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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 20, Número 1, Jan/Mar - 2016



DOI: 10.5935/1414-8145.20160007

PESQUISA

Percepções de profissionais de saúde sobre a humanização em unidade de terapia intensiva adulto

Rafaely de Cassia Nogueira Sanches 1
Paula Cristina Gerhardt 1
Anderson da Silva Rêgo 1
Ligia Carreira 1
Jussara Simone Lenzi Pupulim 1
Cremilde Aparecida Trindade Radovanovic 1


1 Universidade Estadual de Maringá. Maringá, PR, Brasil

Recebido em 20/04/2015
Reapresentado em 04/11/2015

Autor correspondente:
Paula Cristina Gerhardt
E-mail: paulacg.enf@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Compreender a percepção dos profissionais de saúde quanto ao cuidado humanizado em uma Unidade de Terapia Intensiva Adulto (UTI).
MÉTODOS: Estudo de natureza qualitativa, realizado junto a 13 profissionais de saúde com ensino superior que atuam na UTI de um hospital universitário, na região norte do estado do Paraná. A coleta se deu por meio de entrevista semiestruturada e submetidas à análise de conteúdo, modalidade temática.
RESULTADOS: Os profissionais de saúde apresentaram dificuldades em emitirem uma definição clara e objetiva para o conceito de humanização. Relataram também que a rotina somada ao nível neurológico rebaixado das pessoas e a valorização do profissional interferem na prática e oferta do cuidado humanizado.
CONCLUSÃO: O estudo possibilitou a realização de uma reflexão baseada no conceito amplo da humanização, articulado com as dificuldades cotidianas que os profissionais encontram em sua aplicabilidade, evidenciando um distanciamento entre a teoria e prática.


Palavras-chave: Humanização da assistência; Unidades de Terapia Intensiva; Cuidados intensivos

INTRODUÇÃO

Na década de 50, com o desenvolvimento tecnológico e a necessidade de oferecer suporte avançado de vida a pessoas gravemente doentes, com possibilidades de restabelecimento da saúde, foram criadas as Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Trata-se de uma unidade hospitalar com equipe multiprofissional qualificada e que dispõe de tecnologias específicas para a monitorização contínua dos indivíduos ali internados, cuja gravidade gera tensão tantos nos usuários, quanto nos membros da equipe de saúde1,2.

Tendo em vista que o cenário que compõe a UTI é repleto de tecnologias duras, surgem sempre preocupações sobre a questão da humanização. Geralmente, as discussões sobre as práticas de desumanização na assistência estão associadas às alusões ao convívio humano com alto desenvolvimento tecnológico, em que ocorre predominância da máquina e dos dados objetivos encontrados por ela, em detrimento dos procedimentos ligados ao cuidado direto aos usuários e da subjetividade implicada nas relações humanas. Desse modo, a relação do ser cuidado e de quem cuida é considerada eventualmente suplementar, dispensável ou até mesmo, ausente3,4.

Além disso, a complexidade do cuidado neste setor tem exigido cada vez mais conhecimento técnico científico para a oferta da assistência e salienta-se que a formação profissional ainda está baseada no modelo reducionista organicista da medicina vigente4. Esse modelo está fortemente focado na cura do corpo biológico, privilegiando a doença e não a pessoa adoecida, o que contribui para a formação de profissionais de saúde que não valorizam a assistência voltada ao binômio saúde-doença, no qual os aspectos psíquicos e físicos são indissociáveis para o restabelecimento do equilíbrio1,5.

A preocupação com todas essas questões relacionadas ao atendimento à população, visando a melhoria na qualidade da assistência com um olhar humanista aos pacientes, foi lançada em 2003, pelo Ministério da Saúde, a Política Nacional de Humanização (PNH)4. A PNH propõe um atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com o acolhimento, promovendo a melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais.

Nessa perspectiva a humanização é realizada de forma distinta e individualizada, pela equipe multiprofissional, resgatando o direito dos usuários em preservar sua dignidade, incluindo sua participação, responsabilização e autonomia, os quais são elementos fundamentais para que a humanização seja construída6. Portanto, as formas de cuidado neste cenário emergem reflexões sobre a assistência conduzidas pelos profissionais.

No ambiente de cuidados intensivos, a assistência é realizada de acordo com o conhecimento científico dos profissionais de saúde, baseado na evolução da pessoa adoecida. A maioria dos dados que configuram o estado de saúde é disponibilizada através de maquinários tecnológicos, como instrumento de cuidado, que contribuem para que as ações sejam sustentadas apenas pelo aparato tecnológico. As formas de cuidado neste cenário põem em reflexão sobre como a assistência dos profissionais é conduzida7-9.

Considerando a proposta de humanização no ambiente de saúde, o presente estudo procurou conhecer a percepção dos profissionais de saúde quanto à humanização em uma Unidade de Terapia Intensiva Adulto.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, descritiva, explicativa. Realizado na UTI Adulto de um hospital universitário no norte do estado do Paraná, região sul do Brasil. A unidade possui oito leitos, atende pacientes clínicos e cirúrgicos, de ambos os sexos e com idade mínima de 14 anos, com média de internações mensais de 60 clientes. A equipe conta com 47 profissionais de saúde, sendo estes, dez médicos, oito enfermeiros, quatro fisioterapeutas, três farmacêuticos, dois nutricionistas e vinte técnicos de enfermagem. A carga horária semanal dos servidores é de 36 horas subdivididas em turnos de trabalho de 6 horas no período diurno e de 12/60 horas no noturno (12 horas de trabalho e 60 horas de descanso), exceto indivíduos que trabalham em regime de plantão. A instituição possui planos de capacitação e de salários para os seus servidores.

Os critérios de inclusão para a participação da pesquisa foram: ser membro efetivo da equipe multiprofissional, com formação de nível superior, partindo da premissa que estes participam das tomadas de decisões e de estratégias de cuidado, e possuir experiência por mais de três meses em UTI. Do total, 26 profissionais não cumpriram os critérios de inclusão, um estava de férias, dois estavam afastados por atestado médico e três se recusaram a participar deste estudo. Assim, 13 profissionais de saúde foram entrevistados, três médicos, três fisioterapeutas e sete enfermeiros.

Os dados foram coletados no mês de junho de 2014, por meio de entrevista semi-estruturada composta pelas seguintes questões norteadoras: O que é humanização do cuidado ao paciente em Unidade de Terapia Intensiva para você? Como você percebe a humanização do cuidado ao paciente no seu local de trabalho? As entrevistas foram realizadas de forma individual com data e hora marcada de acordo com a disponibilidade dos profissionais e empreendidas na própria unidade de terapia intensiva, em uma sala reservada, com duração média de 15 minutos cada. Após consentimento dos participantes, os depoimentos foram gravados em aparelho digital.

Para a análise dos dados, as entrevistas foram transcritas na íntegra e posteriormente submetidas à análise de conteúdo e modalidade temática. Trata-se de um conjunto de técnicas, as quais permitem a realização de inferências a partir do conteúdo objetivo das falas obtidas, sendo composta por três fases: 1) pré-análise, 2) exploração dos dados; 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação10.

Na primeira fase, realizaram-se leituras consecutivas do material, a fim de operacionalizar e sistematizar os dados, procurando explorar ao máximo as informações, sendo grifados os pontos de interesse. Na segunda fase, os dados foram organizados de acordo com o objetivo da pesquisa e similaridade dos depoimentos. Na terceira e última fase, foi realizada a inferência e interpretação dos resultados encontrados10. Sendo assim, as categorias identificadas foram nomeadas como: "Humanização: um conceito amplo e polissêmico" e "Entre a teoria e a prática, a práxis existente: dificuldades cotidianas no processo de humanização".

O desenvolvimento do estudo atendeu às exigências e os preceitos éticos vigentes no país e seu projeto foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (Parecer 687.231/2014; CAAE 24482913.7.0000.0104). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias. Para diferenciação e preservação de suas identidades, os profissionais foram nomeados de acordo com as estrelas mais brilhantes do firmamento: Sol, Sirius, Canopus, Vega, Capella, Rigel, Procyon, Archernar, Hadar, Antares, Spica, Regulus e Centauri.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os sujeitos do estudo foram 13 profissionais de saúde com ensino superior, sendo sete homens e seis mulheres com idades entre 24 e 45 anos. O tempo de atuação em UTI dos enfermeiros, médicos e fisioterapeutas variou de quatro meses a 15 anos. Os depoimentos nortearam a apresentação dos resultados, por meio da composição de duas categorias gerais. A primeira refere-se ao conceito de humanização apresentada pelos profissionais como sendo de difícil interpretação, tendo em vista a amplitude e polissemia do termo. A segunda descreve sobre as dificuldades cotidianas encontradas pelos profissionais no ambiente da UTI para a aplicabilidade e efetividade da humanização do cuidado.

Humanização do cuidado: um conceito amplo e polissêmico

Ao convidar os profissionais de saúde para participarem desta pesquisa, especificamente no momento em que se informou sobre o tema, percebeu-se uma certa resistência pelas expressões faciais de espanto que a maioria deles apresentaram. Isso se confirma pela quantidade de profissionais que recusaram-se a participar do estudo. Os que aceitaram, observou-se certo incômodo em falar sobre a temática. Logo, quando foram questionados sobre a humanização em UTI, apresentaram dificuldades em elaborar uma definição acerca dessa temática, como se observa nos depoimentos a seguir:

Eu posso dizer que, se eu for definir humanização, pra mim vai ser um pouco difícil (Hadar, enfermeiro).

[...] eu entendo que é uma forma de traduzir, de comunicação, de você conseguir informar e ser informado em diferentes populações [...] não sei, não sei [risos] (Sirius, médico).

O trabalho de humanização em UTI [silêncio] na fisioterapia a gente tem que pelo menos ver o paciente como um todo, não somente a parte respiratória (Canopus, fisioterapeuta).

O termo humanização, nos últimos dez anos, tornou-se recorrente nos textos do Ministério e Secretarias de Estado e Municipais de Saúde, bem como, nas publicações da área da saúde, como um conjunto de ações que visam à qualificação da atenção a pessoa adoecida. Tem caráter polissêmico por se referir a movimentos, conceitos, ações de diferentes origens históricas e linhas de pensamento sujeitas a várias formas de interpretação11-13.

Seu conjunto conceitual é capaz de ser enumerado. Isso resulta em perspectivas multifocais da humanização na saúde, caracterizando, dessa forma, uma proposta de difícil conceituação e um perfil amplo ao próprio termo, como se pode observar nas falas dos profissionais entrevistados. Todos os horizontes aos quais à humanização se expande acabam por fragmentar o seu conceito, tornando difícil a tarefa de compreensão do seu foco e abrangência12. Percebe-se que os contornos teóricos e operacionais que se convencionou designar humanização, ainda não são consensuais em sua abrangência e aplicabilidade, talvez porque não esteja inteiramente demarcado, o que dificulta a formação de uma definição simples e pura14.

Portanto, é plausível a dificuldade dos sujeitos deste estudo em manifestar um conceito puro e simples para humanização. Confirma-se esse fato nas falas dos profissionais, a partir das diferentes concepções verbalizadas:

A humanização é praticamente tudo, desde você comunicar o paciente o que você vai fazer. Auxiliar ele em alguma coisa, até na questão de previsão dos materiais, porque isso também é parte da humanização. Porque se não tiver [os materiais], ele não vai ser cuidado (Vega, enfermeira).

Para mim, humanizar é qualquer cuidado dentro ou fora da UTI (Spica, médica).

Então, é inserir o paciente dentro do contexto da UTI, tornar o ambiente confortável, para que ele sinta segurança e bem estar [...] eu resumo dessa forma (Antares, enfermeiro).

Tendo em vista as diferentes interpretações atribuídas à temática da humanização, todos os depoimentos estão relacionados a algum aspecto do cuidado humanizado, os quais variaram desde ambiência, manutenção dos materiais para a oferta de um cuidado integral, até ao cuidado centrado no humano. No entanto, as definições elaboradas são fragmentadas e em algumas falas, até mesmo confusas. Isso se dá também porque nas UTIs o cotidiano abstruso que envolve este ambiente contribui para um cuidado voltado à realização de procedimentos técnicos e execução de tarefas, em detrimento da visão integral e contextualizada do ser humano ali assistido, o que coloca em risco a efetivação da prática da humanização15.

Sendo assim, observa-se a necessidade da realização de uma abordagem crítica e reflexiva sobre os conceitos que envolvem a temática humanização do cuidado, e sua aplicabilidade no cotidiano da UTI, entendendo-a como um tema complexo e multidimensional, pois inclui todas as dimensões do humano14. Essa reflexão precisa partir de um fazer/pensar mais humanitário nas ações realizadas no cotidiano diário no sentido de desenvolver uma consciência de cuidado integral presente na prática, no ensino, na teorização e na pesquisa16.

Neste sentido, a construção de um cuidado humanizado necessita ser coletiva e participativa, buscando acolher e respeitar os valores, as crenças, a cultura e as expectativas de vida que são únicas de cada pessoa, sendo esta, paciente, familiar ou profissional7. Precisa considerar ainda, que a comunicação e o diálogo favorecem a elaboração de estratégias de cuidado, compreendendo a subjetividade tanto do adoecido quanto dos profissionais, em que, na ótica de PHN, possibilita a reorganização das formas de cuidado que são realizadas3,17.

Buscar formas efetivas para humanizar a prática em saúde, implica numa aproximação crítica com a temática para além de seus componentes técnicos e instrumentais, envolvendo, fundamentalmente, as dimensões ético-estéticas-políticas que lhe imprimem um sentido18.

Essas dimensões estão calcadas nos princípios estruturantes da Política Nacional de Humanização; a saber, que são: a transversalidade da assistência, a indissociabilidade entre atenção e gestão, afirmação do protagonismo e autonomia dos sujeitos e coletivos8. Transversalidade significa uma ampliação do grau de comunicação entre os sujeitos e serviços, visando às transformações dos territórios de poder, alterações das fronteiras dos saberes e nas relações de trabalho. Indissociabilidade diz respeito à relação intrínseca entre os modos de cuidar, os modos de gerir. A apropriação do trabalho e a afirmação do protagonismo e autonomia dos sujeitos refere-se ao desenvolvimento de atitudes de corresponsabilidade na produção de saúde13,19.

Substancialmente, a PNH visa ampliar o diálogo entre as pessoas implicadas no processo de produção da saúde, promovendo a gestão participativa e estimulando práticas resolutivas. Destarte, por meio destas políticas, se reafirma estes princípios, cujas dimensões ético-estéticas-políticas estão vinculadas ao direito de cuidado integral e de defesa da vida, além do que regulam as relações de poder e a democratização institucional20.

A dimensão ética aparece vinculada ao processo de adotar a defesa da vida e o direito de todos ao desenvolvimento integral do cuidado, sejam estes, usuários, cidadãos ou trabalhadores de saúde. A dimensão estética se refere à invenção das normas que regulam a vida, para os processos de criação que constituem o mais específico do homem em relação aos demais seres vivos. Já a dimensão política, inseparável da dimensão ética e estética, comparece na humanização a partir do tema das relações de poder e da democratização institucional11.

Nessa perspectiva, o conceito de humanização também pode ser traduzido como uma busca incessante do conforto físico, psíquico e espiritual das pessoas adoecidas, suas família e equipe que lhes dedicam o cuidado. No sentido de ofertar condições humanas e agir com bondade natural, ou seja, tornar benévolo, afável, fazer adquirir hábitos sociais polidos e civilizar16, assim como se confere na fala de um dos entrevistados quando diz que:

É você ser cauteloso e atencioso e não tratar ali como uma simples pessoa, e sim um ser que necessita de cuidado (Rigel, fisioterapeuta).

Todas essas apreciações constroem o conceito de humanização, confirmando o caráter polissêmico do termo, cujas definições são variadas e divergentes. Portanto, gerando muitas polêmicas e dificuldades de definição em relação aos sentidos que o conceito deve assumir no escopo da política13.

Porém, refletir sobre o que é a humanização e todos seus contornos teóricos e emitir uma definição para o tema não é uma tarefa fácil, principalmente porque a prática esta, muitas vezes, oposta à teoria, configurando dessa forma a práxis existente. Assim, na segunda categoria organizaram-se as dificuldades do cotidiano do trabalho apresentadas pelos participantes, para a efetivação do processo de humanização.

Entre a teoria e a prática, a práxis existente: dificuldades cotidianas no processo de humanização

Na prática cotidiana a implementação da humanização não parece ser simplista, visto que é encarada pelos profissionais de saúde como sendo difícil de ser definida. Os profissionais manifestaram que a rotina diária no ambiente da UTI, somando-se ao nível neurológico rebaixado ou a inconsciência/sedação das pessoas ali internadas, interfere diretamente para a prática do cuidado humanizado, isso pode ser evidenciado nas falas a seguir:

Às vezes você acaba esquecendo que o paciente pode ouvir, pode entender que a maioria está grave, sedado, em coma. Então muitas vezes você acaba esquecendo que é uma pessoa (Sol, enfermeira).

A gente tem um problema sério, que a gente chega e esquece que o paciente é um ser humano, a gente chega e vai fazendo (Capella, fisioterapeuta).

Na UTI tendemos, geralmente, a automatizar o nosso trabalho, fazer com que o nosso trabalho se torne mecânico [...]e acaba que se esquece do aspecto humano (Archernar, enfermeiro).

É aquela coisa de rotina, aquela coisa mecânica. Esquecemos, muitas vezes, que quem está ali é um ser humano. A gente, uma hora ou outra, tem que parar para voltar e pensar, estar trabalhando isso conosco e com os demais da equipe todos os dias (Procyon, enfermeiro).

Você precisa ter mais tato para lidar com o paciente em coma, sedado. Eu, particularmente não pratico o cuidado humanizado. Lido mais com os parâmetros das máquinas e não dou muita atenção para esse lado humano do paciente (Centauri, médico).

Conforme os relatos dos profissionais, a rotina diária somada à alta complexidade da UTI, o uso cotidiano de tecnologias avançadas, principalmente pelo estado de inconsciência dos pacientes, tende a automatizar o trabalho, tornando as ações e estratégias de cuidado contrárias à prática preconizada pela PNH. Na UTI, a humanização representa um conjunto de iniciativas que visam à produção de cuidados em saúde, capazes de conciliar a melhor tecnologia disponível com promoção de acolhimento, respeito ético e cultural das pessoas adoecidas, espaços de trabalho favoráveis ao bom exercício técnico e a satisfação dos profissionais de saúde e usuários14.

Em contrapartida, para suprir as necessidades de cuidados das pessoas internadas na UTI, é indispensável à apropriação de tecnologias, que auxiliam na avaliação do paciente, considerando os aspectos fisiológicos, firmando os elementos essenciais na construção das estratégias e ações de cuidado a serem tomados7.

Sendo assim, o aparato tecnológico na UTI torna-se um recurso natural, que produz efeitos benéficos na construção do cuidado. Porém, torna-se um método que causa dependência entre os profissionais, em que as informações são advindas dos aparelhos, distanciando profissional e paciente, dificultando a captação de dados subjetivos do cuidado e as necessidades integrais do usuário7, claramente representados pela fala do médico Centauri, o que expressa à inconsciência/sedação como razão para não praticar o cuidado humanizado.

Cabe aos profissionais a utilização harmoniosa dessas tecnologias, visto que esses recursos não podem inviabilizar o atendimento interativo ao paciente, tendo em vista que, mesmo em estado de inconsciência, a pessoa ali internada continua sendo humano16. Promover um ambiente de cuidados tendo como essência o ser humano, sendo este um ser singular e socialmente construído, depende diretamente da capacidade do profissional em compreendê-lo como tal, principalmente se tratando de ambientes de cuidados intensivos. Entende-se que o cuidado é um ideal ético, que confere a condição de humanidade às pessoas, pois o ser humano vive o significado de sua própria vida por meio do cuidado21,22.

O aspecto fundamental do cuidado é o deslocamento de interesse da própria realidade para a do outro, ou seja, como uma forma de encarar a realidade do outro como uma possibilidade para a minha própria realidade. Assim sendo, o modo-de-ser cuidado revela a maneira concreta como o ser humano é16. Emerge, dessa maneira, a conotação de que o cuidado está além do aspecto existencial, ele também é relacional, pois o eu está com o outro e para o outro, e isto movimenta de certa forma a ambos, como uma maneira de completar-se. Portanto, o cuidado engloba atos, comportamentos e atitudes de quem cuida e de quem recebe o cuidado22.

Destarte, para o desenvolvimento dessa competência ético-relacional fundamentada na atuação profissional no cuidado e na humanização, faz-se necessário gerar momentos de reflexão nos bancos da escola para que se consolide no ambiente de prática e nos serviços de saúde. A formação dos profissionais da saúde requer que a base de conceitos dos acadêmicos seja ampliada, no entendimento do processo saúde-doença como um fenômeno complexo e não limitado ao campo biológico23.

O resultado esperado dessa reflexão na formação profissional é a consolidação de valores humanísticos no trabalho em saúde e a aliança entre competência técnica/tecnológica e competência ética/relacional14. Isto é importante para que se possibilite conceber e cuidar do homem de modo ampliado, não se limitando ao discurso teórico, desarticulado das práticas de cuidado.

Não obstante, os atos realizados no cuidado variam de acordo com as condições em que ocorrem as situações e com o tipo de relacionamento estabelecido. Existem tipos diferentes ou maneiras distintas de cuidar, que variam de intensidade. A maneira de cuidar dependerá da situação e na forma como se dá o envolvimento com o sujeito, motivo de atenção do cuidado18.

Sendo assim, salienta-se a necessidade de humanizar também as condições de trabalho desses profissionais, no sentido de estabelecer sempre uma melhor relação para a oferta do cuidado humanizado. O principal desafio para essa consolidação é a criação de estratégias para a sua efetivação23. Tal desafio tem particular significado quando se trata de instituições de referência para o ensino e a pesquisa, pois cumprem importante papel de formadores de pessoas e de cultura14.

Quando os profissionais foram questionados sobre como veem a humanização no ambiente de trabalho, estes destacaram que a valorização profissional está diretamente relacionada com a oferta do cuidado humanizado. O profissional que é desvalorizado, tanto financeiramente quanto pela quantidade de tarefas a serem cumpridas cotidianamente, não ofertará um cuidado humanizado, como se observa nas falas:

Vamos humanizar todo o atendimento ao doente, mas essa é uma humanização não pensada, por exemplo, para eu humanizar o cuidado ao doente eu preciso também estar humanizado (Hadar, enfermeiro).

Então eu penso assim, a valorização profissional, não só no requisito do dinheiro, é apoio psicológico [...]. Então é uma equipe que deveria ter um acompanhamento humanizado, de pensar que do lado de lá tem um paciente que é humano, mas que do lado de cá tem alguém que também é humano (Regulus, fisioterapeuta).

Se eu sou valorizado no meu trabalho vai repercutir em um melhor atendimento, na melhor humanização (Antares, enfermeiro).

Seria irônico e efetivamente desumano falar em humanização, enquanto escuta a participação coletiva da gestão, sem mencionar o trabalhador com sobrecarga de funções e de atividades. Além daqueles com jornada dupla ou tripla de trabalho, obviamente geradoras de estresse físico e mental. Estudos afirmam que tais problemas vêm na contramão da humanização do cuidado, tendo em vista que para oferecer ambiência e assistência digna, necessariamente, há de se ter ambiência de trabalho igualmente digna15,22. O que podemos conferir na fala da fisioterapeuta:

[...] Para humanizar o cuidado, o trabalhador precisa, necessariamente, estar inserido em um ambiente de trabalho também humanizado. (Rigel, Fisioterapeuta).

Segundo a PNH, a ambiência refere-se ao tratamento dado ao espaço físico, sendo este entendido como espaço social, profissional e de relações interpessoais o qual deve proporcionar uma atenção mais acolhedora, resolutiva e humana15,20. Porém, esse ideal de ambiência não é a realidade vivenciada por muitos trabalhadores da saúde, características de muitos cenários de cuidado, assim como o universo deste estudo. Não se trata de omitir a responsabilidade do profissional em ofertar um cuidado humanizado e ético, mas de propor uma reflexão sobre até que ponto um espaço profissional vulnerável a riscos, sejam estes físicos e/ou psicossociais, favorecem a promoção de uma ambiência compatível com a humanização que se deseja e que é direito de todos os usuários, sejam estes, pacientes, profissionais ou gestores12,15.

Há de se refletir sobre em que condições os profissionais de saúde estão trabalhando para que os mesmos, satisfeitos com o seu ambiente laboral sejam motivadores e promotores de ações humanizadoras23. Neste sentido, a PNH busca a valorização do cotidiano dos serviços de saúde, sendo o processo de trabalho a peça fundamental para a real efetivação dessa política. Pois não há como mudar os modos de prestar uma assistência humanizada aos usuários, sem que se altere a organização do mesmo11,24.

Logo, é preciso desenvolver novas lógicas de trabalho no sentido de uma melhor organização da humanização na UTI. Para isso, é essencial ativar a problematização no processo do trabalho em saúde, criando dispositivos que auxiliem os profissionais a se questionarem permanentemente sobre o próprio processo de trabalho bem como a organização institucional deste19.

Esses questionamentos precisam buscar construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação do sentido dos atos produzidos no dia-a-dia, colocando o cotidiano do trabalho em análise. Tanto a incorporação não crítica de tecnologias materiais, como a eficácia clínica produzida, os padrões de escuta, as relações estabelecidas com os usuários, quanto às demandas institucionais que incidem sobre o profissional como, por exemplo, a burocracia, a contratação da quantidade de profissionais exigidas para o serviço, valorização dos salários dos profissionais e a ampliação das discussões teóricas na formação acadêmica5,25.

Ora, como é possível falar em cuidado humanizado, quando os referenciais continuam sendo reducionistas e simplificados? E como centrar na oferta de cuidados singular quando esse ainda é apreendido de forma fragmentada e que, por muitas vezes, concebe o ser humano como um ser inanimado o qual recebe os cuidados passivamente5?

Diante desse contexto, pensar em humanização na UTI visando o cuidado integral as pessoas adoecidas, envolve, além das tecnologias diferenciadas, profissionais capacitados e qualificados para conceber a humanização como um conjunto de diferentes dimensões, aspectos, eventos e movimentos que compõem a amplitude de sua conceituação, assim como o conjunto de estrelas que compunham uma constelação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo possibilitou uma reflexão baseada no conceito polissêmico e amplo que a humanização da saúde preponde, articulado com as dificuldades cotidianas que os profissionais de saúde encontram na aplicabilidade desta política, principalmente quando se trata das UTI's. Compreender a humanização em ambientes de cuidados complexos, significa acolher a dinamicidade da organização deste enquanto unidade, gestão, trabalho dos profissionais e usuários, os quais alimentam e realimentam as relações/interações humanas e profissionais. Também significa compreender o ser humano, como um ser complexo, singular e capaz de se (re)organizar dependendo das condições e/ou ambiente em que se encontra e das relações em que se constitui.

Na UTI de referência para este estudo, ressalta-se que ainda prevalece o cuidado técnico positivista, ou seja, a complexidade da assistência no ambiente da UTI ainda se concentra na alta tecnologia, com a finalidade de satisfazer primeiro as necessidades biológicas dos pacientes. No entanto, de acordo com os entrevistados, a problemática conceitual da humanização provoca certas limitações na busca de modificação do cenário assistencial em saúde, uma vez que ela perpassa desde aspectos técnicos, relacionais, éticos e até mesmo questões de ambiência.

As interpretações produzidas a partir dos dados coletados demonstram que os profissionais de saúde possuem algum conhecimento acerca do tema, em concordância aos direcionamentos previstos pela PNH, porém de maneira dispersa. Tal percepção sugere certa incoerência entre o discurso do cuidado humanizado, preconizado pela PNH, e a prática assistencial, configurando a existência das práxis no cotidiano de trabalho.

Atribui-se essa problemática à falta de uma reflexão mais ampla sobre a humanização em saúde, desde a formação profissional, buscando valorizar o processo de desenvolvimento de competências ético-morais que orientem a futura prática. Entende-se, igualmente, a importância do constante estímulo aos profissionais já atuantes, pelas suas instituições de trabalho por meio da valorização profissional, como discussões relativas ao tema, tendo em vista o esclarecimento e sistematização dessas ações, além da promoção de debates e trocas de experiências sobre os processos que regem o cotidiano de todos envolvidos com os cuidados na UTI, no sentido de integrar a teoria e a prática.

Nessa perspectiva, uma estratégia muito utilizada e que pode ter efeito positivo na equipe que foi estudada, são as rodas de conversa entre os profissionais, com encontros regulares que promovam o compartilhamento de experiências e saberes de cada profissional, bem como a resolução de conflitos. Além disso, as rodas de conversa levam a equipe multiprofissional a repensar sobre a atuação de cada membro, desencadeando iniciativas como o processo de humanização do cuidado.

As tecnologias de cuidado são recursos fundamentais na recuperação do paciente, exigem conhecimento e capacitação dos profissionais para que o seu manejo contribua na assistência. Porém, sem descaracterizar o cuidado pautado na compreensão subjetiva das reais necessidades do doente, o que pode dificultar a aplicação e o exercício diário do cuidado humano integral. De tal modo, torna-se necessário a busca por novas estratégias, capazes de envolver a complexidade, a integralidade do cuidado e o cotidiano da oferta deste no ambiente complexo e dinâmico das UTI's.

Acreditamos ter atingindo o objetivo deste estudo, contudo, reconhecemos a necessidade de maior investimento no período de formação dos profissionais e, posteriormente, atualizações por meio da educação permanente em serviço.

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