Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
Representações sociais sobre o parto
domiciliar
Clara Fróes de Oliveira Sanfelice
1
Antonieta Keiko Kakuda Shimo
1
1 Universidade Estadual de Campinas. Campinas - SP, Brasil
Recebido em 20/09/2015
Aprovado em 21/11/2015
Autor correspondente:
Clara Fróes de Oliveira Sanfelice
E-mail:
clara_sanfelice@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Conhecer as representações sociais sobre o parto domiciliar de mulheres que
fizeram esta opção diante da escassez de estudos que avaliem esse fenômeno sob uma
perspectiva humana, histórica e social.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, fundamentada na Teoria das
Representações Sociais. Foram entrevistadas 14 mulheres que vivenciaram ao menos
uma experiência de parto domiciliar, assistido e planejado, na cidade de
Campinas-SP e região entre fevereiro e março de 2014. Utilizou-se o critério de
saturação teórica para definição do tamanho amostral.
RESULTADOS:
Os dados analisados revelaram uma representação social: meu corpo, minhas
escolhas, meu parto. As participantes mostraram-se discordantes com o modelo de
atendimento institucionalizado da atualidade e buscam o parto domiciliar como uma
alternativa concreta de contemplação às suas expectativas, as quais estão
fortemente alicerçadas pelo princípio da autonomia.
CONCLUSÃO:
As reflexões apresentadas servem como subsídios para o debate e reformulação das
políticas de saúde obstétrica brasileira.
Palavras-chave: Tocologia; Parto domiciliar; Parto humanizado.
INTRODUÇÃO
No cenário mundial, as taxas de assistência institucional para o parto melhoraram nas últimas décadas, porque as mulheres estão sendo cada vez mais incentivadas a utilizar as instituições de saúde, por meio de ações para geração de demanda, mobilização comunitária, educação, incentivos financeiros e medidas políticas1.
Paralelo a esse cenário, um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres ao longo da gravidez e, em particular no parto, descreve um quadro perturbador. No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde1.
Isso representa uma violação da confiança entre as mulheres e suas equipes de saúde e, também, pode ser um poderoso desestímulo para as mulheres procurarem os serviços de assistência obstétrica2-4.
No Brasil, o panorama obstétrico atual tem sido alvo de muitas críticas devido à fusão de fatores que resultam em um cenário cruel e, potencialmente, perigoso à saúde das mulheres e dos recém-nascidos, caracterizado por um modelo de atenção medicalizado, elevados índices de cirurgia cesariana e uso indiscriminado da tecnologia e de intervenções rotineiras sem respaldo científico5.
Segundo os dados nacionais, pouco mais de 98% dos nascimentos ocorrem em instituições de saúde6. As taxas de cirurgia cesariana se aproximaram de 54% no ano de 2011 no setor público7 e 80% no setor de saúde suplementar8. Esses valores não são encontrados em nenhum outro país do mundo e culminam com resultados maternos e perinatais piores que os observados em países, com igual ou menores índices de desenvolvimento sócioeconômico9.
Também se percebe um cenário incoerente no que diz respeito ao uso abusivo e indiscriminado da tecnologia no parto: de um lado o adoecimento e a morte por falta de tecnologia apropriada, e do outro o adoecimento e a morte por excesso de tecnologia inapropriada10.
Aliado a esse quadro, a recente pesquisa de abrangência nacional conduzida pela Fundação Perseu Abramo constatou que uma em cada quatro brasileiras relata ter sofrido maus-tratos durante o trabalho de parto e no parto11, demonstrando um modelo de assistência fragilizado que merece e precisa ser reformulado em favor da saúde materna e perinatal.
Relatos sobre desrespeito e abusos no decorrer do parto em instituições de saúde incluem violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, atendimento negligente durante o parto, levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento, entre outras12.
De forma paralela a essa situação observa-se na atualidade um tímido, porém crescente movimento de resgate à prática do parto em domicílio nas regiões urbanas, mesmo em locais onde o acesso hospitalar é possível. Trata-se de uma opção consciente, planejada e que parece estar relacionada ao nível de escolaridade mais elevado13.
A ideia corrente na sociedade brasileira, compartilhada inclusive por profissionais de saúde, é a de que o parto domiciliar, mesmo quando planejado, representa maior risco de desfechos maternos e neonatais desfavoráveis13.
No entanto, essa concepção de risco associada ao parto domiciliar vem sendo diluída diante da publicação de diversos e recentes estudos na literatura internacional que demonstram que os resultados obstétricos e perinatais são semelhantes quando comparados aos locais de parto, desmistificando a ideia de que parir em casa confere maior risco à saúde da mãe e o do recém-nascido14-16.
A Biblioteca Cochrane, em sua revisão mais recente sobre o tema não encontrou uma amostra suficiente de estudos para estabelecer uma conclusão estatisticamente fundamentada, porém, os autores concluíram que não existe evidência a favor do parto hospitalar planejado para gestantes de baixo risco, chegando à conclusão de que não há provas fundamentadas para desencorajar o parto domiciliar para esse grupo. Os autores, também, destacaram que há resultados provenientes de bons estudos observacionais que sugerem que o parto domiciliar planejado pode ser tão seguro quanto o parto hospitalar, com menos intervenções e complicações associadas17.
A literatura nacional sobre o tema, embora escassa, também apresenta bons resultados obstétricos e neonatais, semelhantes aos estudos internacionais. Essas pesquisas mostram reduzida taxa de transferência hospitalar, de necessidade de cesariana, de traumas perineais e uso de fármacos tanto no trabalho de parto como no pós-parto dos partos domiciliares18-20.
Embora exista uma vasta produção sobre a temática do parto domiciliar de natureza quantitativa, percebe-se uma restrição de estudos de origem qualitativa que visam compreender a escolha pelo parto em casa não somente enquanto um fenômeno físico, mas também, levando-se em consideração o aspecto humano, histórico e social envolvidos nesse evento. Dessa forma, optou-se pela utilização da Representação Social enquanto referencial teórico com objetivo de se compreender os motivos que estão levando essa parcela de mulheres brasileiras a optarem por dar a luz em casa, encabeçando um movimento que está na contramão do modelo obstétrico vigente.
Diante desse contexto, essa pesquisa tem como objetivo conhecer as representações sociais sobre o parto domiciliar planejado de mulheres que optaram por vivenciar essa experiência, de modo que essas representações contribuam para que as mulheres expressem o que pensam, como percebem suas opiniões e experiências acerca desse evento, dando voz aos conceitos construídos socialmente e ancorados em suas realidades.
Considera-se que as informações encontradas nesta pesquisa podem servir como subsídios para enriquecer o debate e fundamentar as discussões sobre o modelo de atenção ao parto em vigor na atualidade.
REFERENCIAL TEÓRICO
Para o embasamento teórico deste estudo foi utilizada a Teoria das Representações Sociais (TRS), criada pelo psicólogo social francês Serge Moscovici na década de 6021.
A TRS pode ser compreendida como uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum ao conjunto social20,21.
Realizando-se a articulação dos conceitos da TRS para o campo da obstetrícia, percebe-se que a ideia de parto predominante em nossa sociedade atual e que, portanto, corresponde ao universo consensual, é a do parto institucionalizado, atendido pelo profissional médico e com utilização maciça de intervenção e tecnologia no processo fisiológico de parir e nascer. Ou seja, o pensamento compartilhado no senso comum é de que o parto deve ocorrer no hospital, de preferência com o mínimo de "dor e sofrimento" à mulher.
Já a opção pelo parto em casa pode ser compreendida como o fato não familiar do universo consensual (senso comum), gerador de tensão e desconforto. Por meio do processo de construção das representações sociais, as mulheres que fazem essa opção transformam o não familiar (parto domiciliar) em familiar. Esse movimento permite a formação de grupos de iguais que partilham das mesmas concepções sobre o assunto e, portanto, adotam condutas e práticas semelhantes.
A TRS tem sido muito empregada na área de enfermagem, devido à possibilidade do pesquisador captar a interpretação dos próprios participantes da realidade que se almeja pesquisar, possibilitando a compreensão das atitudes e comportamentos que um determinado grupo social frente a um objeto psicossocial22.
A complexidade do fenômeno das representações sociais e as possibilidades metodológicas e interdisciplinares que a mesma oferece têm levado inúmeros pesquisadores à combinação de diferentes níveis de análises, resultando daí estudos bastante diversificados. Essa diversidade resulta, ainda, da dupla face das representações: como produto e como processo23.
Quando enfocada como produto, como no caso deste estudo, a pesquisa visa depreender os elementos constitutivos das representações (informações, imagens, opiniões, crenças), tendo sempre como referência as condições sociais de sua produção. Já quando enfocada como processo, a pesquisa volta-se à compreensão da elaboração e transformação das representações sob a força das determinações sociais22.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva, de natureza qualitativa e fundamentada na Teoria das Representações Sociais (TRS).
A amostra foi composta por 14 mulheres que vivenciaram a experiência do parir em casa de forma planejada e assistida por um profissional de saúde habilitado (obstetriz, enfermeira obstetra e/ou médico obstetra), no decorrer do último ano (2014), na cidade de Campinas/SP e região. Adotou-se como critério de inclusão o período de três a seis meses pós-parto, a vivência do parto domiciliar planejado e assistido por profissional habilitado e ser maior de 18 anos. Optou-se por não entrevistar as mulheres nos primeiros três meses pós-parto, visto que é nesse período que a mulher está mais suscetível a desenvolver quadros de disforia puerperal ou baby-blue e psicose24.
Os dados foram coletados nos meses de fevereiro e março de 2014, por meio de um instrumento que continha dados referentes à caracterização sociodemográfica e obstétrica, juntamente com uma entrevista semiestruturada composta por 11 perguntas abertas. As entrevistas foram audiogravadas e imediatamente transcritas, tiveram duração média de 25 minutos e foram realizadas no domicílio das mulheres.
As participantes foram captadas mediante a disponibilização de seus nomes concedidos por equipes que trabalham no atendimento ao parto domiciliar na referida região. Dentre todas as participantes convidadas, não houve recusa para a participação da pesquisa.
A determinação do número de participantes deu-se por meio da amostragem por saturação, que pode ser compreendido como a suspensão de inclusão de novos participantes, quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta. Esse conceito tem sido amplamente utilizado nas pesquisas qualitativas na área da saúde25.
O tratamento e a análise dos dados se deram por meio do processo manual de análise de conteúdo temática proposta por Bardin26, que é composto por três etapas que se seguem: 1) pré-análise; 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação26.
Na primeira etapa, o material foi organizado de modo que se tornasse operacional. Esse processo de organização realizou-se por meio de quatro fases: 1) leitura flutuante; 2) escolha dos documentos; 3) elaboração de hipóteses e objetivos e 4) referenciação dos índices e elaboração dos indicadores. Em seguida, procederam-se à exploração do material, realizando-se a codificação, classificação e categorização por temas. Na última fase, realizou-se a condensação e o destaque das informações para análise, culminando nas interpretações inferenciais; é o momento da intuição, da análise reflexiva e crítica26.
A pesquisa segue as diretrizes e as normas regulamentadoras de pesquisas, envolvendo seres humanos contidas na Resolução 196/96 (RES CNS 196/96) e 466 de 12/12/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Os dados somente foram coletados após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, cuja aprovação se encontra no parecer de Nº 331.743 e após anuência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por cada participante.
Como forma de se garantir a confidencialidade das informações, as participantes desse estudo foram identificadas pela letra E seguida de uma numeração aleatória.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados e a discussão serão apresentados em duas partes. Da primeira consta a caracterização dos sujeitos (Tabelas 1 e 2) e, da segunda, consta da exploração e fundamentação da representação social compartilhada por essas mulheres.
Entrevista | Idade | Escolaridade | Ocupação | Renda Familiar | Estado Civil | Convênio Médico |
1 | 28 | Superior Comp. | Eng. Civil | 7 | Casada | Sim |
2 | 35 | Superior Comp. | Do lar | 5 | União estável | Sim |
3 | 27 | Superior Comp. | Func. Pública | 8 | Casada | Sim |
4 | 33 | Superior Comp. | Enfermeira | 12 | Casada | Sim |
5 | 27 | Superior Comp. | Psicóloga | 8 | Casada | Sim |
6 | 27 | Superior Comp. | Advogada | 10 | Casada | Sim |
7 | 32 | Superior Comp. | Bióloga | 20 | Casada | Sim |
8 | 33 | Superior Comp. | Turismóloga | 15 | Casada | Sim |
9 | 29 | Superior Comp. | Estudante | 10 | Casada | Não |
10 | 29 | Superior Comp. | Artesã | 8 | Casada | Sim |
11 | 38 | Superior Comp. | Médica | 20 | União estável | Sim |
12 | 32 | Superior Comp. | Do lar | 10 | Casada | Sim |
13 | 32 | Superior Comp. | Médica | 8 | Casada | Sim |
14 | 28 | Superior Comp. | Fisioterapeuta | 4 | Casada | Sim |
Entrevista | Paridade | Histórico Obstétrico Anterior ao PD | ||||
PV* | PC** | Aborto | Local/Quantidade | |||
1 | Primípara | - | - | - | - | |
2 | Secundípara | 1 | - | - | Domiciliar | |
3 | Primípara | - | - | - | - | |
4 | Secundigesta | 1 | - | - | Hospitalar | |
5 | Primípara | - | - | - | - | |
6 | Primípara | - | - | - | - | |
7 | Secundípara | - | 1 | - | Hospitalar | |
8 | Tercigesta | 1 | - | 1 | Hospitalar | |
9 | Multípara | 2 | - | 1 | Hospitalar/1 Domiciliar/1 | |
10 | Primípara | - | - | - | - | |
11 | Primípara | - | - | - | - | |
12 | Secundípara | 1 | - | - | Hospitalar | |
13 | Primípara | - | - | - | - | |
14 | Primípara | - | - | - | - |
Caracterização das participantes
Verificou-se média de idade de 31 anos, como grau de instrução predominante o ensino superior completo (100%), estado marital casado ou união estável (100%), renda familiar ≥ 10 salários mínimos (50%) e convênio médico (92,9%). Os achados estão apresentados na Tabela 1.
Em relação aos dados obstétricos, a amostra foi composta em sua maioria por primíparas (57,1%). Entre as multíparas (42,9%) verificou-se prevalência do parto vaginal (83,3%) e hospitalar (83,3%) anterior à experiência do parto domiciliar. Esses achados estão apresentados na Tabela 2.
A construção da Representação Social
Após exaustivo e minucioso processo manual de análise dos conteúdos revelados nas entrevistas, todo o material foi dividido em unidades de sentido, seguido do agrupamento em subcategorias para que, finalmente, surgissem três grandes categorias temáticas, que foram nomeadas como: 1) O poder da informação; 2) Não concordância com o modelo de atendimento obstétrico hospitalar e 3) Satisfação em viver a experiência sem interferências.
O conteúdo partilhado e comum a essas categorias fez emergir uma única representação social, mostrando que essas mulheres reconhecem o parto domiciliar como uma opção consistente para parir, pois representa um setting oportuno para a vivência do parto fisiológico e de forma individualizada, em que se valorizam as recomendações científicas disponíveis, se estimula o resgate ao empoderamento feminino, além de permitir que as mulheres permaneçam verdadeiramente no controle da situação, podendo tomar decisões, participar das escolhas, recusarem o que lhes não convém, sem que isso represente uma situação de estresse/conflito. Tendo em vista essas informações, abstraídas dos discursos analisados, a representação social emergente foi nomeada como Meu corpo, minhas escolhas, meu parto.
Vale ressaltar que cada categoria emergente deu origem a textos para publicação devido à riqueza de informações nelas contidas.
Meu corpo, minhas escolhas, meu parto
A representação social emergente desta pesquisa relaciona-se como conceito de autonomia exercido pelas mulheres sobre seus corpos no momento do parto.
Autonomia pode ser entendida como a ampliação da capacidade de escolhas por parte das pessoas. O conceito está relacionado à ideia de liberdade, da livre decisão dos indivíduos sobre suas próprias ações e da possibilidade de traçar suas trajetórias de vida. Refere-se ainda à capacidade dos seres humanos de viverem suas vidas a partir de leis próprias. Supõe a condição de homem livre para assumir suas escolhas27,28.
A compreensão do conceito de autonomia ficou evidente por parte dessas mulheres, que possuem como objetivo maior a busca pelo controle de todo o processo de parto, já que entendem que possuem direito e discernimento para fazerem suas escolhas.
O exercício da autonomia pode ser compreendido como uma característica das sociedades democráticas marcadas pelo direito a diversidade, livre expressão, liberdade de comportamentos de indivíduos e grupos, desde que respeitados os limites de danos a terceiros29.
O que se mostrou angustiante a essas mulheres, no entanto, é a impossibilidade de se viver o ciclo gravídico puerperal sustentado pelo princípio de autonomia dentro do modelo de atenção obstétrica hegemônico da sociedade brasileira contemporânea.
De acordo com essas mulheres, a visão de parto alicerçada no princípio de autonomia é valorizada dentro do ambiente doméstico para parir, o que as motiva para essa opção.
Eu sempre fui a favor do parto normal, mas assim, a gente vê que no hospital hoje você não consegue ter muito controle sobre seu corpo, os profissionais não te respeitam muito, não respeitam muito as suas escolhas. (E13)
Apesar de desejarem participar do seu parto e de verbalizarem suas necessidades, escolhas e preferências, as mulheres não encontram condições favoráveis para que suas necessidades de cuidado e o desejo de participação nas decisões sobre o parto sejam viabilizados30.
A consciência de que muito provavelmente a mulher não consiga estabelecer uma relação igualitária com o profissional de saúde no que tange às suas escolhas e às decisões tomadas no decorrer da assistência prestada, as levam à procura de alternativas capazes de propiciar esse diálogo. As mulheres que optam por um parto domiciliar buscam na relação com o profissional de saúde confiança e segurança, sentimentos construídos a partir do estabelecimento de vínculo, respeito a sua cultura, as suas escolhas e expectativas31.
Idealmente, o profissional de saúde tem obrigação ética e legal de oferecer informações claras e completas sobre o cuidado e dar a oportunidade ao cliente de participar das decisões com base nas informações recebidas32.
Na ótica dessas mulheres, esse diálogo de teor mais democrático não ocorre quando as mesmas estão sob os cuidados de profissionais dentro de uma instituição de saúde, como aparece nos discursos abaixo:
[...] não me senti bem, falei "não quero!" Você acha que no hospital eu ia falar não? (E9)
O domicílio possibilita atenção centrada na mulher e na sua família, uma vez que quem se encontra em outro ambiente é o profissional, o que exige um ajuste deste ao local e não mais uma adequação da mulher às rotinas e aos profissionais como é incutido no ambiente hospitalar33. O excesso de autonomia profissional, praticado hoje na maioria das instituições de saúde diminui a autonomia materna34.
[...] não faz sentido para a gente, fazer um parto onde não sou eu, onde é outra pessoa que vai comandar e não do jeito que é o natural, comandado por uma instituição e tal. (E10)
[...] pontos positivos (do parto em casa): [...] você ter total controle sobre o seu corpo, então você não ser obrigada a ficar numa cama, com soro, ou restrita a um ambiente, coisas que eu acho que no hospital é muito mais difícil, [...] algumas regras que você tem que seguir, então eu acho que tudo isso atrapalha bastante. (E13)
O profissional de saúde deve promover a autonomia da mulher no parto, a começar pelas informações cientificamente embasadas e não tendenciosas, a fim de que elas possam tomar decisões compartilhadas e adequadamente fundamentadas31. Ou seja, deve estar disponível para um diálogo esclarecedor e dinâmico, integrando um ambiente de relações horizontais, onde a construção de conhecimento aconteça norteada pela obstetrícia baseada em evidências34.
A ênfase dada à autonomia quando se discute o local de parto parece estar relacionada à necessidade de transformação dos cenários atuais do parto, revelando uma crítica à impessoalidade e inflexibilidade dos ambientes hospitalares, onde prevalece o modelo hegemônico tecnocrático de atendimento e exige um papel passivo da mulher35.
Reforçando essa ideia, existem evidências científicas que demonstram que a democratização das relações entre profissionais de saúde e usuários, em um modelo de corresponsabilidade, e a valorização da autonomia do usuário em relação à escolha da terapêutica e dos procedimentos estão associadas a melhores resultados em saúde36.
Assim, o principal desafio dos profissionais está na transformação de suas atitudes para agir de maneira ética e científica em favor do cuidado integral e focado nas necessidades da mulher e da sua família, e não na rotina hospitalar ou em seus interesses particulares. O profissional de saúde deve estar disposto a adotar novas ideias e caminhar junto com o movimento de humanização do cuidado ao parto, consciente de que as mulheres têm o seu acervo de conhecimentos e necessitam ser ouvidas29.
O processo de informação fortalece as mulheres em suas escolhas, enquanto a ausência de esclarecimentos gera à parturiente vulnerabilidade e falta de conhecimento quanto a sua condição34.
É um parto de muita entrega e de consciência sabe, de entrega e de responsabilidade, porque você tem que assumir a responsabilidade daquilo que você está fazendo e eu acho que é diferente, quando você está no hospital você consegue delegar mais essa responsabilidade para o médico [...] quando você assume um parto em casa, você tem que bancar a sua responsabilidade, você divide a responsabilidade com a equipe, não é só responsabilidade deles. (E7)
Para as mulheres participantes deste estudo, o ambiente domiciliar e os profissionais que nele atendem, concordam, favorecem e estimulam essa relação de corresponsabilidade no que tange à tomada de decisões, possibilitando o livre exercício da autonomia, dando voz e autoridade a essas mulheres. Esses aspectos estão presentes nos resultados encontrados em recentes estudos sobre o tema5,31,37.
Na ótica dos profissionais de saúde atuantes em parto domiciliar, o resgate à autonomia é um dos principais requisitos para o resgate da humanização do parto33. No domicílio, a mulher se torna sujeito ativo de seu parto, trazendo para si o próprio parto e o controle sobre seu corpo, tendo a oportunidade de atuar, de fazer suas escolhas com segurança e sem se inibir. Em casa, ela está livre para expressar seus sentimentos e ser autêntica no seu comportamento e conduta33.
[...] eu senti muito essa questão delas deixarem que o parto fosse meu e do meu marido, então o parto não era delas, era meu, nosso, e então tudo o que foi feito, mesmo quando foi feito o toque, era tudo com o meu consentimento, não era nada obrigado, algumas sugestões eu acatei, outras não, e tudo muito tranquilo. (E13)
As entrevistas mostraram que essas mulheres não estão resignadas ao modelo de atenção hospitalar instaurado. Pelo contrário, reconhecem todas as contradições e fragilidades do sistema e conseguem ultrapassar essas barreiras por meio, principalmente, de um processo de busca de informações. A opção pelo parto domiciliar está relacionada ao nível de escolaridade mais alto, o que reflete na facilidade de acesso à informação e ao conhecimento biomédico, permitindo análise crítica às práticas obstétricas e possibilidade de argumentação e sustentação das decisões tomadas13.
Assim, essas mulheres adquirem informações oferecidas pelos estudos e evidências científicas atuais, se apropriam desse saber, têm condições de questionar as práticas atuais e, a partir de então, se sentem seguras para realizar uma escolha informada, consciente e fundamentada.
Assim, como aparece em outras pesquisas, a aquisição de informação parece ser tanto o ponto de partida de todo o processo como o grande sustentáculo para a decisão de parir em casa5,31,37.
Já que o parto domiciliar está diretamente ligado ao nível escolar e financeiro mais elevado, uma política de inclusão do mesmo no Sistema Único de Saúde (SUS) parece ser uma alternativa para oferecer essa modalidade de atendimento à população menos favorecida.
No Brasil, o Hospital Sofia Feldman localizado na cidade de Belo Horizonte/MG completou, recentemente, um ano de atendimento aos partos domiciliares realizados por enfermeiras obstetras e financiados exclusivamente pelo SUS. Trata-se de uma experiência pioneira e que vem dando bons resultados38.
Segundo os depoimentos, o ambiente hospitalar as enxerga e lhes incuti características não compatíveis com suas visões de parto, enquanto parturientes. A medicalização do corpo feminino durante o trabalho de parto e no momento do parto é um dos clássicos exemplos na atualidade, que acaba por converter mulheres e corpos saudáveis em paciente doentes, fragilizadas e que necessitam de ajuda externa para vencer o grande "obstáculo" que é parir.
Esse evento é compreendido como um reflexo da medicalização social, descrita como um processo sociocultural complexo que transforma em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que antes eram administradas no próprio ambiente familiar ou comunitário38.
Assim, a medicalização do parto, um fato já tão enraizado no atendimento institucionalizado de assistência ao parto no Brasil, projeta sob as parturientes a visão de sujeitos dependentes, incapazes de lidar de forma autônoma com os eventos adversos que podem e devem ser vivenciados durante o trabalho de parto e no parto.
Essa construção social contribuiu para o declínio da capacidade da mulher em lidar com o fenômeno do parto, sua imprevisibilidade, as dores inerentes ao trabalho de parto, dentre outros39. Dessa forma, a grande maioria das mulheres se sente incapaz de viver a experiência de parir e delega ao profissional/instituição de saúde o poder e a responsabilidade para conduzir esse processo.
No entanto, as mulheres que optam pelo parto domiciliar não se sentem fracas ou amedrontadas pelo evento do trabalho de parto e parto. De maneira oposta e devido a toda informação absorvida previamente, aguardam de forma natural e celebram com orgulho e grande satisfação a experiência de parir.
Assim, em oposição ao excesso de intervenções médicas no processo de gestação e parto, observa-se, na última década, uma expansão significativa de movimentos de usuárias e profissionais de saúde que se posicionam criticamente em relação a essa realidade39, o que nos permite inferir que a gradativa procura pela opção do parto em casa é um dos mais evidentes retratos da insatisfação e frustração com o sistema predominante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados deste estudo nos permitem reconhecer que a representação social compartilhada pelas mulheres, que fazem a opção pelo parto domiciliar, está intrinsecamente relacionada à busca pela experiência do trabalho de parto e partos fundamentados no princípio da autonomia e no resgate ao empoderamento feminino.
Observa-se que essas mulheres se mostram insatisfeitas com o atual modelo de atenção obstétrica, praticado dentro das instituições hospitalares e, portanto, buscam uma alternativa capaz de suprir e respeitar as suas expectativas e concepções sobre o evento do parto.
Segundo as participantes, o modelo obstétrico institucionalizado 1) oferece um atendimento baseado em normas e rotinas inflexíveis, 2) apropria-se do momento de fragilidade materna para impor condutas e procedimentos, 3) não é favorável ao diálogo entre cliente e profissional de saúde, 4) não valoriza as decisões maternas, 5) tenta disciplinar os corpos e seus processos naturais de acordo com os interesses pessoais e/ou institucionais e 6) enaltece a visão de parto como um processo patológico.
Dessa forma, parir em casa não se mostra uma opção de mulheres pouco informadas ou adeptas de um modismo atual. Trata-se de uma opção concreta, fundamentada em amplo e atual conhecimento sobre o tema, e que de forma paralela demonstra uma clara insatisfação com o modelo obstétrico hospitalar vigente.
Considera-se que este estudo contribui para enriquecer o conhecimento acerca desse tema, principalmente, para os profissionais envolvidos com a assistência ao parto, além de colaborar com futuras pesquisas.
Assim, espera-se que todas as reflexões levantadas neste estudo representem um elemento propulsor ao questionamento e ao debate da assistência obstétrica praticada na atualidade, de forma que esse modelo possa ser repensado e readequado, visando o oferecimento de uma prática obstétrica segura, respeitosa e prazerosa às mulheres brasileiras.
REFERÊNCIAS