Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
Longitudinalidade e continuidade do cuidado à criança e
ao adolescente com doença crônica
Vanessa Medeiros da Nóbrega
1
Altamira Pereira da Silva Reichert
1
Claudia Silveira Viera
2
Neusa Collet
1
1 Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, PB, Brasil
2 Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Cascavel, PR, Brasil
Recebido em 02/07/2015
Aprovado em 30/11/2015
Autor Correspondente:
Vanessa Medeiros da Nóbrega
E-mail: nessanobregam@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar a continuidade e a longitudinalidade do cuidado à criança e ao
adolescente com doença crônica, na percepção do cuidador familiar.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa realizada com doze familiares de crianças e de
adolescentes com doença crônica, por meio de grupos focais/entrevistas
semiestruturadas no período de fevereiro a outubro de 2013 com análise
temática de conteúdo.
RESULTADOS:
Emergiram duas categorias temáticas: constante busca e espera pelo cuidado na
rede de atenção à saúde e estratégias utilizadas para superá-las; e
longitudinalidade do cuidado: caminho a ser construído.
CONCLUSÃO:
Observam-se fragilidades expressivas em níveis programático, institucional e
pessoal, que deixam a criança e o adolescente com doença crônica vulneráveis
pela falta de seguimento e manejo adequado da doença na rede de atenção à
saúde. São necessárias mudanças significativas nos modos de organizar o
trabalho e as ações no cotidiano dos serviços de saúde para conseguir
atender às necessidades dessa população.
Palavras-chave: Saúde da criança; Saúde do adolescente; Doença crônica; Atenção à saúde.
INTRODUÇÃO
Doença crônica é aquela que apresenta duração longa ou indefinida, prognóstico geralmente incerto, com períodos de remissão e exacerbação dos sintomas ao longo do tempo, e que necessita de um processo de cuidado contínuo sem que, necessariamente, resulte em cura1.
Nessa perspectiva, compreende-se que a longitudinalidade e a continuidade do cuidado são atributos essenciais tanto para o acompanhamento da criança e do adolescente com doença crônica quanto para a sua família.
A continuidade do cuidado em saúde refere-se ao modo como o usuário vivencia a integração de serviços e a coordenação entre eles, a atenção recebida durante a visita aos serviços de saúde ao longo do tempo e suas experiências em relação à manutenção de um cuidado constante, gentil e articulado de forma coerente2.
Na longitudinalidade - um dos atributos centrais da Atenção Primária à Saúde (APS) - necessita-se da construção e da manutenção de fortes vínculos entre os usuários e os profissionais de saúde. Assim, com o passar do tempo, espera-se que haja cooperação mútua, e os usuários passem a procurar o serviço independentemente da presença de um problema de saúde. Esse vínculo fortalecido converge no reconhecimento do profissional e do serviço como fonte habitual de atenção devido à confiança estabelecida nessa relação3.
No tocante à garantia desses atributos, encontra-se a constituição da Rede de Atenção à Saúde (RAS) com o intuito de assegurar ao usuário o conjunto de ações e serviços de que necessita com efetividade e eficiência1.
A RAS é composta por serviços de saúde diferenciados pela tecnologia dura característica de cada serviço, com missão unificada, objetivos comuns e atuação cooperativa e interdependente, organizados poliarquicamente e coordenados pela APS, centro de comunicação entre os pontos, visando à assistência contínua e integral da população adscrita, com responsabilidade compartilhada1.
Contudo, o processo de trabalho nos serviços de saúde apresenta lacunas que desfavorecem a realização de atenção longitudinal e contínua pela RAS. Dentre essas, tem-se a não resolutividade das demandas apresentadas pela criança com doença crônica e sua família4, que pode estar relacionada à falta de profissionais com o conhecimento necessário para esse cuidado5.
Essa falta de resolutividade inicia-se na APS - centro organizador responsável pela coordenação do cuidado nos diferentes pontos de atenção do sistema de saúde -, gerando insatisfação e o não reconhecimento da APS como fonte cuidadora6, estendendo-se aos demais níveis de atenção. Os problemas encontrados evidenciam relações hierarquizadas e de poder7, fragilidade nos sistemas logísticos e de governança8, falta de acesso e fragmentação no sistema como um todo9,10.
A descontinuidade decorrente da fragmentação da rede de atenção à saúde faz a família peregrinar em busca de cuidado e traz impactos para a qualidade de vida, resultando em vulnerabilidade social, do querer e não poder ofertar a atenção da qual a criança necessita4. Estudo5 realizado no município de Porto Alegre (RS), com o objetivo de conhecer as percepções de familiares de crianças com doença crônica sobre os componentes das situações de vulnerabilidade e sua relação com os sistemas descritos na Teoria Socioecológica de Urie Brofenbrenner, afirma que as lacunas no atendimento à criança e ao adolescente com doença crônica iniciam-se com o planejamento dos programas e das políticas norteadoras da rede de serviços de saúde, levando a situações de vulnerabilidades programáticas, com prejuízos na organização e na qualidade dos serviços e das ações ofertadas. Essa realidade repercute em sobrecarga tanto para a família quanto para o sistema de saúde.
Compreende-se que os cuidadores de crianças e adolescentes com doença crônica ao conviver com esses problemas em seu cotidiano por frequentar os serviços de saúde, vivenciam experiências significativas que os capacitam a explicitar com propriedade a realidade do contexto de cuidado com a condição crônica e contribuir para que as mudanças necessárias sejam vislumbradas pelos gestores e profissionais de saúde.
Diante do exposto, questionou-se: como os familiares percebem a continuidade e a longitudinalidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica? O objetivo deste estudo foi analisar a continuidade e a longitudinalidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica, na percepção do cuidador familiar.
MÉTODOS
Trata-se de estudo qualitativo, centrado na organização social do processo de trabalho em saúde da RAS no cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica.
Participaram 12 familiares cuidadores de crianças e de adolescentes com doença crônica que frequentaram um hospital público de referência para atendimento a essa população no Estado da Paraíba, no período de fevereiro a outubro de 2013, e atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ser familiar de criança ou de adolescente com doença crônica; ser um dos principais responsáveis pelo acompanhamento da criança ou do adolescente durante o percurso da doença; ter mais de dezoito anos; e a criança ou o adolescente estar hospitalizado na Clínica Pediátrica ou frequentar o ambulatório do hospital durante o período de produção do material empírico. Foram excluídos familiares que apresentavam algum problema de comunicação ou aqueles cujas crianças ou adolescentes tivessem menos de um ano de diagnóstico de doença crônica.
A rede de saúde do município em estudo também é referência para pessoas de outros municípios e, por isso, decidiu-se incluir sujeitos representantes de diferentes municípios da Paraíba.
Um único pesquisador foi responsável por realizar a coleta de dados, que ocorreu no hospital e utilizou inicialmente a técnica do grupo focal (GF). No entanto, nas enfermarias do hospital não havia rotatividade dos leitos durante o período de coleta de dados em decorrência do longo período de internação das crianças e adolescentes com doenças crônicas. Esse fato desfavoreceu a seleção de um número suficiente de participantes para realizar um novo GF. Ademais, foram encontradas dificuldades em realizar o GF no ambulatório, pois os familiares ficavam receosos de retirarem-se da sala de espera com medo de perder a consulta como também não aceitavam esperar após a consulta, uma vez que alegavam ter compromissos. Diante desses obstáculos, decidiu-se pela utilização da técnica da entrevista semiestruturada individual, de modo a eleger novos participantes e contribuir para uma análise mais abrangente do estudo.
Vale salientar que não foram observadas divergências entre os dados coletados por intermédio de ambas as técnicas, o GF e a entrevista semiestruturada, fortalecendo a inferência que a decisão não trouxe viés para os resultados da pesquisa.
No desenvolvimento do GF, além do pesquisador, que moderou a discussão, necessitou-se do apoio de um observador, que auxiliou na organização do encontro e realizou registros sobre a dinâmica da rede de interação durante o desenvolvimento do grupo, bem como de singularidades dos participantes no decorrer da entrevista. Foram realizados dois GFs com 4 e 5 participantes cada que duraram, em média, 100 minutos; e três entrevistas semiestruturadas, com duração aproximada de 40 minutos.
As entrevistas tanto em grupo como de forma individual foram realizadas de acordo com a possibilidade de participação dos sujeitos e gravadas com a anuência dos participantes para viabilizar a transcrição na íntegra. A questão disparadora para ambas as técnicas foi: "vocês têm filhos que precisam com frequência de atendimento nos serviços de saúde. Então, conte-me quais os serviços da rede de saúde foram procurados pela família e o que cada um fez para ajudá-los".
Todo o material empírico da pesquisa compôs o corpus de análise, com entrevistas transcritas na íntegra e codificadas com identificação individual dos relatos. Em seguida, o material foi submetido à análise temática, centrando o foco nos diferentes olhares dos sujeitos participantes para a elaboração das estruturas de análise e construção das categorias empíricas, nas quais os fragmentos discursivos foram organizados em torno de questões centrais para o estudo. A análise perpassou as etapas de pré-análise, com leitura flutuante e exaustiva do material, que possibilitaram ter uma visão de conjunto, perceber as particularidades do material, organizar temas iniciais para a análise e interpretação, eleger a classificação inicial e determinar os conceitos teóricos de orientação da análise; de ordenação dos dados, com recorte das unidades de registros e organização do material em temas; e de análise final na qual há agrupamento dos temas com a criação das categorias temáticas e interpretação dos resultados produzidos11. A partir dessa análise, foram construídas duas categorias temáticas: "constante busca e espera pelo cuidado na rede de atenção à saúde e as estratégias utilizadas para superá-las"; e "longitudinalidade do cuidado: caminho a ser construído".
O estudo foi norteado pela Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde12, e obteve o parecer favorável (nº 184.351 e CAAE 11444412.8.0000.5183). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantir seu anonimato, os participantes do grupo focal foram identificados pelas letras GF, seguidas de dois números - o primeiro identifica o número do grupo, e o segundo caracteriza o familiar (1GF1). As entrevistas individuais são representadas pela letra E, seguida da numeração cronológica de realização da entrevista (E1, E2 e E3) e os serviços de saúde citados nas entrevistas foram identificados pelas letras A, B, C, D e E.
RESULTADOS
Dentre os cuidadores familiares de criança e de adolescente com doença crônica, nove eram mães, duas tias e um pai. A faixa etária variou entre 23 e 45 anos, seis declararam-se casados, cinco solteiros e um com união estável. Quanto à escolaridade, sete dos 12 sujeitos tinham menos de oito anos de escolaridade. Apenas três participantes tinham emprego formal, um estava desempregado e oito eram donas de casa.
No que concerne às crianças e aos adolescentes com doença crônica (Quadro 1), seis residiam no município estudado da Paraíba e seis em outros municípios de pequeno porte do mesmo Estado.
Doença(s) crônica(s) | Tempo de diagnóstico | Idade | Sexo | Escolaridade |
(1GF1) Beta Talassemia; Asma | 1 ano | 2 anos e 3 meses | M | - |
(1GF2) Cardiopatia; Insuficiência Renal Crônica | 1 ano | 17 anos | F | 8º ano do EF* |
(1GF3) Laringotraqueomalácea em uso de TOT | Desde o nascimento | 1 ano e 5 meses | M | - |
(1GF4) Hepatopatia Crônica | 1 ano | 12 anos | M | 9º ano do EF |
(1GF5) HIV positivo | 10 anos | 13 anos | F | 5º ano do EF |
(2GF1) Síndrome de Tay Sachs | 2 anos | 6 anos | M | - |
(2GF2) Insuficiência Renal Crônica | 2 anos | 10 anos | M | 3º ano do EF |
(2GF3) Cirrose Hepática com transplante realizado em 2010 | 3 anos | 11 anos | F | 4º ano do EF |
(2GF4) Insuficiência Cardíaca Congestiva; Febre Reumática; Retardo Mental | Muito tempo | 15 anos | F | 6º ano do EF/ não está estudando |
(E1) Paralisia Cerebral | Desde o nascimento | 5 anos e 6 meses | M | Creche |
(E2) Lúpus Eritematoso Sistêmico; Tuberculose; Depressão | 2 anos | 17 anos | F | 2º ano do EM** |
(E3) Fibrose Cística; Asma | 2 anos | 5 anos | F | Jardim II |
Constante busca e espera pelo cuidado na Rede de Atenção à Saúde e estratégias utilizadas para superá-las
O processo de cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica na RAS apresenta significativas lacunas que repercutem em constante peregrinação dos familiares:
[...] ele saiu do primeiro internamento [hospital A] de cinco dias e começou a adoecer dois dias depois da alta. Voltei para o hospital B e falaram que ele estava com pneumonia [...]. Falei que para lá [hospital A] eu não voltava, e me mandaram para aquele outro hospital C [...] a mesma coisa, era sujeira, infiltração [...]. Saí de lá com ele mole nos meus braços 10 horas da noite [...] voltei para o hospital B e foi a primeira vez que fui para o hospital D. [...] Ele estava com pneumonia de novo [...] (1GF1).
Quando há necessidade de hospitalização, são identificadas barreiras de acesso devido à falta de vagas para internação:
O que é difícil é que quando precisamos interná-la aqui [hospital E] [...] sempre que viemos não tem vaga (E2).
[...] numa urgência [...] vou para o hospital B e de lá fica na jogadeira para esperar arrumar vaga. [...] Outro dia mesmo fiquei de sábado às 8 horas da manhã até o outro domingo com ela [criança com doença crônica] sentada nas cadeiras [...] . No domingo, ela passou mal, abri o bocão e conseguiram colocá-la na sala de observação em cima de uma maca. Ficou no oxigênio, nos remédios até na segunda conseguir uma vaga e vir para cá [hospital E]. Só que fui eu quem entrei em contato com [...] o médico que a acompanha e apareceu essa vaga (E3).
Nesse contexto, alguns médicos disponibilizam o número particular de telefone para os cuidadores, no intuito de ajudá-los a ter acesso à rede de serviços:
Eu tenho o número do celular do médico, e ele disse sempre que eu precisasse, entrasse em contato com ele (1GF4).
[...] eu já sei logo, está com febre, corro para ele [médico especialista que acompanha a criança] ligo e ele já sabe o lugar de trazê-la (1GF5).
A falta de articulação entre profissionais e serviços de referência e contrarreferência e a ineficiência do sistema de regulação da rede desfavorecem o acompanhamento, o agendamento de procedimentos, exames e consultas com especialidades como também a localização de vaga quando há necessidade de hospitalização:
Eu passei dois meses para conseguir [consulta com especialista] e mesmo assim eu vim [para o hospital E] sem encaminhamento (2GF4).
A ortopedia passou quase um ano esperando uma consulta [...] Neurologista também demora de 6 meses para lá. [...] A médica de alergia é mais rápido. Eu espero um ou dois meses (E1).
[...] o que dificulta é essa demora [no agendamento] [...]. Se estou necessitando [...] deveria aproveitar esse momento que ele está aqui [internado no hospital E] para fazer o exame [...]. Se tem um problema nos rins dele que precisa ser detectado para saber se vai ou não precisar de cirurgia, porque não fazer mais rápido? Vai deixar ele sofrer, esperar ele adoecer novamente para poder fazer? [...] não queremos esperar para ver ele sofrendo, nem piorando (2GF2).
Para minimizar os problemas decorrentes da fragilidade na regulação, alguns médicos especialistas, preocupados com seus pacientes, agendam consultas de retorno, sem precisar passar pelo sistema de regulação, para o acompanhamento da criança ou do adolescente no momento da alta hospitalar:
[...] Sempre a consulta sai daqui [agendada do hospital E após alta hospitalar] que marca e eu venho (1GF2).
[...] quando venho [ao hospital], ele [médico especialista] já dá uma data marcada para retorno, mas caso aconteça alguma coisa com ele [filho] eu ligo (1GF4).
Estratégia que tem se mostrado eficaz e contribui para a qualificação do cuidado ao garantir a continuidade é a formação de grupo para doenças crônicas específicas, em que os familiares organizam-se, elegendo representações para mediar a comunicação entre a equipe especializada e os integrantes do grupo.
A presidente do grupo entra em contato com [nome do médico especialista] e sai avisando [quando tem consulta] [...] dependendo também da agenda do médico [...]Fica ele e a equipe para atender [...] faz exames, faz tudo na mesma hora (E3).
Longitudinalidade do cuidado: caminho a ser construído
A APS não está conseguindo proporcionar condições para o desenvolvimento do atributo longitudinalidade, repercutindo na procura do cuidador por esse nível de atenção apenas em momentos pontuais. Estes se restringem à necessidade de encaminhamentos para outros serviços ou para a realização de exames, de prescrição de medicamentos, de insumos e de atendimento odontológico:
[...] vamos a APS pegar encaminhamento (1GF2).
[...] Só vai assim [a APS] quando não tem a medicação, que está faltando, a médica passa a receita para pegarmos o remédio ou comprar. [...] ou por causa de um exame básico ou até mesmo um dentista (E2).
Obstáculo encontrado para a efetivação da longitudinalidade refere-se a lacunas no desenvolvimento da visita domiciliar pela equipe:
[...] três meses que moro e a agente de saúde não tinha aparecido. [...] O vizinho me perguntou [sobre a agente de saúde] e [...] disse que ia ligar para a assistente social, que veio na minha casa com a agente de saúde. Ela [assistente] perguntou à agente porque não tinha ido, e a mesma disse que achava não morar ninguém ali [...] A agente perguntou o material que eu estava precisando para fazer o pedido. [...] Isso vai fazer dois meses e ainda não vi nenhum material do posto de saúde [...] eles não apareceram mais [...] (2GF1).
O remapeamento do território das unidades de saúde com a troca do Agente Comunitário de Saúde (ACS) da microárea de atuação constitui-se em obstáculo para manutenção e fortalecimento do vínculo com a família:
[...] o agente de saúde ainda não foi fazer [visita domiciliar][...] Agora a agente de saúde [anterior] ia fazer a visita, perguntava alguma coisa, mas o rapaz só vai assim quando tem um encaminhamento para levar (E1)
Na minha casa, até agora, ela [agente de saúde] não fez [visita domiciliar] (E2).
Além dessa realidade, os familiares não se sentem acolhidos nos momentos em que necessitam de apoio da APS no cuidado:
Nem quando ele chega do hospital E ele tem visita domiciliar (1GF1).
A APS não acompanha. Quem acompanha mais é a doutora [nome da médica especialista] aqui nas segundas-feiras. Não vi nada de cuidado da APS com ela (2GF3).
[...] Eu acho que eles [profissionais da APS] deveriam saber mais um pouco também [...] deixei uns papeizinhos dizendo o que é fibrose cística, fazendo a propaganda [...], mas até hoje eu não tive êxito. Também eu não procuro mais lá [APS]. Tudo eu só corro para cá [hospital E] mesmo. [...] (E3).
DISCUSSÃO
O perfil nosológico brasileiro impele mudanças no modelo de atenção atual que não está conseguindo atender às demandas desse perfil epidemiológico com ascensão das doenças crônicas, acarretando em incoerência entre a oferta de serviços e as necessidades de atenção1. Corroborando essa realidade, este estudo identificou fragilidades na RAS que inviabilizam o seu funcionamento efetivo na atenção à saúde de crianças e adolescentes com doenças crônicas.
A falta de acompanhamento satisfatório para intervir precocemente em alterações clínicas desfavorece o manejo da doença e, frequentemente, faz os cuidadores peregrinarem por vários serviços de saúde em busca de atendimento. Visto que, em geral, o primeiro serviço procurado não responde às demandas apresentadas ou realiza os encaminhamentos necessários9,10.
Isso ocorre visto que o sistema de saúde no Brasil ainda não conseguiu organizar-se adequadamente para trazer respostas às necessidades de saúde da população em condição crônica, o que gera sobrecarga de atendimento nos serviços13, reflexo da descontinuidade do cuidado. Tem-se fragmentação da atenção com atendimentos pontuais, sem que haja comunicação entre os serviços e os profissionais de saúde da APS e da atenção secundária, e articulação destes com os sistemas de apoio e logística da RAS8. Este modo de organizar ainda está voltado para o atendimento às condições agudas, a fim de dar resposta reativa e episódica com foco na doença, o que trará resultados econômicos e sanitários desastrosos com o passar do tempo13. Nesse modo de organização não há espaço para a construção de uma parceria permanente entre família e equipe de saúde, que é essencial para o acompanhamento14, repercutindo em constantes reclamações dos cuidadores que vivem em filas à espera de vagas em outros níveis de atenção.
As vivências das famílias devem ser reconhecidas empaticamente pelos profissionais na construção de estratégias. Ao se colocarem no lugar do outro, o profissional passa a refletir sobre o problema e utilizar seus conhecimentos técnico-científicos para o planejamento de estratégias mais efetivas, que trarão resolutividade aos problemas evidenciados nesse árduo caminho de peregrinação descrito pelas famílias15.
Uma dessas estratégias evidenciadas foi a organização de grupos para doenças crônicas. Com o apoio de ambulatórios especializados, este grupo favoreceu a continuidade do cuidado, pois as crianças e os adolescentes com doença crônica tiveram o acesso facilitado aos serviços de saúde e suas ações quando solicitadas, por estarem disponíveis vários recursos em um mesmo local.
Também em decorrência da descontinuidade, o cuidador familiar teve que enfrentar as lacunas no sistema de regulação, resultando em longa espera por atendimento. Reconhece-se que essa realidade poderá trazer prejuízos para a saúde física e mental da criança e do adolescente e repercutir negativamente em seu bem-estar e de toda a sua família.
As necessidades de saúde, ao serem prontamente atendidas, convertem-se em benefícios para os envolvidos, como aponta estudo inglês que examinou a associação entre melhor gestão da doença crônica pela APS com redução dos custos hospitalares. Este constatou que, quando há gestão da doença, pessoas em condição crônica são mais saudáveis e desenvolvem menos complicações, precisando de menos hospitalizações durante o ano e, quando ocorrem, a permanência na instituição é mais curta16.
Contudo, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é constituído por uma complexa rede de serviços públicos e privados, resultado da criação de subsistemas para tentar atender às necessidades específicas da população17.Essa realidade desfavorece a coordenação e a continuidade do cuidado na APS, gerando vulnerabilidade programática5 na RAS.
O caminho para a efetivação da longitudinalidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica ainda precisa ser construído na APS brasileira. Nesse processo, é imprescindível criar meios para a gestão efetiva da doença a fim de desenvolver o acompanhamento eficaz das pessoas com doença crônica. Esse modo de gerir as condições crônicas poderá contribuir para a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas, além de reduzir os custos hospitalares e promover a efetivação da longitudinalidade.
Antes, como aponta estudo16, é preciso realizar alguns investimentos na prática da APS para melhorar a gestão, tais como: melhores sistemas de registros, incluir enfermeiros especializados na gestão e melhor vínculo da equipe de saúde com a comunidade16. Todavia, entende-se que a gestão do cuidado pode ser desenvolvida por profissionais de saúde com nível superior, não somente o enfermeiro, capacitados para exercer esse papel desde que a família possa ter facilidade de acesso e de contato, de modo a estreitar o vínculo e favorecer um relacionamento terapêutico cooperativo entre ambos.
A qualidade do vínculo entre o usuário e o serviço/profissional é fundamental. Portanto, deve haver interação promotora da confiança, por meio da qual o cuidador sinta-se acolhido e perceba o interesse da equipe por sua história, demandas e necessidades4.
Contrariando essa realidade, a tentativa do cuidador em mobilizar e responsabilizar os profissionais de saúde da APS para o cuidado à criança não obteve êxito, resultando em falta de respostas às demandas apresentadas. Essa forma de conduzir o processo gera insatisfação e desencantamento, podendo ocasionar ruptura de vínculos com o afastamento do usuário da APS e a procura por atendimento em outros níveis de atenção.
Estudo realizado em Medellín na Colômbia, que objetivou compreender o cuidado humanizado para quem participa diretamente dele, revela que a prática de cuidado em saúde é influenciada por três áreas: a primeira, do contexto social e legislativo; a segunda, da regulamentação que rege as instituições de saúde e, finalmente, da relação dos pacientes com os enfermeiros. As duas primeiras definem as regras para o cuidado e a terceira é, na verdade, o caminho para a sua realização18.
Compreende-se, assim, que o sistema de saúde sofre interferência direta das atitudes e ações dos profissionais, pois estas qualificam o cuidado e são determinantes para minimizar as situações de vulnerabilidades dos envolvidos nesse processo. A partir do momento em que a família e a criança ou o adolescente com doença crônica procuram o serviço, os profissionais que ali atuam passam a fazer parte do seu ambiente de cuidado e esses recebem os efeitos da forma como o trabalho está organizado5.
Estudo realizado no município de Londrina, Brasil, que comparou a organização das ações na APS para usuários com asma em serviços com programa consolidado de acompanhamento e outro não, revelou que os serviços de APS com o referido programa apresentaram resultados mais satisfatórios com a melhoria das condições de vida dos usuários19. Essa realidade é reflexo da melhor organização das ações e da maior adesão dos pacientes às recomendações preconizadas pelo programa para a prevenção de crises.
Na viabilização da longitudinalidade e da continuidade do cuidado, uma das principais estratégias no acompanhamento da família é a visita domiciliar, por proporcionar relação mais próxima3, permitindo à equipe formar uma imagem real da dinâmica familiar com reconhecimento de demandas da família para um cuidado efetivo.
Os pais valorizam a atitude dos profissionais que demonstram o interesse em conhecer mais profundamente a família e seus filhos durante a visita domiciliar, promovendo um relacionamento de confiança entre os pais e os profissionais de saúde2, aspecto este fundamental no cuidado às condições crônicas.
Destaca-se o ACS como profissional-chave na visita domiciliar, atuando junto à população para que os laços com a APS sejam mantidos. Porém, a visita domiciliar realizada tanto pelo ACS quanto pelos outros membros da equipe está fragilizada e os cuidadores não percebem o compromisso e a preocupação da equipe pelo cuidado, o que dificulta a identificação dessas famílias.
Por meio de visitas domiciliares, as equipes de saúde da APS têm condições de identificar as famílias e realizar o cadastramento20, inclusive o de crianças e adolescentes com doenças crônicas para acompanhá-las ao longo do tempo.
Contudo, observou-se fragilidade na captação/identificação das novas famílias nas áreas de abrangências da APS. Fator que pode ter potencializado essa lacuna foi o remapeamento das microáreas de atuação do ACS, por interferir no processo de fortalecimento de vínculo da família com a equipe da APS.
Não obstante, compreende-se que em um sistema integrado deve haver notificação de transferência da criança e do adolescente com doença crônica para outra área de abrangência. Nesse momento, compartilhar-se-iam as informações de saúde com a nova equipe responsável, de modo que esta os acolha e garanta a continuidade do cuidado. Assim, promover-se-ia a longitudinalidade ao facilitar o processo de formação de vínculo da nova equipe de saúde com a família, fomentando-a a reconhecer a APS como fonte de cuidado.
O reconhecimento da APS como fonte cuidadora favorece também a coordenação do cuidado, que é essencial para o acompanhamento qualificado à criança e ao adolescente com doença crônica, porém, ainda se constituindo como desafio para o trabalho na APS20.
Esse desafio, ainda não superado, traz repercussões para o cuidado com a desresponsabilização dos profissionais da APS pelo acompanhamento efetivo, e transferência automática desse papel para os médicos especialistas, cujo acesso depende de agendamento. Nesse contexto, os familiares ficam dependentes da disponibilidade dos especialistas para acompanhar e se responsabilizar pelo caso. Essa realidade deixa as crianças e os adolescentes com doenças crônicas vulneráveis às decisões particulares e pontuais dos médicos, pois se eles não intervierem na situação para apoiá-los, não terão acesso ao cuidado necessário em tempo oportuno.
Por outro lado, reconhece-se que as consultas com especialistas são importantes e devem complementar as ações da APS e não eximir de suas responsabilidades14. A RAS depende desse trabalho compartilhado para um bom funcionamento1, pois sem o cuidado colaborativo entre a APS e o especialista fragiliza-se a longitudinalidade ao descaracterizar os serviços primários de seu papel primordial frente à RAS.
A comunicação entre os profissionais de saúde é essencial no processo de cuidado integrado e complementar, no qual os envolvidos compartilham responsabilidade de forma solidária. Nesta deve haver o estabelecimento e a negociação de ações e responsabilidades, visando o cuidado seguro e efetivo1, de modo a evitar lacunas que possam interferir na continuidade do cuidado.
CONCLUSÃO
As lacunas identificadas na longitudinalidade e na continuidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica e família requerem mudanças significativas nos modos de organizar o trabalho e as ações no cotidiano dos serviços de saúde.
Os profissionais de saúde necessitam sobrepujar em seu processo de trabalho o olhar que associa os serviços de saúde unicamente à prática de ações curativas da doença. Para tanto, o estabelecimento de vínculos mais estáveis e duradouros com os usuários são necessários para instituir mecanismos que assegurem a longitudinalidade, mediante a construção de linhas de cuidado que contemplem prevenção e promoção e orientem os usuários em seu caminhar na RAS.
O cuidador familiar é responsável pelas buscas e escolhas dos serviços de saúde e, não obstante, os profissionais precisam ser acolhedores e se empenharem na resolução das demandas apresentadas, de forma a estreitar os laços e estabelecer a confiança mútua.
Os cuidadores apontam fragilidades em níveis programático, institucional e pessoal que interferem na longitudinalidade e na continuidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica e trazem vulnerabilidades consideráveis para os que perpassam todo o processo da condição crônica. Devido às lacunas existentes na gestão desses casos, não há intervenção adequada e em tempo oportuno, repercutindo na exacerbação frequente de quadros agudos da doença crônica.
A partir do olhar do cuidador familiar, não há um horizonte norteador para as práticas de cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica. Esse caminho ainda precisa ser construído, começando pelas relações interpessoais duradoras e empáticas entre o profissional e o cuidador, base de todo o processo na busca de um acompanhamento satisfatório e resolutivo para a complexidade que envolve esse cuidado.
Este estudo explicitou fragilidades significativas na longitudinalidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica, em decorrência de a APS desresponsabilizar-se pelo acompanhamento dessa população, entendendo ser esta responsabilidade dos especialistas.
Porém, compreende-se que a família deve ser o centro das ações, e os profissionais da equipe devem desenvolver um trabalho pautado em ações proativas e cuidativas voltado para todos os membros familiares envolvidos com a condição crônica, a fim de que o processo de vínculo seja fortalecido a cada encontro no processo de cuidado.
A relevância deste estudo encontra-se na possibilidade de dar voz a esses usuários, e seus resultados poderem contribuir para repensar o SUS em relação à RAS. Outros estudos são necessários envolvendo profissionais de saúde e gestores a fim de evidenciar a percepção daqueles que ofertam o cuidado e de trazer novas reflexões para aprofundar o conhecimento sobre a longitudinalidade e a continuidade do cuidado à criança e ao adolescente com doença crônica e sua família. Dessa feita, horizontes favorecedores para o estabelecimento desses atributos poderão ser construídos de modo a ofertar uma atenção de qualidade a essa população.
REFERÊNCIAS