Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
Desafios do trabalho da enfermagem no cuidado às
crianças com condições crônicas na atenção primária
Elysângela Dittz Duarte
1
Kênia Lara Silva
1
Tatiana Silva Tavares
1
Corina Lemos Jamal Nishimot
1
Cynthia Marcia Romano Faria Walty
1
Roseni Rosângela de Sena
1
1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil
Recebido em 18/08/2015
Aprovado em 14/12/2015
Autor correspondente:
Tatiana Silva Tavares
E-mail: tatianasilvatavares@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições
crônicas na atenção primária à saúde.
MÉTODOS:
Estudo de abordagem qualitativa, desenvolvido por meio de entrevistas
com 23 profissionais de enfermagem de 16 Unidades Básicas de Saúde do
Município de Belo Horizonte. Os dados foram analisados a partir da
perspectiva crítica procurando-se identificar os temas comuns no
material empírico.
RESULTADOS:
Evidenciaram-se as contradições e os desafios de uma prática que se
inaugura para o grupo das crianças com condições crônicas. O trabalho
da enfermagem assume um lugar estratégico e transversal no cuidado a
essas crianças, que não se limita a sua ação específica, mas que
conflui na dimensão cuidadora do trabalho em saúde.
CONCLUSÃO:
Verifica-se a necessidade de avançar na organização do cuidado para a
oferta de ações mais direcionadas às necessidades dessas crianças, de
forma a permitir maior expressão dos saberes e fazeres próprios da
enfermagem.
Palavras-chave: Cuidados de Enfermagem; Continuidade da Assistência ao Paciente; Doença Crônica; Crianças com Deficiência; Atenção Primária à Saúde.
INTRODUÇÃO
Evidencia-se, mundialmente, nos últimos anos, um aumento significativo no índice de sobrevivência de prematuros com idades gestacionais e pesos extremamente baixos devido à incorporação de novas tecnologias e a especialização profissional nas Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN)1,2. No Brasil, estudo de coorte com198 prematuros identificou taxas de sobrevida aos 28 dias de 52,5% entre 25 a 27 semanas e 6 dias de idade gestacional, 67,4% entre 28 a 29 semanas e 6 dias e 88,5% entre 30 a 31 semanas e 6 dias. Em geral, a morbidade foi inversamente proporcional à idade gestacional3.
Tem-se verificado que as crianças egressas das UTIN, principalmente, aquelas nascidas no limiar da viabilidade, apresentam maior risco de atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor, incapacidades funcionais, de displasia broncopulmonar, paralisia cerebral e deficiência visual1-4, compondo o grupo de crianças com condições crônicas (CCC). As condições crônicas abrangem àquelas de base biológica, psicológica ou cognitiva que duraram ou tem potencial para durar pelo menos um ano e que produzem consequências como: limitações de função, atividade ou papel social; dependência de medicamentos, alimentação especial, dispositivo tecnológico ou cuidados; e necessidade de serviços de saúde ou relacionados e de serviços educacionais acima do usual para a idade da criança5.
Verificam-se produções sobre as crianças com condições crônicas e necessidades especiais que buscam analisar a sobrevida1-3, caracterizar as demandas de cuidados4,6,7, mensurar as repercussões para as famílias7-9 e para a organização dos serviços de saúde10. No Brasil, verificam-se avanços nos cuidados à criança, evidenciados pela redução da mortalidade infantil e elaboração de diversas políticas públicas, como o Método Canguru, a Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil e a Rede Cegonha. Apesar disso, a assistência à saúde da criança "encontra-se em processo de construção, juntamente com assistência à saúde em geral, em um movimento de mudança paradigmática do modelo centrado na patologia e na criança, para um modelo de construção de redes, em prol da inclusão da família e da integralidade do cuidado"11. Destaca-se que ainda não está sistematizado um modelo de atenção às CCC no contexto da atenção primária à saúde no Brasil e não são claras as ações estabelecidas pelos profissionais nesta prática.
Assim, dada a nova realidade delineada por esse grupo de crianças, o seu cuidado configura-se como um desafio, em especial, para os profissionais de enfermagem que se defrontam com um grupo de crianças com perfil de morbidade e necessidades pouco conhecido durante as internações prolongadas e reinternações e, também, no acompanhamento domiciliar após a alta hospitalar. Observa-se um distanciamento desses profissionais no seguimento ambulatorial e domiciliar dessas crianças e de suas famílias7.
O trabalho da enfermagem faz parte de um processo de trabalho coletivo em saúde, no qual cada trabalhador é possuidor de saberes específicos e desenvolve ações articuladas com os demais membros da equipe12. Nesse processo de trabalho coletivo, a importância do trabalho do enfermeiro junto às CCC, tanto no atendimento das necessidades específicas de cuidado quanto na orientação da família, traz a necessidade de uma discussão mais aprofundada acerca das ações do núcleo profissional específico e das ações complementares para essas crianças em diferentes níveis da rede de atenção à saúde.
Para essa discussão, entendemos que no agir profissional são mobilizados saberes e fazeres que advém de um núcleo profissional específico e da dimensão cuidadora que qualquer profissional de saúde detém. O núcleo específico por problema diz respeito a um saber muito particular/característico acerca do que o profissional vai enfrentar, territorializado em seu campo profissional de ação. Este, por sua vez, é recoberto por um território que marca a dimensão cuidadora sobre qualquer tipo de ação profissional, constituindo a dimensão comum a todos os profissionais13.
Nessa perspectiva, a enfermagem se insere em um campo do qual fazem parte outros profissionais com fazeres distintos e complementares para o atendimento às necessidades de saúde das crianças. Tomamos como objeto, neste estudo, o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições crônicas. O objetivo do estudo foi analisar o trabalho da enfermagem na continuidade do cuidado às crianças com condições crônicas na atenção primária à saúde, buscando a especificidade desse fazer no conjunto do trabalho em saúde.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa sustentado pelo referencial da dialética marxista. Esse referencial orientou a abordagem do fenômeno de estudo em um caminho teórico e metodológico que aponta para as contradições na sociedade, contextualizando o processo histórico com seu movimento, provisoriedade e transformação14.
Os critérios para inclusão dos sujeitos do estudo foram: ser enfermeiro, técnico de enfermagem (TE) ou auxiliar de enfermagem (AE) que atue em Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Município de Belo Horizonte, em Minas Gerais, estar vinculado à equipe de saúde da família e ter em sua área de abrangência crianças com condições crônicas. O Município de Belo Horizonte conta com 147 UBS distribuídos em nove distritos sanitários. No que diz respeito à saúde da criança e do adolescente, os profissionais das equipes de saúde devem seguir as diretrizes para ações definidas na "Agenda de compromissos com a saúde integral da criança e adolescente - redução da mortalidade infantil", que propõe 13 linhas de cuidado[1].
A inclusão dos sujeitos foi realizada a partir da identificação de crianças com condições crônicas egressas, no período de 12 meses, de unidades de cuidado ao neonato de alto risco de um hospital federal e um hospital filantrópico do município. Foi realizada na primeira etapa, a análise documental dos prontuários dos egressos e a aplicação, por contato telefônico, do Questionário para Identificação de Crianças com Condições Crônicas (QuICCC-R). Essa etapa possibilitou confirmar a condição crônica da criança e identificar a UBS e a equipe de saúde da família, a que a criança estava referenciada, de acordo com a territorialização adotada no município. Na segunda etapa, identificaram-se os enfermeiros, TE ou AE dessas equipes, sendo convidados todos a participar os profissionais de enfermagem de cada equipe de saúde.
Na coleta de dados buscou-se a diversidade dos distritos sanitários do município. Dessa forma foram contemplados oito dos nove distritos, sendo um não incluído por não possuir egressos da população pesquisada em sua área de abrangência. A coleta de dados foi interrompida após garantir a diversidade de distritos e observar convergência nos discursos obtidos. Foram participantes do estudo 15 enfermeiros, 6 TE e 3 AE, que atuavam em 16 UBS do município. O conjunto do material empírico está composto por 5 horas de gravação de entrevistas, com duração média de 15 minutos.
A coleta de dados ocorreu por meio de entrevista, orientada por roteiro semiestruturado, com questões sobre a identificação e acompanhamento das CCC da área de abrangência, a inserção dos profissionais da enfermagem, as suas ações de cuidado a essas crianças e os desafios para o cuidado. Todos os pesquisadores, que participaram da coleta, tinham experiência na condução de entrevistas; participaram de treinamento para alinhamento quanto ao entendimento dos aspectos do objeto que se pretendia apreender, por meio de cada uma das questões da entrevista; e não possuíam contato prévio com os entrevistados. A análise dos dados foi orientada pela análise de conteúdo temática proposta por Bardin15. Foram realizadas leituras sucessivas das gravações das transcrições das entrevistas, para identificar os enunciados significativos, considerando os objetivos da pesquisa. Esses foram organizados de acordo com seu tema, procedeu-se sua descrição buscando articulá-los, seguida do aprofundamento das ideias e do estabelecimento de relações a partir de uma reflexão acerca do material empírico e do referencial teórico. Neste trabalho, foram abordados os temas que permitiam a explicação do fenômeno trabalho da enfermagem no cuidado da criança com condição crônica na atenção primária.
Nos resultados são apresentados trechos dos relatos dos participantes codificados com as letras E para os enfermeiros, TE para os técnicos de enfermagem e AE para os auxiliares de enfermagem, seguidas de um algarismo arábico que indica a ordem da realização da entrevista.
Todas as etapas da pesquisa foram realizadas em consonância com as diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido o projeto aprovado em Comitê de Ética sob parecer número 0004.0.439.000-10A. Não houve recusa para participação no estudo e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Os resultados indicam que o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições crônicas é caracterizado por uma multiplicidade de fazeres que se subdividem em ações específicas da enfermagem, que mesclam atividades privativas e atividades caracterizadas como do fazer próprio da enfermagem na atenção primária à saúde; e ações executadas pela enfermagem que, mesmo sem comporem seu núcleo específico, são atribuídas a esses profissionais.
No primeiro conjunto, incluem-se as consultas de enfermagem como parte do acompanhamento de crescimento e desenvolvimento, ações de vacinação, administração de medicamentos, realização de curativos e cuidados com dispositivos tecnológicos. No segundo conjunto, estão os atendimentos da demanda espontânea por meio do acolhimento, o fornecimento de insumos e as articulações para garantir apoio logístico para o cuidado. Cita-se nesse conjunto, também, a atuação da enfermagem centrada nas ações educativas e aquelas relativas à organização do cuidado, por meio do agendamento de visitas e da marcação de consultas e exames, numa lógica que se aproxima da gestão de casos. Em ambos os conjuntos, foram revelados desafios e contradições próprios de um fazer que se apresente em um movimento de conformação de uma lógica assistencial ainda em construção, orientada para a promoção da saúde e prevenção de agravos no atendimento a população.
As crianças em condições crônicas, assim como as demais crianças, são inseridas nos atendimentos de puericultura, que incluem as consultas de enfermagem, como uma ação para a garantia do cuidado continuado. Os participantes relatam que o momento do atendimento é marcado por relações de vínculo que permitem apreender as necessidades de cuidado da criança, programar os atendimentos posteriores e estabelecer prioridade para o agendamento.
[...] A gente consegue fazer mesmo, conversar... Dos estímulos que precisa, avaliar o desenvolvimento, o crescimento, no que a criança tá sendo estimulada, [...] a gente avalia que tá evoluindo com relação à parte motora, cognitiva, com relação à dieta, que é uma preocupação, com relação à parte afetiva... [...] A gente conversa... Porque o exame físico é uma parte só dessa consulta de enfermagem. O resto é mesmo ver... Às vezes, a mãe tá precisando de ajuda (E2).
O acompanhamento e a participação da gente mesmo, nos cuidados que cada caso requer, é através dos atendimentos mensais de puericultura, que a gente acha que há necessidade de fazer com menor espaçamento de tempo... E que a gente abre a agenda pra isso... Mas eu acho que a gente ainda, também, se limita um pouco dentro daquilo que a gente poderia fazer, que é a questão da prevenção e promoção, da melhoria do estado geral, por causa da demanda absurda que a gente tem (E7).
Os relatos dos participantes revelam o desafio da organização do trabalho na atenção primária para equacionar o atendimento à demanda espontânea e à oferta programada. Os participantes reconhecem o limite da sua atuação na promoção da saúde e prevenção de agravos declarando que há outros aspectos referentes às práticas nesse campo que poderiam ser trabalhados, contudo não ocorrem devido à sobrecarga de trabalho dos profissionais.
No caso das crianças com condições crônicas, o atendimento à demanda espontânea aparece como uma ação executada no acolhimento ou no acesso aos atendimentos rotineiros da UBS - vacinação, teste do pezinho, entre outros - quando é possível captar os motivos de procura de cuidado e providenciar o atendimento:
No acolhimento somos nós que fazemos o primeiro contato. Por exemplo, a gente vê um caso de uma criança que tá chiando muito e a gente prioriza esse caso, a gente passa na frente de todo mundo [...]. E no teste do pezinho a gente já tem as orientações, todos nós que estamos lá fazemos uma escuta da mãe, perguntamos para a mãe, olhamos mesmo a criança, se ela está amarelinha, olha o umbiguinho (TE21).
Os participantes do estudo não referem oferta programada com ações voltadas, particularmente, para as crianças com condições crônicas. Essas crianças são atendidas no mesmo modelo das demais crianças, ainda que haja o reconhecimento de suas necessidades específicas. Esse reconhecimento direciona o esforço dos profissionais para compor um arranjo diferenciado na organização da atenção com menor espaçamento entre as consultas ou ainda um encontro singular com as mães e acompanhantes, marcado pela tentativa de captar seus anseios e resolver as dúvidas em relação aos cuidados da criança.
Eu acho que não tem, não sei se eu posso dizer que tenha uma ação que seja diferente do que a gente faça com as outras crianças. A não ser o fato de que a gente busca olhar, individualmente mesmo, cada criança, ver qual que é a necessidade que, mesmo se não for uma criança em condição crônica, mas ela vai ter uma necessidade que é diferente da de uma outra criança, de um outro vizinho, um priminho... [...] De que tipo de apoio que aquela mãe tem para criar a criança. E a gente tenta identificar as necessidades individuais e adequar às orientações (E17).
Ainda nas ações programáticas, os enfermeiros relatam a realização das ações do quinto dia e da vacinação para as crianças com condições crônicas, da mesma forma como é feito para as demais crianças que procuram a unidade de atenção primária.
A gente tá fazendo é ação do quinto dia. [...] Mais assim, nada assim diferencial (E15).
A gente acompanha muito vacina [...] medidas normais de qualquer outra criança (E13).
No trabalho dos auxiliares e técnicos de enfermagem sobressai à referência quanto aos procedimentos técnicos voltados para a administração de medicamentos e cuidados com os dispositivos tecnológicos como marca de uma atenção que se realiza para as crianças com condições crônicas. A realização de curativos e dos cuidados com gastrostomia, traqueostomia e sondas são ações que no serviço de saúde são atribuídas à enfermagem, compondo seu fazer próprio. Quando a realização é continuada no domicilio, cabe a enfermagem orientar e preparar as mães para a manutenção do cuidado:
O cuidado com a sonda... O cuidado com o curativo da sonda... Somos nós que prestamos. Mas a gente conseguia sim, dar as orientações [...] se for fazer um cateterismo vesical a gente consegue orientar. Se for um cuidado com uma traqueostomia... Um cuidado com a aspiração a gente consegue dar uma orientação (TE6).
Uso de medicamento errado geralmente, porque geralmente essas crianças crônicas, elas fazem o uso de medicamento [...]. É muito importante a mãe tá bem instruída (E1).
Os cuidados de orientação, seja por questão de alimentação, seja com os cuidados de uma forma geral como, por exemplo, uma criança que tem mobilidade reduzida. Orientar a mãe com a questão de mudança de decúbito (E11).
Na orientação e no preparo para o cuidado, a enfermagem coloca em ação um saber-fazer que advém do núcleo comum das profissões de saúde: a educação em saúde. Apesar de estar no território compartilhado pelas profissões, a educação em saúde aqui evocada volta-se, sobretudo, para a parcela do cuidado atribuída à enfermagem passando a compor, portanto, seu núcleo específico de ação. Assim, é de responsabilidade da enfermagem a prática educativa que oportuniza as mães e aos familiares uma melhor compreensão da condição crônica e orientações sobre os cuidados com o uso dos medicamentos e dietas, manuseio dos dispositivos para este fim, posicionamento e estimulação da criança, além das orientações sobre as características próprias do crescimento e desenvolvimento de uma criança com cronicidade.
Na mesma lógica, incluem-se os grupos educativos com ações que não são específicas da enfermagem, mas que os participantes relatam que, exclusivamente, são esses profissionais que realizam na atenção primária:
Então, essas ações coletivas que a gente faz são avaliações mais pontuais. Nesse exemplo da desnutrição, a avaliação mais pontual do desenvolvimento que a criança teve naquele período de crescimento, de ganho de peso ou não. Mas a gente sempre direciona ações de educação em saúde que estejam ligadas com essa questão do problema que a criança tá apresentando, voltado tanto pras crianças como pros pais. Para os asmáticos também a gente já fez grupos, ações coletivas pra orientar técnicas corretas de higienizar o espaçador, de usar a medicação, de cuidado da higiene dental... Acho que também colabora, contribui pro cuidado (E17).
Eu acho interessante tá fazendo grupos... Crianças que tem que ser acompanhadas por conta desses riscos (TE8).
Destaca-se no fazer da enfermagem um conjunto de ações de coordenação do cuidado que inclui, entre outros, planejamento de visitas, acionamento de outros profissionais, marcação de retornos, orientações dos técnicos de enfermagem. Em casos mais complexos que requerem atendimento da equipe no domicílio, cabe ao enfermeiro a organização do cuidado e o monitoramento do acompanhamento realizado. Contudo, os relatos dos participantes permitem inferir que essas ações acontecem sem que sejam exploradas as potencialidades que elas podem oferecer como estratégias do cuidado às crianças com condições crônicas.
A gente traça um plano de cuidado, mas passa pelo enfermeiro... O médico, ele interfere naquilo que ele acha com relação à medicação, às vezes, com relação à dieta, mas o ambiente, o cuidado... Normalmente, passa pela prescrição de cuidar mesmo do enfermeiro. [...] a gente estabelece, que a visita vai ser mensal de acordo com o risco, com a vulnerabilidade dessa criança, dessa família; ou então ele [o técnico de enfermagem] vai mensalmente e ele traz esse retorno, pra gente ir fazendo as interferências que precisa fazer (E2).
Se forem situações mais complexas, a gente tenta fazer um acompanhamento domiciliar, com orientações mais direcionadas em termos de cuidado, de prevenção de agravos pros pais, para os cuidadores. E a enfermeira sempre pega para ela a responsabilidade da questão da coordenação do serviço dessas equipes. Então, por exemplo, condições crônicas como condições respiratórias, asmáticas, a gente procura manter um arquivo, um controle desse acompanhamento dessas crianças. Quem não está bem, quem tá faltando, quem recebeu alta, busca ativa, inclusões novas [...] (E17).
Os participantes referem ainda que tenham sido responsáveis por disponibilizar os insumos necessários, sendo essas, uma das práticas mais frequentes no conjunto das ações de enfermagem.
Igual quando aconteceu, precisou da saúde bucal, eles pediram apoio ou eles pediram material, [...] eu tive que fazer a visita, fazer um relatório, programação de gasinha, sonda pra fazer aspiração, material do dia a dia, soro (E13.)
O nosso suporte vai muito do paciente crônico, muitas vezes ele já está com uma rede muito estruturada. [...] Então ele tem um suporte fora da rede da atenção básica. Então acaba que nos resta apenas, por exemplo, fazer o relatório trimestral pra poder solicitar os insumos (E4).
O relato dos participantes permite apreender as características do cuidado à criança em condição crônica exigem uma formação profissional para além daquela que os enfermeiros, em especial, relatam ter tido, constituindo, portanto, um desafio para o trabalho. Há o reconhecimento da necessidade de investimento na formação dos profissionais para o atendimento às crianças em condições crônicas na atenção primária à saúde, visto que consideram a graduação insuficiente para isso. Uma das estratégias para superar esse desafio é a busca de apoio junto aos profissionais com algum conhecimento sobre essa população num processo de ajuda mútua:
Assim, eu devo ter feito dois atendimentos de puericultura na minha graduação... Então eu acho que tem dificuldade mesmo... Você chega na realidade, você tem que se adaptar e correr atrás de tentar melhorar (E5).
Eu sinto um pouco assim defasado. Porque nem todos profissionais tão assim... Treinados pra tá recebendo essas crianças no centro de saúde. Muitas vezes, eu vejo que eles procuram a pessoa mais de referência (E15).
Além da importância da qualificação dos enfermeiros para o atendimento, um dos desafios para a assistência às crianças com condições crônicas refere-se à composição de uma equipe multiprofissional, que possa atuar em conjunto e continuamente. Fica expresso o reconhecimento da complementaridade dos diferentes saberes e a contribuição que podem oferecer para o cuidado a estas crianças.
[...] muitas vezes, falta o profissional adequado, por exemplo, no caso nós estamos sem nutricionista, que seria do [Núcleos de Apoio à Saúde da Família] NASF. Nós ficamos sem profissional. Então assim, é necessária uma integração de mais profissionais na equipe. Ter o acompanhamento da psicóloga que também é muito boa, que faz o acompanhamento dos casos que a gente passa [...] nos fazemos reunião da equipe, todos os nossos casos são discutidos entre todos os profissionais daquela equipe e a gente dá os devidos encaminhamentos através dessas discussões (E21).
DISCUSSÃO
A análise dos resultados permite afirmar que o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições crônicas na atenção primária à saúde, ocorre na fronteira de um fazer próprio da enfermagem que é complementado por ações inespecíficas, não apropriadas por outros profissionais. Essas ações inespecíficas do cuidado às crianças, que poderiam ser parte do trabalho de diferentes profissionais da equipe, ao serem incorporadas ao fazer dos profissionais da equipe de enfermagem, assumem um caráter de práticas características dessa profissão.
No campo do fazer próprio, os dados indicam que o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições crônicas reproduz as ações programáticas e de atenção à demanda espontânea desenvolvidas na atenção primária para a saúde da criança. Nesse modelo, as ações de enfermagem indicadas pelos participantes apresentam poucos elementos que demarcam a diferença do cuidado ofertado às crianças em geral. O diferencial, quando existente, é assistemático e marcado pela pontualidade da intervenção com incremento das mesmas ações ofertadas a todas as crianças; sem evidências de abordagens inovadoras que seriam representadas por uma recomposição que combine, além da oferta programática, um conjunto de novas ações voltadas para as necessidades específicas dessas crianças. Dentre essas, se incluiriam, por exemplo, a atenção domiciliar sistematizada e as ações de reabilitação oportunas.
A ausência de uma abordagem específica dificulta a expressão de um novo modelo de cuidado, que avançaria para uma proposta de cuidado sustentada pelas necessidades em uma perspectiva de promoção da vida. Nesse contexto, o trabalho da enfermagem não é alheio ao modo de organização do cuidado às crianças com condições crônicas na atenção primária, que revela desafios.
Tradicionalmente, o fazer da enfermagem se expressa em três dimensões: assistir/cuidar, gerenciar e educar, que conformam a base tecnológica da profissão16.
Na dimensão assistir, revela-se a magnitude da intervenção procedimental para a qual se volta o trabalho de enfermagem às crianças com condições crônicas. No caso específico desse grupo populacional, dada a sua condição, espera-se maior demanda de cuidados devido a incapacidades, uso de medicamentos e dependência tecnológica, determinando cuidados diferenciados na vida diária em relação as outras crianças da mesma idade sem alterações no crescimento e desenvolvimento5. Apesar desse reconhecimento, evidencia-se a contradição expressa na organização do cuidado na atenção primária que não abre espaços para o atendimento das demandas e necessidades para além do habitual modo de fazer às demais crianças assistidas.
Sabe-se que a condição crônica exige outros cuidados que não aqueles restritos à recuperação do corpo biológico. Para isso, o processo de trabalho deve incorporar novas tecnologias. Dentre elas, destacam-se, nos achados do estudo, sinais de um fazer que se aproxime da gestão de casos com responsabilidades do enfermeiro na mobilização de outros profissionais e serviços, para atender e acompanhar as necessidades das crianças em condições crônicas. A gestão do caso se caracteriza como um processo cooperativo que inclui a identificação dos casos, a avaliação, o planejamento, o monitoramento e a reavaliação das ações de cuidados, de modo a favorecer uma atenção humanizada e de qualidade17.
Na atenção às crianças com condições crônicas, a gestão do caso por profissionais da atenção primária pode ser uma importante oferta, à medida que melhora a qualidade de vida, reduzindo a incapacidade, a procura por serviços de urgência, devido à agudização da condição crônica, as hospitalizações desnecessárias e a mortalidade17. Ainda, pode contribuir para diminuir a fragmentação do cuidado, típica de situações em que a procura por especialidades é alternativa assistencial prioritária, tal como tem sido para as crianças com condições crônicas. Nessas situações, evidencia-se uma fragilidade do modelo de atenção, que ainda está centrado no cuidado às condições agudas, encaminhando as crianças com condições crônicas para serviço de maior complexidade tecnológica, o que dificulta o vínculo com a atenção primária18. A importância do fortalecimento da estratégia de saúde da família, para que a família não perca sua referência de cuidado quando precisa da assistência especializada, é indicado também em outro estudo19.
Ao assumir a gestão do caso, como própria do trabalho da enfermagem, a dimensão gerenciar adquire uma perspectiva mais ampliada e sistêmica que supera a dicotomia entre o cuidar e o administrar, demandando mudanças na formação e nos saberes e fazeres da enfermagem na organização da assistência20. Fornecer insumos e providenciar apoio logístico são funções fundamentais para o cuidado, em especial, do grupo de crianças com condições crônicas. Essas ações estão para o cuidado, assim como o sistema de apoio está para as redes de atenção à saúde, garantido que cada serviço - ou cuidado profissional - opere de forma harmônica e eficiente. A gestão do caso aparece, então, como um componente do cuidado que pode congregar as três dimensões do trabalho da enfermagem no espaço micro da atenção.
A dimensão educar, abrangendo a educação da família, compõe também a caixa de ferramentas no trabalho da enfermagem para as crianças com condições crônicas, que visa preparar a família para a realização de procedimentos e a identificação das necessidades de cuidado da criança. A educação, por sua vez, é também um objeto contraditório, pois ao mesmo tempo em que é necessário para a continuidade do cuidado no domicílio, deve ser planejado e operacionalizado numa proporção equilibrada para não caracterizar a transferência total e desresponsabilização do cuidado profissional a essas crianças. Assim, o desafio expresso é estabelecer os limites de uma atuação que, na fronteira do cuidado, se depara com fragilidades na organização da atenção, gerando insegurança para as famílias e contribuindo para a descontinuidade do cuidado1,10,18.
Os achados direcionam ao entendimento que o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições crônicas se ocupa em maior proporção àquilo que é comum aos diferentes núcleos profissionais da saúde, estando às ações específicas em menor frequência no seu trabalho. Essa inespecificidade, em parte, pode ser atribuída à indefinição do modelo de cuidado das crianças com condições crônicas e à lógica da organização da atenção primária à saúde que tem na enfermagem e, sobretudo, no enfermeiro, o profissional que ocupa a linha de base de todos os processos assistenciais e administrativos nesse cenário de atenção.
Mesmo assumindo a crítica a esse modelo, o estudo aponta que é por esta razão - estar na linha de base - que o trabalho da enfermagem assume um lugar estratégico e transversal no cuidado às crianças com condições crônicas que não se limita a sua ação específica, mas que transborda e invade o campo dos outros profissionais sendo o responsável por assegurar as articulações que confluem na dimensão cuidadora do trabalho em saúde13.
Há, porém, o desafio de discutir a atuação desse profissional, que pode demandar modificações em sua formação de forma a instrumentalizá-lo para uma composição tecnológica do trabalho que permita ocupar-se com propriedade do fazer específico e das ações que complementam o cuidado integral das crianças com condições crônicas, superando as fragilidades teóricas e técnicas, assim como as limitações para articulação entre os distintos serviços e setores, que resultam em atendimentos menos resolutivos às crianças e suas famílias19.
Na atenção primária à saúde, a incompleta implementação das estratégias governamentais está relacionada à priorização da atenção às doenças agudas e às demandas espontâneas, o que limita a articulação entre os serviços de saúde e o seguimento de usuários com doenças crônicas. É importante ressaltar, diante do aumento da morbimortalidade por condições crônicas no país, que a deficiência no acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança pode desencadear condições crônicas de saúde11.
Por fim, há que se discutir que as necessidades de cuidado apresentadas pelas crianças com condições crônicas e suas famílias são um objeto interdisciplinar que deve ser atendido na articulação de um trabalho multiprofissional, no qual está inserida a equipe de enfermagem. Nesse modelo, nenhum trabalho é superior ou mais abrangente que outro, pois todos são complementares para a integralidade da atenção13.
CONCLUSÃO
Conclui-se que o trabalho da enfermagem no cuidado às crianças com condições crônicas é caracterizado por ações específicas e ações comuns do trabalho em saúde no campo da atenção primária. Ainda que de forma incipiente, a convergência dessas ações é apresentada na tecnologia de gestão de casos que demonstra a articulação da dimensão assistir, educar e gerenciar no trabalho da enfermagem.
Como são próprios de um processo em construção, os resultados demonstram as contradições e os desafios de uma prática que se inaugura para o grupo das crianças em condições crônicas. Há que se avançar na organização do cuidado, na atenção primária com novas ou renovadas ações que incluam a especificidade desse grupo populacional numa oferta de cuidado mais coerente com suas necessidades. Nesse outro modelo, há que discutir a inserção do trabalho da enfermagem numa equação harmônica do atendimento à demanda espontânea e programática de forma a permitir maior expressão do campo próprio do fazer da enfermagem.
Em consequência, há que se recomporem as tecnologias no trabalho da enfermagem que passam a exigir para além da intervenção procedimental, das tradicionais formas de educação em saúde e dos clássicos modos de administrar os setores e ações na atenção primária, uma nova caixa de ferramentas mais coerente para o modelo cuidador em permanente construção.
Reconhece-se que outros estudos precisam ser desenvolvidos sobre a temática, em especial, àqueles que se voltem para a articulação e corresponsabilidade multiprofissional na interface do trabalho em saúde na atenção primária. Há que se considerar como limitação deste estudo a não realização de entrevistas com maior número de participantes por categoria profissional em cada uma das UBS, devido ao número reduzido de profissionais que se identificaram como atuantes no atendimento às CCC. Contudo, a confiabilidade dos dados foi obtida por meio da convergência nos discursos dos participantes e os resultados foram suportados pela literatura científica produzida sobre o tema.
REFERÊNCIAS
[1] Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh>