Volume 21, Número 2, Abr/Jun - 2017
PESQUISA
Vivências de mulheres cuidadoras de pessoas idosas dependentes:
orientação de gênero para o cuidado
Edmeia Campos Meira
1
Luciana Araújo dos Reis
1
Lúcia Hisako Takase Gonçalves
2
Vanda Palmarella Rodrigues
1
Rita Radl Philipp
1
1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Vitória da Conquista, BA, Brasil
2 Universidade Federal do Pará. Belém, PA, Brasil
Recebido em 10/07/2016
Aprovado em 13/02/2017
Autor correspondente:
Edmeia Campos Meira
E-mail:
edmeiameira@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Apreender nas lembranças da mulher cuidadora o sentido e o significado das
vivências de relação de cuidado na unidade familial com a pessoa idosa
dependente em contexto de construção social da identidade de gênero
orientado para o cuidado.
MÉTODOS:
Estudo fundamentado na História Oral de Vida com seis mulheres cuidadoras de
famílias com pessoas idosas dependentes, no interior da Bahia, Brasil. As
lembranças, captadas por entrevista gravada e transcrita, compuseram o
corpus de análise.
RESULTADOS:
O papel social de identidade de gênero direciona a mulher na
responsabilização de seus membros familiares dependentes de cuidado, com
sentimentos e valores de obrigação humana e forte influência religiosa. Esse
cuidado favorece ainda as vivências intergeracionais no espaço das relações
familiares com aprendizagens significativas.
CONCLUSÃO:
Urge uma compreensão crítica do papel feminino do cuidado, com incentivo à
educação intergeracional e de gênero que propiciem novas perspectivas para o
cuidado ao idoso dependente.
Palavras-chave: Cuidadores; Relações familiares; Identidade de gênero; Idoso; Saúde da mulher
INTRODUÇÃO
O fenômeno do envelhecimento populacional é uma realidade de dimensão mundial. O acelerado aumento do número de pessoas idosas no Brasil representa um salto na participação relativa desse estrato etário na população: da taxa de 13,7% em 2014, estima-se que chegue a 22,7% em 2050. A predominância do número de mulheres idosas sobre o de homens é outro fenômeno comum observado na dinâmica demográfica mundial. Esse padrão demográfico deu origem ao termo feminização da velhice, que no Brasil já atinge 55,82%.1,2
O panorama demográfico brasileiro, de um país em desenvolvimento, se deve a múltiplos fatores econômicos e socioculturais peculiares que impõem à população envelhecente desafios como os impactos pelas complicações das doenças crônicas e consequente fragilização, levando os idosos à dependência para as atividades de vida diária, tanto de natureza instrumental quanto básica físico-funcional e cognitiva, exigindo apoio para cuidados cotidianos contínuos e, às vezes, prolongados.3-5
Em face de tal realidade, a família se constitui como o locus principal de acolhimento do cuidado de idoso dependente, considerando os valores socioculturais, morais, afetivos e os de responsabilização pelo suprimento de necessidades, como espaço físico, proteção, enfim, cuidados previstos na Política Nacional da Pessoa Idosa e no Estatuto do Idoso.6-9
Desse modo, a família assume a responsabilidade pelo cuidado de seus idosos dependentes e elege um membro familiar para ser o cuidador principal, podendo produzir, ou não, cenário de conflito com dilemas éticos na decisão do poder para o cuidado,10,11 pois essa escolha tanto poderá ser uma obrigação imposta quanto voluntária.
Nessa interação da pessoa idosa com seu cuidador, segundo evidencia a maioria dos estudos, o papel de cuidador principal é assumido pela mulher, um membro da família, embora a abordagem temática use sempre o termo linguístico masculino: o cuidador. Essas mulheres se situam na faixa etária de 18 a 80 anos, na condição principalmente de filha e de cônjuge, mas podendo ser também de neta, da pessoa idosa dependente.10,2,12
A prática das mulheres no exercício do cuidar de membros da família tem raízes históricas. O sentido original do desempenho de papel de cuidadora nas práticas das mulheres, no âmbito familial, se traduziu em diferentes modos de identificação à medida que os tempos evoluíam. Essas práticas começam com a fecundidade e são modeladas pela herança cultural do cuidado a cargo da mulher para prover proteção, nutrição e abrigo para garantir a manutenção e a continuidade da vida do grupo e da espécie.13
Nesse contexto de cuidado, as condições que se relacionam com o gênero, com a convivência e com o parentesco são determinantes frequentes para predizer qual pessoa do núcleo familiar será o cuidador principal. Como já referido, majoritariamente as mulheres assumem o papel de cuidadora principal na família, acumulando a responsabilidade pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos.8,14,15
Desse modo, compreendemos a identidade, que Mead denomina self, como produto da interação social que se desenvolve no processo de aquisição dos papéis sociais na sociedade, onde o sujeito é o ator mais relevante da construção social, que adapta os papéis sociais num contexto de simbolização, interpretação e adaptação à realidade circundante e à sua realidade pessoal identitária. Contudo, esse processo necessita de desenvolvimento concreto dos comportamentos e das expectativas.16
O processo de aquisição da identidade do ser humano é entendido como um processo social de individualização ao longo do tempo no qual o sujeito desenvolve a sua personalidade. Mas será sempre um processo sexuado, isto é, de sua identidade de gênero. O processo de aculturação, ou de socialização primária, inclui aquisição de papéis e significados de gênero como experiências básicas e fundamentais para estabelecer a identidade de gênero.17,18
A condição específica de aprendizagem dos papéis de gênero em contexto de socialização primária em qualquer sistema de estrutura social pode explicar as concepções dos papéis de gênero, masculino e feminino na sua totalidade. A compreensão do gênero por suas identificações, elementos de valor e de relações sociais explicam a complexidade das relações culturais, sociais e políticas, e sua relação com os mecanismos reais de poder que estão presentes em determinado momento histórico da estrutura social da sociedade moderna.15,18
Inserimo-nos na linha epistemológica inovadora de estudo de mulheres e de gênero que enfoca o cuidado e o papel de cuidadora como questão vinculada à identidade de gênero feminino. Analisam-se aqui as lembranças vivenciadas de relação de cuidado na família pela mulher cuidadora de pessoa idosa dependente.
No presente contexto, a identidade de gênero é entendida como uma construção que aponta para os aspectos essenciais da pessoa, como feminino ou masculino, em suas configurações culturais, sociais e psicológicos. Entendemos também que os diferentes aspectos da identidade da pessoa, incluindo o sexual, não se desvinculam de sua identidade de gênero.19,20
O estudo parte da hipótese central de que as vivências em relação ao cuidado se fundamentam especialmente nos aspetos identitários do cuidado que entendem a identidade de gênero feminino predisposto especialmente para o labor do cuidado. Rejeita-se a ideia de que o gênero masculino possa exercer da mesma forma esse labor do cuidado de pessoas dependentes na velhice na família, embora se admita que as mulheres cuidadoras possam vir a faltar nessa tarefa de cuidar, ao sofrer de doenças crônicas, solidão e isolamento social, condições desfavoráveis para o cuidado de pessoa idosa dependente. Por isso, é imprescindível conhecer o atual e real cenário da sociedade, da questão da mulher como condição feminina para cuidar de familiares dependentes, e desenvolver uma compreensão crítica que propicie perspectivas alternativas para o cuidado de pessoas idosas fragilizadas e dependentes de cuidados alheios.
A relevância deste estudo consiste na possibilidade de identificar, por meio das lembranças, como a mulher cuidadora familiar de pessoas idosas dependentes têm vivenciado essa relação de cuidado, como um fenômeno social e cultural específico influenciando e determinando suas condições de vida.
Diante do exposto, apresentamos como questão-problema: Quais são as lembranças de vivências de relação de cuidado na família, da mulher cuidadora de pessoas idosas dependentes, considerando a construção social de identidade de gênero com orientação para o cuidado?
Nessa perspectiva, o presente estudo tem o objetivo de apreender, nas lembranças da mulher cuidadora, o sentido e o significado das vivências de relação de cuidado na unidade familial com a pessoa idosa dependente em contexto de construção social da identidade de gênero orientado para o cuidado.
MÉTODO
Estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa, tendo como suporte teórico-metodológico a História Oral de Vida, que evoca memórias de mulheres em relatos orais, considerando que a trajetória sociocultural é significativa para o registro e posterior análise.21
A História Oral de Vida é um dos tipos de história oral e permite uma visão mais subjetiva das experiências dos depoentes. Assim, é necessário estabelecer limites às experiências individuais e coletivas, definir previamente um grupo de pessoas para constatar a existência de um quadro de memória coletiva na experiência vivida, o qual deverá apresentar o registro de relato integral, singular e organizado de acordo com a intenção do narrador, fazendo emergir fatos relativos à colônia, mas também às situações pessoais da colaboradora.21
Nessa perspectiva, estabelecemos conexões entre os relatos orais de história de vida registrados pelas mulheres cuidadoras, o cuidado em contexto do envelhecimento humano, os processos sociais de construção da identidade de gênero e a condição histórica que as orientam para o cuidado em relações familiares. Nesse sentido, a memória é situada num tempo em que se processam imagens e lembranças em coexistência do passado com o presente e o futuro em relação intersubjetiva.22
Como gênero narrativo, a história oral de vida versa sobre aspectos continuados de longo prazo das experiências das colaboradoras, permitindo sua autoconstrução. Neste estudo, a memória do que compõe a experiência, as lembranças evocadas em permanência e estabilidade concretizadas materialmente por meio da imagem de lembrança pura, são apresentadas por Bérgson no método da intuição validado com precisão filosófica e regras próprias. Tem como objeto de estudo a discussão da ciência e da filosofia diante da realidade que se apresenta; considerando as diferenças de natureza, é qualitativo, heterogêneo na sua multiplicidade do tempo em duração e sua virtualidade, entre a memória e a vida.22
O contexto social do estudo é o domicílio de famílias de mulheres cuidadoras de idosos dependentes, residentes num município do interior da Bahia. As informações demográficas do segundo o Censo 2010, atualizado em 2014 indicam significativo aumento das mulheres na Região Nordeste, a feminização da velhice, exigindo um olhar apropriado para as suas diferenças e para as necessidades biopsicossociais que vivenciam no envelhecimento.1,20
Colaboraram com o estudo mulheres cuidadoras familiares de pessoas idosas dependentes, integrantes de uma Associação de Grupos para a Terceira Idade e que atenderam ao critério de inclusão: a condição de adulta e/ou idosa, com experiência de mais de cinco anos no cuidado de seu familiar idoso dependente, por entendermos que esse recorte temporal possibilita o registro da memória, traduzindo elementos significativos a partir da trajetória sociocultural e histórica no contexto do cuidado. Foram adotados como critérios de exclusão: não morar na mesma residência da pessoa idosa cuidada e não ter laços de parentesco com ela.
A definição da amostra deste estudo qualitativo seguiu as orientações do método de história oral de vida, dando relevância às experiências de cuidado vivenciadas por seis mulheres cuidadoras familiares de pessoas idosas dependentes, que desvelaram suas vivências de cuidado nas entrevistas.
Para apreender a história oral de vida de vivências produzidas em contexto de memória das mulheres cuidadoras, adotamos a técnica de entrevista aberta privilegiando a relação dialógica e seguindo suas etapas, conforme requer o método: pré-entrevista, entrevista e pós-entrevista.21 As colaboradoras foram entrevistadas no seu domicílio, no período entre janeiro e março de 2015. As entrevistas foram registradas em gravador de áudio, com a devida autorização das participantes.
As lembranças apreendidas nas entrevistas foram tratadas segundo o procedimento do método da História Oral de Vida. Esse é o momento da passagem do oral (a gravação) para o escrito (texto da entrevista autorizada pela participante). No presente estudo foi realizado um processo que, aliado às questões éticas que regem essa prática de fazer História Oral, se diferencia dos demais modos de constituir entrevista de Histórias de Vida.21
Os cuidados na transposição do estado da palavra oral para o estado escrito são imprescindíveis e foram realizados em quatro etapas: a)Transcrição - passagem literal do oral para o escrito; b) Textualização - momento em que transliteramos a fala da colaboradora, incluindo sua fala num processo dialógico e textual, deixando o texto fluido e na primeira pessoa; c) Transcrição - aproximação do sentido e intenção original da comunicação do colaborador, que permite as conveniências das dimensões subjetivas; d) Conferência e autorização - momento em que voltamos com o texto final da entrevista transcriada para ser lido e aprovado pela colaboradora. Somente depois dessa etapa temos autorização para divulgar as narrativas; e) Retorno dos relatos orais para a colaboradora com fins de validação e produção do documento final.21
O conteúdo das lembranças foi analisado por meio da técnica de análise de conteúdo, modalidade temática, seguindo três etapas: 1) na pré-análise foi realizada a leitura flutuante do material coletado para constituir o corpus composto de seis entrevistas. 2) Exploramos o material empírico codificando os dados e estabelecendo as unidades de registro, no intuito de encontrar os núcleos de sentido relacionados aos depoimentos que apareciam repetidamente. 3) Por fim, procedemos ao tratamento dos resultados obtidos e sua interpretação, com a finalidade de torná-los significativos e válidos, dos quais emergiram duas categorias.23
O estudo atendeu as normas estabelecidas pela Resolução 466/12, tendo sido submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos - CEP, da Faculdade Independente do Nordeste - FAINOR, que o aprovou em parecer exarado no documento protocolado sob n. 791.570 e CAAE nº 35586614.1.0000.5578. Todas as colaboradoras foram instruídas quanto aos riscos, benefícios e objetivos do estudo, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, que foi por elas lido, achado conforme e assinado. Para garantir o sigilo e preservar sua identidade, as colaboradoras foram denominadas pelo código alfanumérico M1, M2, M3, M4, M5 e M6, segundo a ordem cronológica das entrevistas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Das mulheres participantes do estudo, duas encontravam-se na faixa etária entre 57 e 75 anos, e as outras quatro com idade superior a 75 anos. Em relação à situação conjugal, três eram viúvas, duas casadas e uma solteira. Quanto ao vínculo familiar com o idoso, cinco eram filhas e uma era cônjuge do idoso dependente. Sobre sua situação de saúde e doença, todas referiram sofrer alguma doença crônica e transtornos emocionais, como depressão, ansiedade e alterações no sono, decorrentes do processo de cuidar. No que se refere à ocupação, três eram aposentadas, uma do lar, uma pensionista e uma servidora pública.
Do corpus constituído das lembranças obtidas em relatos orais de história de vida dessas seis mulheres colaboradoras do estudo, com a devida análise e interpretação na perspectiva da construção social de identidade de gênero orientada para o cuidado, emergiram duas categorias: Significados identificados pela mulher cuidadora - sentimentos e valores sobre o ato de cuidar de pessoa idosa dependente; e Sentidos da experiência do ato de cuidar - o cuidado na família se desenvolve em interação social entre diferentes gerações.
a) Significados atribuídos pela mulher cuidadora - sentimentos e valores sobre o ato de cuidar de pessoa idosa dependente
Os significados atribuídos pelas mulheres ao cuidar de pessoa idosa dependente são constituídos de sentimentos relevantes para a sobrevivência humana e representam condição de responsabilidade, ocupação e envolvimento afetivo, em relações subjetivas permeadas de símbolos significantes, que, em interação, contribuem para a construção de identidade. Apesar de a questão de gênero não ser seu foco principal, a pesquisa destacou a figura feminina assumindo as ações primárias de cuidar de familiares. Vejamos alguns relatos das entrevistadas.
[...] O cuidado é doação/amor, humanidade para com a minha mãe, mesmo tendo as minhas limitações físicas [...] (M4).
[...] é você poder se aproximar, dar amor que a pessoa está necessitando, que você acolha, compreenda, que você vai se doar para ela, ou para ele [...] (M2).
[...] é o ato de amor pela pessoa, é obrigação da gente, é obrigação do filho cuidar da mãe. Amor e obrigação [...] (M5).
[...] é minha obrigação, eu não posso renunciar a isso agora [...] (M3).
Indo mais além na compreensão dos sentimentos que norteiam o cuidado, uma mulher cuidadora afirmou que a responsabilidade pelo cuidado do seu familiar não foi planejada para a sua vida, tampouco se identificava com essa forma de assumir tarefas e papéis sem planejamento.
[...] então, não foi uma coisa que eu planejei cuidar de idoso, nem estava nos meus planos, não é assim que eu gosto que venha pra mim. Tive a sorte de esses idosos virem pra mim, foram ficando na minha responsabilidade, e aí eu tomo conta [...] (M1).
Nesse sentido, identificamos uma construção social de identidade de gênero para o cuidado que atualiza o presente em coexistência com o passado, de uma realidade familiar que define novo padrão de relações sociais e também impõe desafios ao padrão de atribuições no processo de cuidar.22,24,25
Na perspectiva de identidade de gênero feminina, o cuidado nos relatos de história de vida dessas mulheres identifica orientação sociocultural significativa e, com isso, o potencial e valor baseado nas diferenças características dos papéis de ambos os sexos, responsabilizam de modo especial as mulheres pelo cuidado humano.20
Como elementos de definição atual da identidade de gênero, questionamos as mulheres colaboradoras sobre o que significa o ato de cuidar considerando a sua história de família. Em experiências vivenciadas pelas mulheres, o ato de cuidar do familiar idoso dependente representa um significativo sentimento de amor materno, com o cumprimento de uma obrigação humana constituída em história de vida permeada de obediência a preceitos religiosos de dever filial e gratidão, aprendida ao longo da vida em interações simbólicas significativas de relações familiares.
Desse modo, constatamos como a orientação do cuidado impregna a identidade de gênero das mulheres cuidadoras e condiciona seu papel com os familiares idosos dependentes, inclusive sofrendo estresse, doenças, isolamento social e solidão, entre outros, conforme já foi constatado em estudos anteriores.5,2
Os relatos de vida das mulheres colaboradoras permitem identificar o sentimento de cuidado revestido de amor que, como ação simbólica incondicional, amplia-se numa atitude de doação, dedicação e abdicação de si mesma com compaixão desinteressada, sentimentos esses corroborados em outros estudos.26 Nas relações de cuidado vivenciadas, as mulheres internalizam processos de autoconstrução e individualização, com identificação simbólica em relações familiares de afeto e valorização enquanto ser feminino.17,19
O cuidado desempenhado por mulheres à pessoa idosa dependente revestido de sentimentos de amor e obrigação provém dos aspetos identitários do cuidado e da valorização de capacidade subjetiva enquanto ser humano mulher. Isso se coaduna com estudos que tratam dessa relação familiar, a qual permite que a mulher, por meio de suas lembranças, atualize no presente realizações interpessoais de cuidado dedicado e constante, com novos conhecimentos e capacidades potencializadas no embate dos desafios do cotidiano.20,22,27,28,4,12 A identidade de gênero feminino se define pelo contexto cultural de história de vida de socialização de relações familiares e, posterior processo de individualização e identificação da mulher no cumprimento de um dever, uma obrigação que permite uma relação de apego à pessoa sob seus cuidados.29
Enquanto construção social de identidade de gênero, o cuidado à pessoa idosa dependente se fortalece por ser considerado como responsabilidade religiosa.
[...] minha devoção a Nossa Senhora de Fátima entra nessa história, na revelação do sonho, porque é ela que me leva a revelação de amar, multiplicar o amor pela mãe [...] (M2).
O cuidado desempenhado pela mulher se sustenta pela religiosidade com sentimentos de amor, doação e resignação nos enfrentamentos próprios do cotidiano do cuidar de um idoso dependente. Com identificação no modelo feminino religioso, é um poder advindo da espiritualidade, de uma crença em que a fé emerge como fonte de energia, esperança e confiança num poder inspirado na crença numa divindade, buscando ajuda e conforto para o ato de cuidar, mas sob a ótica do papel social feminino com identificação.30
Além dos sentimentos relatados, a mulher identifica o valor do papel de cuidar de outrem como uma oportunidade de aprendizagem por trocas mútuas de saberes, por reconhecer como sujeito de direitos uns dos outros. E, por respeitar as relações entre as pessoas, fortalecendo o caráter humanístico, esse cuidado se reveste de uma responsabilidade com compromisso e envolvimento:
[...] a gente adquire muita experiência; tem horas que o próprio idoso está ensinando a gente, às vezes a gente só tá cuidando dele [...] já sou idosa, mas tenho minha tia que é mais idosa que eu, mas ela tem coisas para me ensinar. O valor de ensinar é um valor [...] (M1).
[...] eu me sinto muito valorizada, muito importante nesse contexto de cuidar, porque você aprende muita coisa, é uma escola para você [...]. (M6).
A relação humana estabelecida entre a mulher que cuida e o idoso que recebe o cuidado reveste-se da própria natureza feminina da orientação do cuidado como elemento substantivo da identidade de gênero feminino, com perfil de responsabilidade, sensibilidade e possibilidade de adaptação, permitindo a potencialização dos relacionamentos, em que a mulher se comporta com uma fidelidade para consigo e para com os outros, priorizando os seus sentimentos e pensamentos, de modo a não escondê-los de si nem de quem lhe é mais íntimo. Assim, pode tornar-se uma âncora escolhida por vontade própria para a integridade pessoal e competência para o cuidar19,20 e tendo o exercício ético como uma virtude humana.26
Em seus relatos, as mulheres deixaram também transparecer o desejo de serem reconhecidas pelo que fazem:
[...] o maior valor mesmo é a própria vida que nos dá toda essa oportunidade, dentro dessa própria vida que a gente lida, ela vem trazendo tudo isso, a saúde, a doença, a perda, os ganhos, as conquistas, as decepções, as derrotas, as vitórias [...] (M2).
[...] porque estou cuidando e sei que eu estou dando o melhor de mim, sem contar que tenho falhas também [...] (M3).
Das vivências e sentimentos apresentados, emerge a necessidade de valorização por parte dos profissionais de saúde, especialmente da enfermeira, quanto à existência de um cuidado familial construído ao longo da vida social de papel identitários de gênero feminino, permeado de sentimentos humanos. Essa construção exige compreensão crítica com olhares sobre a diferença de gênero, os valores diferentes na perspectiva sociocultural, porém, livre de atribuição de domínio do homem sobre a mulher.20
Desse modo, a orientação do cuidado para a identidade de gênero das mulheres cuidadoras é imprescindível para o trabalho de atenção à vida e saúde de idosos fragilizados e dependentes de cuidados, pois se trata de questão fundamental da vida humana, sendo significativo tanto para a pessoa que recebe o cuidado, como para a própria pessoa que cuida. Ademais, a pessoa cuidadora, quando vivencia condição de sobrecarga ou de complexidade do cuidado, pode ser acometida de estresse e doenças, sofrer isolamento social e solidão, exigir tratamento e cuidados, condição essa que na maioria das vezes é subnotificada. Em tal situação, a mulher cuidadora responsável pelo cuidado de outrem corre o risco de transformar o espaço de cuidado em espaço de negligência e maus tratos, instalando-se a violência intrafamiliar.31
b) Sentidos da experiência do ato de cuidar: o cuidado na família se desenvolvendo entre gerações
É no espaço das relações familiares que estão presentes as diferentes gerações em coabitação permitindo o desenvolvimento de encontro de memórias em coexistência do tempo passado com o do tempo presente e aprendizagens recíprocas de papéis socioculturais por convívio e troca de valores significativos que determinam comportamentos que repercutem no cuidado:12,31,32,22
[...] é de todos nós que somos da família, em conjunto, porque se eu tivesse esse tanto de irmã e estivesse sozinha eu estava revoltada [...] (M3).
[...] o mais velho sempre fica para cuidar dos mais novos. Sempre a responsabilidade cai mais pra um. É sempre assim [...] (M1).
A responsabilidade de cuidar da pessoa idosa dependente em convivência familiar ainda recai prioritariamente sobre a mulher, sendo filha ou cônjuge, a que tem mais idade e esteve mais próxima na coabitação em espaço doméstico. Na concepção de "trabalho de mulher" para o cuidado intrafamiliar persiste a "ordem simbólica da mãe" constituída em história de vida entre mãe e filha, tornando natural e espontânea uma construção social de identidade de gênero.32,33 Essas mulheres (filha ou cônjuge) se apropriam da responsabilidade de um cuidado complexo, ancoradas no papel social tradicional de identidade de gênero feminino, embora compreendam que esse cuidar deveria ser também de todos da família, conforme sugerem em seus relatos.
O sentido do cuidado em relações familiares em contexto de coabitação entre diferentes gerações caracteriza trocas de aprendizagem de papéis socioculturais de identidade de gênero, que persiste na memória de coexistência, em que a ordem do feminino, aliado à sua natureza sociocultural, perpetua para o amanhã, garantindo à mulher a condição de diferença e prioridade para o cuidado diante do sexo masculino.22,19,20,8
A condição de ser filha e cuidadora, constituída nas relações socioculturais de poder, define a mulher subalterna à ordem simbólica das relações familiares. Ela exerce um cuidado com sentimentos virtuosos, mas vivencia condição de opressão com marcas da desigualdade de gênero caracterizada por sobrecarga e risco de adoecer, além de situações de vulnerabilidade ao equilíbrio da saúde.30
Portanto, urge reposicionar a mulher na família da pessoa idosa dependente, com atitude de empoderamento diante das tomadas de decisão no desempenho desse cuidado, tendo em vista o direito de cuidar e viver com dignidade19,20 essas relações que são também permeadas por sentimentos virtuosos de amor, obediência e gratidão18 e que valoriza a vida em família. Em outras palavras, é necessário repensar para os tempos atuais de sociedade em processo de superenvelhecimento,5,11 com estratégias alternativas de cuidado de outrem em contexto familial, aprofundando reflexões sobre identificação de gênero aberto e flexível para o cuidado de pessoas idosas dependentes, com o intuito de incorporar o homem em coparticipação com a mulher na tarefa do cuidado humano.
Considerando as vivências relatadas pelas mulheres cuidadoras, é importante enfatizar e mostrar aos profissionais de saúde, mormente às enfermeiras, o valor da mulher como ser feminino e sua capacidade de cuidar17,20 que orienta ou não a mulher para o cuidado da família. Desse modo, promover a desconstrução sociocultural dos estereótipos de gênero para o cuidado ao idoso dependente, garantindo à mulher seus direitos e respeitando diferenças biopsicossociais em contexto familial e societário.
A convivência multigeracional apreende uma realidade de convivência com o diferente, em situações extremas de necessidade de cuidados de outrem, que conduzirá inevitavelmente a um legado de aprendizagem para o futuro com atribuição e execução de novos papéis normatizados em identidade social de gênero:
[...] tem que pensar também no dia de amanhã, quando um dia também vai precisar. Eu nunca quero, se eu chegar à idade mais do que eu estou e eu depender de alguém, que alguém fale e diga assim: - Mas a tia quando cuidava dos outros, não fazia desse jeito, agora porque que quer que a gente cuide bem? - Eu quero que alguém que me acompanhou no cuidado com eles diga: - Não, ela cuidou bem, ela tomava conta, ela não maltratava [...] (M1).
[...] o meu neto também me ajudava com a minha mãe, me ajudava a dar comida, cantava com ela, rezava com ela, pra ver se ela ficava mais calma pra eu conseguir dar alimentação com a mamadeira pra ela não engasgar, ele ia alisando ela pra acalmá-la, então, isso também é uma forma de cuidar que ele aprendeu. Às vezes, na hora do banho, ele ajudava, empurrava a cadeira com ela; então é uma forma também de contribuir [...] (M6).
As mulheres que vivenciam a experiência de cuidado na família designam as próprias filhas para assumir a responsabilidade de atender as necessidades da pessoa idosa dependente, isto é, a própria condição feminina vivenciada no contexto familiar faz com que as mulheres respondam e assumam o cuidado de outrem em suas necessidades. Embora a eleição para o cuidado e o desempenho do papel de cuidar da pessoa idosa recaia sobre filhas e esposas, observamos, em tempos atuais, quando a longevidade se estende, muitas cuidadoras são mulheres idosas cuidando de outros idosos.3,10,12
Os achados da literatura indicam que os cuidadores que mais se responsabilizavam pelo cuidado direto ao idoso e, portanto, os que mais estavam expostos às condições adversas do cuidar, foram predominantemente mulheres e com idade mais avançada.8
Tal situação emergente está a carecer revisão do papel social na família, para além do papel tão somente de gênero feminino. Esse cuidado de outrem, mais idoso e fragilizado, se constitui ação em construção histórica sociodemográfica, que requer comportamento ético e moral dos recursos humanos, familiares ou não, para um cuidado humano condigno àqueles que necessitam.3,10,12
Os relatos das mulheres cuidadoras demonstram, na medida em que se sentem envelhecendo e tomando o lugar dos idosos, que os filhos, como descendentes e mais jovens, devem cuidar daqueles que os criaram e educaram para a vida:
[...] a gente tem filhos, cria eles, educa, prepara para o mundo, e quando a gente já não tem condição de se preparar pra nada, nem de fazer nada, é os filhos que têm que cuidar, a responsabilidade é dos filhos [...] (M1).
[...] com certeza, deve ser dos filhos, absoluta! [...] (M4).
[...] seria dos filhos, nós, filhos. Em primeiro lugar, devem ser os filhos que têm obrigação moral de cuidar dos pais idosos e doentes [...] (M5).
[...] é o filho, o filho é a pessoa mais certa para cuidar, porque ela tem toda uma afinidade com aquele ser que ela criou que saiu de dentro dela, então eu acho que o principal é o filho que tem de cuidar com carinho [...] (M6).
A relação de cuidado em face das transformações que se operam na sociedade humana poderá e deverá ser continuamente repensada com base em aproximação e flexibilização na redefinição das identidades de gênero por meio do reconhecimento do outro, do diferente, das mudanças societais, em processo de compreensão e deciframento.19,20
O estudo tem a limitação de suas informações dada a pequena extensão da amostra como também do contexto geográfico único definido, que torna necessários mais estudos de realidades sociais diversas que permitam atualizações de memória, com predisposição criadora, na perspectiva de um novo tempo do viver/envelhecer de ambos os gêneros: o homem e a mulher.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Das categorias temáticas emergidas, podemos destacar o reconhecimento do fator identitário de gênero que habilita a mulher a responsabilizar-se pelo cuidado familial, induzindo os profissionais de saúde pela importância da mulher na assistência da família com pessoa idosa dependente. A memória de mulheres cuidadoras permite-nos deduzir que a relação de cuidado na família de pessoa idosa dependente é constituída em contexto sócio- histórico com atributos morais e religiosos que interagem simbolicamente na aprendizagem de papéis sociais com direcionamento para o gênero feminino, o que contribui para dar à mulher resiliência nas exigências da tarefa de cuidar de outrem. O processo de aprendizagem primária nas relações familiares ainda é permeado pela herança histórico-cultural presente na convivência multigeracional, na qual a divisão sexual para o cuidado doméstico-familial é fortalecida pela atitude das pessoas idosas de preferir ser cuidadas por mulheres.
Nesta perspectiva, se faz necessário uma compreensão crítica do papel feminino do cuidado, com incentivo à educação intergeracional e de gênero que propiciem novas perspectivas para o cuidado ao idoso dependente por parte da família e dos profissionais de saúde. Reconhecemos como limitações do estudo o número reduzido e específico de participantes para a pesquisa. Diante da complexidade do fenômeno investigado, ressaltamos a importância da realização de novas pesquisas sobre este assunto, ampliando o número de participantes, bem como as discussões, promoção e implantação de políticas públicas sociais, de saúde e psicológicas, que permitam uma melhor qualidade de vida para os idosos dependentes e seus familiares cuidadores.
REFERÊNCIAS