabe se, ao invés de nos preocuparmos em demasia com as questões do sistema de saúde (que náo privilegiam a enfermagem) nao seria mais proveitoso desenvolver o conhecimento e as ati-tudes que possam ajudar os profissionais a examinar - de forma objetiva, racional, sensível e criativa - os problemas práticos da assistência oferecida aos clientes?
Infelizmente, o aspecto destacado da questão e que abrange os valores ético-profissionais tem pouca prioridade, se não é totalmente negligenciado nas escolas e instituições que envolvem a enfermagem em nossa época.
Não é por acaso que nossos interesses dificilmente se afirmam em um plano de idéias. Os objetivos que poderiam nos unir são, raramente, focalizados em nossas discussões. Os significados que herdamos ou aprendemos de nossos mestres já não servem para guiar nossas perguntas. Tampouco servem para nos associar frente aos desafios de lutar por um triunfo comum (CIE, 1983 ). No entanto, só precisamos repensar os valores ético-profissionais que interessam tanto ao passado, como ao presente e ao futuro da enfermagem contemporânea. Sobre os valores do passado, a história pode nos dizer muito, talvez até ajude a esclarecer o presente. Dos valores contingentemente atuais, há muito o que se discutir. O que dissemos, aqui, vale somente para um começo de conversa, um ponto essencial para a discussão pertinente ao tema em pauta. Sabemos que a crise de nossa época tanto serve de ponto de chegada como de ponto de partida. Mas a enfermagem atual precisa ser repensada não por si só, mas como parte de um mundo em crise e em lutas, um mundo em que a própria vida humana é mais um palco de mudanças avassaladoras.
No dizer de Alvin Toffler (1975), "a mudança é o processo pelo qual o futuro invade nossas vidas". Não podemos, pois, esquecer que "as mudanças aceleradas oferecem conseqüências pessoais, assim como psicológicas e sociológicas. Embora ponderados intelectuais possam discorrer, bravamente, sobre, a educação para mudança ou a preparação das pessoas para o futuro, nós não sabemos como fazer tais coisas". Em meio a tantas mudanças, no Sistema de Saúde, não podemos prever como nos sairemos dos desafios da época contemporânea. "Com as mudanças - diz o autor - até o futuro da amizade e o da família são postos à prova. Investigam-se novos estilos de vida e estranhas subculturas, que vão da política aos parques de recreação, do salto de pára-quedas ao sexo. Na atualidade, ao tempo em que a tudo unifica, a mudança é tão impetuosa que desagrega as instituições, sacode e altera nossos valores e faz secar nossas raízes e fundamentos".
Temos que convir que a ordem mundial é outra. A economia parece que enlouqueceu, a riqueza e os bens da terra pertencem a poucos, enquanto os demais são devedores permanentes, ou vivem à margem das primicias da vida e da justiça social. A educação, a opção por um trabalho digno, a assistência à saúde tornaram-se mercadorias de alto preço, juntamente com a alimentação, a moradia, o vestuario, o lazer. Não há como poupar, reservar, armazenar, ou programar para dias melhores. A luta de agora não é para viver e conviver, é muito mais para sobreviver. A idéia mais substancial a nutrir nossos pensamentos não visa apenas a melhores condições de vida, à posse de direitos inalienáveis ou à possibilidade de interagirmos como seres concretos que habitam o mesmo planeta, com problemas e desafios comuns. Afinal, a grande aspiração da enfermagem de nossa época é, ainda, a de poder contar com o recurso de um "estatuto adequado ao reconhecimento universal. Não podemos esquecer que esse estatuto apela tanto à responsabilidade social da enfermeira como a sua principal competência profissional, qual seja a de saber se haver com os problemas de seus clientes. Conseqüentemente, a de poder agir com liberdade profissional e na dependência de valores que interessam à consciência moral e ao projeto ético da profissão. Em outras palavras, tal estatuto possibilitaria, a todos os que militam no âmbito da profissão, a orientação mais acertada quanto aos rumos da prática da enfermagem e a seu destino na face da terra.
Por último, mas não por fim, poderiamos nos perguntar sobre o futuro da enfermagem contemporânea. Eis aí uma outra questão filosófica. Uma boa questão para animar nossa perplexidade e para alimentar nossa capacidade de reflexão. Ou talvez (quem sabe?) uma ótima questão para provocar nossa audácia e impulsionar nosso desejo de construir novidades, empreender mudanças e criar utopias que possam ajudar a reconstruir a realidade da profissão. Uma enfermagem renascida, recriada e fortalecida às expensas de toda mudança, ou a despeito de toda contradição, é tudo o que precisamos, na perspectiva do futuro. E nesse particular, a pergunta que se coloca é:
- O que devemos fazer para assegurar o futuro da profissão?
(Com isso, só nos resta dar asas ao pensamento e mais impulso à inquietação filosófica).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, Esther Lucile - Enfermagem para o Futuro. NewYork/USA: Russell Sage Fundation, 1948. Traduzido por Maria Rosa Souza Pinheiro, Glete de Alcântara, Maria de Lourdes Verderese. Rio de Janeiro: Publicação da Associação Brasileira de Enfermeiras Diplomadas e do Serviço Especial de Saúde Pública, 1949. (Relatório preparado para o Conselho Nacional de Enfermagem dos Estados Unidos).
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