Volume 21, Número 2, Abr/Jun - 2017
PESQUISA
Cuidado centrado na família em unidades emergenciais:
percepção de enfermeiros e médicos brasileiros
Mayckel da Silva Barreto
1
Guilherme Oliveira de Arruda
1
Cristina Garcia-Vivar
2
Sonia Silva Marcon
1
1 Universidade Estadual de Maringá. Maringá, PR, Brasil
2 Universidad de Navarra. Pamplona, Navarra, Espanha
Recebido em 24/03/2016
Aprovado em 09/11/2016
Autor correspondente:
Mayckel da Silva Barreto
E-mail: mayckelbar@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Conhecer a percepção de médicos e enfermeiros atuantes em Unidades de Pronto
Atendimento (UPA) sobre o Cuidado Centrado na Família (CCF).
MÉTODOS:
Estudo descritivo de abordagem qualitativa realizado em duas unidades
emergenciais no Sul do Brasil. Participaram 32 profissionais de saúde, cujas
falas foram gravadas, transcritas e submetidas à Análise de Conteúdo,
modalidade temática.
RESULTADOS:
A maioria dos entrevistados desconhecia o CCF, entretanto, percebia-o como
uma prática que valoriza a presença da família e permite sua inserção no
cuidado. Muitos acreditavam ser difícil a implementação do CCF nas UPA
brasileiras, em decorrência do despreparo profissional sobre o tema, do alto
fluxo e da rotatividade dos pacientes, do diminuto espaço físico e do perfil
sociocultural da população atendida.
CONCLUSÃO:
É premente a discussão deste referencial de cuidado junto a gestores e
profissionais, a fim de que, paulatinamente, e na medida de suas
possibilidades, se amplie o cuidado às famílias nas unidades
emergenciais.
Palavras-chave: Família; Serviços Médicos de Emergência; Pessoal de Saúde; Relações profissional-família
INTRODUÇÃO
O Cuidado Centrado na Família (CCF) é uma abordagem inovadora para o planejamento, execução e avaliação da assistência à saúde, cujo sustentáculo é a parceria que beneficia, mutuamente, pacientes, famílias e prestadores de serviços de saúde.1 Sua aplicação se destina a pacientes de todas as idades e pode ser praticado em qualquer ambiente de cuidados à saúde, inclusive nas unidades de emergência.2,3 Ao se reconhecer a importância da família na vida do paciente, permite-se que ela auxilie a modular as políticas e programas de saúde governamentais, a elaborar de projetos institucionais, normas e rotinas; a avaliar os cuidados de saúde; e a maneira como é direcionada a interação cotidiana entre profissionais, pacientes e familiares.1
Os profissionais de saúde, que desempenham, em sua prática, cuidados centrados na família, reconhecem o papel vital do núcleo familiar na manutenção da saúde e do bem-estar de seus membros. Ao fazer uso dessa abordagem são respeitados os valores socioculturais, as forças inatas e os pontos fortes das famílias. Então, a experiência de cuidar passa a ser entendida como uma oportunidade para construir relações de confiança entre profissional-família, e para apoiá-la na prestação de cuidados e na tomada de decisão, inclusive em situações adversas, nas quais o paciente se encontra gravemente enfermo.4
No Brasil, para o atendimento de casos clínicos agudos e/ou graves, a porta de entrada no Sistema Único de Saúde (SUS) é a Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Tais unidades não apresentam como referencial para a assistência o CCF, mesmo que estudos já tenham apontado que essa abordagem convirja para a maior segurança do paciente5 e diminua o período de permanência na unidade de saúde e o risco de complicações durante a estadia.6 Para a família, com essas ações potencializa-se a oferta e o recebimento de informações em tempo oportuno7 e se reduzem as chances de desenvolvimento de transtorno do estresse pós-traumático naqueles que acompanham procedimentos invasivos e manobras de ressuscitação cardiopulmonar.8
A maioria das evidências científicas e dos relatos de aplicação do CCF está relacionada à saúde da criança4,9 e ao regime de internação hospitalar,6 sobretudo em decorrência do planejamento e da implementação do CCF terem sido iniciados em unidades de internação pediátrica. A recente consideração do CCF para a população adulta e idosa, em especial nas situações críticas e emergenciais, teve início com a crescente difusão do entendimento de que a família constitui unidade de interação social básica e, por isso, é o principal educador e suporte, independente da idade do paciente e do local de prestação da assistência,5 tornando-se inconcebível o não reconhecimento do contexto familiar no tratamento instituído.
Estudos realizados em diferentes países - França,8 Canadá,10 Irlanda11 e Estados Unidos12 - revelaram que profissionais atuantes em unidades de emergência, ainda que reconhecessem a existência de diversos desafios para a implementação do CCF, percebiam-no como um propulsor da qualificação do atendimento aos pacientes graves e humanizava a assistência.8,10-12 No contexto brasileiro, o CCF é ainda bastante incipiente, não tendo sido implementado nos serviços de saúde e tampouco discutido na formação profissional. Isto suscita o seguinte questionamento: Qual a percepção que médicos e enfermeiros brasileiros atuantes em unidades emergenciais possuem sobre o CCF?
Nessa perspectiva, acredita-se que identificar a percepção e o nível de entendimento de médicos e enfermeiros brasileiros sobre o CCF possibilita a elaboração de políticas institucionais que estabeleçam critérios, diretrizes e normas para a inserção da família durante os atendimentos emergenciais neste país, o que facilitaria a sua aplicabilidade por oferecer maior segurança à prática profissional. Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi conhecer a percepção de médicos e enfermeiros atuantes em Unidades de Pronto Atendimento (UPA) sobre o Cuidado Centrado na Família (CCF).
MÉTODOS
Investigação descritiva, com abordagem qualitativa. As duas unidades emergenciais, sedes deste estudo, localizadas no Sul do Brasil, funcionam de maneira ininterrupta. Cada unidade possui 24 enfermeiros e 16 médicos para o atendimento diário médio de 400 pacientes. Todos os profissionais eram potenciais participantes da investigação.
O critério de inclusão foi: ser médico ou enfermeiro atuante nas UPA, e o de exclusão abarcou: aqueles que estavam de licença maternidade (uma enfermeira), de férias (dois enfermeiros e dois médicos) ou amparados por atestado médico no período de coleta de dados (um médico e um enfermeiro). Destaca-se que quatro profissionais abordados (um enfermeiro e três médicos) não aceitaram participar do estudo.
A coleta de dados ocorreu em janeiro de 2015. As entrevistas abertas, realizadas com 11 médicos e 21 enfermeiros, incluindo profissionais dos diferentes turnos de trabalho, foram áudio-gravadas. O local utilizado para a entrevista foi a própria instituição, realizada em sala privativa a fim de se permitir que os participantes pudessem se expressar livremente. Os dados foram coletados mediante perguntas de apoio relacionadas ao tema da entrevista, as quais foram especialmente úteis quando os entrevistados, por distintos motivos, divagavam e se distanciavam das seguintes questões norteadoras do estudo: Você conhece o Cuidado Centrado na Família? Em caso de resposta afirmativa, questionava-se: O que você pensa sobre isso? E em caso de resposta negativa: O que você pensa ser o Cuidado Centrado na Família? Como questões de apoio utilizaram-se, por exemplo: Você acredita ser possível realizar cuidados centrados na família em Unidades de Pronto Atendimento? E, você realiza, em sua prática assistencial, cuidados centrados na família dos pacientes?
As entrevistas foram realizadas durante o turno de trabalho dos participantes, tiveram duração média de 35 minutos, variando de 17 a 45 minutos e ocorreram até que novas informações não eram relatadas, tendo-se alcançado o objetivo proposto.
Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, modalidade temática,13 seguindo-se as etapas preestabelecidas pelo referencial que incluíram a pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados. Na pré-análise fez-se a organização, transcrição e separação do conjunto de dados. Em seguida realizou-se a leitura flutuante do material empírico com identificação inicial de aspectos relevantes a partir do objetivo do estudo. Na exploração do material foi feita a classificação e a agregação dos dados a partir de um processo minucioso de leitura, com identificação, por meio de cores, dos termos comuns e dos mais específicos, dando origem às categorias prévias. Por fim, no tratamento dos dados, aprofundaram-se as categorias mediante a articulação dos achados empíricos com o material teórico, considerando-se, constantemente, o objetivo da investigação e os temas emergentes do processo analítico.
Esse minucioso e exaustivo processo de análise dos dados gerou duas categorias temáticas: (Des)conhecimento dos profissionais de saúde acerca do CCF; e Possibilidades e limitações para a implementação do CCF nas UPA.
Para imprimir rigor metodológico neste estudo as entrevistas foram áudio-gravadas e realizadas por dois pesquisadores experientes em coleta de dados qualitativos, propiciando a não polarização tendenciosa das informações obtidas.14 Em seguida, a análise e a interpretação dos dados também foram conduzidas por dois pesquisadores, de maneira independente, os quais pautaram-se no exercício da reflexividade, em que as suposições prévias foram reconhecidas e deixadas em suspensão.15 Isso foi necessário, principalmente pelo fato de os pesquisadores já terem trabalhado em unidades emergenciais. Durante a análise, quando havia incongruências, a equipe de investigadores se reunia e discutia o processo analítico e interpretativo dos dados, chegando a um consenso. Por fim, confiabilidade e confirmabilidade foram asseguradas por se manter uma trilha de auditoria, garantindo-se que toda a documentação pertinente e de apoio (notas de campo, reflexivas e analíticas) estivesse disponível para consultas futuras.15
O estudo foi desenvolvido em consonância com as diretrizes disciplinadas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi apreciado e autorizado pelo Centro de Capacitação Permanente em Saúde (CECAPS) da Secretaria Municipal de Saúde e aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (COPEP) institucional, sob CAAE: 37231414.4.0000.0104, e Parecer nº 879783.
RESULTADOS
Participaram do estudo 11 médicos e 21 enfermeiros, com idade que variou de 25 a 57 anos (média de 34,4 anos). A maioria era do sexo feminino (21), de cor branca (22), possuía pós-graduação (24) e atuava há mais de um ano na unidade emergencial (23), com experiência profissional variando de seis meses a 15 anos (média de 38,5 meses de atuação).
(Des)conhecimento dos profissionais de saúde acerca do CCF
Nesta categoria pode-se observar que grande parte dos profissionais não conhecia o CCF. Aqueles que referiram conhecer tal denominação demonstraram um entendimento bastante superficial sobre o tema. Assim, as falas, em sua maioria, se limitaram a associar o CCF com a humanização da assistência:
Não, nunca ouvi falar nesse CCF, mas acho que pode ser uma forma de humanização nesse momento de assistência emergencial (Enfermeiro 01).
Não conheço esse CCF, mas deve ser alguma coisa no sentido de dar atenção e valorizar a família do paciente para prestar o atendimento mais humanizado (Médico 06).
Outros profissionais, por sua vez, acreditavam que o CCF constitui-se em uma forma de se pensar e incluir a família no cuidado técnico direto ao paciente.
Para dizer bem a verdade, nunca ouvi falar no CCF, mas acredito que seja algo no sentido de se pensar e inserir o familiar para fazer parte dos cuidados (Enfermeiro 09).
Deve ser a família participando do cuidado, das técnicas, essas coisas [fala com desdém] (Médico 05).
Outros entrevistados, mesmo não conhecendo essa filosofia de cuidado, revelaram uma percepção mais ampliada sobre o tema, destacando a informação partilhada com a família, o apoio psicológico, e fizeram menção à presença da família nos momentos de procedimentos emergenciais, como elementos ou formas de CCF:
Sobre o CCF, já ouvi falar, mas só na faculdade. É uma coisa muito distante de nós, da nossa realidade. Eu não me lembro de muita coisa, o que posso dizer é que se deve considerar as opiniões dos familiares. As condutas que você tem que tomar, tem que estar informando à família, coisas desse tipo. Até mesmo a presença da família nos procedimentos, desde uma simples punção venosa [periférica] até as manobras de ressuscitação (Médico 01).
Eu entendo que no CCF, a gente, enquanto profissional de saúde, oferece um apoio emocional, tenta compreender o contexto que a família vive, essas coisas (Enfermeiro 06).
Houve entrevistados que acreditavam ser esta uma abordagem que considera a constância da família na vida de seus membros e que, por isso, é necessário recebê-la e ampará-la nos diferentes níveis assistenciais, inclusive nos momentos finais da vida de um ente querido, pois para distintas crenças isso pode ser valoroso.
Não conheço o CCF. Penso que seja algo que envolva a oferta de amparo nos momentos finais do ente querido, alguns familiares gostariam de saber como foram os minutos finais do paciente, porque é importante para a crença religiosa dele (Médico 11).
Eu acho que seria você visualizar o paciente como um todo, no sentido de que ele tem uma família e essa família precisa participar do atendimento, porque ela é parte da vida do paciente e quanto mais a família está presente, melhor é o atendimento. Não só em uma patologia grave, na hora de uma emergência, mas também antes, no atendimento de unidade básica de saúde, porque quando a família é participativa e esclarecida, fica mais fácil de o profissional trabalhar com ela (Enfermeiro 10).
A percepção e o entendimento dos profissionais, ainda que limitados quanto aos aspectos filosóficos e práticos do CCF, abre espaço para possibilidades de implantação dessa abordagem em diferentes instituições de saúde e tipos de atendimento, sendo que os próprios profissionais de saúde apontam as possibilidades, embora também existam posicionamentos contrários.
Possibilidades e limitações para a implementação do CCF nas UPA
Mesmo sem um conhecimento aprofundado sobre o CCF, alguns profissionais revelaram que essa filosofia assistencial poderia ser empregada nas UPA brasileiras, de preferência, iniciando-se pelos atendimentos menos complexos e, paulatinamente, evoluindo para os atendimentos de casos mais graves.
Eu acho que cabe completamente esse CCF no atendimento de uma UPA. Você começa com um menor grau de complexidade nos procedimentos e, aos poucos, vai inserindo a família mais e mais. Claro que é possível (Enfermeiro 01).
Sempre é possível se melhorar o atendimento, até mesmo nas unidades emergenciais. Se sabemos que a presença da família colabora no tratamento, porque não tentar instituir em uma UPA? (Enfermeiro 10).
É importante destacar que alguns enfermeiros relataram que o CCF, caso implantado como filosofia de cuidado nas UPA, despertaria resistência por parte dos médicos.
Eu acho que na verdade, é uma falta de hábito mesmo, de você convidar o familiar para participar dos procedimentos. E outra coisa é que aqui, a equipe médica é resistente. A enfermagem seria até mais fácil de você convencer a ter esse tipo de atitude; agora, a equipe médica é difícil! Os médicos falam que "é para a gente tirar a plateia" (Enfermeiro 17).
No plano teórico pode até ser que o CCF possa ser instituído nas UPA, mas o difícil seria implantar na realidade, porque os profissionais de saúde irão apresentar muita resistência. Os médicos iriam dizer que tem que pensar primeiro no paciente, e que a família, muitas vezes, pode atrapalhar, ao invés de colaborar (Enfermeiro 02).
De fato, a maior parte dos profissionais que revelou a impossibilidade de implementação do CCF nas UPA era composta por médicos. Entre as razões apontadas, estavam: baixo nível sociocultural da população que é atendida; pouco entendimento dos familiares acerca das rotinas da unidade, necessidade de centrar a atenção somente no paciente, alta demanda de pacientes no serviço e falta de tempo para estar com a família, ficando evidente que para alguns profissionais o CCF é passível de aplicação apenas na Atenção Primária à Saúde, nos casos de pacientes com doenças crônicas.
Esse tal de CCF dá mais certo no exterior. No Brasil, e principalmente nas UPA, é bem complicado, porque o nível social, econômico e cultural dos nossos pacientes é muito baixo (Enfermeiro 11).
Não há tempo para ficar dando explicações. O foco é no paciente, em salvar aquela vida. Esse negócio de se pensar na família deve ficar mais restrito na área da saúde pública, lá para o médico da família, onde ele tem tempo de atender com mais tranquilidade, fazer visita domiciliar, olhar todo o entorno e considerar a família no tratamento do indivíduo com doença crônica (Médico 03).
Aqui na UPA não tem como colocar CCF, é tudo muito rápido, tem muita gente, o fluxo de pacientes é muito intenso, isso aqui vive lotado! [...] Lugar de família é aguardando do lado de fora (Médico 05).
Mesmo acreditando que o CCF não possa ser implantado nas UPA do Brasil, ou ao menos é algo distante de nossa realidade, alguns entrevistados demonstraram preocupação com melhorias que poderiam ser empregadas para facilitar a presença da família no espaço de cuidado emergencial, por exemplo, aumentar o horário de visitas ao paciente na sala de emergência.
A visita na sala de emergência é só uma vez ao dia, por um período de 30 minutos e eu sinto falta que a família entre mais vezes! Então, essa rotina de permitir a entrada apenas uma vez no dia eu acho pouco. Nisso fica falho (Enfermeiro 08).
Também foram relatadas estratégias que precisam ser discutidas e implementadas para a melhoria da estrutura física com o intuito de se receber a família. E, ainda, a qualificação dos profissionais para atuarem e intervirem junto a família a fim de atender suas principais demandas, pois as atuais condições estruturais, organizativas e formativas não permitem que o CCF seja realizado de maneira adequada.
A gente teria que sentar os profissionais com a direção da unidade, e discutir esse tipo de cuidado, inclusive a questão do espaço, porque, querendo ou não, na UPA não deveriam os pacientes ficar por muito tempo. Por isso, não temos infraestrutura para receber a família. Também um preparo melhor dos profissionais de saúde para essa nova forma de se trazer a família, de se interagir com ela. Porque, como isso, pelo menos para mim, é muito novo, eu acredito que nós precisaríamos de uma reciclagem, para aprender a lidar com a família de modo diferente do que é feito hoje (Enfermeiro 10).
Acho que é algo que em algum momento vai acontecer, até mesmo por questões de evolução de atendimento. Cada vez mais a família participando mais do atendimento de seus membros. Mas, eu acho que a gente vai precisar de um preparo profissional maior (Enfermeiro 13).
Em síntese, mesmo que alguns entrevistados acreditassem ser difícil implementar o CCF nas UPA, houve muitos relatos que apontavam aspectos a serem melhorados. Os entrevistados reconheceram a necessidade emergente de adaptação do espaço físico, da equipe de saúde e da organização do serviço para melhor acolher e integrar as famílias aos cuidados nas unidades emergenciais.
DISCUSSÃO
Frente à detecção do desconhecimento por parte dos profissionais entrevistados acerca do CCF, ressalta-se que, de fato, essa é uma filosofia de cuidado em saúde recente, elaborada na realidade de um país desenvolvido, com caráter inovador, e ainda insuficientemente abordada e discutida na formação de médicos e enfermeiros no Brasil. Ademais, é relevante destacar que no cenário da investigação brasileira, sobretudo em relação à população adulta atendida em unidades emergenciais, essa temática segue sendo emergente. Acredita-se que essas sejam as principais razões para que as percepções dos entrevistados sejam dedutivas e superficiais.
Em outros contextos internacionais, o CCF em unidades de emergência, há mais de quinze anos, vem sendo discutido, implementado e avaliado sistematicamente, como é o caso dos Estados Unidos da América.2,3 Naquela realidade as evidências sugerem que as unidades estão integradas aos princípios do CCF, ainda que o nível de conhecimento dos profissionais possa variar de acordo com as competências específicas de cada serviço ou mesmo com a presença de programas de formação continuada.2 Igualmente, apontam a relevância da avaliação dos serviços que praticam o CCF para a manutenção desta filosofia de cuidado nas unidades. O intuito é identificar os pontos fortes e fracos, o que permite melhorias na assistência a partir das sugestões apontadas pelos pacientes e seus familiares.3
Nesse sentido, há que se ressaltar, com base nas falas dos profissionais entrevistados, ou mesmo na literatura acerca do tema,16 que a formação inicial dos profissionais de saúde contribui de maneira diminuta para que eles conheçam o CCF e, menos ainda, para que desenvolvam cuidados pautados nessa filosofia. Além disso, barreiras impostas pelo próprio cotidiano de trabalho dos profissionais acabam por desgastar aquela que poderia ser uma atenção à saúde de qualidade, alicerçada na integralidade e na participação ativa da família.
A despeito do desconhecimento por parte dos profissionais, destaca-se que ao apontarem o cuidado humanizado como sinônimo, ou mesmo, consequência do CCF, estabelecem uma relação importante e que pode ser o despertar para um entendimento inicial acerca do que constitui o CCF e de como essa filosofia pode ser contributiva para o atendimento em saúde, inclusive para a prática em emergência.17 Tal contribuição ocorreria, fundamentalmente, ao se descortinar a possibilidade de criar um clima de trabalho mais propício à valorização de todos os envolvidos no processo de cuidado, incluindo a família.
Segundo a percepção dos entrevistados, mesmo que de maneira dedutiva, as formas de se desenvolver o CCF no âmbito emergencial - por exemplo, o apoio emocional, a valorização dos preceitos religiosos relacionados ao momento da morte e a postura de disponibilidade em relação à partilha de informações -, de fato constituem-se princípios integradores do CCF1 e, por isso, devem ser valorizadas. Desse modo, embora os profissionais relatem o desconhecimento sobre o CCF, alguns conseguiram apontar elementos centrais dessa filosofia de cuidado. Isso indica que, em maior ou menor grau, os profissionais estão cônscios das mínimas necessidades que precisam ser atendidas quando houver a presença da família no serviço de saúde.
Ademais, considerando-se que o CCF deve ser norteado por princípios, entre os quais o respeito à individualidade, às diversidades e às necessidades de desenvolvimento da família,1 salienta-se que o convite familiar para estar presente durante algum atendimento não a induz a qualquer obrigatoriedade no sentido de testemunhar ou atuar nessa prestação de cuidados. Inúmeros são os fatores que predispõem ou não um familiar a se sentir preparado e confortável para vivenciar tal experiência. Cabe ao profissional de saúde identificar tais circunstâncias e respeitá-las.18
Observou-se, no presente estudo, que os enfermeiros se autodeclararam mais acolhedores à prática do CCF. O direcionamento mais favorável da equipe de enfemagem, se comparado à equipe médica, em relação ao CCF nas unidades emergenciais, também foi demonstrado em investigação realizada em Israel.19 Tal postura pode ser atribuida ao fato de ser o enfermeiro o profissional que, usualmente, permanece por mais tempo com a família e se dispõe a estar de maneira mais próxima durante a prestação do atendimento. Logo, reconhece mais facilmente as vantagens de se incluir a família no cuidado ao paciente, mesmo em situações críticas.20
Nesse sentido, ainda foi possível perceber que alguns enfermeiros entrevistados, por mais que considerassem o CCF difícil de ser implementado na atual conjuntura de infraestrutura e preparo profissional nas UPA do Brasil, ansiavam por melhorar o atendimento às famílias. Sugeriram, além de reestruturações físicas e qualificação profissional, aumentar o número de visitas familiares na sala de emergência, pois, em suas percepções, uma única visita por dia era insuficiente para atender as necessidades da família e dos pacientes, o que já havia sido apontado por familaires em outra investigação.21 Essa constatação chama a atenção, pois as evidências revelam que os enfermeiros, mesmo considerando benéficas as visitas familiares a pacientes críticos, acreditam que horários flexíveis dificultariam o desenvolvimento de seus procedimentos e acarretariam maior sobrecarga de trabalho aos profissionais.22
Deveras, é necessário um trabalho sistematizado junto a toda a equipe de saúde para que a família seja devidamente valorizada e incorporada ao processo de cuidado emergencial. Estudo realizado nos Estados Unidos demonstrou que, em geral, os profissionais atuantes em salas de emergência sentiam que os membros da família deveriam ser autorizados a permanecer à beira do leito durante o atendimento, mas que existem desafios, incluindo a necessidade de educação e preparo teórico de toda a equipe de saúde a fim de facilitar mudanças atitudinais práticas que promovam a permanência da família durante o atendimento.12
Para além do preparo teórico, conforme pontuado pelos profissionais nesta pesquisa, mostra-se necessário adequar a estrutura física e a rotina de trabalho nos serviços emergenciais para viabilizar um acolhimento apropriado às famílias. Estes parecem ser elementos indispensáveis para se iniciar a mudança de paradigma e se superar as barreiras que dificultam a implementação do CCF, por exemplo, a resistência dos profissionais que acreditam ser restrito aos serviços de Atenção Primária à Saúde esta filosofia de cuidado.23
Já é possível verificar achados na literatura que apontam de forma contundente os benefícios do CCF na assistência de emergência. Por exemplo, estudos realizados na França demonstraram que familiares, ao acompanharem as manobras de reanimação cardiorrespiratória apresentavam resultados psicológicos positivos, além de pouca interferência negativa na atuação profissional,8 além de menor frequência de processos de luto complicados ao longo de um ano.24 Logo, faz-se importante discutir esses aspectos junto a profissionais de saúde e gestores para se transladar o conhecimento disponível à prática clínica25 e buscar reestruturar os serviços para favorecer a implementação desse tipo de cuidado na UPA no Brasil, a fim de se permitir um salto de desenvolvimento assistencial e testar sua viabilidade para a cultura brasileira.
Limitações
O presente estudo possui limitações. A primeira se refere ao fato de as entrevistas terem sido realizadas no local de trabalho e durante a jornada laboral dos participantes, que se preocupavam em regressar às atividades. Em segundo lugar, as opiniões dos profissionais que participaram do estudo podem diferir daqueles que se recusaram a participar, possibilitando a introdução do viés de informação. A terceira limitação está relacionada ao maior número de enfermeiros participantes comparados aos médicos. Isto pode caracterizar os achados mais compatíveis com as percepções dos enfermeiros, ainda que durante as análises se tenha considerado esse aspecto. Contudo, o fato de nos serviços de saúde, o número de enfermeiros ser maior do que o de médicos fez com que essa limitação não fosse superada. Por fim, reitera-se que os achados aqui apresentados são compatíveis com a percepção dos profissionais de saúde de duas UPA de um município do Sul do país e que, como se espera de resultados de estudos qualitativos, ainda que apontem para determinada direção, não podem ser generalizados para outros contextos. Desse modo, sugere-se cautela na aplicação e comparação desses resultados.
CONCLUSÃO
Os resultados deste estudo permitiram identificar que, para médicos e enfermeiros brasileiros, atuantes em UPA, o CCF ainda é pouco conhecido de maneira formal, o que acarretou percepções dedutivas e superficiais acerca do tema. De modo geral, os entrevistados acreditavam que o CCF se relacionava a envolver a presença da família no espaço de cuidado ao paciente, permitindo maior humanização na assistência. Outrossim, foi possível verificar que os profissionais consideram difícil a implementação do CCF nas UPA, ao relatarem que o espaço físico atual, o despreparo dos profissionais acerca do tema, o elevado fluxo e a rotatividade de pacientes e o perfil sociocultural da população atendida constituíam fatores que dificultavam seu emprego. Entretanto, alguns relatos denotaram a importância da manutenção do contato entre paciente e familiares nesses contextos, com sugestões relativas à expansão dos horários e oportunidades de visita.
Esses achados reforçam que o CCF ainda é pouco discutido, ensinado, pesquisado e divulgado entre médicos e enfermeiros brasileiros. Isto traz implicações diretas para os cursos de graduação e pós-graduação, no sentido de viabilizar que a formação profissional contemple a valorização das famílias nos diferentes espaços de cuidado ao ser humano. Para além, evidencia-se considerável lacuna no conhecimento acerca do CCF na assistência emergencial a indivíduos adultos. Tal situação suscita a necessidade de estudos-piloto que insiram as famílias nos serviços emergenciais a partir da perspectiva do CCF e investiguem o impacto para pacientes, familiares e profissionais de saúde. Contribui-se, assim, com este estudo, para a possibilidade de se discutir a implementação desse tipo de cuidado nos serviços de pronto atendimento localizados em diferentes regiões do país, levando em consideração as características loco-regionais de cada serviço.
REFERÊNCIAS