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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 20, Número 2, Abr/Jun - 2016



DOI: 10.5935/1414-8145.20160030

PESQUISA

Estereótipos sexistas na enfermagem portuguesa: Um estudo histórico no período de 1935 a 1974

Deybson Borba de Almeida 1
Paulo Joaquim Pina Queirós 2
Gilberto Tadeu Reis da Silva 3
Aline Di Carla Laitano 4
Sirléia de Sousa Almeida 4


1 Universidade Estadual de Feira de Santana. Salvador, BA, Brasil
2 Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Coimbra, Portugal
3 Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil
4 Prefeitura Municipal de Salvador. Salvador, BA, Brasil

Recebido em 06/10/2015
Aprovado em 19/01/2016

Autor correspondente:
Aline Di Carla Laitano
E-mail: alinelaitano@yahoo.com.br

RESUMO

Gênero pode ser entendido como uma construção histórica, plural e, historicamente, definidos.
OBJETIVO: Identificar estereótipos sexistas da enfermagem portuguesa entre o período de 1935 a 1974.
MÉTODOS: Investigação histórica com abordagem qualitativa. Como banco de dados para este estudo, foi utilizado os diários das sessões da Assembléia Nacional e da Câmara Corporativa de Portugal.
RESULTADOS: Os achados encontrados configuraram as seguintes categorias de análise: influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar, gênero como uma formação social e enfermagem como campo de trabalho feminino, exploração do trabalho em enfermagem, gênero como uma formação social e enfermagem como saber auxiliar, enfermagem como sacerdócio.
CONCLUSÕES: Afirmamos, a necessidade de compreensão da enfermagem como trabalho, marcada por contextos históricos e culturais, a fim de pensarmos em caminhos para a valorização e o reconhecimento social do trabalho da enfermeira.


Palavras-chave: Enfermagem; Identidade de gênero; História; Feminismo.

INTRODUÇÃO

Gênero pode ser entendido como uma concepção histórica, social, plural, permeado por predefinições entre o conceito de feminino e masculino, social e, historicamente, definidos. Sendo que, a ideia de pluralidade sobre esse conceito, implicaria em admitir não apenas que sociedades diferentes teriam concepções diferentes de homem e mulher, como também que no interior de uma sociedade tais concepções seriam diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade etc1.

Nesse sentido, o conceito de gênero sofre influências da cultura social, de papéis sexuais estabelecidos pela sociedade e firma como devem ocorrer as relações homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher e, não, necessariamente, apenas a relação homem-mulher, como a maioria dos estudos colocam. Corroborando para uma noção que postula que o sexo social é o produto de uma construção social permanente que dá forma, no interior de todas as sociedades humanas, à organização das relações sociais entre homens e mulheres2.

Portanto, o gênero é o elemento constitutivo dessas relações sociais assentadas nas diferenças perceptíveis entre os sexos, e é um primeiro modo para dar significado às relações de poder. Nessa direção, o gênero não se restringe a identidade biológica sexuada, mas à construção social como sujeito masculino e feminino, que se produzem em relação, não mais fixa e imutável, mas, sim, sujeita a todas as transformações histórico-sociais3.

Em paralelo, a ação de cuidar de pessoas sempre esteve, culturalmente, mais ligada à mulher do que ao homem, desde o período antes de Cristo, na Roma Antiga e na Idade Média. O trabalho de enfermagem estava, na sua origem, associado ao trabalho e ao gênero feminino, pouco valorizado socialmente, atribuído ao papel designado à mulher pela sociedade de classe4.

Nessa lógica, pensando no gênero definido social e culturalmente, podemos dizer que a mulher tem uma série de experiências que "objetivam" a construção de aptidões e habilidades do campo feminino, sendo o cuidar de pessoas uma dessas. A menina ganha bonecas para cuidar e o menino ganha carro para dirigir e bolas para jogar.

Nessa direção são conformados os estereótipos. Estes são generalizações não científicas sobre o que é considerado característico de cada gênero e, são produto/produtor de preconceitos que, muitas vezes, firmam os interesses hegemônicos. Devido as suas consequências, os estereótipos e preconceitos relacionados com o gênero se destacam, e reverberam em representações sexistas das mulheres, que produzem efeitos adversos na sociedade e nas mulheres5.

Nessa teia social, identificamos os estereótipos sexistas, que ocorrem desde a infância e estendem-se ao longo da vida, com uma série de comportamentos predefinidos que obrigam, tanto a mulher quanto ao homem, a uma luta constante pela libertação6. E, neste estudo, buscamos aprofundar sobre os estereótipos sexistas da enfermagem portuguesa.

No campo teórico, este trabalho justifica-se por tratar de uma profissão predominantemente de mulheres, que são pouco reconhecidas e valorizadas socialmente, que vivenciam, cotidianamente, situações de exploração do trabalho, preconceito e pouca visibilidade profissional.

Outra questão que acresce à justificativa é a produção escassa sobre o tema. Em pesquisa na Biblioteca Virtual de Saúde, foram encontrados 11 estudos que versam sobre os "exteriótipos sexistas" e apenas dois sobre "exteriótipos sexistas na enfermagem".

Diante disso, este artigo tem como questão norteadora: Quais são os estereótipos sexistas da enfermagem portuguesa entre o período de 1935 e 1974? Tendo como objetivo identificar esses estereótipos na enfermagem na delimitação de tempo já apontado.

REFERENCIAL TEÓRICO

Em um recorte temporal, situado na década de 30 a 70, Portugal viveu uma das mais longevas ditaduras de toda a Europa Ocidental, denominado como Estado Novo, tendo como figura central, António de Oliveira Salazar Algumas características centrais em destaque: a censura aos meios de comunicação social, a criação da Mocidade Portuguesa: organização juvenil criada, em 1936, com o intuito de orientar a juventude para os valores patrióticos e nacionalistas do Estado Novo e a retirada de todo caráter reivindicatório dos trabalhadores7.

Na literatura portuguesa, esse longo período entre a Revolução Militar de 1926 e a Revolução de 25 de abril de 1974, denominado Revolução dos Cravos, caracterizado pela onipresença constante da repressão política e policial, meio século de censura à mídia e aos espetáculos, supressão rigorosa das liberdades fundamentais, com sistema de polícia (PIDE), tribunais especiais e prisões, cujo vértice principal era a violação dos direitos dos cidadãos8.

No que tange a evolução, o sistema de saúde em Portugal, foi marcado pela ideologia caritativa que imprimiu na legislação uma concepção de assistência médico-sanitária. O hospital foi considerado o elemento central do sistema de saúde, tendo as casas de misericórdia, predominantemente, a coordenação dessas atividades e a filosofia subjacente que preconizava a não intervenção do Estado nos problemas de saúde9.

No início do século XX, havia em Portugal dois tipos de enfermeiras: as religiosas ou congreganistas e as laicas ou seculares. Sendo que os registros da literatura que apontam para a inferioridade da enfermagem praticada pelas religiosas, dado ao fato de não possuírem conhecimentos científicos; não utilizarem vestuário adequado à prática de cuidados; assumirem-se como missionárias e, nesse sentido, imporem as suas crenças e prestarem tratamento diferenciado aos doentes que as não partilhassem; serem hierarquicamente subordinadas à abadessa ou ao abade; revelarem arrogância perante a técnica e mostrarem mais preocupação com a salvação da alma do que com o alívio do sofrimento dos doentes10.

No que concerne ao entendimento das práticas assistenciais da época, seu conceito esteve quase sempre associado a uma prática de caridade, centrado na abnegação, no esquecimento do eu em detrimento do outro, e comprometido com interesses religiosos, políticos e econômicos11.

Em outro ponto, o modelo de formação em enfermagem foi baseado no anglo-americano, o qual preconizava que as alunas fossem detentoras de cultura e educação elevadas, semelhante as dos jovens que se candidatavam aos cursos superiores; que a formação decorresse por um período relativamente longo (três a quatro anos); os estágios deviam ser realizados sob supervisão de docentes enfermeiras12.

Corroboram outros autores, ao apontarem que, à época, os aspetos da cultura geral eram importantes para o desempenho da profissão, afirmando que: "além da vocação, da caridade para com os enfermos e das noções gerais de enfermagem, a enfermeira necessita, também, de uma cultura geral que lhe permita trocar impressões com o médico e com os doentes11.

É válido destacar que a primeira escola de enfermagem fundada em Portugal, em 1881, foi uma iniciativa de Costa Simões, denominada Escola de Enfermagem de Coimbra, não visava à preparação de pessoal para substituição das irmãs de caridade nos serviços hospitalares, na verdade, os hospitais da Universidade de Coimbra nunca tinham se servido por religiosas, segundo ele, tal empreitada era para dar melhor instrução a enfermeiras e enfermeiros e habilitar as criadas do estabelecimento a concorrerem com as vagas13.

Nessa direção, a formação em enfermagem passa por algumas dificuldades, como no caso do insucesso da escola para enfermeiros no hospital de São José em Lisboa: "O curso de enfermeiros não tem dado o resultado que se esperava, principalmente porque os indivíduos aceites para os hospitais são na maior parte analfabetos"13.

Ainda nesse período histórico, a literatura pesquisada volta a enfatizar os critérios de habilitação para o ingresso da educação em enfermagem, em destaque para: considerar a enfermeira como auxiliar do médico ou como elemento auxiliar da medicina, bem como, seus valores religiosos e morais11.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo histórico de abordagem qualitativa, caracterizado como estudo que se ocupa do passado do homem e consiste em localizar, avaliar e sintetizar, objetivamente, os fatos, a fim de obter conclusões referentes aos acontecimentos do passado, em específico, identificar esses estereótipos na enfermagem portuguesa, no período de 1935 a 197414.

Essa proposta de pesquisa foi originada a partir de articulações entre a Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia e a Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, para realização de estágio doutoral, quando foi apontada pelo professor da instituição portuguesa a possibilidade de análise do banco com diários das sessões da Assembléia Nacional e da Câmara Corporativa de Portugal, no período de 1935 a 1974.

Vale destacar que esse último já havia feito buscas nesse banco de atos legislativos, no site da Assembléia da República de Portugal, com as seguintes palavras: enfermagem, enfermeira, enfermeiras, enfermeiros e enfermeiro. Foram selecionadas 1687 páginas dos diários das sessões da Assembléia Nacional e da Câmara Corporativa de Portugal.

Os dados foram coletados entre o período de 13 de abril a 27 de agosto de 2015, quando todas as páginas foram lidas, extraídos os textos que tratavam da enfermagem ou da profissional enfermeira.

Para a análise dos achados adotou-se o método de análise de conteúdo, na técnica de análise temática, definido como um método de análise de texto que reduz a complexidade deste, abrangendo técnicas estatísticas e a análise qualitativa dos materiais de pesquisa. Esse método nos permite reconstruir indicadores e cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, preconceitos e estereótipos15.

A análise de dados passou por três etapas, em destaque:

  1. Leitura compreensiva do material selecionado: efetuamos a leitura dos diários legislativos e selecionamos os trechos que tratavam de enfermagem, enfermeiros, enfermeiro, enfermeiras e enfermeira. Estes foram inseridos em uma planilha contendo os dados de identificação do diário, tópico no qual se enquadrava e texto transcrito.

  2. Exploração do material: quando atribuímos sentido aos trechos transcritos, indo além das falas e dos fatos, destacando o tópico principal do parágrafo ou seu tema.

  3. Elaboração da síntese interpretativa: no momento em que aglutinamos trechos transcritos a partir do tema que se tratava, onde emergiram as seguintes categorias de análise: influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar, gênero como uma formação social e enfermagem como campo de trabalho feminino, exploração do trabalho em enfermagem, gênero como uma formação social e a enfermagem como saber auxiliar e enfermagem como sacerdócio.

RESULTADOS

Nesta direção, apresentamos os resultados por décadas apenas por uma questão didática, contudo, entendemos a história numa perspectiva da Escola de Annales, uma história social que correlaciona passado, presente e o futuro, em uma cadeia de acontecimentos contínuos e descontínuos.

Tabela 1. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 30
Fonte Como é descrito Análise
1935 [...] No serviço de saúde, o tempo de serviço de que trata a condição 2º (Ter, pelo menos, um ano de serviço, sujeito a nomeação de escala, como furriel) do presente artigo pode ser desempenhado no todo ou em parte pelos furriéis, enfermeiros ou praticantes de farmácia. [...] Influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar
1938 [...] à importância de introduzir nas escolas a prática de trabalhos manuais, com um programa de trabalhos femininos e masculinos. [...] Sugere-se a prática de costura e outros para meninas [...] Visto que as mulheres quando donas de casa precisarão saber de tudo, de cozinha, de costura, de enfermagem, de artes decorativas, etc. [...] gênero como uma formação social e enfermagem como campo de trabalho feminino
1939 [...] que missões estrangeiras possuam hospitais e postos sanitários privativos [...] enfermeiros [...] em ótimas condições para mais eficientemente obter os seus desígnios. [...] A exploração do trabalho em enfermagem
Tabela 1. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 30
Tabela 2. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 40
Fonte Como é descrito Análise
1941 [...] Diz que a situação monetária das enfermeiras e enfermeiros é de se lamentar [...] o percorrido pelo enfermeiro até chegar à chefia [...] na melhor das hipóteses, três anos [...] o enfermeiro trabalhará dedicado a servir o próximo, arriscando a sua saúde entre lamentos e sujeito a contágios, cerca de treze anos para atingir a situação de enfermeiro chefe, ganhando tanto, exceto de subchefe em diante, como um porteiro ou alguns serventes. [...] Exploração do trabalho em Enfermagem
1944 [...] destaca que essas mulheres que fazem a enfermagem em hospitais oferecem um exemplo de abnegação que dificilmente atingem as profissionais, mesmo as melhores. [...] Enfermagem como Sacerdócio
[...] a necessidade de se formar mais enfermeiras com a severidade do recrutamento, a disciplina e o ambiente moral da corporação onde ingressam ascendem-lhes um espírito de devoção carinhosa [...] Influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar
[...] Uma enfermeira visitadora que além do serviço social e de visitação auxiliará os médicos das várias seções. [...] [...] Uma enfermeira visitadora que auxiliará os médicos das várias seções. [...] Gênero como uma formação social e enfermagem como saber auxiliar
1945 [...] Que nos serviços de enfermagem feminina deste hospital só possam de futuro ser admitidas candidatas solteiras ou viúvas, sem filhos [...] As que não tenham presentemente filhos terão de abandonar o serviço hospitalar [...] quando de futuro os venham a ter [...]e quando venham a consorciar-se. [...] Enfermagem como Sacerdócio A exploração do trabalho em enfermagem
[...] Há enfermeiros que trabalham normalmente 12 horas e, às vezes, até 19 horas nas 24 [...] assim, porque, sendo casados e com dois filhos, têm [...] abono de família. Numa enfermaria com 120, e, às vezes, até mais, doentes há durante à noite um servente e um enfermeiro, o qual recebe generosamente dois decilitros de café durante à noite, mas nada de comer, pois que este pessoal não tem direito a alimentação. [...] A exploração do trabalho em enfermagem
[...] sobre a formação das enfermeiras é muito complexa; ela importa principalmente duas formações: a formação técnica e a formação moral [...] afirmou que não ter moral causa inconvenientes imensamente maiores do que não possuir técnica. [...] Enfermagem como Sacerdócio
[...] de modo que, cada freguesia rural possua, ao menos, um posto de socorros, sob a chefia de um enfermeiro honesto e competente, subordinado diretamente ao médico camarário. [...] Enfermagem como Sacerdócio
Tabela 2. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 40
Tabela 3. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 50
Fonte Como é descrito Análise
1951 [...] impedem o casamento às enfermeiras hospitalares falando-se que as enfermeiras que sejam esposas ou mães vão sacrificar aos penosos horários do serviço hospitalar [...] o legislador a não julga compatível com os deveres da esposa e da mãe [...] estas enfermeiras de serviço mitigado, por serem casadas, não é permitida a promoção. [...] Enfermagem como sacerdócio
[...] Argumentou a favor de revogar a lei que proibia as enfermeiras de casar e aqueles que têm filhos, como, viúvas de não exercer a profissão. Julga a lei anticonstitucional, ferindo a instituição familiar, ocasionando abortos e que nem a própria Igreja era de acordo, pois tinham enfermeiras casando ilegalmente. [...]
1952 [...] Mais uma vez, no debate, destaca-se o posicionamento do enfermeiro-mor, que está sempre a proibir o atendimento desses pacientes. [...] Influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar
1954 [...] A principal homenagem que faz é dirigida a D. João de Deus, figura notável de sacerdote e de missionário [...] que nas horas duras da guerra foi enfermeiro abnegado de almas e de corpos. [...] Enfermagem como sacerdócio
[...] como enfermeiras desveladas que cuidam de corpos sem esquecerem as almas. [...]
[...] fez-se apelo pela imprensa, rádio e televisão às raparigas e senhoras desocupadas para ajudar as enfermeiras nos hospitais carecidos de pessoal. [...]
1955 [...] Orador continua discutindo o direito da mulher de exercer quaisquer funções alheias à família, como educação e ensino, serviços sociais e enfermagem [...] gênero como uma formação social e enfermagem como campo de trabalho feminino
[...] uma enfermeira permanente, que ajudará o médico e executará as suas instruções, para tratamento dos doentes [...] gênero como uma formação social e enfermagem como saber auxiliar
1956 [...] com efeito, o enfermeiro precisa possuir conhecimentos de anatomia, de fisiologia, de farmacologia, de patologia, de higiene, etc.[...] para bem compreender o alcance da prescrição médica [...] gênero como uma formação social e enfermagem como saber auxiliar
[...] relação da enfermagem com a Abnegação. Segundo o Orador, a enfermagem laica, na Revolução Francesa, afastou a caridade [...] Enfermagem como sacerdócio
[...] a importância das ações da Enfermagem, a história da Enfermagem pautada na caridade e no sacerdócio. [...]
[...] o motivo para esse déficit de enfermeiros: A falta de escolas e os vencimentos que não correspondem ao nível intelectual e ao sacrifício exigido. [...] Enfermagem como sacerdócio A exploração do trabalho em enfermagem
Tabela 3. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 50
Tabela 4. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 60
Fonte Como é descrito Análise
  [...] a enfermagem psiquiátrica, diz que esta, essencialmente especializada, continua a exigir virtude, civismo e, cada vez mais, nível profissional e formação moral elevados dos seus profissionais. [...] Influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar Enfermagem como Sacerdócio
1967 [...] (fala do déficit de pessoal e sobrecarga de trabalho) tornando a profissão mais árdua e, com certeza, a assistência ao doente menos eficaz [...] A exploração do trabalho em enfermagem
[...] Ao tratar do serviço militar voluntário feminino, prevê-se na proposta que também a mulher possa ser admitida à prestação do serviço militar, com caráter de voluntariedade. [...] sugere-se que as mulheres sejam chamadas para o trabalho da assistência na retaguarda a feridos e doentes [...] Influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar
1968 [...] não compreende a mulher que possa matar, mas entende que ela pode aliviar o sofrimento [...] como enfermeira. [...] gênero como uma formação social e enfermagem como saber feminino
Tabela 4. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 60
Tabela 5. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 70
Fonte Como é descrito Análise
1970 [...] o cargo de enfermeiro-subchefe estava sendo desempenhados por um auxiliar de enfermagem, e em outros casos esses cargos estavam vagos [...] revela que a falta de profissionais é motivada porque muitas vão para o estrangeiro, outras casam e desistem da profissão, vão para a Previdência e casas de saúde particulares, porque lhes pagam melhor [...] A exploração do trabalho em enfermagem
1971 [...] A falta de enfermeiros para a prestação dos cuidados necessários ao doente [...] desvio do pessoal de enfermagem geral para as funções de gabinete [...] gênero como uma formação social e enfermagem como saber auxiliar A exploração do trabalho em enfermagem
Tabela 5. Estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa na década de 70

DISCUSSÃO

Em caráter didático, discutiremos os tópicos temáticos na sequência do maior para o de menor em ocorrência.

No eixo temático exploração do trabalho em enfermagem, as citações tabuladas revelam uma equipe de enfermeiras submetidas às condições precárias de trabalho, baixos salários, sobrecarga de trabalho, carga horária de trabalho subumana, repercutindo na marginalização da profissão.

Com relação a isso, observamos que o trabalho na enfermagem nasce como essencialmente feminino e, como tal, em uma sociedade patriarcal, sofre opressão, dominação e marginalização. Tal situação se expressa nas condições de trabalho em enfermagem, sustentados na enorme fragilidade da luta por melhores condições de trabalho e de vida, no baixo o índice de sindicalização de mulheres, na alienação, na falta de tradição política da mulher, no elitismo, submissão, falta de consciência de classe (enfermeira não se considera trabalhadora), na acomodação e ignorância16.

Estudos mais recentes destacam que a enfermagem portuguesa, não diferente de uma maioria mundial, está marcada por grande parte dessas deficiências: más condições de alojamento, alimentação, vencimentos, educação e instrução, em que vivem os nossos enfermeiros e enfermeiras, sendo necessário promover uma campanha a favor de um maior e melhor recrutamento do pessoal de enfermagem, aperfeiçoando o trabalhador para o exercício profissional11.

Nos dados encontrados na categoria influência das forças armadas na profissão e a enfermagem militar, observamos que a inserção da mulher no serviço militar ocorreu com o objetivo de dispor de um trabalho voluntariado e caridoso, considerando os interesses expansionistas e econômicos, expressos no valor do corpus social de um soldado.

No entanto, considera-se que a organização militar destacou as contribuições mais elementares da enfermagem, dando destaque para a ação de vigiar os doentes. Por outro lado, marcou essa profissão de forma singular, em especial, implicando na divisão social do trabalho, na separação do saber e fazer, repercutindo na desvalorização do cuidado da enfermeira.

Corroboram outros autores ao afirmarem que a enfermagem sofre grande influencia da organização militar, em especialmente com o princípio da unidade de comando, encontrado na organização linear, tendo suas origens no exército e na época medieval, refletindo na dicotomia entre o pensar e fazer na enfermagem17.

Nessa direção, para alguns autores, a divisão social do trabalho inicia-se nesse período. O serviço de enfermagem era prestado por matron (elemento feminino que dirigia o serviço de enfermagem) e a de sister (para as mulheres encarregadas pela enfermaria), divisão inspirada na organização militar e a hierarquia religiosa, referência datada do período colonial.

Outro aspecto relevante foi destacar as escolas militares de enfermeiras, aqui denominado, formação militar na Enfermagem. Muitos registros versavam sobre a contribuição das instituições militares para recrutar e formar enfermeiras para atuarem nas guerras ou auxiliando o papel colonialista de um país, no caso de Portugal, há estes dois registros.

Dos aspectos encontrados nessa categoria analítica, gênero como uma formação social e enfermagem como saber auxiliar, observamos que a enfermagem é vista como uma prática auxiliar e de colaboração que pode ser moldada a mercê dos interesses e lacunas do serviço.

Algumas autoras afirmam que a respeito da enfermagem, além de ser vista como estruturalmente secundária, a desigualdade com a medicina se acentua pelo fato dela ter uma história ligada ao fazer, desarticulada de uma teorização e de uma formação sistemática e científica e como conseqüência, o reflexo mais forte é a desvalorização e o desprestígio da profissão em relação à medicina18.

Contudo, o trabalho de enfermagem, demandado pelo avanço tecnológico hospitalar e as epidemias, precisou de um saber técnico-científico próprio, e a apropriação desse saber possibilitou que o Estado entendesse o impacto desse profissional nos serviços e sistemas de saúde a fim de atender às necessidades de saúde da população.

Vale salientar que, apesar dessa compreensão, os atos legislativos buscavam assegurar a hegemonia médica e a submissão da enfermagem, tendo, essa última, como uma prática auxiliar, explorada pela categoria médica, a fim de garantir seus interesses econômicos e profissionais.

Já sobre o eixo temático, gênero como uma formação social e enfermagem como campo de trabalho feminino, notamos que a convocação de trabalhadores esteve sempre voltada ao feminino, bem como, a indução da mulher para ações tidas como "domesticas", em exemplo, para o cuidado.

Algumas autoras colocam que a identificação da enfermagem com essas atividades, tidas como femininas, é uma falácia, bem como a sua explicação de que é decorrente de um "impulso" da mulher que se identifica com o "instinto materno", como um instinto de conservação da espécie presente até nos animais18.

Ela, a autora, diz que tal afirmação é um mito. A mulher não nasce mãe, e sim, um ser humano de sexo feminino, e os papéis ocupados por ela na sociedade vão sendo construídos dialeticamente a partir das próprias condições histórico-sociais18.

Esses achados reforçam que a enfermagem nasce como profissão feminina, determinada por uma série de interesses econômicos e sociais, para que fosse tida como uma prática desvalorizada, submissa e explorada, a fim de atender aos interesses do sistema econômico e político vigente.

Por fim, encontramos como categoria de análise a enfermagem como um sacerdócio, com maior ocorrência de citações que relatavam a enfermagem como prática desvelada, caritativa, moralizada e abnegada. Em exemplo: A exigência de que as mulheres contratadas para trabalhar como enfermeiras deveriam ser solteiras e sem filhos, excluindo as casadas, com filhos e viúvas.

Essa determinação impactava na ocorrência de abortos e casamentos ilegais entre as enfermeiras e, por outro lado, servia como agente de vulnerabilização das mulheres exploradas pelo Estado e serviços de saúde.

Percebemos que, ao passo em que é proibida a constituição de família em prol da justificativa da impossibilidade de conciliação do trabalho como enfermeira com a condição de esposa, de algum modo, isso denota o alto grau de exploração dessas trabalhadoras, dando similaridade com o trabalho escravo.

Observamos nos achados legislativos que um número significativo de mulheres, interessadas em exercer a enfermagem tinham, na realidade, interesse nos benefícios atrelados ao período de formação, como um lar, alimentação e possibilidade de estudar.

Tais influências remontam da própria formação Em Portugal, muitas das escolas eram geridas por ordens religiosas ou fundações privadas, com formação centrada no domínio da prática, na primeira parte do Curso. A ênfase era dada para a destreza e perícia manuais e a enfermeira seria um misto de bondade, habilidade e obediência13.

Contudo, em Portugal, houve a justaposição de dois tipos de enfermeiras: as religiosas ou congreganistas e as laicas ou seculares. Estudiosas alertam para a inferioridade da enfermagem praticada pelas religiosas, dado não possuírem conhecimentos científicos; não utilizarem vestuário adequado à prática de cuidados; assumirem-se como missionárias e, nesse sentido, imporem as suas crenças e prestarem tratamento diferenciado aos doentes que as não partilhassem; haver incompatibilidade entre os seus deveres de religiosas e de enfermeiras; serem hierarquicamente subordinadas à abadessa ou ao abade, o que era impeditivo da seleção das enfermeiras mais competentes e da manutenção da estabilidade e qualidade dos cuidados nas enfermarias; revelarem arrogância perante a técnica; exercerem sem título; mostrarem mais preocupação com a salvação da alma do que com o alívio do sofrimento dos doentes e saírem mais dispendiosas que as enfermeiras laicas10.

Todas essas questões estão atreladas aos estereótipos sexistas, ao papel social preconizado a mulher e ao homem e determinam e corroboram para uma prática profissional em enfermagem alienada e subjugada por interesses econômicos de dominação, opressão e marginalização.

Nessa direção, identificar a enfermeira com o estereótipo de anjo é uma forma de reafirmar uma identidade que à distância do profissionalismo e de uma postura de engajamento político, a mantém como ser que exerce uma ocupação sagrada e serve para afastá-la do aspecto profissional. E essa atitude serve para justificar e ou manter os baixos salários e o status social inferior, que tem marcado a enfermagem ao longo da história18.

CONCLUSÃO

Retomando a questão de pesquisa, quais são os estereótipos sexistas na Enfermagem Portuguesa entre o período de 1935 a 1974? Observamos que esses estereótipos passam pela construção social e cultural da mulher e, em especifico, marca a enfermagem como prática auxiliar e explorada, representada na figura do anjo.

Percebemos que os achados deste estudo corroboram com os estudos existentes, entretanto, revelam especificidades da enfermagem portuguesa, entre a década de 30 a 70, importantes para a compreensão e superação da trajetória histórica da enfermagem.

Afirmamos a necessidade de compreensão da enfermagem como trabalho, marcada por contextos históricos e culturais, a fim de pensarmos em caminhos para a valorização e o reconhecimento social do trabalho da enfermeira, ficando evidenciado que a história da mulher na sociedade se confunde com a história da enfermagem e que os caminhos construídos foram demarcados por interesses políticos, econômicos e culturais.

Assim, percebemos que apesar da enfermagem nascer como um trabalho auxiliar, sem base científica, esta se torna uma profissão essencial aos serviços e sistemas de saúde, conformando um corpo de conhecimento complexo e próprio, aglutinando saberes de diversas áreas impactando nas necessidades em saúde das populações.

AGRADECIMENTOS

Por fim, devemos agradecer à Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, no distrito de Coimbra, da Região Centro de Portugal, que oportunizou e incentivou a realização desta pesquisa e, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que por meio do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) financiou este estudo.

REFERÊNCIAS

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