Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
A peregrinação no período reprodutivo: uma
violência no campo obstétrico
Diego Pereira Rodrigues
1
Valdecyr Herdy Alves
1
Lucia Helena Garcia Penna
2
Audrey Vidal Pereira
1
Maria Bertilla Lutterbach Riker Branco
1
Luana Asturiano da Silva
1
1 Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, Brasil
2 Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil
Recebido em 21/09/2015
Aprovado em 23/11/2015
Autor Correspondente:
Diego Pereira Rodrigues
E-mail:
diego.pereira.rodrigues@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar as percepções das mulheres acerca da assistência
obstétrica no que se refere ao atendimento de seus direito
de acesso ao serviço de saúde durante o processo de parto
e nascimento.
MÉTODOS:
Pesquisa descritiva, exploratória realizada 56 mulheres nos
alojamentos conjuntos de quatro maternidades públicas da
Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro,
desenvolvida em 2014. A análise dos dados foi na
modalidade temática do conteúdo.
RESULTADOS:
Mostraram um problema recorrente para as mulheres, a
peregrinação, que traz três conotações a respeito do
direito, da ausência de cuidado e dos sentimentos
vivenciados pela busca de atendimento. Esses pontos estão
interligados pela lógica do descumprimento de ações que
assegurem os direitos sexuais, reprodutivos e humanos,
além do despreparo das instituições em oferecer uma
assistência de qualidade.
CONCLUSÃO:
Constatou-se a necessidade de transformações nos paradigmas
assistenciais obstétricos, valorizando o respeito, o
cuidado à mulher em prol da sua saúde.
Palavras-chave: Violação dos Direitos Humanos; Direitos do Paciente; Obstetrícia; Saúde da Mulher.
INTRODUÇÃO
No Brasil, desde 27 de dezembro de 2007, a Lei nº 11.634, em que dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e a partir do conhecimento e a vinculação da maternidade de referência, os serviços de saúde maternos devem garantir à mulher o leito obstétrico no momento de seu processo parturitivo, evitando a peregrinação durante o anteparto e parto1,2. Contudo, a peregrinação permanece como grave problema de saúde pública, diretamente relacionado com os obstáculos para a qualidade da assistência obstétrica e a manutenção dos índices de mortalidade materna no País, além de colaborar para o descumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio3, em especial o de nº 5 (melhorar a qualidade da assistência obstétrica).
A precarização da assistência, juntamente com as desigualdades em relação à oferta de leitos obstétricos, torna-se evidente principalmente pela falta de investimentos na saúde da mulher, que inviabilizam a construção de novas maternidades e a ampliação/adequação daquelas existentes, resultando na dificuldade das unidades hospitalares em acolher as mulheres4.
A implantação do Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PHPN), em 2000, visava atender as reivindicações sociais pela melhor qualidade da assistência do parto e nascimento, tema que tem sido objeto de atenção em várias regiões do País. O intuito era o de promover uma ampla discussão a respeito5.
A regulamentação da Rede Cegonha, em 2011, trouxe à tona uma proposta de qualidade da assistência às mulheres, com investimentos dos Estados e Municípios para a construção ou adequação de maternidades conforme a Resolução de Diretoria Colegiada nº 36 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), vigente nos serviços obstétricos, em prol da garantia da vinculação e do acesso das mulheres às maternidades3. Contudo, mesmo com essa proposta governamental, a peregrinação das mulheres no processo reprodutivo ainda está presente no cotidiano das maternidades6, e desse modo, a qualidade dos serviços obstétricos torna-se um importante indicador para a saúde da mulher7.
É possível considerar como violência obstétrica8 a peregrinação da mulher por estar diretamente relacionada ao seu processo reprodutivo e à anulação dos seus direitos3. Essa modalidade de violência resulta da precariedade do sistema de saúde, que restringe consideravelmente o acesso aos serviços oferecidos, fazendo com que muitas mulheres em trabalho de parto vivenciem uma verdadeira jornada em busca de uma vaga na rede pública hospitalar, peregrinando até conseguirem atendimento, situação que traz sério risco para suas vidas e as de seus conceptos caso esse atendimento não ocorra em tempo hábil9, favorecendo os desfechos negativos do parto e o aumento dos índices de mortalidade materna e neonatal.
Considerando tais circunstâncias, e tendo como perspectiva avançar na construção de conhecimentos sobre a assistência obstétrica no País, este estudo objetivou descrever e analisar as percepções das mulheres acerca da assistência obstétrica no que se refere ao atendimento de seus direito de acesso ao serviço de saúde durante o processo de parto e nascimento.
MÉTODOS
Estudo descritivo, exploratório, qualitativo, realizado nos alojamentos conjuntos de quatro maternidades públicas da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro, tendo como participantes cinquenta e seis mulheres, sendo quatorze em cada maternidade.
Em conformidade com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS)10, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Medicina do Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob Protocolo nº 375.252/2013.
Os critérios de inclusão no estudo foram: estar em puerpério imediato; ser maior de dezoito anos; ter realizado parto vaginal em maternidades públicas com permanência maior ou igual a doze horas na unidade de alojamento conjunto; não apresentar qualquer alteração fisiológica ou psicológica que inviabilize a participação. Os critérios de exclusão foram: ter permanecido na sala de pré-parto, enfermaria de gestantes, centro obstétrico e alojamento conjunto de alto risco nas maternidades públicas; ter sido submetida a cesariana; ter apresentado pós-parto patológico e estar em situação de pós-abortamento.
Aquelas que, inicialmente, atenderam aos critérios de inclusão, foram convidadas a participar da pesquisa e selecionadas por meio do processo aleatório simples, sendo escolhidas as que estivessem em leito obstétrico com numeração ímpar. Foi, então, realizado um novo convite a essas possíveis participantes, esclarecendo-se-lhes quanto ao tema da pesquisa e seus objetivos. Após concordarem em participar, todas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), condicionando a sua participação, assegurando o anonimato e o sigilo das informações, confirmado com a utilização de um código alfanumérico (PS1...PS56), e viabilizou a aplicação do instrumento de coleta de dados contendo perguntas abertas e fechadas referentes ao processo de acesso/peregrinação visando ao trabalho de parto e parto. A técnica utilizada foi a entrevista semiestruturada e os depoimentos das entrevistadas foram gravados em aparelho digital com autorização prévia de cada uma, transcritos na íntegra e validados por elas, assegurando-se a fidedignidade do que disseram. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo na modalidade temática11.
Utilizou-se a Unidade de Registro (UR) a partir da temática, como estratégia de organização do conteúdo das entrevistas. A colorimetria permitiu identificar cada UR e agrupá-las em Unidades afins, possibilitando uma visão geral da temática. As entrevistas originaram as seguintes UR: escassez de vaga e lacuna de leitos obstétricos; processo de peregrinação da mulher; direitos das mulheres; não acolhimento; falta de apoio no transporte seguro; tratamento e juízo de valor; sentimentos negativos e segurança no parto; medo de a criança nascer a caminho da maternidade; tratamento desumano e desrespeitoso; dor e segurança no parto; despreparo das unidades de saúde.
Essas UR fundamentaram a construção das seguintes categorias temáticas: 1) A institucionalização da peregrinação como obstáculo para a acessibilidade ao serviço de saúde: uma questão de violência obstétrica; 2) A peregrinação em busca da assistência obstétrica: uma violência no campo do cuidado à mulher; 3) Expressões e sentimentos das mulheres a partir da peregrinação: a vivencia da violência obstétrica.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro abrange os seguintes municípios, a saber: Niterói, São Gonçalo, Maricá, Itaboraí, Tanguá, Rio Bonito e Silva Jardim. E, a Rede Cegonha implementada desde 2011, propõe uma mudança na atenção à saúde obstétrica, com investimento do governo federal, articulado com a área técnica da saúde da mulher, da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro e as coordenações da saúde da mulher dos municípios na implantação da Rede Cegonha3.
A rede de atenção ao componente obstétrico da Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro dispõe em seu conjunto de: um hospital universitário, um hospital estadual e seis hospitais municipais na região. A rede cegonha tem com um dos seus princípios estratégicos a vinculação da mulher a unidade de referencia para o parto e nascimento, quando não é garantido para a gestante a vinculação, ocorre a peregrinação do anteparto e parto6,12.
A institucionalização da peregrinação como obstáculo para a acessibilidade ao serviço de saúde: uma questão de violência obstétrica
A Universalidade descrita na Lei 8.008/1990 significa garantia de acesso igualitário aos serviços de saúde, sendo um direito de cidadania e dever do Estado garantir o acesso equânime. A Equidade assegura as ações dos serviços de saúde em todos os níveis de complexidade. Esse conceito busca a isonomia, visto que todos são iguais perante a Lei; logo, seus direitos devem ser garantidos de forma igualitária. Já a Integralidade transmite o conceito de atendimento integral do usuário de saúde, com ações de promoção, proteção e recuperação, em um sistema que atende um Ser integral, ou seja, um Ser biopsicossocial13,14.
Nesse contexto, o conceito de Acessibilidade representa importante componente de um sistema de serviços de saúde, no momento em que se efetiva o processo de busca e obtenção de cuidado. Então, trata-se de que os serviços de saúde permitam que seus recursos sejam mais facilmente utilizados pelo usuário15. Essa acessibilidade relaciona-se com os conceitos de Equidade e Integralidade, princípios esses que regem as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), os quais devem garantir condições de acessibilidade e resolutividade à população, considerando os problemas de saúde da sociedade6.
Infelizmente, ainda é possível observar a peregrinação da gestante por carência de vaga ou leito obstétrico nas Unidades hospitalares. Essa realidade constitui a vivencia dessas mulheres, configurando um grave problema de saúde pública na rede de atenção à saúde materna, como foi dito. Seguem-se depoimentos a respeito:
Quando estava começando as dores, umas dores diferentes e aumentando fui para o hospital e não me atenderam e logo fui para outro, em outra cidade, e também não me atenderam e vim para essa maternidade que estou. (PS32)
Falaram para procurar outra maternidade, e não tinha vaga para internação (...) foi uma falta de respeito comigo, teria de me atender e ter uma vaga, e procurar outro hospital (...) foi um caos (...). E, nunca mais quero passar por essa situação, em que não consegui vaga por falta de cama. (PS50)
Efetivamente, dois fatores tornam-se determinantes em relação ao acesso: o primeiro refere-se às condições estruturais da Unidade de Saúde de origem dessa mulher, enquanto o segundo relaciona-se com a peregrinação até conseguir o atendimento em um serviço especializado. Sabe-se que quanto maior a distância a ser percorrida pela mulher, mais difícil é o acesso aos serviços, e nessas condições, muitas vezes o trabalho de parto em andamento torna-se complicado e de alto risco16.
O atendimento à mulher deve ser determinado por uma rede de atenção de serviços à saúde, compostas por organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde em que todos os pontos de atenção à saúde são igualmente importantes e se relacionam horizontalmente; implica em um continuum de atenção nos níveis primário, secundário e terciário; são vinculados entre si por uma missão única, objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde prestada no tempo e no lugar certos, com o custo e a qualidade certos e de forma humanizada, e com responsabilidades sanitárias e econômicas por esta população17.
Nesse sentido, a escassez de vagas nas unidades hospitalares que não conseguem absorver a respectiva demanda, ocasionada por um déficit de leitos obstétricos, compromete a atenção eficaz na linha de cuidado à mulher, pois os serviços de saúde devem estar articulados horizontalmente, interagindo entre si, correlacionando e cooperando com ações no cuidado durante o processo parturitivo. Ou seja: as instâncias dos níveis municipal, estadual e federal devem estar coordenadas em corresponsabilidade, com saberes, recursos e tecnologias em prol da saúde materna e do concepto.
A insatisfação de algumas mulheres ocasionada pela carência de vagas e leitos obstétricos, somada à ausência de uma linha de cuidado específica, faz com que elas busquem seus direitos. Todavia, mesmo sendo uma questão de direito e com apoio policial, nem sempre alcançam a garantia de assistência, como explicitado nas falas a seguir:
Eu chamei a polícia e a menina explicou que estava muito cheio, cheio mesmo, tinha gente até na cadeira, e tive que ir para outra maternidade. (PS7)
Olha, tem que me atender na hora, o local tinha que ter vaga para mim, é um direito meu eu pago meus impostos tudo direito e quando preciso de um serviço não tem direito. (PS25)
A insatisfação das mulheres é influenciada pela expectativa que possuem quanto ao atendimento que receberão, não retratando especificamente a qualidade da assistência a elas direcionada18. Entretanto, a carência de vagas na assistência obstétrica, a peregrinação e o não atendimento de suas necessidades, ressalta essa insatisfação além de aumentar a vulnerabilidade dessas mulheres e de seus filhos. Portanto, é possível constatar a violência obstétrica na medida em que o direito constitucional e institucional8 não lhes foi garantido.
A peregrinação foi destaque nos depoimentos das entrevistadas que tiveram como motivo para a recusa de atendimento, por parte dos profissionais de saúde, não serem elas "habitantes do município". Os discursos a seguir permitem caracterizar a negação de atendimento como uma violência contra as mulheres:
A médica falou que não damos a preferência de outros municípios, somente de quem mora na cidade, e o pessoal lá de baixo achou um maior absurdo, mandou chamar a polícia e tudo, como estava em trabalho de parto ele tinha mais que me atender. (PS26)
Quando fui para o outro que não deixou e não me atendeu porque não morava no município, e não podia me atender, pois eu não morava lá, fiquei muito revoltada, pois é um serviço público, e mesmo sendo de outro município tinha que me atender, e não fizeram nada e falaram que não podia me atender, pois não fazia parte das mulheres do município. (PS45)
Ressalta-se que a gestão municipal de saúde deve não só acolher a mulher, como executar o atendimento em caso de risco iminente, mesmo não sendo ela integrante da demanda do município onde estiver buscando atendimento. Caso a Unidade não disponha de vaga no momento, o serviço deve direcionar a mulher com o transporte seguro e a sua referência a outra Unidade de saúde, pois, conforme a Rede Cegonha3, a gestão de saúde tem a obrigação de fornecer a vaga para a mulher em trabalho de parto, conforme o slogan "Vaga sempre". A violência institucional se estabelece na criação de obstáculos quanto ao acesso ao direito da mulher8 e quando o serviço de saúde nega o atendimento por ela não integrar a demanda do município. Agindo assim, o serviço nega também o direito de atendimento à saúde da mulher, que é constitucional e deve ser livre de obstáculos de qualquer ordem.
As mulheres destacaram que a condição de "ser pobre" era um estigma social que se tornava também um fator predisponente à anulação de sua cidadania no que diz respeito à falta de acesso aos serviços de saúde:
A saúde é assim mesmo, temos de passar um sufoco para quem não tem plano de saúde, pobre acaba sendo dessa forma, sofrido, um descaso com a gente, não pensam na gente, uma roubalheira, e a gente fica dessa forma, sem nada. (PS31)
Pois não tenho plano de saúde, e se tivesse iria à primeira oportunidade, mas como não tenho, necessito disso, é assim, um descaso com a gente pobre, um descaso mesmo, estava nas mãos deles. (PS56)
A carência de serviços de saúde inviabiliza o acesso da mulher aos mesmos, o que fere a sua cidadania visto que ela enfrenta obstáculos para usufruir do direito universal à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988. As razões para que isto ocorra são complexas: os serviços podem não estar disponíveis ou acessíveis, e as mulheres podem ser incapazes de encontrar um serviço adequado19. É importante lembrar que a cidadania se refere ao exercício de direitos e deveres civis, sociais e políticos estabelecidos na Carta Magna do País, caracterizando a plena consciência dos direitos e obrigações de cada cidadão; constitui-se em importante referencial de conquista da Humanidade por aqueles que sempre buscaram assegurar direitos, liberdade, melhores garantias individuais e coletivas, não se conformando frente às dominações, sejam elas do próprio Estado ou de outras Instituições. Apesar disso, no Brasil, a cidadania está distante de muitos brasileiros, pois a conquista dos direitos civis, políticos e sociais não consegue ocultar o drama de milhões de indivíduos, em especial das mulheres que busca o acesso à saúde20.
Uma das regras mais contundentes percebidas pelo usuário no nível de sua consciência prática, embora muitas vezes rejeitada veementemente no nível discursivo, é a de que os serviços de saúde do SUS são tidos como uma espécie de favor à população, bem longe de ser um exercício de direito de cidadania. O usuário sente isso concretamente por meio da percepção de um significativo descaso para com ele nas diversas interfaces com os serviços de saúde. Desse modo, o discurso dos usuários do SUS aponta para o fato de que prevalece uma imagem de que não são vistos como cidadãos, portadores de direitos, mas como despossuídos aos quais os que detêm o "poder" fazem um favor3,21. Então, a peregrinação na assistência obstétrica transforma um ideário de acessibilidade em violência institucional, uma vez que a condição de cidadania é desrespeitada como garantia legal.
A peregrinação em busca da assistência obstétrica: uma violência no campo do cuidado à mulher
O não acolhimento na assistência espelha o (des)cuidado por parte dos profissionais quando se recusam a oferecer uma assistência adequada à mulher:
Eu não vi uma responsabilidade do hospital, pois eles [profissionais] achavam que eu precisava ser internada. (PS22)
Não quiseram me atender (...) e não consegui atendimento, foram uns estúpidos comigo (...) e não me ajudaram em nada, em nada mesmo (...) eu vim procurar ajuda e me negaram atendimento. (PS31)
Esse (des)cuidado retrata desleixo, passividade, descumprimento do encargo ou da obrigação; deixar de realizar o que deveria fazer; indiferença do profissional de saúde; inobservância de deveres impostos à execução de qualquer ato, tudo ocorrendo quando o profissional não age apropriadamente para proteger a segurança do usuário; ou até mesmo a recusa de assistência ao indivíduo3.
A falta de cuidado, o desrespeito e a recusa de atendimento podem ser observados no cotidiano da prática de alguns profissionais de saúde8,9, constituindo-se uma realidade da assistência obstétrica nos serviços de saúde, configurando uma violência de caráter institucional ocasionada pela falta de apoio no cuidado à mulher, como o acolhimento, observado no (des)cuidado com ela frente ao processo de peregrinação6.
É preciso refletir que o não acolhimento passa obrigatoriamente pela falta de cuidado, configurando conduta passível de punição em conformidade com o Código de Ética de cada profissional. Então, infere-se que a mulher peregrina por questão de (des)cuidado, que acaba por anular o seu direito a uma assistência de qualidade.
O tratamento desrespeitoso, com maus tratos e juízos de valor, pode ser observado nas vivências das mulheres durante o processo de busca por atendimento nas maternidades, conforme seus relatos:
O cúmulo do absurdo foi o médico falando grosso comigo, me dando um esporro por essa situação, e no final acho que saí como culpada, mas logo saí dali e fui com um amigo para outro hospital, pois ali não teria nenhuma atenção de ninguém. Um descaso. (PS36)
E comecei a reclamar e o enfermeiro começou a me reprimir e me insultar, falando que tinha que ver isso antes, e como eu iria ver isso? Um grosso, um desrespeito comigo e por conta da minha fragilidade, me senti culpada na hora, mais depois pensei que eles estavam errados, e não eu. (PS39)
De acordo com a PNHP, o acolhimento traduz-se em recepção cordial e respeitosa à usuária que busca os serviços de saúde, desde a sua chegada, responsabilizando-se integralmente por ela, ouvindo sua queixa, permitindo que expresse suas preocupações. Implica prestar um atendimento com resolutividade, corresponsabilização e, conforme o caso, orientando-a e à sua família, garantindo a articulação com os outros serviços de saúde para a continuidade da assistência, quando necessária. Desejado como um processo transversal, permeando todos os espaços do serviço e da rede, o acolhimento deve ser percebido por todas as equipes como uma oportunidade para melhor escutar e atender as necessidades singulares da mulher6,22, em detrimento de demonstrações de relações de poder que fazem com que ela se sinta culpada como resultado de juízos de valor acerca da falta de cuidado.
Embora relações de desigualdade de poder marquem a interação profissional/usuária, envolvendo os mais diversos profissionais de saúde, em geral, a desigualdade pode ser transformada em violência relacionada ao fato de serem mulheres, anulando-as como sujeitos de direitos, particularmente os sexuais, reprodutivos e humanos. Essa forma de violência pode estar constituída por atos de negligência, maus tratos físicos, psicológicos, verbais e até violência sexual. Nesses casos, entende-se a violência como um exercício de poder e autoridade, instituído por meio da ideologia dominante, com normas que determinam papéis sociais para homens e mulheres pautados na diferença sexual23, o que está em consonância com os depoimentos mencionados anteriormente.
A violência institucional vivenciada durante a peregrinação perpassa pela omissão de cuidados maternos8, agravada por insultos, humilhações, ofensas, desrespeito, discriminação e culpabilização, que ocorrem por conta dessa relação de desigualdade23, caracterizando um tipo de violência injustificada. Além do mais, a lacuna de atenção obstétrica qualificada ofertada às mulheres, pode ser observada nos seus depoimentos com a falta de comprometimento com a saúde materna, visto que a unidade não assume a responsabilidade com o transporte seguro previsto até a Unidade que tenha vaga, repassando as providências relacionadas com essa iniciativa à própria mulher e aos seus familiares:
Pois tive que pegar um táxi e não tinha dinheiro, e tive que pegar emprestado, foi um transtorno. (PS2)
Mas não ocorre, tem que ser tudo com a gente a correr atrás de atendimento, pagando táxi e sem ajuda de ninguém, nenhuma ambulância para levar a gente, que estava sentindo dor e iria ajudar. (PS20)
A busca da mulher por atendimento no momento do parto faz com que ela percorra vários serviços de saúde até consegui-lo. Isto ocorre por falta de vagas nessas Unidades que, na maioria das vezes, são especializadas, e a mulher acaba por peregrinar na busca por uma maternidade valendo-se de recursos próprios, favorecendo a elevação nos índices de complicações durante o parto24 em decorrência do estresse. É importante lembrar que o transporte até a unidade de referência para os cuidados obstétricos deve ser realizado pelo transporte seguro, e monitorado por profissionais de saúde capacitados, como recomenda a Rede Cegonha3.
Expressões e sentimentos das mulheres a partir da peregrinação: a vivência da violência obstétrica
As mulheres, durante o percurso, vivenciaram inúmeros sentimentos negativos como medo, raiva, angústia, apreensão, ódio, estresse e nervosismo, dentre outros que afetam diretamente a fisiologia do parto, como a segurança, podendo torná-lo um evento inseguro:
Foi horrível esse sentimento, pois podia ter o meu filho ali mesmo (...) Foi horrível, pois não tem hospital perto (...) se tivesse o meu filho teria nascido perto de casa (...) estava nervosa, com medo, pois não sabia onde teria o meu filho. (PS1)
Com medo, angustiada, fiquei muito nervosa, e quando cheguei aqui, demorou um tempo para me acalmar, e me acalmei até ter a minha filha, somente depois do sofrimento acabar. (PS30)
As repercussões de ordem psicológicas vivenciadas durante a peregrinação contribuem diretamente para um processo de parturição inseguro, principalmente pela ação da adrenalina que é produzida pelo organismo quando se encontra em processo de estresse. Nesse caso, há uma repercussão negativa no parto e nascimento, já que o organismo feminino inibe a liberação hormonal de ocitocina endógena por ação adrenérgica, impedindo a mulher de ter um parto mais seguro, bem como uma experiência prazerosa e tranqüila25. Esse hormônio atua diretamente na contratilidade uterina, favorecendo o apagamento e a dilatação do útero, mas na presença desses sentimentos de insegurança ocorre a inibição da ocitocina por ação adrenérgica, contribuindo para um parto e nascimento inseguros, principalmente no segundo estágio do parto.
A peregrinação esteve diretamente ligada ao estresse, como descrito nos depoimentos das mulheres, favorecendo a insegurança acerca do local onde iriam parir, fato que se torna uma violência obstétrica de caráter psicológico, exercida em razão de uma conduta institucional que causou sentimentos de abandono, insegurança e instabilidade emocional8, fatores altamente prejudiciais a um parto seguro. Além do desrespeito, as mulheres queixaram-se da desumanidade a que foram submetidas em decorrência do processo de peregrinação, conforme relataram:
Me senti humilhada! (...) ah!, a gente é um ser humano e não um bicho, um animal (...) então, acho que teria que ter me atendido na primeira vez que eu fui, mas não aconteceu. (PS8)
Deixam a gente largada igual a um lixo, não te dão um atendimento legal, e essa demora em decidir o que fazer foi angustiante, fiquei esperando umas três horas sem nenhum leito disponível que o enfermeiro me disse no final que não tinha vaga. (PS36)
O tratamento desrespeitoso prevalece na conduta antiética de muitos profissionais de saúde, contrariando os princípios da Política de Humanização da Assistência, e se constitui em agressão aos direitos sexuais, reprodutivos e humanos9, podendo ser caracterizado como violência obstétrica3,8, de caráter psicológico por causar instabilidade emocional na mulher, em um momento tão especial de sua vida. A sensação de abandono por elas vivenciada durante a peregrinação23,26, oportuniza esses sentimentos negativos, deixando-as vulneráveis diante de uma prática hostil, violenta e plena de humilhações3,26, além de interferir diretamente na fisiologia do parto, podendo resultar em desfechos desfavoráveis para o parto e nascimento:
E me desrespeitaram a minha situação, estava frágil [choro] com muita dor e desespero para ter a minha filha no hospital e depois do segundo fiquei desesperada ainda mais (...) um sentimento horrível não conseguir o que você queria, ser internada para ter o seu filho, e a dor somente aumentando e aumentando. (PS13)
E quando ele falou isso [não tem vaga] quase morri de desespero [choro], senti uma angustia tanto grande, a dor aumentando e eu ainda não estava internada, e vim para cá e me deram a assistência que os outros me negaram. (PS29)
Como foi dito, a inibição hormonal de ocitocina pela ação da adrenalina no organismo da mulher, faz com que ela sinta mais dor durante o processo parturitivo. A intensidade da dor depende da capacidade de cada indivíduo suportá-la, mas, durante o processo do parto e nascimento, pode caracterizar sofrimento fetal, tornando o parto um evento inseguro ocasionado pela ação inibitória dos hormônios do nascimento. Além disso, é importante ressaltar que a dor da mulher no momento do parto pode ser potencializada quando ocorrem estresse, desconforto, medo e insegurança, dentre outros sentimentos negativos, em especial se vierem à tona em decorrência da peregrinação, considerada uma violência de caráter psicológico3,8,25,27.
Nesse sentido, é necessário refletir a respeito da assistência oferecida à mulher, como também acerca do processo de infraestrutura e logística obstétrica, o que certamente contribuirá para uma assistência obstétrica segura, sem peregrinação e violência, assim assegurando os direitos sexuais, reprodutivos e humanos da mulher.
CONCLUSÃO
Atualmente, a assistência obstétrica ofertada durante o processo parturitivo é vista como um desafio para a política pública no campo da saúde da mulher, em especial quanto aos seus direitos constituídos em relação ao acesso igualitário aos serviços de saúde obstétrica. Em decorrência, a peregrinação durante o processo do parto e nascimento, permite que ela vivencie uma violência velada, ocasionalmente conivente com a anulação dos seus direitos frente a uma atenção de qualidade, com a garantia da internação e o atendimento de suas necessidades, além do cuidado direcionado com base em uma lógica acolhedora, humanizada e responsável com a saúde materna e do concepto.
A peregrinação da mulher em busca de assistência ao parto confirma-se como um real problema da saúde pública pela carência de vagas e leitos obstétricos, fatores impeditivos para uma assistência qualificada e resolutiva. A solução desse problema perpassa pela mudança de investimentos, pactuação das instâncias da rede de cuidados, corresponsabilização do cuidado, além de respeito aos direitos da mulher.
É necessário que os serviços de saúde garantam o acesso da gestante à assistência necessária, bem como a segurança do processo de nascimento e redução da mortalidade materna e perinatal. Isto deve ser feito com a responsabilização do cuidado; assim, no caso de não haver vaga na instituição no momento em que a gestante precisar, é necessário providenciar o transporte seguro para outra Unidade, assegurando a responsabilidade pela garantia da sua vaga.
Entende-se a importância de uma permanente avaliação da assistência obstétrica oferecida pelos Serviços, mas esta deve ser monitorada desde a implementação de políticas direcionadas à humanização na assistência obstétrica, perpassando pela prevenção e minimização de situações de violência durante o período reprodutivo. A avaliação contínua e permanente da assistência obstétrica permitirá a melhoria dos indicadores de morbimortalidade materna, e ainda retratará os principais problemas a serem enfocados em uma política de priorização da humanização da assistência obstétrica.
REFERÊNCIAS