Volume 20, Número 3, Set/Nov - 2016
PESQUISA
Experiências de pessoas internadas com o processo de punção de veias
periféricas
Ludimila Brum Campos
1
Jussara Regina Martins
1
Cristina Arreguy-Sena
1
Marcelo da Silva Alves
1
Camila Vasconcelos Teixeira
1
Luciene Carnevale de Souza
1
1 Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG, Brasil
Recebido em 15/01/2016
Aprovado em 02/05/2016
Autor correspondente:
Camila Vasconcelos Teixeira
E-mail: camilavasconcelosteixeira@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender os componentes representacionais, as origens das experiências dos
participantes com o processo de punção de veias periféricas, suas percepções
e marcadores implícitos e explícitos de demandas de cuidado segundo
concepção de Neuman.
MÉTODOS:
Pesquisa de Representação Social Processual realizada com adultos que tiveram
veias puncionadas internados num hospital de Minas Gerais. Amostra de 149
pessoas de seleção completa. Entrevistas individuais gravadas usando técnica
de recorte e colagem de gibi. Na análise de conteúdo, aplicaram-se NVivo e
teoria de Neuman.
RESULTADOS:
Predominaram mulheres em idade ≥ 50 anos. Experiências contemplaram
relatos próprios, com terceiros, familiares e profissionais, percebidas como
dialógicas, expressando sentimentos/comportamentos, valores,
informações/conhecimentos e objetos representacionais, sendo aquelas com
familiares pouco expressivas devido ao enfoque sobre acolhimento.
CONCLUSÃO:
Fragmentos de discurso e imagens de gibi selecionados demonstram exposição a
estressores (intrapessoais, extrapessoais e interpessoais), caracterizando
lacunas nas demandas de cuidados de enfermagem quando se integram
tecnologias relacionais, cognitivas/especializadas e instrumentais.
Palavras-chave: Cateterismo periférico; Punções; Cultura; Hospitalização; Enfermagem.
INTRODUÇÃO
O processo de punção venosa possui múltiplas finalidades, dentre as quais se destacam as terapias antineoplásicas, farmacológicas, hematológicas, analgésicas, sedativas, reposições volêmicas, renal substitutiva, além de controle de parâmetros bioquímicos e eletrolíticos e para fins diagnósticos1.
O uso dos vasos periféricos no ambiente hospitalar articula a atuação laboral de enfermeiros e sua equipe, médicos e farmacêuticos. A releitura da atuação do enfermeiro ao conciliar níveis tecnológicos, especificidades, culturas distintas e concepções dos usuários2 à luz de referenciais filosóficos possibilita reflexões para um cuidado integral3 e para o direcionamento da prática da equipe de enfermagem.
Independentemente da composição múltipla ou simplificada da equipe de enfermagem nas realidades brasileira e internacional, respectivamente1,2, foi possível identificar na literatura lacunas a exemplo da falta de diálogo e de interação para um cuidado de enfermagem compartilhado com o ser do cuidado, a ponto de retratar qual é a compreensão dos usuários que vivenciam o processo de punção de vasos.
Essas lacunas surgiram pela ausência de conteúdos versando sobre o quanto as ações e formas de abordagens profissionais realizadas pela equipe de enfermagem que punciona veias empoderavam os usuários para o processo de tomada de decisão sobre a via em que o tratamento farmacológico era operacionalizado e se esses profissionais lhes garantiam o atendimento de suas necessidades, atuavam de forma humanizada e individualizada e lhes davam voz para que exprimissem seus sentimentos ao terem seus vasos puncionados1,2.
Esse é o desafio a ser considerado pelos enfermeiros quando se almeja um cuidado de qualidade1,2. E, para superar esta limitação, a presente investigação buscou, no binômio profissional que punciona e usuário puncionado, resgatar o encontro e o lugar de destaque em que se identificam as necessidades daqueles que têm seus vasos puncionados; realçar o respeito, as competências, as habilidades e as relações interpessoais, comunicacionais e terapêuticas a partir da perspectiva social2. Utilizar-se-á, para isso, das representações sociais construídas a partir das experiências que ocorrem no encontro da dimensão individual com a coletiva.
As habilidades e competências requeridas por aqueles que puncionam veias, quando confrontadas com a variedade de características dos usuários e de como o fenômeno é realizado, percebido e interpretado, possibilitam afirmar que se trata de um procedimento complexo e multifatorial. Portanto, justifica-se a realização de uma releitura de sua ocorrência na perspectiva daqueles que têm seus vasos puncionados quando se deseja identificar suas necessidades, verificar se, na perspectiva dos usuários, há componentes estressores e quais seriam as respostas humanas percebidas a ponto de serem relatadas por eles4,5.
Diante do exposto, objetivou-se compreender quais são os componentes representacionais, a origem das experiências de pessoas internadas com o processo de punção de vasos periféricos, suas percepções e os indícios implícitos e explícitos que poderiam esclarecer as demandas de cuidado.
Considerando que o cuidado prestado durante o processo de punção de vasos não deve contemplar somente a dimensão técnica, este momento deve ser encarado com a singularidade na qual ele se desenvolve, abrangendo a forma como se dá o encontro e a interatividade entre o profissional e a pessoa que tem uma veia puncionada, numa perspectiva de racionalidade interacionista e humanística6.
A presente investigação se alicerçou na seguinte argumentação: necessidade de captar recursos para se aliarem as tecnologias de saúde com competências ligadas aos conteúdos e aos perfis dos usuários com a intenção de um norteamento para o enfermeiro no sentido de contextualizar sua atuação laboral ao puncionar veias.
REVISÃO DE LITERATURA
Na presente investigação, utilizou-se o embasamento teórico-filosófico da Teoria de Betty Neuman por proporcionar um entendimento das respostas dos indivíduos ao processo de punção de vasos periféricos e quais são suas sensações, comportamentos e vivências em relação a este procedimento.
Os metaparadigmas foram assim concebidos: 1) indivíduo contendo uma estrutura energética aberta composta por linhas de defesa flexíveis, normais e linhas de resistência que podem ser influenciadas pelas variáveis fisiológicas, psicológicas, socioculturais, espirituais e de desenvolvimento; 2) enfermeiro que pode atuar sobre a (re)estabilização do sistema de energia do cliente, auxiliando-o a eliminar, reduzir ou enfrentar os estressores; 3) processo saúde-doença influenciado diretamente pela estabilidade/instabilidade das linhas de defesa do sistema energético do indivíduo5.
Os estressores são classificados como intrapessoais (sentimentos, princípios e doutrinas do indivíduo), interpessoais (relação entre pessoas) e extrapessoais (provenientes do ambiente)5.
As formas de abordagem do processo saúde-doença na perspectiva da era moderna trazem a hospitalização e a medicalização dos corpos como elementos nucleares das práticas laborais dos profissionais de saúde, que, quando aliadas ao uso de tecnologias, justificam a frequência com que os vasos sanguíneos são utilizados para viabilizar intervenções terapêuticas3,7.
As tecnologias em saúde englobam, além do aparato tecnológico, o conhecimento profissional, a destreza, a experiência prática e as interações com o indivíduo cuidado. Elas são classificadas como: leves (remetem ao comportamento, interação entre assistência e acolhimento), leveduras (conhecimentos especializados) e duras (instrumental)3.
O modelo fragmentado biomédico que prioriza o uso das tecnologias duras em detrimento das outras, quando aplicado ao processo de punção venosa e na perspectiva do cuidado individualizado e de qualidade, requer mudanças paradigmáticas para ser capaz de conciliar o uso das três tecnologias e alcançar a abordagem que contempla corpo, alma e espírito2,3,8,9.
Do ponto de vista da atuação profissional, o desafio que se coloca é a conciliação da dimensão técnica com a relacional que deve caracterizar o encontro entre o ser que é cuidado e o ser que cuida na perspectiva de uma relação dialógica a ponto de não ocultar, nem negligenciar as respostas humanas que surgem quando este procedimento é realizado9,10.
Se, por um lado, quando se recorre a uma instituição e a um profissional de saúde, o que se deseja é o êxito do procedimento (abordagem tecnicista), por outro, o risco que se corre é negligenciar tanto a legitimidade das relações solidárias10 quanto o uso das tecnologias em saúde que criam espaço para a participação e para o resgate da autonomia do usuário. Para isso é necessário que este deixe de ser um paciente ingênuo, ou seja, passivo, e passe a ser uma pessoa crítica/participativa de seu cuidado11.
As ideias anteriormente mencionadas implicam uma concepção de profissional que é capaz de resgatar em si a dimensão solidária e superar a lacuna que reduz o processo de punção de vasos periféricos a um evento temporal que é reproduzido em sua atuação laboral sem reflexão e negligenciando a perspectiva existencial do exercício da profissão e de sua relação com os usuários.
Diante do exposto, o processo de punção de vasos periféricos, independentemente de sua finalidade terapêutica, está sendo concebido como uma atividade complexa que supera o foco central da instalação do cateter intravascular e transfere este foco para sua relação dialógica com o usuário a ponto de lhe garantir simultaneamente atuação terapêutica e precisão de execução técnica.
Ao conciliar as dimensões do cuidado2 com as justificativas que alicerçam a complexidade do processo de punção de vasos, é possível identificar competências e habilidades profissionais de origem: 1) técnica/assistencial para viabilizar a instalação, com êxito, do cateter no interior do vaso de pessoas que apresentam diferentes características de vasos sanguíneos, de situações clínicas, de necessidades terapêuticas e de respostas individuais ao procedimento; 2) relacional e comunicacional para perceber como cada indivíduo enfrenta "a picada" a ponto de auxiliá-lo no processo de resiliência; 3) gerencial/administrativa para utilizar o material/equipamento disponível na instituição, adaptando-o às individualidades dos usuários e consequentemente adequando-o ao perfil da clientela que atende; 4) educacional, com vistas a fazer com que um procedimento complexo e muito utilizado na prática laboral de enfermagem seja compreendido e aceito por pessoas que dele necessitam para sua recuperação, tratamento, diagnóstico ou estabilização e 5) política, que envolve a busca pela articulação entre o cuidado e a filosofia, recursos, carga de trabalho e quantitativo de trabalhadores em prol da qualidade do cuidado.
Além destas competências mencionadas anteriormente, cabe acrescentar a relevância de integrá-las com as tecnologias de saúde3 quando se almeja um cuidado de enfermagem com enfoque multidimensional e o exercício de uma prática menos fragmentada8.
MÉTODOS
Pesquisa delineada na Teoria das Representações Sociais segundo Moscovici12 e alicerçada na Teoria de Betty Newman realizada nos setores de internação cirúrgica (geral, neurocirurgia, plástica, cardíaca e hemodinâmica) e clínica (neurologia, ginecologia, infectologia e ortopedia) de um Hospital Filantrópico de Minas Gerais.
Amostra de seleção completa. Foram critérios de elegibilidade: 1) pessoas internadas em setores clínicos e cirúrgicos; 2) ambos os gêneros, idades ≥ 18 anos, que tiveram suas veias puncionadas para tratamento farmacológico, diagnósticos e/ou hemoterápico durante internação; 3) pessoas que se expressavam com coerência e 4) pessoas que concordaram em participar como voluntárias não remuneradas, externando a aquiescência de sua participação pela assinatura do termo de Consentimento Livre e Esclarecido pós-informado (TCLE).
Foram critérios de exclusão as pessoas que: necessitaram de privacidade para recuperação de situações clínicas (a exemplo da dor, desconforto ou mal-estar em curso) ou tiveram alta durante o período de realização de coleta de dados.
O recrutamento foi realizado nas enfermarias por convite individual. Participaram 149 pessoas, tendo havido 30 perdas, que foram repostas (recusa; desejo de interromper; interrupção da entrevista devido a cuidados assistenciais; alta hospitalar; recuperação após procedimento; por se considerarem ou estarem incapacitadas para participar no momento e por não estarem acompanhadas de um responsável).
Foram obtidas informações sobre a caracterização sociodemográfica dos participantes e triangulados métodos e técnicas de coleta de dados (entrevista com gravação de áudio; técnica de recorte; colagem de gibi e diário de campo). Foram questões norteadoras: Por que escolheu essa figura para representar a punção de vasos? Como a interpreta? Descreva algum momento marcante sobre "pegar veia".
Na técnica de recorte e colagem de gibi, os participantes manusearam 12 páginas de imagens (frente/verso) provenientes de três revistas de gibi de autoria de Maurício de Souza e uma da Disney cujos protagonistas eram os personagens: Cebolinha, Mônica, Penadinho, Marina, Zé Luiz, Mickey e Pateta, perfazendo 202 figuras13,14.
A coleta de dados ocorreu à beira do leito, no período de maio/2014 a fevereiro/2015, nos turnos vespertinos e no início do noturno por serem horários conciliáveis com as atividades assistenciais, com duração média de 20 minutos. Cada participante recebeu código contendo letras e números.
A coleta de dados se deu em dois momentos por tratar-se de um recorte de um projeto mais amplo. Ela foi antecedida pela participação das entrevistadoras em oficina que abordou a aplicação das técnicas comunicacionais no processo de coleta de dados de investigação científica ministrada por mestrandas.
A finalidade dessa oficina foi aproximar graduação/pós-graduação, potencializar a apreensão de evidências verbais/não verbais presentes nos discursos; favorecer a identificação da subjetividade contida na expressão de cada participante; captar suas experiências a partir dos conteúdos discursivos e possibilitar que a análise da sequência dos discursos subsidiasse uma análise consistente sobre o objeto desta investigação.
Outras finalidades foram identificar os limites das experiências relatadas e as relações de poder/submissão/ajuda/resiliência implícitas no processo de punção de vasos. Tais possibilidades atribuíram validade interna à investigação.
Os participantes escolheram as figuras, tendo como critério aquela que melhor retratasse suas percepções sobre "pegar veia". Foi gravado áudio para captar as explicações e interpretações dos conteúdos imagéticos, da percepção da temática e das experiências pregressas.
Os dados foram transcritos para o programa Word for Windows, tratados no Programa NVivo versão 10 e analisados concomitantemente com as mensagens comunicacionais evidenciadas por tom de voz, pausas, repetições de palavras, emissão de frases inacabadas, entre outras, captadas nos registros do diário de campo e nas gravações.
As variáveis de caracterização sociodemográficas quantitativas foram consolidadas no programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 23 e analisadas por estatística descritiva.
Utilizou-se o referencial de Minayo15 para distribuição (predefinição, exploração e categorização) dos conteúdos, buscando responder sobre a quem os participantes atribuíram a origem das experiências que os marcaram e a respeito de quem os discursos versavam. O resultado da trajetória categorial (denominação de "nós" no programa utilizado) possibilitou identificar a origem das experiências dos participantes que foram categorizadas em clusteres segundo similitude de conteúdos confirmada pela correlação de Pearson segundo análise binária de nós. Essa correlação variou de 0,507419 a 0,864717, confirmando a saturação de informações. Foi utilizada como critério de cientificidade para identificação das representações sociais a existência de ancoragem (proximidade dos participantes com o objeto de investigação) e objetivação (transposição do objeto de investigação para uma forma de concretude).
Todos os requisitos éticos/legais de pesquisa envolvendo seres humanos foram atendidos. O projeto foi aprovado pelo parecer número 522/853 em 06/02/2014.
RESULTADOS
Os participantes ficaram assim caracterizados (Tabela 1).
Gênero | n | % | Idade | n | % | Variabilidade (Md ± DP) |
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | 69 | 46,3 | 19I-40 | 32 | 21,4 | 18-89; (52,20 ± 15,790) |
Feminino | 80 | 53,7 | 40I-60 | 67 | 44,9 | |
Cor de pele | ≥ 60 | 50 | 33,5 | |||
Branca | 82 | 55 | Vínculos afetivos | |||
Negra | 17 | 11,4 | Sem companheiro | 69 | 46,3 | |
Parda | 48 | 32,2 | Com companheiro | 80 | 53,7 | |
Não declarada | 2 | 1,3 | Escolaridade | |||
Possui filhos | 0I-8 anos | 69 | 46,2 | |||
Sim | 123 | 82,6 | 8I-12 anos | 72 | 48,3 | 0-15 (7,26 ± 3,673) |
Não | 26 | 17,4 | ≥ 12 anos | 8 | 5,3 | |
Total | 149 | 100 | Total | 149 | 100 |
Os conteúdos imagéticos e as interpretações dadas pelos participantes a respeito de suas experiências próprias, com familiares, terceiros e com profissionais, que retrataram suas percepções a respeito do procedimento técnico de punções dos vasos, contemplaram quatro dimensões, a saber: 1) comportamentais/atitudinais: dor, medo, sensação de tomar um tiro, pavor, grito, nervoso e posição de pegar a veia; 2) cognitivas/informativas: saber que a instituição tem papel formador e por isso a aprendizagem integra as ações desenvolvidas nesse cenário; 3) valorativas: chato, entediante, ruim e gostar e 4) representacionais: agulha, garrote, equipo, doente e braço (conteúdo reificado) (Figura 1).
Houve variedade de aproximação dos participantes com situações e circunstâncias próprias, com terceiros, familiares e profissionais da área de saúde que lhes puncionaram os vasos.
A origem dos conteúdos representacionais advindos de experiências próprias e daquelas vivenciadas junto a familiares consta da Figura 2.
As categorias que retratam a origem das representações sociais advindas das experiências identificadas com terceiros e com os profissionais de saúde constam da Figura 3.
DISCUSSÃO
A análise dos relatos corroborados pelos conteúdos a respeito da transposição da agulha na pele justifica o relato de comportamentos de dor, desconforto e medo (pavor, dor, grito, nervoso) cuja tolerância e aceitação variam de acordo com a forma de enfrentamento, as experiências prévias, a idade daqueles que têm seus vasos puncionados e o comportamento que consideram que seja apropriado a sua manifestação de desagrado4,16. Ressalta-se que tais comportamentos são o reflexo da subjetividade dos sujeitos, que apresentam respostas humanas diversificadas diante de um mesmo estímulo.
Os comportamentos e sentimentos anteriormente descritos foram corroborados por dados empíricos de outra investigação que retratou como os participantes enfrentaram o processo de punção de vasos periféricos, apresentando medo e ansiedade na fase que antecedeu a punção e dor e desconforto na etapa da introdução da agulha4.
O fato de haver objetos entre as dimensões das representações indica que o processo de punção de vasos, embora seja um procedimento técnico (reificado), foi incorporado no senso comum pelos participantes por meio dos instrumentais utilizados para viabilizá-lo e condições/áreas corpóreas onde o procedimento é realizado (pessoas doentes e estrutura dos braços).
Esse objetos identificados foram corroborados com os conteúdos que descrevem como fazer uma punção17, quais as fundamentações que subsidiam a realização do processo, as pessoas que necessitam de uma veia puncionada e o material utilizado para garantir acesso ao vaso1,17.
O local em que este procedimento é realizado depende do tipo de solução que será infundida, da condição da veia, da idade do usuário, de sua preferência, do evidenciamento do vaso, das condições de morbidade, da duração da terapia e da política institucional de material1,18.
As localidades anatômicas para a realização da punção venosa periférica são braço (veias axilar, basílica e cefálica); antebraço (veias basílica, intermédia basílica, cefálica, intermédia cefálica, intermédia braquial, veia radial, veia ulnar; mão (veias do arco palmar superficial) e dedos (veias superficiais laterais e mediais dos dedos)1,4.
O fato de a instituição investigada ser cenário de formação de técnicos de enfermagem foi percebido pelos usuários, que apreenderam a presença dos estudantes como uma ameaça. A forma como eles captaram essa presença foi caracterizada pela ausência de habilidades/competências consolidadas ao puncionarem veias. Fato que justificou a interpretação do momento da punção de veias como possibilidade de insucesso e motivou uma avaliação negativa a ponto de considerá-la ameaçadora: "Tenho trauma daquelas meninas que estão aprendendo lá (local de ensino). Não gosto de tirar sangue lá". LD150
A aproximação de pessoas em formação profissional, quando não preparadas para serem inseridas nos cenários práticos por seus professores/tutores, além de causar uma exposição das mesmas ao julgamento valorativo dos usuários, ao perceberem inconsistências em seus comportamentos, falta de habilidade técnica em sua atuação e uso de vocabulário inadequado19.
As evidências anteriormente mencionadas permitem aos usuários concluir sobre a inabilidade dos futuros profissionais para lidarem com as situações da prática clínica, o que justifica eles se sentirem inseguros ou ameaçados. Esses fatores podem ser caracterizados como estressores interpessoais (entre cliente e os discentes). Outro tipo de estressor identificado é o ambiental, demonstrado por ser uma instituição de ensino5.
Considerando que toda instituição de saúde deve ser cenário de formação continuada de sua equipe de trabalho e/ou de futuros profissionais na área de saúde19, há necessidade de conciliação entre tecnologia e formação profissional. Uma estratégia é o uso de ensino em laboratório, utilizando modelos tecnológicos adaptados a esta finalidade. Eles visam favorecer a familiaridade dos estudantes com equipamentos e etapas técnicas até que adquiram destreza manual. Tais condições são fundamentais para se colocar futuros profissionais aptos para complementar sua formação sem expor tanto o profissional quanto os usuários a riscos e desconfortos passíveis de ser evitados18,19.
A diversidade de formas com que as pessoas respondem ao processo de punção de vasos periféricos, mesmo sob a aparência da adequação de comportamento social, requer que o profissional que punciona a veia seja capaz de captar as reações dos usuários de forma individualizada e valorizar sua participação no processo a ponto de favorecer seu enfrentamento e empoderamento diante desta situação10.
Experiências próprias
A partir dos discursos dos participantes, foi possível captar suas experiências e aproximações com o processo de punção venosa de forma implícita/explícita, nas quais se identificaram os componentes representacionais desencadeados pelo termo indutor "pegar veia".
A diversidade de situações e circunstâncias mencionadas contempla "sentir queimação no braço" e "suei", "sentir medo" e "não tem como mexer o braço". Essas expressões retratam o ato de "pegar veia" como algo capaz de gerar sofrimento e desconforto, que se agrava quando o período de uso dos vasos é prolongado ou as características dos vasos dificultam (a exemplo daquelas veias que não têm visibilidade, são finas, de calibre pequeno e tortuosas) sua punção ou manutenção pelo tempo terapeuticamente recomendado1,4.
Observou-se, na presente investigação, como estresses intrapessoais: as experiências próprias; a personalidade; a condição da pessoa; suas reações; características das doenças; os medicamentos utilizados e a duração de tratamento. Cabe acrescentar que o relato de "não tem como mexer o braço" configurou-se em um estressor funcional decorrente da influência dos equipamentos usados na infusão intravenosa sobre a mobilidade do participante e, por isso, segundo a classificação de estressores apontada por Neuman, esse foi considerado como de origem ambiental5.
O puncionar veia foi visto como causador de sofrimento na presente investigação, o que foi corroborado por outra pesquisa4, principalmente quando sua ocorrência estava associada a punções sucessivas e ao insucesso na primeira tentativa. Mesmo assim, nesses casos, houve relato de que o ato de punção foi tolerado, uma vez que os participantes mencionam: aquiescência para o fato por reconhecerem a necessidade de sua realização; receio de que suas reações piorassem a situação ou o benefício do tratamento/melhora/cura em detrimento de seu desconforto/dor.
Em alguns relatos, foi demonstrada familiaridade com o procedimento, a exemplo do mencionado pelo participante LD035, que alegou que, se movimentasse o braço, a agulha poderia sair do interior do vaso e gerar a necessidade de nova punção.
A repetição de experiências próprias descritas pelos participantes trouxe embutidos detalhes de comportamentos, atitudes, conhecimentos/informações que remeteram à relevância desta fonte de vivência para a ancoragem e objetivação dos conteúdos referentes ao termo indutor "pegar veia".
Experiências com situações de familiares
Os participantes que acompanharam seus familiares na vivência deste processo presenciaram situações como: "não achar a veia e ficar procurando com a agulha", "não conseguir realizar a punção e deixar o familiar todo roxo", o que favoreceu uma representação negativa do ponto de vista valorativo a respeito do processo de punção venosa.
Apesar de os conteúdos anteriores estarem presentes, eles evidenciaram que a experiência com situações de familiares teve pouca influência na construção da representação social para "pegar veia" nesta investigação.
A razão de a incapacidade de relatos consistentes ser insuficiente para a construção da representação social justifica-se pelo fato de os participantes priorizarem o foco de suas atenções para acolhimento de seu familiar em detrimento da técnica realizada. A pessoa, ao acompanhar um familiar no período de internação hospitalar, oferece base afetiva/emocional para o enfrentamento de situações difíceis e consideradas desagradáveis, expressando solidariedade a ele nesses momentos20.
Baseado neste contexto afetivo, a relação que se estabelece entre familiar e acompanhante identificada nesta investigação caracterizou-se como um estressor interpessoal5, uma vez que a presença do familiar influenciou, auxiliando e encorajando a pessoa que tem seus vasos puncionados a superar este momento e a lidar com a utilização das veias na busca pela obtenção dos benefícios do tratamento. Cabe mencionar a possibilidade de essa mesma influência ter sentido oposto, sendo o comportamento do familiar influência geradora de desequilíbrio sobre o sistema de força do indivíduo.
Experiências com profissionais que puncionam veia
Os relatos dos participantes remeteram à influência dos profissionais que puncionam veias a ponto de fazer com que o conteúdo das representações tivesse teor negativo ou positivo.
Observam-se, nesta investigação, como estressores interpessoais a relação e as percepções permutadas entre o ser que tem um vaso puncionado e o profissional que punciona a veia5, exemplificados por insegurança profissional, falta de preparo e habilidade, inexperiência, além da influência do temperamento, favorecendo a persistência em fazer várias punções até que se obtenha o êxito.
A tríade composta por características pessoais daquele que terá suas veias puncionadas, habilidade dos profissionais que operacionalizam a punção dos vasos e as peculiaridades do usuário retratadas pelo tipo de rede venosa e motivação terapêutica justifica a complexidade que caracteriza esse processo e o êxito/insucesso de sua realização.
Entre as ocorrências de traumas vasculares passíveis de ser identificadas estão: transfixação do vaso com extravasamento de sangue, irritação da(s) camada(s) do vaso, dor no local da inserção do cateter intravascular ou no trajeto venoso, espasmo venoso1,4,21 e sofrimento humano. Nessa concepção, a abordagem do risco para trauma vascular pode ser considerada um diagnóstico de enfermagem16 e um parâmetro de aferição da qualidade do cuidado.
Ao analisar comparativamente a repercussão das manifestações de trauma vascular com as complicações sistêmicas (embolia aérea, reação alérgica, infecção sistêmica e sobrecarga circulatória)18, as primeiras podem parecer inofensivas e não justificar uma preocupação profissional. Entretanto, pelo fato de comportarem ações preventivas e paliativas, qualificarem a individualização do tratamento/cuidado e gerarem sofrimento humano4,21, merecem ser foco de uma releitura sobre como a prática profissional está sendo realizada a ponto de possibilitar sua reestruturação à luz de paradigmas técnicos, teóricos, taxonômicos e filosóficos5 que permitam ações laborais com o intuito de minimizá-las.
Outra concepção identificada entre os participantes foi aquela em que eles expressaram carinho pela profissão e valorizaram o profissional de enfermagem. A forma como exprimem esta valorização inclui nomeá-los de "anjinhos", no intuito de expressar como se sentem tranquilos, cuidados, tratados em sua doença e beneficiados com sua presença. Um exemplo foi mencionado pelo participante LD048: "Simboliza um anjinho (figura) vindo acalmar a pessoa (representando o profissional) (risos). A pessoa com medo e um anjinho vindo para tranquilizar ela (risos)".
O fragmento do relato anteriormente mencionado demostra resquícios da concepção da enfermagem enquanto uma profissão vinculada às ações de piedade, caridade e compaixão, na analogia proposta por Caponi ao utilizar a imagem/símbolo da mulher consagrada para retratar a origem histórica da profissão, em oposição ao comportamento de solidariedade que deve nortear a ação profissional10.
Nessa concepção, o "anjinho" pode ser compreendido como uma representação imagética do profissional enfermeiro e, para que seja modificada essa representação, há necessidade de que esse profissional construa uma relação com os usuários baseada na solidariedade, no diálogo, na ética, nas ações humanizadas, no resgate de sua participação e autonomia a ponto de empoderá-los da responsabilidade que lhes cabe com sua saúde e seu tratamento.
Dessa forma, o enfermeiro será capaz de tornar a pessoa que terá sua veia puncionada protagonista do cuidado em detrimento da posição que a coloca como mera espectadora9-11. Isto equivale a dizer que os usuários devem ser vistos como sujeitos ativos de suas histórias, caminhando na busca por uma conscientização mais crítica de sua realidade11.
Experiências com situações de terceiros
Nessa categoria, a frequência com que os vasos periféricos foram puncionados e mantidos nas pessoas e nos ambientes próximos fez com que a presença desse procedimento favorecesse sua ancoragem para os participantes.
Foram situações presenciadas por eles com pessoas conhecidas e/ou desconhecidas que permitiram supor que, na realização deste procedimento, não tem sido mantida a privacidade daqueles que tiveram seus vasos puncionados.
Ficou explícito que os participantes já puderam acompanhar e ver outras pessoas vivenciando o processo de punção de vasos, quando observaram comportamentos, sentimentos e atitudes que retrataram ou deixaram perceber: o ato de gritar, a ansiedade, o desagrado, a preocupação com o êxito do procedimento, a solidão e a circunstância inevitável que decorreu desse momento. Tais experiências levaram os participantes a atribuírem valor "negativo" para este processo, caracterizando-o como ruim e doloroso.
Tal fato foi corroborado em dados obtidos em outras investigações, nas quais terceiros relataram ter presenciado a realização deste procedimento4,16,17 e descreveram que isso influenciou seus comportamentos, refletindo sobre os componentes representacionais identificados para o processo de punção venosa.
O processo de punção venosa foi percebido como fonte de estresses interpessoais, intrapessoais e extrapessoais5 para si e para quem teve sua veia puncionada, apesar de ser reconhecidamente um componente favorecedor do restabelecimento de morbidade.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
Os tipos de experiências dos participantes originados das situações próprias, com familiares, com terceiros e na relação com os profissionais que puncionaram seus vasos foram considerados marcantes a ponto de justificar a presença dos elementos representacionais obtidos para a temática, cuja origem predominantemente técnica pode ser apreendida pelos leigos.
Foram retratados acontecimentos e circunstâncias que envolvem o cotidiano do processo de punção de vasos desencadeadores de sofrimento e de dificuldade para seu enfrentamento. Estes foram traduzidos em relatos e imagens cujo teor negativo refletiu estressores intrapessoais, interpessoais e extrapessoais, apesar de os participantes reconhecerem sua necessidade e de aceitarem sua realização na busca pelo seu restabelecimento.
Esses estressores constituem marcadores implícitos/explícitos, caracterizando lacunas nas demandas de cuidados de enfermagem no que diz respeito à integração de tecnologias relacionais, cognitivas/especializadas e instrumentais passíveis de nortear a atuação do enfermeiro e da sua equipe.
A presente investigação trouxe como contribuição a necessidade de relativizar valores, conceitos e saberes que devem permear existencialmente os procedimentos de punção de vasos periféricos no sentido de se gerar uma práxis com possibilidades de intervenção inter-humana. Esta de forma que os atores envolvidos sejam beneficiados e possam crescer em um continuum que caracterize um estado de arte em que o cuidado seja o caminho intermediador para o aperfeiçoamento humano. Nesse contexto, o foco das ações profissionais se transfere do resultado para o processo.
O limite da presente investigação constitui a impossibilidade de transposição para outra realidade e se justifica pela opção do delineamento adotada.
REFERÊNCIAS