Volume 20, Número 4, Out/Dez - 2016
PESQUISA
Manejo clínico da amamentação: Valoração axiológica sob a ótica da
mulher-nutriz
Valdecyr Herdy Alves
1
Stela Maris de Mello Padoin
2
Diego Pereira Rodrigues
1
Luana Asturiano da Silva
1
Maria Bertilla Lutterbach Riker Branco
1
Giovanna Rosário Soanno Marchiori
1
1 Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, Brasil
Recebido em 23/12/2015
Aprovado em 03/08/2016
Autor correspondente:
Diego Pereira Rodrigues
E-mail:
diego.pereira.rodrigues@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar a valoração axiológica da mulher-nutriz quanto ao manejo clínico da
amamentação.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo fenomenológico, baseado na Teoria dos Valores de Max
Scheler, realizado entre maio e junho de 2014 nos alojamentos conjuntos de
dois hospitais universitários em Niterói/RJ e Santa Maria/RS. Participaram
vinte nutrizes, sendo os dados organizados, submetidos à técnica de análise
compreensiva e interpretados segundo a Teoria dos Valores e as políticas
públicas específicas de aleitamento materno.
RESULTADOS:
Emergiram duas unidades temáticas: O manejo clínico da amamentação e seu
valor vital e A rede de saúde como apoio no cuidado à amamentação: um valor
utilitário.
CONCLUSÃO:
O manejo da amamentação possibilita cuidados em saúde que extrapolam
interesses, intenções e pontos de vista de profissionais e instituição de
saúde; questões humanas e existenciais devem ser apreendidas pelas
experiências racionais, atreladas àquelas do sentir da nutriz. Essa
percepção propicia ressignificar a assistência centrada na mulher, na
criança e na família.
Palavras-chave: Enfermagem; Mulher; Aleitamento materno; Valores sociais
INTRODUÇÃO
As políticas de saúde pública nos campos da saúde da criança e da mulher relacionadas com a amamentação estabelecem ações assistenciais de apoio, articuladas com as redes de atenção básica e hospitalar, que apresentam estratégias importantes para o início e a manutenção do aleitamento1,2. Nesse sentido, o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), criado em 1981 pelo Ministério da Saúde, conjugou ações multissetoriais, principalmente nas áreas de assistência à saúde, legislação e comunicação social3. Entretanto, os índices alcançados ainda continuam bem distantes daqueles recomendados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), entidades internacionais que propõem o aleitamento materno exclusivo durante seis meses, e complementado até os dois anos de idade ou mais2,4.
Há consenso entre os estudiosos da temática de que as taxas globais estão estagnadas em relação à prática de aleitamento materno, destacando-se que, na última década, dentre os 106 milhões de bebês que nasceram a cada ano, apenas 50 milhões (37%) praticaram o aleitamento exclusivo por seis meses1,4. Esse dado aponta para a necessidade de ampliação das habilidades de apoio ao manejo da amamentação por parte da Enfermagem e dos profissionais de saúde junto às mulheres nutrizes, ainda na sala de parto, não apenas na primeira hora de vida do bebê, mas continuamente4,5, até porque o cotidiano da amamentação configura-se diferenciadamente para cada mulher, fazendo-se necessário um meticuloso olhar acerca dos valores por elas engendrados em relação a essa prática.
Todavia, não basta ter uma política de promoção, proteção e apoio ao aleitamento que corrobore as atuais iniciativas voltadas para o sucesso da amamentação, visto que a nutriz necessita estar imersa em ambiente favorável à sua história de vida e ao seu cotidiano para que seja capaz de decidir aleitar ou não. Assim, é necessário compreender os valores do apoio ofertado à amamentação, assim como os seus significados para os envolvidos nesse processo (enfermeiros e outros profissionais de saúde), possibilitando ampliar a assistência, tornando-a qualificada e, sobretudo, individualizada5,6. Esta é a relevância do tema ora abordado, o que leva a inferir ser indispensável o conhecimento dos valores expressos pelas nutrizes, os quais devem ser conjugados com as habilidades profissionais de apoio ao manejo das diversas fases da lactação nos serviços de saúde, a fim de possibilitar que cada mulher decida pelo início da amamentação, sua manutenção e o enfrentamento de eventuais problemas no seu transcurso7,8.
Sabe-se que, culturalmente, as mulheres vivenciam o valor do apoio à amamentação pelo sentir emocional, isto porque seus sentimentos estão relacionados com o que lhes parece agradável ou desagradável, confirmando que o valor requer sempre uma vivência a fim de que o sujeito seja capaz de adquirir conhecimento, sentimento e, assim, possa reconhecer e apreender os valores como fenômenos frente à percepção de um estado afetivo, reagindo a ele positiva ou negativamente. No caso presente, fazendo com que o apoio à amamentação se torne um valor em si mesmo6, seja ele expresso pela Enfermagem ou pelos demais profissionais de saúde que atuam junto à nutriz. Sendo assim, para contemplar os múltiplos aspectos que envolvem a temática ora abordada, foi estabelecido como objetivo: analisar a valoração axiológica da mulher-nutriz quanto ao manejo clínico da amamentação.
MÉTODOS
Estudo de natureza qualitativa com abordagem fenomenológica, baseado na Teoria dos Valores9, visando desvelar e, sobretudo, compreender o significado do fenômeno subjacente aos valores das mulheres nutrizes em relação à amamentação no período de puerpério. Para tanto, é preciso ter em mente que a pesquisa fenomenológica é baseada na ciência que se aplica aos fenômenos vinculados aos objetos, eventos e fatos tendo como finalidade retornar aos dados primordiais da experiência vivida, cujos propósitos são o de desvelar significados e criar novos valores10.
Um aspecto que deve ser considerado é que este estudo não visou estabelecer diferenças regionais no modus operandi dos profissionais de saúde dos cenários do estudo, locais onde o processo do manejo clínico da amamentação se dava com assistência centrada na mulher nutriz, de quem se pretendia apreender os valores da amamentação.
Foram dois os hospitais selecionados para o estudo, de caráter universitário federal, localizados na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, e na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
Conforme determina a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense sob Protocolo nº 615.070/2014, o que viabilizou o início da coleta dos dados, que ocorreu entre 1º de maio e 30 junho de 2014, nos alojamentos conjuntos dos hospitais.
Para a produção dos dados realizou-se a entrevista aberta utilizando-se um instrumento destinado à apreensão dos valores acerca do objetivo do estudo, contendo somente a seguinte pergunta norteadora: "Conte-me como foi/é para você receber o manejo/apoio à amamentação nesta maternidade".
As participantes do estudo foram vinte (20) mulheres internadas nos alojamentos conjuntos de risco habitual dos citados hospitais, sendo 10 (dez) em cada um, que vivenciaram a lactação sem intercorrências. Excluíram-se as que se encontravam em puerpério de alto risco, e as que não tinham iniciado a fase da lactação. Aquelas que decidiram participar voluntariamente do estudo, após atenderem aos critérios de inclusão estabelecidos, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido contendo informações detalhadas a respeito da pesquisa.
A captação das respostas à indagação acima foi feita com a utilização de aparelho digital, mediante autorização prévia das participantes. As transcrições das falas obtidas durante as entrevistas originaram os sentidos valorativos9 do estudo, os quais foram organizados de acordo com a técnica de análise compreensiva11 e, finalmente, interpretados com base na Teoria dos Valores2 e nas políticas públicas de saúde específicas da área de aleitamento materno.
Pode-se mencionar como limitação do estudo as análises dos autores consultados que, por força do método fenomenológico, são subjetivas e, portanto, sujeitas a distintas visões e entendimentos. Ainda assim, é de se esperar que os resultados obtidos despertem o interesse em novas pesquisas e estudos a respeito do tema, gerando novos saberes e, sobretudo, a produção e divulgação de conhecimentos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A caracterização sucinta das participantes do estudo mostrou que, em relação à faixa etária, quatorze tinham entre 20 e 25 anos; quatro, entre 26 e 30; uma, entre 31 e 35; e uma, entre 36 e 40 anos. Quanto ao estado civil, quatorze eram casadas e seis, solteiras. No que diz respeito ao número de filhos, nove tinham outros filhos, enquanto onze relataram ser esse o primeiro.
A construção valorativa de saberes e práticas no campo da amamentação apresenta-se como valores do cotidiano, revelando e instituindo normas, rotinas e padrões na cultura da amamentação4,12. Entende-se, a partir da voz de cada mulher nutriz, no seu modo de ser próprio, a necessidade de apoio ao ato de aleitar sua cria, porque o ato de amamentar confirmou-se como um valor vital e utilitário, claramente expresso pelas participantes deste estudo.
O manejo clínico da amamentação e seu valor vital
As nutrizes evidenciaram que o processo do manejo clínico da amamentação deve valorar a mulher na sua integralidade, compreendendo suas possibilidades e limites para a vivência do ato de aleitar, permitindo a formação de um vínculo pleno de confiança e de significados com o profissional de saúde que, sem dúvida, repercutirão beneficamente no sucesso do aleitamento. Isto, porque se considera que o manejo da amamentação não é a mera contemplação imanente de um objeto dado, aqui representado pela técnica correta de aleitar; ao contrário, pressupõe o desejado, fazendo com que a amamentação transcenda os conhecimentos técnicos e científicos e alcance a mulher-nutriz na plenitude do exercício de um valor vital (o amamentar)6.
Sabe-se que todos buscam os valores vitais como um processo para a própria existência, dentre eles destacam-se o alimento, a saúde, o meio ambiente e a segurança. Para o recém-nascido e a nutriz, a amamentação é um valor vital porque vale para a vida de ambos, como foi dito. Assim sendo, o manejo clínico da amamentação guarda em si um saber vivenciado no cotidiano da mulher-nutriz, cujas expressões valorativas compreendem um cuidado amplo envolvendo a complexidade do ato de aleitar, o que significa a valoração vital expressa nas falas das seguintes entrevistadas:
[...] Bom, eu gostei muito da ajuda para pegar o jeitinho, botar para mamar, ele ficava irritado, não comia, aí as meninas me mostraram como é, deu certo e ele mamou bem, ficou sem fome, ficou tranquilo e eu também [...] (N1).
[...] Eles ajudam a gente (...) se não me dessem ajuda, eu não ia saber amamentar direito, talvez a neném não estaria pegando peso, eu ia estar dando de mamar, mas não estaria amamentando (...) ela ficou satisfeita, sem fome, não chorou mais [...] (N9).
[...] Ajuda bastante para dar de mamar, a gente fica tranquila porque sabe que o nenê vai ficar bem alimentado, eles dão apoio, é importante, faz ele crescer [...] (N20).
Orientações sobre como colocar o bebê para mamar, inclusive em livre demanda, são valores entendidos como vantagens e benefícios para o processo da amamentação13, e os profissionais de saúde devem ser capazes de perceber, a partir da ótica das mulheres, os valores que emergem desse ato, tal como o valor nutricional do leite humano ou, ainda, o valor afetivo - vínculo, que se fazem presentes no ato de amamentar. As nutrizes têm uma percepção clara do valor vital2 do aleitamento, reconhecendo que o manejo clínico da amamentação lhes garante uma prática tranquila e prazerosa, além de prevenir fissuras, ingurgitamento e mastites mamárias. Ademais, em seus discursos, desvelam valores vinculados ao bem-estar, à nutrição e à afetividade, além de maior segurança para amamentar em livre demanda, sempre que possível.
É importante ressaltar que nas maternidades, cenários deste estudo, ocorrem aquisições de valores que não representam só o saber científico14. Isto se dá quando um pensamento científico (da teoria) é englobado pelo pensamento cotidiano (da prática valorativa)2. Nesse caso, o saber cotidiano o inclui na própria estrutura, articulando razão e emoção. Não é demais lembrar que as aquisições de valores individuais se apresentam nos saberes cotidianos e, ainda que isolados e imbricados no pragmatismo da vida diária das mulheres nutrizes, convertem-se em seus guias. Daí resulta que os valores instituídos no campo individual feminino somam-se aos valores vitais que engendram o saber singular de cada nutriz na vivência de amamentar, adquirido por meio do apoio recebido dos profissionais de saúde, como relatado nos depoimentos a seguir:
[...] Agora eu sei o que é amamentar, para mim, pelo menos, elas [enfermeiras] deram uma atenção muito boa, o bico no início começa a rachar, a doer muito, tudo é de um jeito; elas me ajudaram, aí a gente fica tranquila, o bebê fica alimentado [...] (N2).
[...] Eles foram atenciosos comigo, explicaram tudo e eu entendi; algumas coisas eu já sabia, mas eles reforçaram, entendeu? Eu estava com um pouquinho de medo, estava achando que ela não iria mamar e eles sempre me incentivando. Ela agora está mamando bem (...). Fiquei tranqüila [...] (N7).
[...] Sim, eles ajudaram bastante. Eles dão apoio, eu fiquei tranquila, porque assim dá segurança, o leite vai para o bebê, não é? [...] (N19).
Estudos diversos2,6-8 reconhecem o valor conferido ao manejo clínico da amamentação percebido nos discursos valorativos das entrevistadas. Todavia, a valoração é um processo pontual que envolve um fato em um determinado espaço de tempo. Então, se esse apoio tem o seu valer para a saúde da mulher e do bebê, o valor vital enfatizado pela nutriz no seu discurso apresenta-se com autonomia, pois sempre valeu e valerá a busca da saúde como um valor superior. Porém, é preciso lembrar que o discurso perpassa pelo reencontrar no solo imaginário dos atos do sujeito (como a consciência), a fonte daquilo que o determina na realidade, o sujeito como tal se apresenta15. Assim, os discursos valoram o fenômeno de ser nutriz em pleno gozo da vivência da amamentação como processo axiológico no espaço hospitalar em que vive na condição de puérpera, assistida por profissionais de saúde que apoiam a amamentação.
Estudiosos do assunto6,15,16 também destacam o valor do manejo clínico da amamentação como processo facilitador para a prática da mulher em processo da amamentação, garantindo-lhe a possibilidade de sucesso, o que foi apreendido e valorado nos depoimentos:
[...] Eu pedi a ajuda delas (...) das meninas do Banco de Leite, para tirar a pedra do meu peito, aí elas deram uma olhada e me ensinaram (...) quando der pedra, é para eu tirar com massagem e coloca o bebê para mamar, e dar bastante leite de peito para ela, só isso me deixou tranquila [...] (N3).
[...] Ah! Por ser uma gestação gemelar, para mim foi uma experiência única (risos), não é? (...) com o apoio delas para colocar os bebês para mamar, foi importante. E a técnica de dar de mamar para dois, com ajuda foi mais tranquilo [...] (N6).
[...] Bom, o apoio e a ajuda deles, para não deixar o bebê com fome e eu nervosa; em relação como está produzindo o leite eu tinha dúvidas, se está estimulando, se a criança está sugando. Muito bom o apoio deles, eu me senti mais segura, não é? [...] (N19).
O manejo clínico da amamentação realizado pela Enfermagem e pelos profissionais de saúde são importantes para superar dificuldades, devendo ocorrer no pré-natal, na sala de parto, no alojamento conjunto, expandindo-se para a rede familiar, evitando que a nutriz se torne suscetível aos mitos do leite fraco e da pouca produção de leite, mitos que acabam favorecendo a introdução do leite artificial como forma de nutrir melhor o bebê. Esse manejo reforça a autoestima e a confiança na capacidade de amamentar seu bebê com segurança17, evitando iniciativas prejudiciais ao recém-nascido.
O reconhecimento dos benefícios do amamentar, que é um valor vital incontestável, é correto; porém, cada mulher é única nesse processo, vivenciando valores individuais frente à amamentação. Logo, o apoio deve ser singular, como parte do manejo clínico da amamentação. As falas das nutrizes corroboram a literatura científica: o discurso não tem como função constituir a representação fiel de uma realidade; apenas assegurar a permanência de certa representação15, aqui desvelada no processo do manejo como forma de apoio. Uma das vantagens do apoio foi, sem dúvida, a tranquilidade de apreender o processo de manejar o aleitamento nos seus mais diversos aspectos, a exemplo dos transtornos da lactação e do ganho de peso dos bebês. É clara essa percepção acerca do valor vital do apoio recebido:
[...] É bom porque meu filho ficou internado primeiro, e ficou uma semana tomando leite na sonda, e eu sempre vinha e tirava o leite aqui mesmo, e então ele mamava o meu leite mesmo, não era leite de outras pessoas, meu leite é o melhor, é vida é saúde, eu tive o apoio deles [...] (N4).
[...] Elas estão me ensinando direitinho como fazer (...) isso está sendo legal (...) por exemplo: para o meu bico do peito não rachar, não dar rachadura, para fazer o bebê encaixar bem, pegar bem, tanto o bico quanto a (...) [como chama isso aqui?] aréola, que isso eu não sabia [...] (N10).
[...] Explicaram que não é fácil dar o peito, mas depois que se aprende fica fácil, eles ensinam a gente como fazer, dar o leite até os seis meses (...) eu quero amamentar, me explicaram bem direitinho, foram bem atenciosos comigo [...] (N17).
Nesse sentido, o manejo da amamentação institui valores que transcendem interesses, intenções, pontos de vista dos profissionais de saúde e também normas institucionais, indo ao encontro da mulher que deseja amamentar, independente dos julgamentos da rede familiar, tornando sua prática mais consentânea com a realidade dessa mulher, cuja percepção valora o manejo clínico da amamentação como possibilidade concreta de sucesso do aleitamento materno.
A rede de saúde como apoio no cuidado à amamentação: um valor utilitário
A configuração da rede de saúde com ações e serviços de níveis tecnológicos diferentes integra o apoio técnico em saúde na construção do cuidado. Esse apoio é percebido como valor utilitário em prol do sucesso da amamentação devendo, todavia, integrar a rede de serviços ofertados às nutrizes durante a internação na maternidade e após a alta. Portanto, os profissionais de saúde envolvidos no apoio ao aleitamento materno poderão exercer um papel decisivo no início e na manutenção da amamentação, desde que suas ações sejam integradas pelas instituições de saúde como redes de apoio18,19.
A vida "deve" produzir algo útil apenas na medida em que pudermos gozar de algo agradável; no caso presente, quando o cuidado na amamentação é entendido como rede que integra os serviços de saúde, torna-se um valor utilitário5. Assim, no cotidiano dessa prática há um valor útil, aqui representado pela mulher nutriz na vivência da rede de apoio ao aleitamento materno, enquanto fenômeno que se desvela em dois sujeitos: nela e no profissional de saúde, cabendo a este último reconhecer as redes de saúde e as reais necessidades vivenciadas pela mulher nutriz no processo de aleitamento. É nesse sentido que se fundamenta o valor utilitário da rede de apoio, que busca e descobre carências vinculadas ao ato de aleitar que, de outra forma, permaneceriam ocultas. Essa percepção valorativa do apoio como instrumento de assistência à mulher nutriz está explicitada a seguir:
[...] Foi bom, eles explicaram como tem que fazer para botar o neném para mamar e não machucar o peito (...) falaram que quando eu tiver alta e tiver problemas, eu devo procurar um posto de saúde ou voltar aqui (...) eu estava nervosa, pois como eu ia fazer em casa. E se o peito tivesse pedra ou outras dificuldades? [...] (N8).
[...] Para mexer o corpo, dói; para poder amamentar, dói; eu não conseguia me mexer. Daí, ela mamou deitada. Essa foi a maior dificuldade, sabe? (...) mas eles ajudaram. Eu não sei (...) é diferente, não é? (...) Dolorido (...) vou embora hoje, mas vai melhorar, só fico preocupada em casa. Onde eu poderei pedir ajuda? [...] (E11).
[...] Ele nasceu aqui, daí eu tive apoio desde o começo, no pré-natal e agora na maternidade (...) sempre me incentivaram e orientaram a amamentar, ajudaram, pois é difícil no primeiro momento (...) a gente não sabe, por exemplo, colocar a boca do bebê na mama para ele mamar melhor (...) só estou preocupada porque eu vou para casa, então, como vai ser, não é? [...] (N16).
As falas reforçam o valor útil e real da necessidade de apoio da rede de saúde para as demandas das mulheres em amamentação. A Rede Cegonha descreve a rede de atenção à saúde como uma organização de serviços de diferentes níveis de densidade tecnológica, que integra os sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, garantindo o cuidado pautado na atenção integral, humanizada, contínua e de qualidade20. Nesse sentido, as nutrizes reiteram a necessidade de apoio e ampliação dessa rede para atendê-las em suas necessidades de serem mulheres vivenciando o ato de amamentar.
[...] dores, eu senti dor e empedrou meu peito (...) fui lá embaixo [no Banco de Leite Humano] e a menina me ajudou [a enfermeira], mas como vai ser em casa, eu não sei [...] (N5).
Eu achei importante o apoio, eu tenho muito leite, aí tem a doação de [...] leite materno (...) então acho interessante doar para essas crianças que nascem e ficam internadas na UTI neonatal, elas (enfermeiras) falaram, caso tenha problemas voltar aqui ou ir ao posto de saúde. É bom saber onde ir, caso não dê certo a amamentação; eles me deram o endereço do posto de saúde perto de casa [...] (N12).
[...] Não tive nada disso que as meninas (as outras puérperas) estão tendo com o peito. Já cheguei e já fui encaminhada e orientada, tudo certinho, aí depois já botei no peito. Foi tudo tranquilo, elas (as enfermeiras) são boas. Agora, em casa minha mãe vai ajudar, vamos ver como será. Mas é importante saber onde ir caso dê errado, eles vão falar aqui, eu acho! [...] (N15).
Pode-se entrever a possibilidade de superar a dicotomia entre o apoio à amamentação na maternidade e a rede de saúde após a alta hospitalar, isto porque as nutrizes valoram a rede de apoio nas dimensões subjetivas/objetivas contidas em suas falas, que revelam não só o fenômeno valor utilitário propriamente dito, mas também a sua relação com o desejo de amamentar e superar as possíveis dificuldades a partir da rede de saúde.
Vale reafirmar as falas das entrevistadas que, embora refletindo o que todo mundo sabe no cotidiano em relação à amamentação, pode acabar calando o que cada mulher sente e valora no seu vivido, configurando a fragilidade da rede de saúde no campo do apoio à amamentação5, exposta na insegurança frente à alta hospitalar e retorno ao lar, revelando a carência de redes de apoio à amamentação. Tal fato merece uma reflexão por parte dos profissionais de saúde dos diversos serviços maternos infantis no sentido de apoiá-las em suas demandas futuras.
Reforçando a necessidade do apoio em rede para a amamentação, a Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC) tem como um dos seus objetivos a promoção, proteção e apoio à prática do aleitamento materno, com foco na redução do desmame precoce e na morbimortalidade infantil e materna21,22. A IHAC tem eixos norteadores, como os Dez Passos para o Sucesso do Aleitamento Materno, sendo o passo de número 10 aquele que encoraja a formação de grupos de apoio à amamentação nas redes de saúde, para onde as mães devem ser encaminhadas logo após a alta hospitalar ou ambulatorial, iniciativa que configura o valor útil dessa rede de incentivo e proteção à amamentação.
[...] Quando eu tinha algum problema, eles tentavam me ajudar, ficavam sempre de olho. Isso deixa a gente tranquila e segura para dar de mamar. (...) a dificuldade é dela (da bebê), de conseguir mesmo sugar, conseguir puxar, estimular o bico e estimular o colostro a sair. As enfermeiras me ajudaram a ficar sabendo como fazer quando eu voltar a trabalhar e onde ir para buscar apoio. A gente fica tranquila, não é? [...] (N13).
[...] Foi difícil, eu fiquei triste e nervosa no momento em que ela não conseguia pegar no peito. Mas no momento em que a enfermeira me ajudou a pôr, e me fez ficar tranquila, aí ela (a bebê) já pegou. Foi boa a ajuda da enfermeira, só isso deu certo. Agora vamos ver em casa, eu sou sozinha, onde eu vou ter ajuda, não é? [...] (N14)
[...] Antes eu fiquei nervosa (...) mas não tive nenhum problema porque até então, desde que ganhei ele (o bebê), elas (as enfermeiras) me ensinaram, disseram o que eu deveria fazer e o que eu não deveria fazer. Não tive nenhum problema, foi bom ter elas (as enfermeiras) por perto, e já falaram da sala de amamentação do posto de saúde, vou buscar ajuda se tiver problemas [...] (N18).
O valor útil, aqui representado pelo apoio à amamentação, se dá no processo de conhecimento valorativo, na experiência fenomenológica que ocorre no contato direto entre profissional de saúde e mulher nutriz; na realidade, quando o valor útil se manifesta frente às necessidades de saúde no campo da amamentação e são apreendidas em si mesmas.
Denomina-se mediação o ato de valorar a necessidade real de cada mulher nutriz2. No sentido valorativo, as vivências estão presentes no cotidiano como reação resultante de inquietações emocionais, de estímulos de natureza sensível; uma tendência que se satisfaz e se aquieta com a posse do objeto desejado, neste caso, o sucesso da amamentação, segundo a percepção das entrevistadas.
Assim, a rede de saúde configura-se como apoio à amamentação e deve ser objeto de atenção e empenho dos profissionais de saúde que atuam junto às nutrizes, tendo em vista o processo de aleitamento, que marca o núcleo da essência do valor útil da intencionalidade originária que constitui o sujeito (aqui representado pela mulher-nutriz) no seu modo de existir em si mesma e com o outro (o profissional de saúde) em prol do sucesso da amamentação.
CONCLUSÃO
A abordagem fenomenológica a partir da Teoria dos Valores possibilitou desvelar como se dá o manejo clínico da amamentação à luz das falas das nutrizes, considerado um processo do campo da vida (objetivo e subjetivo) envolvendo a técnica profissional e os sentidos da nutriz ao amamentar.
O estudo evidenciou que os valores vital e utilitário, expressos pelas entrevistadas, são percebidos por elas no cotidiano, e que esse manejo apresenta possibilidades de cuidado em saúde que vão além dos interesses, intenções e/ou pontos de vista dos profissionais ou da instituição de saúde, isto porque o seu núcleo central valora as questões humanas e existenciais que, embora compartilhadas indistintamente em diversos segmentos sociais, não podem ser apreendidas somente pelas experiências racionais.
Desse modo, essa compreensão deve estar atrelada àquelas do sentir valorativo de cada mulher no seu papel de nutriz que é capaz de desvelar seus valores pessoais ao instituir as próprias marcas durante a amamentação, pautadas nos aspectos que valoram o biológico, o cultural e o social inerentes ao fenômeno da amamentação, aspectos esses desconhecidos por muitas nutrizes anteriormente, cujo saber emergiu do apoio recebido por meio do manejo oferecido pela Enfermagem e por outros profissionais de saúde.
Sem dúvida, o tema ora abordado tem sido objeto de interesse por parte de muitos autores, embora não sob o aspecto axiológico da nutriz em relação à amamentação, o que configura o ineditismo deste artigo, que é divulgar o cuidado à amamentação a partir do seu manejo clínico, pautado nos valores instituídos pela mulher que vivencia essa experiência única no seu cotidiano, cuja percepção valorativa traz uma ressignificação da assistência à saúde centrada na mulher, na criança na família.
REFERÊNCIAS