Volume 20, Número 2, Abr/Jun - 2016
PESQUISA
Gênese do trabalho profissional da enfermeira no Brasil
(1920-1925)
Nildo Batista Mascarenhas
1
Cristina Maria Meira de Melo
2
Lívia Angeli Silva
2
1 Universidade do Estado da Bahia. Senhor do Bonfim, BA, Brasil
2 Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil
Recebido em 18/11/2015
Aprovado em 17/02/2016
Autor correspondente:
Nildo Batista Mascarenhas
E-mail: nildomascarenhas@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar a gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira entre
1920 e 1925.
MÉTODOS:
Pesquisa histórica, de natureza qualitativa. O referencial
teórico-metodológico utilizado foi a Micro-história. As fontes foram
documentos oficiais e institucionais, discursos de agentes, além de
investigações relacionadas ao objeto de estudo.
RESULTADOS:
As evidências históricas analisadas permitem afirmar que a gênese do trabalho
profissional da enfermeira brasileira ocorreu no âmbito de um projeto
estatal de saúde pública, possibilitou a implantação da política nacional de
saúde nos anos 1920 e estabeleceu as bases da prática profissional da
enfermeira no Brasil.
CONCLUSÕES:
A estruturação do trabalho profissional da enfermeira nos anos 1920 foi uma
estratégia do Estado, que sustentou a implementação da política de saúde
nascente, cujo eixo operativo era a educação sanitária. Conclui-se também
que a enfermeira foi uma importante agente na história da saúde pública
brasileira nesta época.
Palavras-chave: Trabalho; Enfermeira; Saúde pública; História da enfermagem.
INTRODUÇÃO
O objetivo desse estudo foi analisar a gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira entre 1920 e 1925. Nesse período, dois fatos principais desencadearam a gênese e a institucionalização do trabalho profissional em enfermagem no Brasil: a reforma sanitária iniciada em 1920 e a aproximação político-econômica entre o governo brasileiro e o norte-americano.
A reforma sanitária dos anos 1920 começou a ser discutida no final da década de 1910, num contexto de crise social, mobilização da classe trabalhadora e de debates em torno dos problemas de higiene e saúde pública. O conjunto de proposições dessa reforma teve como bases ideológicas o nacionalismo e o higienismo. Além de influenciarem a conformação da política de saúde nos anos 1920, essas bases impulsionaram a substituição da intervenção em saúde pública pautada na concepção de polícia sanitária, por outra, pautada na educação sanitária1. Essa última concepção foi um dos principais eixos operativos da política de saúde nos anos 1920.
Um evento da reforma que merece ser destacado é a conformação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Criado em 02 de janeiro de 1920, o DNSP materializou parte das propostas da elite médica higienista para o campo da saúde pública brasileira e emergiu como um aparelho institucional complexo de dimensões nacionais, cuja finalidade era centralizar o comando das intervenções no campo da saúde2.
O contexto de modernização da saúde pública, impulsionado pelo início da reforma sanitária, demandou mão de obra qualificada para operacionalizar a política de saúde nascente, cujas bases estavam assentadas em um modelo de saúde pública apoiado nas ações de educação sanitária1. Diante disso, o Estado brasileiro começou a investir na qualificação de trabalhadores e na estruturação da força de trabalho da enfermeira profissional, fato observado especialmente entre os anos 1921 e 1925.
Cabe ressaltar que o estabelecimento de novas bases burocrático-administrativas da saúde pública brasileira, a partir de 1920, e a qualificação de trabalhadores para atuarem no contexto da reforma sanitária, teve como base o modelo norte-americano de saúde pública. Um dos fatos que explicita a influência estadunidense na conformação da política de saúde dos anos 1920 é a inserção (e profissionalização) de enfermeiras na Saúde Pública, algo inédito no contexto brasileiro, porém já existente nos Estados Unidos desde o início do século XX1,2.
Para além de uma influência, a reforma sanitária dos anos 1920 e a própria gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira contaram com o apoio político e financeiro da Fundação Rockefeller. Nesta direção, "a cooperação internacional entre a Fundação Rockefeller e os governos brasileiros fomentou alguns passos para a reforma sanitária no país, com ênfase no apoio ao ensino da 'Higiene' e à formação de profissionais de saúde pública desde as primeiras décadas do século XX"1:66. Ademais, as origens da profissionalização médica e da enfermeira no campo da saúde pública estão fortemente associadas aos trabalhos desta Fundação no Brasil1.
A presença da Fundação Rockefeller no Brasil não resultou de uma imposição, mas de uma decisão do Estado brasileiro, que optou por estabelecer acordos com essa instituição norte-americana1. Neste sentido, a convergência de interesses entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller viabilizou a modernização da Saúde Pública brasileira e a profissionalização do trabalho da enfermeira, mesmo no contexto de crise político-econômica dos anos 19202.
À luz dessas considerações, nota-se que a gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira é um evento histórico peculiar, permeado por singularidades que são imprescindíveis para a compreensão da relação historicamente construída entre o trabalho profissional da enfermeira e a saúde pública institucionalizada. Vale salientar que neste estudo considerou-se que a gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira foi desencadeada pela reforma sanitária dos anos 1920 e iniciou em 1921, após a chegada da Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil.
Essa Missão impulsionou a implantação no Brasil de um modelo de formação específico para enfermeiras (o nightingaleano), estabeleceu as bases da prática profissional da enfermeira brasileira e iniciou a sistematização de conhecimentos próprios ao campo profissional da enfermagem. Além disso, foi a partir dos anos 1920 que o Estado nacional passou a normatizar, controlar e delimitar as fronteiras formais do trabalho da enfermeira no campo da saúde2.
Considerando esses fatos e os critérios estabelecidos por Eliot Freidson3 para caracterizar um trabalho profissional, depreende-se que a profissionalização do trabalho da enfermeira no Brasil iniciou nos anos 1920, tornando esta década historicamente relevante para o estudo da história da enfermagem brasileira.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa histórica, de natureza qualitativa. A baliza cronológica iniciou em 02 de janeiro de 1920 e encerrou em 19 de junho de 1925. Essas datas demarcam respectivamente a criação do DNSP e a formatura da primeira turma de enfermeiras da Escola de Enfermeiras do DNSP (EEDNSP). A coleta de dados ocorreu na Biblioteca Universitária de Saúde da Universidade Federal da Bahia e no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No transcorrer desta etapa, construiu-se um corpus documental composto por diferentes tipos de fontes históricas: documentos oficiais (decretos e leis); documentos publicados pelo DNSP (códigos sanitários e panfleto de divulgação); investigações relacionadas ao objeto de estudo; discursos de agentes da reforma sanitária.
O referencial teórico-metodológico utilizado foi a Micro-história (MH), que é uma abordagem historiográfica formulada por um pequeno grupo de historiadores italianos no final dos anos 1970. Dentre suas características, a MH possibilita ao historiador ultrapassar a aparência dos fenômenos, explorar profundamente a complexidade da ação social e reconstruir o contexto (ou contextos) que dá sentido e forma à experiência de homens e mulheres no tempo e nas sociedades4. Observa-se, assim, que a MH é uma maneira específica de se construir um objeto de pesquisa e, em razão disso, utiliza-se nas pesquisas micro-históricas a redução da escala de observação, a análise microscópica, a contextualização e o estudo intensivo das fontes documentais5.
Convém ressaltar que a utilização desses elementos na construção desta pesquisa permitiu tecer conexões do objeto de estudo com os diferentes contextos (macro e/ou microscópios) que o envolviam. Nesse processo, identificaram-se os fatores determinantes e condicionantes que permearam a gênese do trabalho profissional da enfermeira no Brasil. Esses fatores foram os conceitos que guiaram a observação do fenômeno analisado: política6, ideologia7 e gênero8.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A Reforma Sanitária dos anos 1920
A década de 1920 é apontada por alguns historiadores como o período do auge da economia cafeeira, pois, nesse período, o café era a mercadoria base do sistema agroexportador brasileiro. Nesse momento, a burguesia cafeeira, juntamente com o governo federal, mantinha um esquema de valorização e defesa do café que impulsionou a expansão do plantio de cafezais entre 1920 e 1924. Contudo, o incremento no plantio provocou um crescente desequilíbrio na balança comercial brasileira, culminando na crise do sistema cafeeiro9.
Ainda que essa crise econômica estivesse em curso, o período 1920-1924 foi marcado por muitas mudanças na organização dos serviços e das práticas de saúde pública em relação aos anteriores. Nesse momento, uma ampla reforma sanitária foi iniciada10 e a elite médica higienista brasileira ascendeu politicamente ao interior do aparelho de Estado11.
O ponto de partida da reforma sanitária foi a sanção do Decreto nº 3.987, em 02 de janeiro de 1920. Esse decreto criou o Departamento Nacional de Saúde Pública, que emergiu no cenário brasileiro como um aparelho institucional que ampliou a presença estatal no campo da saúde e possibilitou que algumas ações de saúde pública fossem executadas pelo Estado nacional para além da Capital Federal. Dentre essas ações, cabia ao DNSP construir pesquisas de interesse no campo da saúde pública; organizar estatísticas demográfico-sanitárias; operacionalizar a profilaxia rural em todo o país; organizar o Código Sanitário que seria submetido ao Congresso Nacional; fiscalizar o exercício da medicina, obstetrícia e arte dentária12.
O campo de ação do DNSP englobava predominantemente os domicílios, as indústrias, os estabelecimentos comerciais e os serviços de saúde da capital federal. Entretanto, esse departamento também poderia atuar em outros estados do território nacional, conforme consta nos artigos 3º e 9º do referido decreto. Essa atuação somente ocorreria após o estabelecimento de um acordo entre o DNSP e os governos estaduais e municipais, tendo por objetivo: implementar as ações de profilaxia rural, de prevenção e combate às endemias nas cidades e nas zonas rurais do interior do Brasil12.
Observa-se que a criação do DNSP visou uniformizar ações e centralizar o comando da saúde pública brasileira, bem como ampliar a presença do Estado no território nacional10. Além disso, a conformação do DNSP possibilitou às classes dominantes enquadrar, em um único aparelho do Estado, os instrumentos capazes de eliminar ou controlar os entraves sanitários que impediam a expansão do capitalismo e da ordem republicana no Brasil11.
Após a sua criação, o DNSP foi regulamentado em 26 de maio de 1920, por meio do Decreto nº 14.189. Esse regulamento sanitário entraria em vigor a partir de 01 de junho de 1920, "(...) mas as reclamações apresentadas e as modificações sugeridas levaram o Governo a mandar fazer as alterações necessárias, pelo que foi o inicio da execução do regulamento adiado para 1 de Julho e, depois, novamente, adiado indefinidamente"13:444.
Em relação a esse fato, não se encontraram vestígios que apontassem quais reivindicações e modificações foram apresentadas ao governo após a publicação do Decreto nº 14.189. Apesar disso, a análise do Decreto nº 3.987 permite afirmar que muitas das propostas defendidas pelos membros da elite médica higienista para o campo da saúde pública, desde o final dos anos 1910, não foram incluídas nesse decreto, o que pode ter gerado insatisfação entre os formuladores da política de saúde. Assim, adiar indefinidamente a regulamentação e o início das atividades do DNSP foi uma estratégia adotada pelos formuladores da política de saúde para construir um regulamento sanitário pautado nos interesses e nas ideologias da elite médica higienista da década de 1920.
A aprovação de um novo regulamento sanitário ocorreu em 15 de setembro de 1920, quando foi sancionado o Decreto nº 14.354, aprovando o regulamento para o DNSP e substituindo o Decreto nº 14.18914. Esse novo regulamento sanitário, aqui considerado como o Código Sanitário de 1920, foi "(...) a mais longa e mais completa regulamentação sanitária do Brasil", pois representou "um sensível adiantamento sobre as anteriores"13:446.
A análise do conteúdo do Código Sanitário de 1920 permite afirmar que o DNSP, como expressão da política de saúde nascente, materializou boa parte das propostas da elite médica higienista, ampliou a responsabilidade estatal no campo da saúde pública e possibilitou maior interferência dos médicos e do Estado na vida dos(as) brasileiros(as). Em comparação ao decreto nº 3.987, agregaram-se novos elementos ao texto do Código; entre eles, o que interessa diretamente a este estudo, a inserção da enfermeira-visitadora no DNSP. Vale ressaltar que num contexto de hegemonia médica na saúde pública, a inserção de uma nova trabalhadora no interior de um aparelho do Estado não ocorreu por qualquer motivo.
Gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira
No Código Sanitário de 1920, identificam-se os vestígios sobre a formação escolar da enfermeira-visitadora, bem como as atribuições da mesma. Em relação às suas atribuições, a enfermeira-visitadora deveria atuar essencialmente nos domicílios para impedir a propagação da tuberculose. Para tanto, essa trabalhadora utilizaria a visita domiciliar, a vigilância higiênica e a educação sanitária14. Com essas responsabilidades, o trabalho da enfermeira-visitadora complementaria o trabalho dos médicos que atuavam nos serviços de saúde e no âmbito do DNSP, além de servir como porta-voz dos médicos e do Estado junto às famílias.
Sobre a prática da vigilância higiênica por parte das enfermeiras-visitadoras, os formuladores do Código Sanitário de 1920 foram categóricos: essa prática teria por objetivo verificar o cumprimento das normas regulamentares a partir das visitas domiciliares e sob a supervisão dos médicos14, para os quais, a enfermeira-visitadora deveria atuar como uma auxiliar.
Em razão disso, o trabalho da enfermeira-visitadora era estratégico e utilitário, pois além de permitir que as ações formuladas pela elite médica chegassem aos domicílios, atendia às demandas imediatas impostas pelo início da reforma sanitária no controle das doenças transmissíveis prevalentes na época, na normatização de comportamentos e na higienização da vida dos membros da sociedade. É importante afirmar que no momento da formulação da política de saúde pública, em 1920, a enfermeira-visitadora foi definida como uma agente da mesma, ainda que enfermeira não existisse como profissão no Brasil.
Chama-se atenção para um fato: mesmo que a educação sanitária fosse inicialmente operacionalizada pelos médicos15, no momento da formulação da política de saúde pública dos anos 1920 ela foi repassada à mulher/enfermeira-visitadora. Isso se relaciona com as mudanças ocorridas na organização do trabalho em saúde e no trabalho do médico no início do século XX, bem como à conjuntura histórica que possibilitou a utilização dos atributos da força de trabalho feminina para obter resultados favoráveis ao desenvolvimento do modo de produção econômico no país.
No que concerne à formação da enfermeira-visitadora, observa-se no Código Sanitário de 1920 que havia uma Escola de Enfermeiros, vinculada à Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, responsável por emitir diploma e pela formação dessa trabalhadora14. As atividades dessa escola iniciaram em dezembro de 1920, quando José Paranhos Fontenelle respondia pela respectiva inspetoria. Nesse momento, iniciou-se um curso para formação de enfermeiras-visitadoras, que foi direcionado para um grupo de oito mulheres e ministrado pelos médicos José Paranhos Fontenelle, José Paes de Carvalho e Mario Magalhães. Em linhas gerais, o curso foi intensivo, introdutório e abrangeu aspectos da anatomia, fisiologia, patologia, microbiologia, higiene e tuberculose13.
Chama atenção o fato de que uma escola direcionada para a formação de enfermeiras não tenha incluído conteúdos específicos ao campo da enfermagem, possíveis de serem acessados e conhecidos por meio da Fundação Rockfeller e que seriam importantes para que essas trabalhadoras pudessem prestar seus "serviços de enfermeira", conforme consta no conjunto de atribuições da enfermeira-visitadora definido no Código Sanitário de 1920. Assim, quem seriam as trabalhadoras denominadas 'enfermeiras-visitadoras' no campo da saúde pública?
Para responder essa pergunta, cabe lembrar que o objetivo do trabalho da enfermeira-visitadora era executar ações de educação sanitária e de vigilância higiênica às pessoas acometidas pela tuberculose, o que atendia integralmente ao papel complementar ao trabalho médico e permitia adentrar no cotidiano das pessoas para vigiar e higienizar suas vidas. Nesse sentido, a Escola de Enfermeiros visava formar trabalhadoras auxiliares dos médicos com conhecimentos elementares, pouca ou nenhuma qualificação técnico-científica e com características pessoais que seriam utilizadas para operar tacitamente aquilo que os médicos e o Estado demandavam.
Após três meses de curso, seis mulheres foram contratadas pelo DNSP para iniciar as atividades de enfermeira-visitadora. Apesar disso, o próprio José Paranhos Fontenelle reconheceu que o curso para a formação de enfermeiras-visitadoras foi elementar, alegando que a Escola de Enfermeiros não teve o suporte para formar funcionários suficientemente capacitados para trabalhar na Saúde Pública13. Essa situação começou a mudar em 1921, especialmente após o retorno ao Brasil do médico Plácido Barbosa e da ida de Carlos Chagas aos Estados Unidos.
Plácido Barbosa voltou ao Brasil em março de 1921, retomando a direção da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose e responsabilizando-se diretamente pelo curso de formação de enfermeiras-visitadoras13. Antes disso, em janeiro de 1921, ele contatou o diretor-geral do "International Health Board" (IHB), da Fundação Rockefeller, para consultar a possibilidade de implantar no Brasil um serviço de enfermagem, de maneira organizada e oficial16, nos moldes estadunidenses.
Neste ínterim, o diretor do DNSP, Carlos Chagas, foi convidado pela Fundação Rockefeller para passar alguns meses nos Estados Unidos. Nessa viagem, Carlos Chagas conheceu profundamente a organização da Saúde Pública norte-americana, "(...) principalmente do valor das enfermeiras de saúde pública e dos serviços de propaganda sanitária"13:446.
Com a ida de Carlos Chagas aos Estados Unidos, abriu-se caminho para uma cooperação com a Fundação Rockefeller, o que ocorreu em maio de 1921, mês em que Chagas formalizou junto ao IHB um acordo de cooperação técnica para organizar um serviço de enfermagem no Brasil. Contudo, diante do contexto de crise da economia brasileira e do corte geral de despesas em todos os órgãos governamentais16, o governo brasileiro não teria condições financeiras imediatas para assumir os custos referentes ao convênio assinado por Chagas.
Assim, após receber uma confirmação pessoal do presidente da república sinalizando apoio ao convênio estabelecido entre o DNSP e a Fundação Rockefeller, o diretor do IHB no Brasil optou por assumir as despesas provenientes do pagamento de salários e treinamento das enfermeiras de saúde pública, até que um novo orçamento fosse apresentado pelo Congresso Nacional, garantindo assim as verbas prometidas pelo governo brasileiro16.
As manobras executadas por Carlos Chagas e pelo representante da Fundação Rockefeller no Brasil, consubstanciadas pelo apoio do presidente da república brasileira, tiveram êxito e resultaram no início do convênio em julho de 1921, com a nomeação da enfermeira norte-americana Ethel Parsons para organizar uma escola e implantar um serviço de enfermeiras de saúde pública no Brasil16. Essa enfermeira chegou ao país em 02 de setembro de 1921, fato que demarca o início da Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, também conhecida como Missão Parsons.
A atividade inicial de Ethel Parsons no Brasil foi desenvolver um estudo sobre a situação da enfermagem no país e elaborar um projeto de enfermagem a ser implantado na Saúde Pública. Para essa enfermeira, era imprescindível conhecer os aspectos da sociedade brasileira antes de introduzir valores, ideologias e cultura norte-americanos, pois esses aspectos teriam grande influência na implantação do projeto de enfermagem17.
Com o desenvolvimento do estudo, Ethel Parsons constatou que no Brasil inexistiam escolas de enfermagem que atendessem aos padrões norte-americanos, pois a que estava subordinada ao DNSP (a Escola de Enfermeiros) oferecia uma formação teórica que não incluía assuntos da área de enfermagem e suas alunas não sabiam ler nem escrever. Em relação aos hospitais da capital federal, esses eram bem construídos, em sua maioria. Porém, o pessoal que exercia a enfermagem nesses locais eram atendentes, homens e mulheres sem formação escolar e treinamento adequado16.
Outra constatação de Ethel Parsons foi a concepção atrasada e desfavorável da sociedade brasileira em relação ao trabalho e à imagem da enfermeira:15 "(...) o povo tinha das enfermeiras uma concepção atrasada de um século; igualmente á da Inglaterra antes de Florence Nightingale, isto é, mais ou menos em 1820, época em que essa profissão era ainda de tipo servil"; "(...) poucas pessoas no Brasil conheciam e compreendiam o desenvolvimento e o progresso da enfermagem"18:14.
De posse desses achados, Ethel Parsons sugeriu que "o primeiro passo para a adaptação do sistema norte-americano, no Brasil (...)" seria a estruturação de um "(...) serviço de enfermeiras no Departamento Nacional de Saúde Publica, de igual categoria ás demais Inspetorias do Departamento e abraçando todas as atividades de enfermagem" e a "(...) a instalação e organização de um curso de instrução adequado"17:202-3. Essas propostas indicam que a intenção de Ethel Parsons era centralizar o comando para implantar o campo profissional na saúde pública e formar um tipo de enfermeira diferente daquele que se concebia no Brasil.
Com o objetivo de desconstruir preconceitos e anunciar publicamente as mudanças que ocorreriam em relação à enfermagem, Ethel Parsons e Carlos Chagas elaboraram e divulgaram um panfleto, ainda em 1921, intitulado "A enfermeira moderna - apelo às moças brasileiras"19. Esse documento demarca a emergência e o anúncio público de um novo modelo de enfermeira, a enfermeira moderna, que seria implantado com o apoio e a colaboração do Estado nacional.
As palavras iniciais do apelo evidenciam o tom patriótico e religioso que envolveu a gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira: "O Brasil precisa de enfermeiras e convida-vos ao desempenho do 'maior serviço que uma mulher bem prendada e educada pode prestar - a assistência inteligente e piedosa aos doentes'"19. Nessa citação, é explícito que a nova enfermeira não seria qualquer mulher e não exerceria qualquer trabalho. Conforme enfatiza Carlos Chagas no início do documento, a enfermeira moderna seria uma trabalhadora tecnicamente formada para atuar na prevenção de doenças e na assistência aos enfermos, tanto em hospitais quanto nos domicílios. Desse modo, "não só abnegação e piedade exige agora o delicado mister de cuidar de enfermos; exige ainda conhecimentos técnicos exactos"19:I.
Nesse mesmo documento, Ethel Parsons19:7 complementa que a enfermeira moderna poderia "(...) assumir varias posições administrativas que requeiram instrução e habilidade de execução" e atuar como enfermeira de saúde pública ou como enfermeira nos lares e no hospital. Ela ainda afirma que o trabalho da enfermeira de saúde pública visava "(...) não somente evitar as doenças, como também trata-las", ensinando às "(...) mães o melhor meio de criarem seus filhos" e sendo "(...) a inimiga constante e implacável da tuberculose, das doenças venéreas e das doenças epidêmicas". Além disso, essa mesma trabalhadora deveria traduzir "a linguagem técnica dos médicos e das repartições sanitárias" para a população; confortar "os desconsolados" e instruir "os ignorantes"19:6.
O perfil da enfermeira moderna propagandeado por Ethel Parsons e Carlos Chagas revela que essa trabalhadora exerceria o controle geral do estado de saúde; seria uma intérprete dos 'homens da ciência'; uma disciplinadora de condutas e de corpos (enfermos e sadios); e uma agente que frequentaria o cotidiano das pessoas e complementaria o trabalho médico para garantir o cumprimento das suas ordens20. Nesse sentido, o trabalho profissional da enfermeira moderna era "indispensável para o pleno funcionamento do sistema de saúde pública quanto para o pleno cumprimento das determinações do médico"20:75.
Nota-se que a enfermeira moderna, além de exercer qualificadamente o controle social, diferia da enfermeira-visitadora dos anos 1920, pois além de atuar em diferentes serviços de saúde, ela poderia ocupar outras funções, como os cargos administrativos. A distinção entre ambos os tipos de enfermeira se expressa também na natureza e no tipo de trabalho por elas executado.
Em linhas gerais, o trabalho da enfermeira-visitadora era orientado por conhecimentos elementares, não técnicos, que seriam úteis apenas para aplicar a educação sanitária às pessoas com tuberculose. Já o trabalho da enfermeira moderna nasceu com um "status" profissional, já que seria técnica e cientificamente orientado para prestar assistência aos enfermos (em domicílios e hospitais), ensinar os princípios da boa saúde, executar as ordens médicas e prevenir a disseminação de doenças diversas através da educação sanitária.
Apesar de ser uma trabalhadora tecnicamente qualificada, o trabalho da enfermeira moderna foi descrito como uma "vida de devotamento", pois "(...) em nenhum outro labor, como na enfermagem, pode a moça encontrar satisfação maior". Em seu processo de trabalho, a enfermeira moderna poderia "(...) praticar a mais meiga de todas as artes da vida, encontrando ventura e propicio ensejo de revelar os próprios dons e esquecer-se de si mesma. Enfim, "(...) compreendendo, nessa visão, a parte que lhe cabe mitigar no sofrimento da grande família humana, passa pela maior prova espiritual de toda a vida"19:6.
Escritas por Ethel Parsons, essas palavras revelam que o trabalho da enfermeira moderna seria missionário e imbuído de piedade, abnegação, religiosidade, docilidade, conformismo e guiado pelo espírito de servir. Essas características permearam a gênese do campo da enfermagem profissional no Brasil e contribuíram para que a enfermeira fosse uma espécie de anjo, ou seja, "(...) um ser intermediário entre Deus e o mundo, puramente espiritual, destituída de uma vida particular, de necessidades pessoais, de desejos e imune ao cansaço"21:47.
Ao tempo em que essas características constituíam o trabalho da enfermeira moderna, esse mesmo trabalho "(...) virá constituir para a mulher brasileira um vasto campo de atividade produtiva, na qual se exercitem todas as excelências de su'alma piedosa e althruistica"19:II. Essas palavras explicitam que a configuração da nova enfermeira possibilitaria às mulheres (das classes médias e altas) ingressarem no mercado de trabalho formal e, ao mesmo tempo, fazer desse trabalho uma missão impregnada de altruísmo e idealização.
No contexto dos anos 1920, as mulheres das classes média e alta urbanas foram convocadas para assumir múltiplos e diversificados papéis, incluindo o de trabalhadora assalariada. Na esfera pública, a força de trabalho feminina era aproveitada em razão das características "biológicas" do sexo feminino e em atividades que, conforme o entendimento sexista da época, demandavam "habilidades femininas"22. Com a inserção da mulher na esfera produtiva, o Estado passou a utilizar os componentes biológicos e socialmente construídos da força de trabalho feminina em prol do atendimento das suas demandas. No apelo às moças brasileiras, por exemplo, Carlos Chagas reforça esta constatação ao convocar as mulheres brasileiras para servir ao Estado e estender seu papel de mulher e mãe à esfera pública.
Outro trecho desse panfleto refere-se às qualificações definidas como constitutivas da enfermeira moderna. Sobre isso, Ethel Parsons19:7 afirmou que "por causa de seu trabalho technico, relativo á vida e á morte, deve a enfermeira possuir boa base educativa, saúde perfeita e personalidade moral que a faça digna de confiança, criteriosa, compassiva, resoluta e corajosa".
Nesse sentido, a gênese do trabalho profissional da enfermeira brasileira ocorreu sob os signos do elitismo e do preconceito23, já que para ingressar no mercado de trabalho como enfermeira seria necessário possuir "boa base educativa", situação que nos anos 1920 era restrita às mulheres de elevada condição socioeconômica15. Por outro lado, essas qualificações indicam a intenção de dirigentes brasileiros em constituir uma elite profissional no campo da enfermagem e legitimar a profissão nascente1 em uma sociedade marcada por uma intensificada divisão de classes sociais.
Ainda no apelo às moças brasileiras, Ethel Parsons e Carlos Chagas anunciaram o surgimento da EEDNSP. O objetivo da Escola era "(...) preparar moças brasileiras que queiram ocupar posições de responsabilidade no Departamento, nos hospitais do Brasil e nos domicílios onde houver doentes"19:7. Os requisitos para ingressar nessa escola eram: ser mulher, ter entre 20 e 35 anos, ser diplomada por uma Escola Normal ou possuir estudos equivalentes, estar em perfeito estado físico, mental e de saúde e apresentar referências que atestassem boa conduta19.
A EEDNSP incorporou profundas mudanças em relação à Escola de Enfermeiros da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose. A começar pela nomenclatura, que foi flexionada para o gênero feminino, explicitando que era uma escola estruturada exclusivamente para mulheres. Posteriormente, observa-se a assimilação de diversos critérios rígidos e preconceituosos para o ingresso de alunas, a ponto de direcionar a seleção para um universo de mulheres 'nobres', sem deformidades físicas e com moral publicamente atestada.
Um dos aspectos que chama atenção no anúncio da EEDNSP é o rompimento com a formação elementar da Escola de Enfermeiros e a ênfase na especialização e tecnificação do trabalho da enfermeira moderna. Isso evidencia que um dos objetivos da Missão Parsons era profissionalizar o campo da enfermagem e implantar um modelo de ensino que formasse uma profissional completa e apta para atuar nas várias frentes de assistência em saúde que se abriam no Brasil1.
No início de 1922, criou-se o Serviço de Enfermeiras do DNSP. A implantação desse Serviço significou a centralização do comando do campo profissional que começaria a ser implantado no Brasil (a enfermagem moderna/de saúde pública), abrindo espaço para institucionalização do trabalho profissional da enfermeira. No âmbito do DNSP, o Serviço de Enfermeiras tinha o mesmo patamar hierárquico das demais inspetorias do Departamento e isso gerou comentários no exterior, pois não era comum que esse tipo de serviço compusesse a estrutura de departamentos nacionais de saúde17.
A gestão do Serviço de Enfermeiras foi entregue à Ethel Parsons, que também passou a coordenar uma equipe de sete enfermeiras norte-americanas que chegaram ao Brasil em fevereiro de 1922. Essas profissionais foram contratadas, a priori, para atuarem na direção e no ensino da EEDNSP, indicando que no início de 1922 havia a intenção de iniciar as atividades da EEDNSP. No entanto, essa escola só funcionaria a partir do ano seguinte. Dois fatores podem ter contribuído para isso: a limitação financeira do projeto de implantação da Escola e a pressão exercida pelos médicos do DNSP.
Sobre o primeiro fator, Ethel Parsons esclarece que os recursos financeiros destinados à Escola de Enfermeiras eram limitados e, em razão disso, optou-se começar com modéstia. Para contornar essa situação, o governo brasileiro solicitou mais uma vez o apoio financeiro da Fundação Rockefeller, que aceitou17.
Em relação à pressão exercida pelos médicos do DNSP sobre Ethel Parsons, um dos principais fatores foi identificado na análise documental: os médicos do DNSP não entendiam ou tinham uma compreensão bastante limitada acerca do trabalho da enfermeira moderna. Alcântara15:26 reforça essa constatação: "mesmo no próprio campo de saúde pública não havia muita compreensão acerca do significado das atividades da enfermeira diplomada".
É preciso lembrar que, em 1922, o modelo profissional de enfermeira propagandeado por Ethel Parsons e Carlos Chagas era conhecido apenas pelo grupo de médicos/sanitaristas envolvidos diretamente com a reforma sanitária, sendo que para a maior parte dos médicos do DNSP predominava a concepção de que a enfermeira era uma trabalhadora subalterna, sem qualificação técnico-científica, e, portanto, sem "status" profissional.
A pressão dos médicos sobre Ethel Parsons foi tamanha que ela modificou seu plano de ação e adiou o início das atividades da EEDNSP. Além disso, mesmo contrariando suas expectativas, ela assumiu a responsabilidade pela formação de visitadoras de higiene, trabalhadoras que tinham funções similares das enfermeiras-visitadoras. A substituição do termo "enfermeira-visitadora" por "visitadora de higiene" indica uma distinção das trabalhadoras sem qualificação técnico-científica das futuras profissionais, as enfermeiras modernas, que seriam reconhecidas por seleção, formação escolar e códigos de exercício profissional baseados em padrões científicos16.
Apesar das limitações impostas à implantação do projeto de enfermagem profissional de Ethel Parsons, as atividades da EEDNSP iniciaram em 19 de fevereiro de 1923. A seleção das primeiras alunas baseou-se nos critérios anunciados no apelo às moças brasileiras. Ao final, 13 alunas foram escolhidas.
Não obstante o início das atividades da EEDNSP, os médicos do departamento continuavam pressionando Ethel Parsons, levando-a mais uma vez a ceder às pressões, conforme ela própria explicita: "(...) afim de se procurar satisfazer aos pedidos cada vez mais insistentes dos inspectores, resolveu-se fazer, concorrentemente a esse curso (que confere o diploma de enfermeira), um Curso de Emergência de dez meses para Visitadoras de Hygiene"17:205. Com isso, nota-se que a implantação do trabalho profissional da enfermeira no Brasil não foi fruto de um consenso social, mas de uma medida governamental imposta por parte da elite médica higienista brasileira que interferia nos rumos do campo da saúde pública15.
Os cursos emergenciais de dez meses preocupavam Ethel Parsons, já que poderiam comprometer, por muitos anos, a imagem e os padrões profissionais das enfermeiras modernas, cuja formação ocorreria em dois anos e quatro meses13. Essa preocupação era fundamentada, pois predominava no imaginário social e médico que a enfermeira era uma trabalhadora subalterna e sem qualificações, ao contrário do modelo profissional de enfermeira que ela lutava para implantar. Não por acaso, Ethel Parsons lutou para desconstruir a imagem socialmente negativa atribuída ao trabalho da enfermeira moderna.
Em 31 de dezembro de 1923 foi aprovado o novo regulamento do DNSP. Nessa nova versão, incluíram-se as disposições sobre o Serviço e a Escola de Enfermeiras do DNSP24. No item referente à Escola de Enfermeiras, há um detalhamento do currículo de formação das futuras enfermeiras modernas, cujo conteúdo englobou conhecimentos da área médica, das ciências naturais, como também os específicos ao campo profissional da enfermagem. Incluíram-se também conhecimentos da área de administração hospitalar, indicando que o trabalho da enfermeira moderna também tinha como função gerenciar serviços de saúde e que a intenção de Ethel Parsons era implantar um modelo de enfermeira generalista, que pudesse atuar tecnicamente embasada em diversas áreas do campo da saúde.
Dessa maneira, a formação proporcionada pela EEDNSP seria multidisciplinar, num padrão universalista que permitiria à enfermeira "capacitar-se para o atendimento hospitalar, como se equiparar para o trabalho num centro de saúde ou integrar uma campanha sanitária contra a ancilostomíase"1:88. Apesar de se identificar conteúdos que, a priori, remetem a área hospitalar, esses mesmos conteúdos eram relevantes para o trabalho das enfermeiras de saúde pública na época1. Lembrando que o trabalho dessas agentes englobaria as práticas educativas, as preventivas e o tratamento das pessoas que necessitassem da assistência de enfermagem nos domicílios.
Desse modo, a perspectiva de que as enfermeiras formadas pela EEDNSP não eram preparadas para atuar no campo da saúde pública, mas no âmbito hospitalar, deve ser contestada, pois o contexto histórico que envolveu a implantação da EEDNSP revela que o trabalho profissional da enfermeira brasileira nasceu dentro de um projeto estatal de saúde pública. Importa lembrar que foi no contexto da reforma sanitária que o Estado nacional investiu na estruturação do trabalho profissional da enfermeira, com o intuito explícito de utilizá-la na saúde pública e não no âmbito hospitalar, o qual se expandiu no Brasil a partir da década de 1950, como parte do desenvolvimento capitalista no país.
A formatura da primeira turma da EEDNSP ocorreu em junho de 192525. O evento simbolizou a concretização de parte dos objetivos da Missão Parsons no Brasil e conferiu maior visibilidade ao projeto de enfermagem propagandeado por Ethel Parsons e Carlos Chagas. Além disso, foi com este evento que se demarcou publicamente a inserção do modelo profissional de enfermeira no país, cuja formação assentou-se em bases científicas, técnicas e políticas. Sendo assim, abriu-se o caminho para que o trabalho da enfermeira assumisse novas conotações e configurações no campo da saúde pública e, posteriormente, no âmbito hospitalar, sempre de acordo com o modelo assistencial hegemônico no Brasil em cada momento histórico.
CONCLUSÕES
Com a análise empreendida, verificou-se que a organização da saúde pública brasileira nos anos 1920 foi influenciada pelo projeto da elite médica higienista brasileira. Esse projeto, que contou com o apoio do governo federal, centralizou o comando da saúde pública, ampliou a responsabilidade estatal nesse campo, permitiu uma maior interferência dos médicos no cotidiano dos(as) brasileiros(as) e maior controle social do Estado sobre a população brasileira. Com a conformação do DNSP, iniciou-se um contexto de inovações que demandou trabalhadores qualificados para operacionalizar a política de saúde nascente, cuja base era o moderno higienismo e o eixo operativo era a educação sanitária.
Nesse sentido, era preciso inserir trabalhadores no DNSP que adentrassem nos domicílios das pessoas e disseminassem os preceitos da moderna higiene por meio da educação sanitária. Foi neste momento que a enfermeira começou a ser inserida no interior do aparelho de Estado. É importante destacar que o processo de inserção da enfermeira no interior do DNSP desencadeou a gênese e a institucionalização do trabalho profissional da enfermeira no Brasil. Portanto, o trabalho profissional da enfermeira brasileira originou-se no âmbito da saúde pública, das comunidades e dos domicílios.
Um aspecto apreendido na análise desenvolvida foi que de 1920 a 1925 foram inseridos dois modelos de enfermeira no Brasil: a enfermeira-visitadora de 1920 e a enfermeira moderna de 1923. A enfermeira-visitadora, e posteriormente a visitadora de higiene, era uma trabalhadora sem qualificação profissional e sem formação específica em enfermagem, e cujo trabalho era exclusivamente a visitação domiciliar às pessoas acometidas pela tuberculose. Em razão disso, a existência dessas trabalhadoras no campo da saúde pública teve um papel utilitário ao controle dos corpos e das doenças endêmicas na época, em particular a tuberculose. Já a enfermeira moderna foi inserida no campo da saúde pública com um "status" profissional, como uma trabalhadora qualificada e com formação profissional em enfermagem baseada em conhecimentos técnicos e científicos que possibilitariam operacionalizar qualificadamente a educação sanitária, a vigilância higiênica e a assistência de enfermagem nos domicílios e nos hospitais. Assim, as enfermeiras modernas eram trabalhadoras distintas das enfermeiras-visitadoras e constituíam o "staff" técnico qualificado do DNSP que complementaria o trabalho médico, disseminaria os preceitos da higiene junto à população e prestaria assistência de enfermagem nos domicílios.
Sobre a atuação de Ethel Parsons no Brasil constatou-se que essa enfermeira, juntamente com Carlos Chagas, empreendeu uma luta simbólica para desconstruir preconceitos ideológicos e de gênero em relação ao trabalho da enfermeira, bem como para anunciar o surgimento do modelo profissional de enfermeira no país. Nesse processo, os acordos estabelecidos entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller possibilitaram que o projeto de enfermagem profissional delineado por Ethel Parsons fosse implantado, apesar dos obstáculos, das resistências dos médicos e do contexto econômico desfavorável.
Finaliza-se este estudo apontando que a enfermeira foi uma agente na história da saúde pública brasileira nos anos 1920, dado que seu trabalho viabilizou e sustentou o projeto de saúde pública cujo eixo operativo era a educação sanitária. Essa é uma evidência que merece ser destacada, pois explicita a contribuição e participação histórica das mulheres/enfermeiras na construção da política de saúde no Brasil.
REFERÊNCIAS