Volume 20, Número 2, Abr/Jun - 2016
PESQUISA
Os cuidados de enfermagem e o exercício dos direitos humanos: Uma
análise a partir de realidade em Portugal
Marciana Fernandes Moll
1
Aida Cruz Mendes
2
Carla Aparecida Arena Ventura
3
Isabel Amélia Costa Mendes
3
1 Universidade de Uberaba. Uberaba, MG, Brasil
2 Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Coimbra, Portugal
3 Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil
Recebido em 15/10/2015
Aprovado em 25/01/2016
Autor correspondente:
Isabel Amélia Costa Mendes
E-mail: iamendes@usp.br
RESUMO
OBJETIVO:
Descrever a prestação de cuidados de enfermagem em serviços de psiquiatria
para adultos de uma cidade de Portugal, na perspectiva do exercício dos
direitos humanos.
MÉTODOS:
Utilizou-se a observação indireta dos cuidados de enfermagem prestados em
quatro serviços de psiquiatria para adultos de uma cidade do interior de
Portugal, totalizando 80 horas. Os dados foram registrados em diário de
campo e submetidos à análise temática.
RESULTADOS:
Foram identificadas as seguintes unidades temáticas: acolhimento dos
pacientes na admissão; plano assistencial de enfermagem; abordagem familiar
e estratégias de inserção social desenvolvidas pelos enfermeiros. De maneira
geral, os enfermeiros valorizam as dimensões preventivas, educativas,
sociais e assistenciais ao prestar cuidados, mas não há a inclusão da
família na terapêutica.
CONCLUSÕES:
Existem práticas cuidativas permeadas de sensibilidade pela pessoa com
transtorno mental e pela sua condição adoecida, o que demonstrou o respeito
à dignidade humana em todos os serviços.
Palavras-chave: Enfermagem; Direitos Humanos; Assistência Integral à Saúde; Humanização da Assistência; Psiquiatria.
INTRODUÇÃO
Fruto do desconhecimento, ideias pré-concebidas e estereótipos, as pessoas que sofrem de qualquer transtorno mental foram, ao longo dos tempos, excluídas, segregadas e até mesmo violentadas na sua condição humana. Nos últimos anos, porém, verificaram-se mudanças na concepção da assistência e dos transtornos mentais e a organização assistencial tende a refletir essa evolução.
Nesse contexto, a partir da década de 1950, iniciou-se um movimento que permitiu a humanização da assistência às pessoas com transtornos mentais. Do ponto de vista ideológico, as sociedades estavam mais sensíveis para as questões dos direitos humanos, para a condenação de atos de violência sobre o ser humano e para a solidariedade entre os povos, o que resultou na constituição da Organização das Nações Unidas (1945), na criação da Organização Mundial de Saúde (1948), com foco na saúde de todos os seres humanos e, especialmente, na aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), reafirmando a dignidade e direitos básicos de todas as pessoas. Ressalta-se, ainda, que a investigação científica, por sua vez, permitiu o desenvolvimento farmacológico com a finalidade específica de tratar transtornos mentais, possibilitando a reabilitação dessas pessoas, por meio de medicamentos como o lítio (1948) para o tratamento da mania, a clorpromazina (1952) com efeitos antipsicóticos e o meprobamato (1954) e o clordiazepóxido (1957) com efeitos ansiolíticos.
Contudo, apesar da inovação farmacológica ter permitido o melhor controle das doenças e do movimento favorável ao reconhecimento dos direitos humanos ter fomentado a igualdade entre as pessoas independentemente da sua condição, a realidade das pessoas com transtornos mentais ainda é permeada por hospitalizações e pelo afastamento familiar e social, o que predispõe a permanência do preconceito e do isolamento e, por conseguinte, resultam em frequentes violações aos seus direitos.
Por outro lado, o desenvolvimento de movimentos antimanicomiais, nas décadas de 1950 e 1960, questionando não só a prática psiquiátrica, mas também os próprios conceitos de doença mental e de psiquiatria obrigaram a refletir sobre o seu papel como instrumento de controle social e de perpetuação de comportamentos inadequados. Nessa perspectiva, estudo recente refere que "a antipsiquiatria acredita que os tratamentos psiquiátricos tradicionais atendem a interesses políticos e econômicos bastante claros, considerando a natureza política da ciência psiquiátrica, que anula o indivíduo em nome da manutenção da ordem e do bom exercício do poder. A psiquiatria a que ela se opõe pune com o encarceramento os indivíduos considerados improdutivos e perigosos para o sistema capitalista"1:151.
É nesse contexto que surge um movimento social internacional de reforma que propunha um modelo de intervenção que possibilitasse a desinstitucionalização da pessoa com transtorno mental, por meio da desconstrução da concepção manicomial e da invenção de novas práticas que possibilitassem o resgate da cidadania e a reinserção social desse grupo vulnerável da população. Nesse sentido, a reforma psiquiátrica deve ser construída coletivamente e tende a produzir iniciativas nos âmbitos jurídicos, legislativos, administrativos e culturais2.
Sendo assim, pode-se perceber que o movimento reformista é um dos grandes responsáveis pelos avanços na proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais no âmbito internacional, uma vez que motivou reflexões e a construção interna de legislações específicas acerca dos saberes e das práticas assistenciais vigentes, buscando-se a eliminação das intervenções excludentes e a criação de propostas centradas na valorização humana, o que é coerente com a prática de afirmação dos direitos humanos3.
Portugal acompanhou esse movimento reformista por meio de cinco acontecimentos marcantes desse processo no país, foram eles: a hospitalização psiquiátrica (1848-1945), a criação dos primeiros hospitais psiquiátricos; a lei de assistência psiquiátrica (1945), a criação dos primeiros serviços abertos à comunidade; a regionalização e descentralização dos serviços de saúde mental (1945-1970), a integração da saúde mental ao serviço nacional de saúde (1971-1992), no subsistema dos cuidados de saúde primários e, ainda, o desenvolvimento de um novo modelo comunitário (desde 1998)4. Desde essa data, legislações estão sendo propostas, dentre as quais são destacadas nesta investigação a Lei nº 36/98 e o Decreto-Lei nº 35/99, que direcionam a reorganização da saúde mental no país. Nesse cenário, projetou-se, em 2007, o Plano Nacional de Saúde Mental com metas predeterminadas para serem alcançadas até 2016. Tais metas priorizam a equidade no acesso aos cuidados em saúde mental, a redução do impacto dos transtornos mentais nas populações, a descentralização dos serviços de saúde mental e a integração dos cuidados de saúde mental no Sistema Nacional de Saúde5.
Todavia, também em Portugal, esse não tem sido um caminho linear: menciona-se que se por um lado é verificável um conhecimento e reconhecimento crescente desses tipos de doenças, por outro, há um conjunto de crenças enraizadas no universo social e cultural que geram o estereótipo de que os doentes são perigosos e as doenças incuráveis6. O reconhecimento da existência deste tipo de estereotipo é, atualmente, oficial e o Relatório da Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental descreve que "apesar da alta prevalência das perturbações mentais, os mitos sobre a doença mental e a estigmatização do doente continuam a persistir, mesmo entre profissionais de saúde (...)"5:12.
No mesmo relatório, é ainda enfatizado que "existe vasta evidência em nível internacional de que os direitos mais frequentemente desrespeitados, principalmente no contexto dos hospitais psiquiátricos, mas também nas comunidades onde vivem, incluem o direito a ser tratado com humanidade e respeito, o direito à admissão voluntária numa instituição psiquiátrica, o direito à privacidade, a liberdade de comunicação com o exterior quando internado, o direito de votar, o direito a receber tratamento na comunidade e a dar consentimento informado ao tratamento, o direito a garantias judiciais, o direito ao trabalho, à educação, a habitação independente ou protegida, e à proteção social, entre outros"5:12.
Com base nesse contexto, este estudo objetiva descrever a prestação de cuidados de enfermagem em serviços de psiquiatria para adultos de uma cidade de Portugal, na perspectiva do exercício dos direitos humanos.
Justifica-se que a escolha da assistência de enfermagem se fez por se considerar que o enfermeiro é o profissional que presta cuidados contínuos e diretos e, também, exerce um papel de coordenação das atividades diárias dos serviços de saúde. Especificamente no ambiente hospitalar, os enfermeiros, mais do que qualquer outro profissional da saúde, têm com muita frequência oportunidades de favorecer e demonstrar respeito pelos direitos dos pacientes e de advogar por eles7.
Também existem legislações que fundamentam que as ações do enfermeiro devem ser orientadas pelo respeito à dignidade humana e pela prestação de cuidados com qualidade e ética. Para tanto, há, no país, legislações específicas dessa profissão que norteiam os aspectos burocráticos, operacionais e éticos do exercício profissional da enfermagem. Nesse contexto, dentre os princípios orientadores das atividades dos enfermeiros descritas no Código de Deontológico de Enfermagem8 está o respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes. Ainda, no Regulamento do Exercício Profissional de Enfermagem9, o artigo 8º (sobre o exercício profissional dos enfermeiros) estabelece que os enfermeiros deverão se guiar por condutas responsáveis e éticas, bem como atuar com base no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
De maneira geral, as legislações supracitadas impulsionaram a busca pela compreensão da preconização do respeito à dignidade humana e do estímulo ao exercício ao direito à saúde dentre as práticas de enfermagem. Ao se levantar o foco das ações específicas dos enfermeiros especialistas em saúde mental deparamo-nos com a seguinte descrição elaborada pela Ordem dos Enfermeiros de Portugal: "promoção da saúde mental, na prevenção, no diagnóstico e na intervenção perante respostas humanas desajustadas ou desadaptadas aos processos de transição, geradores de sofrimento, alteração ou doença mental"10:2.
Deve-se destacar ainda que há poucas pesquisas sobre esse tema; portanto, descrever a realidade assistencial dos serviços de psiquiatria para adultos de uma cidade de Portugal pode contribuir para a estruturação de ações de enfermagem que estejam fundamentadas nos princípios legais da reforma psiquiátrica e do exercício dos Direitos Humanos, com ênfase no direito à saúde e no respeito à dignidade humana.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada em quatro serviços de psiquiatria para adultos de uma cidade do interior de Portugal (unidade de internação psiquiátrica de um hospital geral, hospital dia, unidade de internação compulsória por medida de segurança e em um serviço comunitário).
O estudo foi realizado mediante 80 horas de observação indireta realizada por uma das autoras que permaneceu 20 horas em cada um dos referidos serviços, em períodos de quatro horas em cinco dias consecutivos. No primeiro dia, a pesquisadora era apresentada à equipe de cada serviço e, posteriormente, em todo o período de observação, transitava discretamente visando não modificar a forma de atuar dos observados. A observação centrou-se na prestação de cuidados de enfermagem e na dinâmica de trabalho dos serviços de psiquiatria para adultos e foi registrada em diário de campo.
Participaram do estudo os enfermeiros e as pessoas que estavam sendo assistidas nos serviços de psiquiatria para adultos de uma cidade do interior de Portugal. A coleta de dados iniciou-se após a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa, por meio do parecer P101/6-2012 da Comissão de Ética em Pesquisas da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: enfermagem, o que foi sucedido pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos enfermeiros e pelos responsáveis pelos pacientes em acompanhamento. Para a obtenção destas assinaturas, os enfermeiros, atuantes nos turnos matutino e vespertino, foram abordados ao final de uma reunião de equipe, quando lhes foram apresentados os riscos, benefícios e o objetivo do estudo. Já os familiares/responsáveis legais pelos pacientes foram abordados individualmente e a eles também foram explicados o objetivo, riscos e benefícios do estudo.
Para a análise dos dados registrados no diário de campo, utilizou-se a análise temática que se fundamenta na descoberta dos núcleos de sentidos, que constituem uma comunicação acerca da frequência ou da presença de algum significado para o objeto em análise11.
Para tanto, realizou-se a leitura sistemática do material organizado previamente, e agruparam-se os fragmentos que se repetiam ou possuíam semelhança semântica nos diferentes registros. Posteriormente, categorizaram-se os elementos constitutivos do tema, completando-se as três etapas de análise: pré-análise; exploração do material e tratamento e interpretação dos resultados obtidos. Na análise final, foram articulados os dados construídos durante a coleta ao referencial teórico, visando responder ao objetivo da pesquisa11.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para a sistematização das informações, foram estruturadas as seguintes unidades temáticas: acolhimento dos pacientes na admissão; plano assistencial de enfermagem; abordagem familiar e estratégias de inserção social desenvolvidas pelos enfermeiros.
Acolhimento dos pacientes na admissão
O contato das pessoas com os diferentes serviços de saúde mental depende, sobretudo, da condição psíquica em que a pessoa se encontra e da sua capacidade para procurar e obter ajuda. Em todo o caso, qualquer que seja a via pela qual pessoas interagem com os serviços de saúde mental, pode-se considerar que o acolhimento é um ponto crítico dessa interação e revelador da forma como os diferentes atores e as organizações se posicionam quanto a essa problemática.
No serviço comunitário, o acolhimento é realizado pelas recepcionistas que viabilizam o atendimento, conforme a demanda do paciente. Os profissionais responsáveis por esse primeiro atendimento são assistentes sociais, psicólogos ou enfermeiros, de acordo com as necessidades das pessoas que buscam o serviço, as quais estão em sofrimento mental, mas não requerem monitoramento contínuo, o que geralmente acontece em internações. Após esse atendimento inicial, ocorre a inserção desse indivíduo em projetos consoantes a sua faixa etária e necessidade, o que é coerente aos propósitos do serviço que se centram na promoção e vigilância da saúde, bem como na prevenção, no diagnóstico e no tratamento da doença.
Já no hospital-dia, o enfermeiro acolhe os pacientes admitidos por meio de uma conversa formal que visa levantar o histórico desses sujeitos, para posterior identificação de diagnósticos de enfermagem que fundamentem a elaboração da proposta terapêutica que deve contemplar suas necessidades biopsicossociais.
Na unidade de internação compulsória por medida de segurança, os pacientes são acolhidos pelo enfermeiro na admissão e esse profissional lhes apresenta o espaço físico e as normas do serviço. Posteriormente, o médico psiquiatra, o enfermeiro e o assistente social avaliam as funções psíquicas, os aspectos físicos e sociais desses indivíduos. Após esse procedimento inicial, o paciente é instalado em enfermarias individuais para a observação rigorosa de suas condutas, início da terapêutica medicamentosa para a estabilização de sintomas e uso obrigatório do pijama institucional (obrigatoriamente, por um mês). Esse uso é defendido como uma prática de proteção ao doente, pois se acredita que essas vestes facilitam na sua identificação durante a fase aguda, quando há um maior risco de fuga.
Na unidade de internação psiquiátrica do hospital geral, o acolhimento é precedido pela avaliação médica psiquiátrica no serviço de urgência, onde é feita a prescrição medicamentosa. Após essa avaliação, o paciente é encaminhado para a unidade de internação, onde é acolhido pelos enfermeiros assistenciais que o avaliam, conforme instrumento norteador que valoriza prioritariamente as funções psíquicas, comportamentos e a condição das necessidades humanas básicas.
A descrição exposta sobre o acolhimento dos pacientes na admissão evidencia que o enfermeiro tem uma participação ativa nesse processo, ou seja, pode-se afirmar que o acolhimento desse profissional, em todos os quatro serviços, é orientado por atitude compreensiva integral, em que os aspectos comportamentais e biológicos são informadores das necessidades das pessoas assistidas. Essa participação favorece um atendimento humanizado, pois se busca estabelecer um elo de confiança e compromisso junto aos pacientes desde o momento de sua admissão, o que favorece a elaboração de um plano assistencial de enfermagem. Assim, os enfermeiros estabelecem um contato propulsor para a prestação de cuidados, em consonância com um acolhimento orientado pela escuta, valorizando as queixas do indivíduo/família e conseguindo identificar as necessidades, o respeito às diferenças, alcançando o diálogo e o vínculo entre paciente/família e enfermeiro12.
No entanto, o uso obrigatório do pijama institucional, observado na unidade de internação compulsória por medida de segurança, ainda que por um período limitado de tempo e justificado por uma política de proteção ao doente, pode ser indicador da permanência de atitudes de despersonalização e de desempoderamento que levam à diminuição do sujeito. A vulnerabilidade da pessoa com transtorno mental, que a coloca numa posição desigual na relação com os outros, obriga os enfermeiros a orientarem-se pelos princípios da não maleficiência e de beneficiência e ao uso equilibrado dos direitos de liberdade e segurança13,14.
Contudo, o equilíbrio entre a utilização rotineira desses princípios e o respeito à individualidade e autonomia de todos os pacientes emergem como um desafio permanente à enfermagem quando exercida em ambiente institucionalizado, especialmente em instituições psiquiátricas, como as observadas neste estudo. Ressalta-se, ainda, que essa situação se agrava no serviço que recebe as internações compulsórias, uma vez que aos pacientes soma-se um duplo estigma: o do transtorno mental e o de praticante de um ilícito penal.
Plano assistencial de enfermagem
Conforme descrito anteriormente, em todos os serviços de saúde mental observados, existe um acolhimento que possibilita a sistematização da assistência de enfermagem e, por conseguinte a elaboração de um plano assistencial de enfermagem.
No serviço comunitário, a assistência de enfermagem é direcionada por um projeto articulado por uma docente da Escola de Enfermagem, juntamente com discentes da especialização em saúde mental. O plano assistencial de enfermagem busca proporcionar atividades que favoreçam a estabilização e a reabilitação psicossocial das pessoas com transtornos mentais, além de ser oferecido também apoio aos familiares. Para tanto, são realizadas consultas de enfermagem, em que são utilizadas escalas já validadas no meio científico (QLS-Quality of Life Scale, WHOQOL-BREF, PANSS, LSP ou LSP-39, versão portuguesa) para a identificação das necessidades individuais e familiares e posterior elaboração de estratégias que beneficiem a qualidade de vida desses sujeitos. Dentre as estratégias mais utilizadas, destacaram-se: inclusão em grupos compatíveis à faixa etária, relaxamento e oferta de orientações acerca da terapêutica medicamentosa, assim como demais assuntos que se relacionam à saúde do indivíduo (uso de álcool e/ou drogas, trabalho, lazer, relacionamento familiar). Para os familiares, são realizadas atividades psicoeducativas individuais e grupais e, ainda, periodicamente, os pacientes e os seus familiares são reavaliados a partir da utilização dos instrumentos estruturados já referidos anteriormente.
Em consonância com os objetivos do hospital-dia, o plano assistencial de enfermagem é voltado para ações que favoreçam a reabilitação psicossocial dos pacientes, tais como: treinamento para o relaxamento, distribuição e orientações sobre o uso correto da terapia medicamentosa prescrita, psicoeducação e o treino de aptidões sociais são da responsabilidade específica do enfermeiro. Também existem atividades que acontecem com a participação de todos os profissionais, dentre elas: reunião tipo assembleia, educação para a saúde e outras atividades lúdicas, como o karaokê.
Para compor os cuidados necessários à demanda da unidade de internação compulsória por medida de segurança, o plano assistencial de enfermagem prioriza a segurança do próprio paciente e dos demais que estão a sua volta (para os recém-admitidos) e a reabilitação psicossocial (para àqueles que já estão inseridos na rotina proposta). Nesse contexto, as atividades assistenciais de enfermagem abrangem: educação em saúde; acompanhamento em passeios comunitários propostos; administração de medicação prescrita; avaliação das condições clínicas e psíquicas; identificação de necessidades de avaliação médica de outras especialidades, com posterior agendamento dessas consultas junto ao serviço público de saúde; realização da avaliação do grau de dependência; avaliação rigorosa do risco suicida, sobretudo entre as pessoas que cometeram homicídio de familiares próximos; conferência das medicações enviadas pelo serviço de farmácia, com base na prescrição médica e, se necessário, contato com o serviço para as adequações necessárias; registro nos prontuários da evolução clínica e informação da equipe de enfermagem responsável pelo plantão subsequente sobre os cuidados a serem priorizados para cada paciente hospitalizado.
Para que não aconteça o distanciamento do paciente hospitalizado no hospital geral do meio social e valorizando a necessidade de proporcionar cuidados intensivos a essa demanda que está em fase aguda da doença, o plano assistencial de enfermagem contempla as seguintes ações: estimular o banho de aspersão e demais cuidados pessoais entre àqueles que têm autonomia; proporcionar os cuidados pessoais e banho de leito entre os sujeitos hospitalizados que estão acamados; realizar coleta de material biológico para exames laboratoriais que exigem jejum; administrar medicação prescrita durante o desjejum; administrar medicações injetáveis que estão prescritas, bem como analisar as condições das punções venosas e, se necessário, instalar a soroterapia prescrita pelo médico; incentivá-los a usufruir dos dispositivos de lazer, de religiosidade e dos jardins existentes no entorno do hospital; realizar avaliações clínicas, de risco de quedas e de grau de dependência; registrar nos prontuários a evolução clínica de cada um e acolher os visitantes proporcionando-lhes liberdade e conforto durante as visitas, as quais têm horários flexíveis, sendo permitida a presença de crianças pela baixa taxa de infeção hospitalar dessa unidade de internação.
Verificou-se que em todos os serviços de saúde que foram observados, os cuidados são orientados por planos assistenciais que valorizam o respeito à dignidade humana em todas as suas dimensões, o exercício do direito à saúde e, consequentemente, a integralidade e a equidade no acesso aos cuidados em saúde mental.
Na perspectiva da integralidade do cuidado em saúde mental, é necessário seguir um plano de cuidados, no qual se fazem presentes ações como acolhimento, iniciativa, criatividade e o estabelecimento de vínculos afetivos e sociais15. A partir das considerações desses autores, percebemos que o enfermeiro dos serviços de saúde mental para adultos valoriza o plano assistencial para a prestação de cuidados, elaborado a partir do acolhimento, quando são evidenciadas as necessidades dos sujeitos e estendendo-se à estruturação de ações de inserção social. As observações realizadas demonstraram, portanto, a integração dos profissionais de enfermagem com os pacientes, visando-se a construção de um relacionamento terapêutico com foco multidimensional e que não apenas considera o transtorno mental, mas as pessoas que o possuem como seres humanos.
Após a apresentação das ações propostas nos planos assistenciais de enfermagem dos serviços de psiquiatria para adultos, foi evidenciado que apenas no serviço comunitário se valorizou extensão da assistência para os familiares, o que impulsionou a estruturação da temática que se segue, na qual se enfatiza a abordagem familiar.
Abordagem familiar
Nos serviços comunitários a valorização da abordagem familiar acontece desde o primeiro atendimento e os familiares são assistidos pela enfermagem que os insere no plano terapêutico, uma vez que o ambiente e o relacionamento familiar são essenciais para a recuperação e estabilização das pessoas com transtornos mentais, bem como para a sua inserção social.
Observou-se que no hospital-dia não existe uma atividade sistemática para os familiares e que estes são acionados, pela assistente social, quando necessário para enriquecer a anamnese.
Assim como no hospital-dia, na unidade de internação compulsória por medida de segurança não existem ações estruturadas para os familiares dos pacientes. Contudo, são liberadas as visitas sem restrição de horário ou localização nas dependências do hospital. Mas, ainda assim, são poucas as visitas, o que parece estar relacionado à discriminação da própria família para com o ato criminoso que foi cometido pelas pessoas ali hospitalizadas. Nesse sentido, estudo aponta que atos ilícitos como crimes e uso de drogas fazem com que os serviços de saúde mental que atendem essa demanda intensifiquem a interação junto aos familiares para enfrentar o estigma social atribuído a estas pessoas16.
Devido à flexibilização de horário e de quantidade de familiares para as visitas no hospital geral, o contato da enfermagem com os familiares é contínuo, desde que eles compareçam, pois também não existem ações sistematizadas para a abordagem familiar.
A realidade exposta acerca da abordagem familiar confirma que apenas o serviço comunitário valoriza a inclusão da família na assistência ao paciente com transtorno mental, o que possibilita a inserção social desses sujeitos, uma vez que a família recebe o apoio necessário para o tratamento, a recuperação e a prevenção de crises.
Dessa forma, destaca-se que para se viabilizar bons resultados na prestação de cuidados de enfermagem é importante que exista uma relação de proximidade entre a pessoa em atendimento, seus familiares e o enfermeiro, o que permite um atendimento integral, pois já é demonstrado na literatura que a assistência de enfermagem já não se baseia somente nos cuidados técnicos, sendo preciso ter um amplo olhar para trabalhar a relação equipe/comunidade/família, para melhor entender aspectos que interferem diretamente no processo saúde-doença dessa pessoa no meio em que vive17.
A própria legislação de saúde mental portuguesa preconiza no seu artigo 5º que as pessoas com transtorno mental têm o direito de "comunicar com o exterior e ser visitado por familiares, amigos e representantes legais, com as limitações decorrentes do funcionamento dos serviços e da natureza da doença"18:3544 e, posteriormente, as recomendações e orientações organizativas do Conselho Nacional de Saúde Mental reforçam a necessidade de integrar às famílias e comunidades aos cuidados continuados de saúde mental19. Sendo assim, é relevante que no plano assistencial de enfermagem de todos os serviços de saúde mental para adultos esteja inserido o cuidado ao familiar.
A partir dessa concepção, considera-se importante apresentar as estratégias de inserção social desenvolvidas pelos enfermeiros, pois elas possibilitam o mais efetivo exercício dos direitos humanos, especialmente dos direitos civis, que se relacionam diretamente ao contexto familiar.
Estratégias de inserção social desenvolvidas pelos enfermeiros
Considerando que o plano de cuidados de enfermagem deve contemplar a inserção social, elaborou-se essa temática que aborda essas estratégias em cada um dos serviços de saúde para adultos.
Nos serviços comunitários de saúde não existem estratégias uniformes de inserção social desenvolvidas pelos enfermeiros, uma vez que tais estratégias são propostas de acordo com as necessidades identificadas e a gravidade dos sintomas preexistentes, bem como dos recursos comunitários presentes no entorno da residência de cada um dos pacientes acompanhados.
Em decorrência da ideologia assistencial do hospital-dia, o plano assistencial de enfermagem já prioriza estratégias de inserção social, das quais se destacou o treino de aptidões sociais. Enfatizamos que a periodicidade do atendimento nesse hospital varia, conforme a necessidade de cada um dos pacientes e isso define um plano terapêutico que é variável e depende da evolução de cada um, bem como da sua inserção e manutenção nas atividades sociais, laborais, familiares, dentre outras.
Como estratégia de inserção social, os enfermeiros da unidade de internação compulsória por medida de segurança realizam, mensalmente, passeios a pontos turísticos e religiosos de Portugal, com o objetivo de proporcionar o contato das pessoas hospitalizadas com o meio externo e de oferecer recursos de promoção da (re) adaptação na comunidade, bem como possibilitar novas experiências. Outra estratégia com essa mesma finalidade são as licenças administrativas que podem durar por até no máximo três dias (sem a necessidade do juiz autorizar). Para tanto, é oportunizado ao paciente preencher um formulário de licença administrativa, que é analisado em reunião multidisciplinar para que seja emitido um parecer pelos profissionais que acompanham continuamente esse sujeito. Posteriormente, o enfermeiro por ele responsável envia a resposta do parecer e estabelece um contrato verbal sobre seu retorno para o hospital. Caso o paciente deseje sair por mais de três dias, além da autorização da equipe é necessária a autorização do juiz.
No hospital geral, não existem ações sistematizadas para a inserção social dos pacientes. Mas, nesse serviço existem espaços, tais como sala de jogos, sala de televisão, sala para fumar e refeitório que favorecem o contato entre as pessoas ali hospitalizadas e os acadêmicos das diversas categorias profissionais que ali estagiam, assim como entre os próprios internos e a equipe. Vale ressaltar que na sala de televisão existem dois computadores com acesso à internet, o que parece viabilizar a manutenção dos laços desses sujeitos aos seus familiares, amigos e namorados(as). A partir da existência desses dispositivos, foi identificado que os enfermeiros sempre estimulam que os pacientes que têm mobilidade física se mantenham fora do leito e estejam realizando alguma atividade de sua preferência.
Frente à realidade de tais estratégias de inserção, deve-se considerar que o plano terapêutico estabelecido nesses serviços estimula ainda que, parcialmente, a manutenção dos vínculos dos pacientes com a sua rede social e, também, é respeitado o direito de ir e vir das pessoas com transtornos mentais, quando lhes é permitido realizar passeios e demais atividades de interesse pessoal, como pagar contas e fazer compras, dentre outros. A adoção da política de humanizar o atendimento pressupõe opor-se à violência da negação do outro e articular as tecnologias com o relacionamento, em que o fator humano é essencial para a eficácia dos dispositivos organizacionais em saúde20.
Assim, importa salientar que para humanizar a assistência é essencial a adoção de uma nova ética fundada nas bases filosóficas que abarcam os cuidados em enfermagem, por meio de uma postura de compreensão e ação diversa daquela empreendida apenas nos aspectos técnicos, o que exige que o enfermeiro associe os conhecimentos dos direitos humanos às habilidades técnicas em seu cotidiano assistencial. Ao incorporar essa perspectiva de cuidado em seu trabalho, o enfermeiro deve valorizar a autonomia, a corresponsabilidade, o protagonismo dos sujeitos envolvidos, a solidariedade entre os vínculos estabelecidos, o respeito aos direitos dos usuários e a participação coletiva no processo de gestão. Dessa maneira, a razão instrumental abre espaço para a razão sensível e cordial, fundada em valores éticos, humanos e na complementariedade na relação gerencial21.
Por conseguinte, é essencial estimular os indivíduos com transtorno mental a participarem de atividades que possibilitem a (re)construção de vida tanto no ambiente de tratamento como no meio social, por meio de atividades que potencializem a cidadania22.
A partir dessas informações, verifica-se que o movimento reformista resultou em avanços na proteção dos direitos das pessoas com transtorno mental no âmbito internacional, uma vez que gerou reflexões específicas sobre os saberes e práticas assistenciais vigentes que visem a eliminação das intervenções excludentes e a criação de propostas centradas na valorização humana, o que é coerente com uma prática embasada nos princípios dos direitos humanos3.
Atualmente, os serviços de saúde mental para adultos de Portugal se embasam na integralidade dos pacientes e, por isso, os enfermeiros oferecem intervenções que valorizam as dimensões preventivas, educativas, sociais e assistenciais. Entretanto, a falta de sistematização de cuidados de enfermagem para os familiares pode dificultar esse processo, especialmente, no que se refere ao exercício do direito à saúde pelos pacientes dos serviços estudados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identificou-se que a prestação de cuidados de enfermagem favorece o exercício do direito à saúde pelas pessoas com transtornos mentais, assistidas em serviços de psiquiatria para adultos em uma cidade de Portugal. No entanto, existem evidências de que são ainda necessárias adequações para o alcance do exercício pleno desse direito, destacando-se a importância da estruturação de ações para os familiares das pessoas assistidas nos referidos serviços. Também é relevante que haja uma maior aproximação entre enfermeiro e demais profissionais que compõem a equipe assistencial desses serviços (assistente social, terapeuta ocupacional, psicólogo, entre outros) para que se possa agregar saberes e práticas que impulsionem a valorização da dignidade humana.
Contudo, pôde-se perceber que existem práticas cuidativas permeadas de sensibilidade pela pessoa com transtorno mental e pela sua condição adoecida, o que demonstrou o respeito à dignidade humana em todos os serviços. Por fim, é relevante enfatizar que essa característica do perfil dos enfermeiros pode viabilizar a pró-atividade da pessoa com transtorno mental na sociedade, bem como a ressignificação de sua vida, por meio, predominantemente, de estratégias de inclusão social.
REFERÊNCIAS