Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
Qualidade de vida no trabalho: discurso dos
profissionais da Estratégia Saúde da Família
Carolina Feliciana Bracarense
1
Nara dos Santos Costa
1
Joyce Mara Gabriel Duarte
1
Maria Beatriz Guimarães Ferreira
2
Ana Lúcia de Assis Simões
1
1 Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Uberaba, MG, Brasil
2 Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil
Recebido em 31/07/2015
Aprovado em 08/11/2015
Autor correspondente:
Carolina Feliciana Bracarense
E-mail:
carolinafbracarense@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender os significados que os profissionais de saúde da Estratégia
Saúde da Família (ESF) atribuem à qualidade de vida no trabalho.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, descritiva. Realizada nas Unidades de ESF, com 123
profissionais de saúde. Os dados foram coletados entre julho e
setembro de 2014. O material resultante das entrevistas foi exposto à
análise do Discurso do Sujeito Coletivo, com o auxílio do software
QualiQuantsoft®.
RESULTADOS:
Os significados conferidos a qualidade de vida no trabalho, perpassam
tanto pelos aspectos subjetivos, como também pelos quesitos das
condições de trabalho e dos relacionamentos interpessoais. Com 121
expressões-chave, as questões das condições de trabalho foram as mais
expressivas, seguida pelas relações interpessoais no trabalho, com 72
expressões-chave.
CONCLUSÃO:
Os profissionais conferem significados subjetivos e objetivos à
qualidade de vida no trabalho, além de reconhecerem a interferência
dessa temática para a melhoria da assistência ao usuário.
Palavras-chave: Qualidade de vida; Trabalho; Profissional de Saúde; Estratégia Saúde da Família
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa faz parte de um projeto amplo que investigou o trabalho e a qualidade de vida de profissionais da ESF deste município de médio porte, por meio de abordagens de pesquisa diferentes: um estudo quantitativo, analítico e um estudo qualitativo, de cunho descritivo, pautado no discurso do sujeito coletivo (DSC).
O trabalho em saúde possui suas especificidades, o que lhe confere denominação de trabalho vivo em ato. Esse é de origem relacional, em que o produto confeccionado emerge da relação entre o produtor e o consumidor. Na saúde, o usuário incorpora o papel de consumidor e o profissional de saúde exerce a função de produtor1.
O cenário atual no qual se desempenha o trabalho em saúde é consequência de sucessivas mudanças sociais e políticas. Pode-se citar a VIII Conferência Nacional de Saúde, que contribuiu para elaboração da Secção da Saúde na Constituição Federal de 1988 e do Sistema Único de Saúde (SUS)2.
O SUS é estruturado em princípios organizacionais e doutrinários, que visam promover, dentre outros propósitos, a substituição do modelo flexeneriano de atenção à saúde, que tem como característica a centralidade nos procedimentos, para um modelo pautado em ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde3.
Para auxiliar nessa mudança de modelos de atenção à saúde e de consolidação do SUS, criou-se o Programa Saúde da Família (PSF), em 1994, com a finalidade de alcançar um modelo pautado na integralidade do cuidado individual, familiar e coletivo, reorientando as práticas de saúde4. Devido a sua abrangência e características inovadoras, no ano de 1998, o Programa Saúde da Família passa a ser compreendido e denominado Estratégia Saúde da Família (ESF)5.
E, nessa transição, devem ser contextualizadas reflexões e ações referentes ao processo de humanização das práticas assistenciais. O Ministério da Saúde, por intermédio da Política Nacional de Humanização (PNH), pontua ações para todos os atores que participam do processo de produção da saúde: usuários, gestores e trabalhadores6.
Dos princípios que regem a PNH, destacam-se os que sustentam as modificações necessárias para os trabalhadores, sendo: fortalecimento do trabalho em equipe, compromisso com a democratização das relações e valorização dos profissionais de saúde6.
Estudo realizado no Brasil, com 797 trabalhadores que atuavam na Atenção primária à Saúde identificou, que, quando insatisfeito com o seu trabalho o profissional apresentava uma maior probabilidade de avaliar sua qualidade de vida de forma negativa nos domínios: físico, psicológico e social. Assim como, aqueles que percebiam a própria saúde como comprometida, também, julgavam negativamente a sua qualidade de vida nos domínios citados7.
Entendido como determinante de saúde, já que saúde não significa somente ausência de doença8, o trabalho é um elemento que exerce influência sobre a qualidade de vida das pessoas, por meio do aumento da jornada de trabalho, acúmulo de vínculos empregatícios e exigências cada vez maiores do mercado9.
Diante do exposto, é relevante contextualizar a variável Qualidade de Vida no Trabalho (QVT). Não há um consenso na literatura sobre sua definição, entretanto há um ponto em comum que QVT está intimamente relacionada à humanização do trabalho, sendo uma ferramenta para garantir o bem-estar e a participação dos trabalhadores no ambiente laboral10.
O trabalho em saúde da família é composto por relações complexas, devido à necessidade de um vínculo, não só com o usuário, mas também com toda sua família e com o ambiente social no qual ele está inserido. Para compreender essa nova configuração de processo de trabalho, dado ao seu tempo de existência, há ainda muito que se pesquisar.
Com intenção de contribuir com estudos de QVT e auxiliar no processo de consolidação da Política Nacional de Humanização, no que tange aos trabalhadores, o presente estudo teve as seguintes questões norteadoras: que significados os profissionais de saúde da Estratégia Saúde da Família atribuem à qualidade de vida no trabalho? Na percepção desses profissionais, que fatores podem influenciar na qualidade de vida no trabalho?
Assim, o objetivo deste estudo foi compreender os significados que os profissionais de saúde da Estratégia Saúde da Família atribuem à qualidade de vida no trabalho.
MÉTODOS
Trata-se de pesquisa qualitativa e descritiva. Participaram da pesquisa, agentes comunitários de saúde, auxiliares de consultório dentário, dentistas, enfermeiros, médicos e auxiliares/técnicos em enfermagem vinculados à Estratégia de Saúde da Família de um município de médio porte. No período da coleta dos dados, o município contava com 50 Equipes Saúde da Família, sendo 46 na zona urbana e quatro na zona rural, totalizando uma população de 531 profissionais.
O processo de seleção de amostragem para o estudo analítico quantitativo obteve o número final de tentativas de entrevista de 342.
Sendo assim, este estudo, que adotou o DSC, foi utilizado uma amostra complementar, ou seja, foram participantes os sujeitos não sorteados para o estudo analítico quantitativo, resultando em um total de 189 profissionais. Essa decisão apoiou-se no fato de oportunizar a participação de toda população na pesquisa e, ainda, evitar a influência nas respostas, visto que os profissionais entrevistados não foram abordados, anteriormente, por questões relacionadas à mesma temática.
Considerando recusas, afastamentos e período de férias dos profissionais, obteve-se 123 entrevistas, no período de julho a setembro de 2014. O roteiro de entrevista foi elaborado pelo autor e composto por duas partes: a primeira com dados referentes à identificação profissional e, a segunda com perguntas a respeito da percepção sobre QVT e dos fatores que a influenciam.
Foram realizadas entrevistas individuais, previamente agendadas. Estas contaram com a participação dos autores e a colaboração de mais cinco entrevistadores treinados. O local variou de acordo com a disponibilidade dos entrevistados e da estrutura física oferecida pelas unidades de saúde. Os dados foram gravados em formato de áudio e, posteriormente, transcritos na íntegra para o computador. Para garantir a confidencialidade dos participantes, eles foram identificados por números sequenciais.
Os dados foram submetidos à análise exploratória por meio de frequências simples e medidas de posição (média). O material empírico resultante da transcrição das entrevistas foi exposto ao método de análise do DSC, que consiste em uma técnica de tabulação e organização de dados qualitativos, elaborado por Lefevre e Lefevre na década de 9011.
O material foi submetido a uma leitura exaustiva que buscou extrair os conteúdos relevantes de cada resposta, as expressões-chaves e suas correspondentes ideias centrais. O termo expressão-chave designa os fragmentos, trechos do material coletado. Esses segmentos são escolhidos pelos pesquisadores e retratam a essência da resposta do entrevistado. Cada conjunto homogêneo de expressão-chave recebe uma denominação ou expressão linguística que expõe de maneira sintética e concisa o significado presente nas respostas analisadas, que é designado como ideias centrais. O agrupamento de ideias centrais semelhantes pode ser chamado de categoria11.
O desfecho da técnica do DSC é a concepção de um discurso-síntese, escrito na primeira pessoa do singular, das apreensões semelhantes que pertencem à mesma ideia central. Como metodologia de pesquisa, o DSC torna possível resgatar no contexto social estudado a natureza das contradições e similaridades entre as percepções dos agentes sociais ou sujeitos coletivos11.
Para análise dos dados foi utilizado o software QualiQuantsoft®. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma Universidade Federal, sob o protocolo N°673.850.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Do total de 123 (100%) profissionais entrevistados, 114 (92,68%) eram do sexo feminino e nove (7,32%) do sexo masculino. A idade média foi de 40,41 anos, idade mínima de 22 e máxima de 68 anos. No que concerne à categoria profissional, os entrevistados foram distribuídos da seguinte forma: 66 agentes comunitários de saúde (53,66), 10 auxiliares de consultório dentário (8,13%), nove dentistas (7,32%), 12 enfermeiros (9,76%), 12 médicos (9,76%) e 14 auxiliares/ técnicos em enfermagem (11,38%). Tempo médio de trabalho na ESF foi de 6,39 anos, mínimo de um mês e máximo de 225 meses (18 anos e nove meses).
Do processo de análise emergiram metacategorias e categorias, expostas na figura 1. Com o objetivo de evidenciar as categorias, a figura 2 retrata o compartilhamento das ideias centrais alcançadas nos discursos dos 123 participantes. É importante lembrar que cada entrevistado pode ter contribuído com mais de uma ideia central para a elaboração do DSC.
Metacategoria - Qualidade de vida no trabalho: a essência do trabalhador
Essa metacategoria apresenta aspectos subjetivos presentes na percepção de QVT.
Categoria A: Trabalho: (In) Satisfação
Os critérios utilizados para incluir expressões-chave e ideias centrais nessa categoria foram respostas que os profissionais descrevem o fato de gostar, ter amor e sentirem realizados na profissão, bem como, sentimentos de satisfação e insatisfação com o trabalho.
Para mim eu acho que qualidade de vida no trabalho é a gente ter satisfação naquilo que a gente faz, é o nível de satisfação que eu tenho com o que eu escolhi para fazer na minha vida, é minha realização pessoal. Eu tenho que me sentir feliz e satisfeito com o meu trabalho, gostar da profissão, Eu costumo dizer que quando a gente gosta, tem força de vontade e amor à profissão, você faz bem feito e tem um bom rendimento. Mas nós vemos muitas coisas, problemas, que não temos condições de resolver, isso faz com que você se sinta mal, desanimada, sente que poderia e deveria fazer mais, se sente frustrado e trabalhando insatisfeito você adoece (04-06-09-10-18-19-33-49-52-59-67-68-73-86-89-91-92-95-97-102-103-106-109-114-115-127-129-132-134-165-166-168-169-170-172-174-179-183-223-210-217-226).
O "gostar do que faz" foi apontado como principal motivo de satisfação no trabalho para profissionais da atenção primária. Essa afinidade com a profissão atua de modo favorável ao trabalhador12. É destacada a importância do profissional se reconhecer no seu trabalho, até perante situações difíceis e complicadas13.
No discurso foi encontrado que os profissionais gostam do trabalho que executam, porém ao se depararem com dificuldades, como incapacidade de solucionar problemas dos usuários, expressam sentimentos de desânimo, frustração e insatisfação.
Observa-se que o discurso desses profissionais apresenta concordância com resultados encontrados na literatura, nos quais agentes comunitários de saúde referem ser a resolução dos problemas das pessoas, principal razão de satisfação no trabalho, pois, quando o trabalho não alcança resultados esperados, a frustração acomete o profissional14.
Categoria B: Saúde e bem-estar no trabalho
Expressões-chave e ideias centrais dessa categoria fazem alusão à saúde do profissional, ao seu bem-estar no trabalho e aos acontecimentos que interferem nesse estado de tranquilidade.
Qualidade de vida para mim é você se sentir bem, ter felicidade de trabalhar. Está relacionado com o bem estar da gente, envolve a nossa autoestima e saúde de maneira geral: a saúde física, mental e emocional. É você ter prazer de sair de sua casa e ir para o local de trabalho. É quando seu trabalho não prejudica sua saúde, seu bem-estar. A gente escuta muito os problemas dos outros, vê situações que adoece a gente, então a gente acaba carregando um pouco isso, fica tenso, em casa quer desligar do problema, mas não consegue, fica pensando naquilo (02-05-08-11-14-15-16-22-32-49-56-57-58-59-60-91-98-100-113-115-123-139-153-177-178-188-224-06-44-48-226-95-149-153).
A terminologia bem-estar no trabalho tem sido empregada para indicar os efeitos subjetivos da QVT, aqueles que remetem às consequências das condições laborais sobre os modos, emoções e afeições dos trabalhadores15.
O estudo que procurou apreender concepções e experiências de enfermeiros sobre qualidade de vida e QVT na atenção básica, evidenciou falas que enfocam o sentir-se bem no trabalho e ser saudável, tendo saúde tanto física quanto psicológica16.
O discurso expõe que bem-estar é ter saúde de modo geral, tanto física quanto mental e emocional. Essa concepção condiz com o proposto na definição de saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), que compreende a saúde não como inexistência de doença, e sim de modo abrangente, que envolve o biológico, o psicológico, o social e, ultimamente, também, o espiritual17.
O trabalho é capaz de suscitar repercussões na saúde global, como, também, na física e emocional. Tal ocorrência é mencionada no discurso dos entrevistados na presente pesquisa18.
Metacategoria: Qualidade de vida no trabalho: o contexto organizacional
Essa metacategoria exibe o ponto de vista dos profissionais quanto aos fatores externos, aqueles de responsabilidade das instituições e a teia de relações que são estabelecidas nos locais de trabalho.
Categoria C: Condições de trabalho
A presente categoria abarca expressões-chave e ideias centrais que dizem respeito às condições de trabalho.
Para mim a qualidade de vida no trabalho é tudo que tem que ter para o desenvolvimento do nosso trabalho, envolve muita coisa. É uma questão de ambiência, espaço físico adequado, recursos materiais que são dados para a gente trabalhar, se você tem condições de trabalho ou não. Recursos humanos, suficiente ou não, ainda tem o estresse diário, a rotina de trabalho, a carga horária, segurança e ter um salário bom... Então, a gente tem que ter condições de trabalho, tem que ter tudo para exercer o nosso trabalho dignamente, tendo o respaldo, o respeito e pelo menos o mínimo necessário para trabalha (01-02-03-04-07-09-11-15-16-20-23-27-31-32-39-43-49-52-55-59-60-63-68-70-71-72-78-82-83-85-86-87-89-90-92-97-98-99-100-106-108-109-113-114-115-119-123-127-129-130-131-139-140-142-149-158-167-168-169-170-171-172-173-174-183-184-188-189-196-197-209-217-219-222-223-224-225).
A insuficiência ou inadequação dos meios de trabalho dificultam ou impedem o cumprimento dos propósitos da assistência de Saúde da Família, como a integralidade e promoção da saúde. Observa-se, então, que há uma relação diretamente proporcional entre condições de trabalho e QVT19.
Concomitantemente ao aumento da demanda de usuários por procura de atendimento, os profissionais têm que lidar com entraves que impedem ou dificultam a realização do atendimento. O desempenho do exercício laboral nas referidas condições, além de acarretar uma limitação das atividades, pode esclarecer tanto o adoecimento dos profissionais, como comprometer a qualidade da assistência oferecida20.
A carga horária de trabalho, também, foi um fator mencionado como condicionante da qualidade de vida no trabalho. Os entrevistados referem que a carga horária, de oito horas, é muito extensa e que deveria ser reduzida para seis horas. Tal entendimento corrobora com a literatura, em que os profissionais expressaram vontade de ter uma carga horária de trabalho menor, indicando que essa mudança ocasionaria melhoria da qualidade de vida no trabalho21.
A terminologia segurança foi utilizada pelos entrevistados para fazerem alusão à segurança física e designar estabilidade no emprego. No que condiz à segurança física, foi destacado que as unidades de saúde estão localizadas em ambientes com altos índices de violência e que ao saírem para visitas domiciliares, há exposição às situações de perigo iminente.
Os profissionais da ESF estabelecem vínculos estreitos com a população, além de conviverem rotineiramente com desordens sociais e familiares; diante disso, são explicitados a presença da violência urbana, o medo e a insegurança na execução das atividades de trabalho nas áreas marginais da cidade22.
Foi expresso, ainda, o desejo de poder trabalhar sem preocupações com relação aos contratos de serviços. Os vínculos empregatícios em saúde por meio de contrato não regulamentado, por tempo determinado, a terceirização e subcontratação têm aumentado, de modo significativo, entre as prefeituras. Tal iniciativa corrobora com a desregulamentação do trabalho no mundo contemporâneo23.
As falas dos profissionais sinalizam o salário como uma condição que influência a qualidade de vida no trabalho. A questão da remuneração é abordada de dois modos, sendo referido pelos entrevistados que o salário não precisa ser ótimo, apenas compatível com as funções desempenhadas. Por outro lado, foi expressa, também, a necessidade de melhor distribuição da renda, pois há discrepância considerável entre os salários pagos aos profissionais na ESF.
Categoria D: Relações interpessoais no trabalho
Nessa categoria serão apresentadas expressões-chave e ideias centrais referentes às relações interpessoais no trabalho. Optou-se por apresentar essa categoria em três discursos, devido às falas dos entrevistados indicarem que as relações na ESF acontecem entre profissionais/profissionais; profissionais/usuários e profissionais/gestores. Os atores sociais entrevistados expressaram 72 ideias centrais.
Eu entendo que qualidade de vida no trabalho é você ter um bom relacionamento profissional com as pessoas que trabalham com você, ter um bom convívio no ambiente de trabalho... É muito ruim você vir para um lugar desarmonioso, porque a gente faz uma carga horária grande, a gente fica aqui o dia inteiro, se a gente não tem um bom relacionamento entre os colegas de trabalho e a equipe não se dá bem, isso vai desgastando, você vai ficando desestimulado, estressado e vai gerando um ambiente que a gente não suporta. Aqui tem conversa demais, aí isso estressa, tem muita gente afastada por conta de conversinha, pessoas preocupando com sua vida [...] (01-02-09-18-19-23-27-33-39-48-67-70-82-85-88-89-90-95-97-102-113-119-123-138-144-150-151-153-158-169-173-178-179-189-198-225).
O relacionamento interpessoal, a interação por meio do diálogo, embasada na amizade e na cumplicidade, nas equipes de saúde da família favorecem a realização do trabalho cooperativo e afetuoso24.Os entrevistados acrescentam respeito e bom humor para conquista de um local de trabalho harmonioso. O trabalho em equipe é considerado um fator necessário para alcançar uma qualidade de vida no trabalho aceitável16.
Os agentes comunitários de saúde, entrevistados em um estudo, consideraram as relações firmadas na equipe como fundamentais para execução de um bom trabalho, principalmente, no que diz respeito à resolução de problemas da comunidade9. O discurso expressa tal ideia, quando diz ser preciso a união de todos profissionais para desempenhar um trabalho bem feito, tendo como finalidade a melhor assistência ao usuário, pois a ESF concretiza-se com a integração do trabalho dos diversos profissionais que nela atuam.
Dentre as causas interpessoais que interferem na qualidade de vida no trabalho, na visão dos participantes deste estudo, a relação da população usuária dos serviços de saúde com os profissionais foi apontada como relevante descrito no discurso a seguir.
[...] eu acho que a qualidade de vida no trabalho passa pelos relacionamentos com a comunidade. É você ter uma boa convivência com os usuários, uma boa recepção dos moradores e ser acolhido pela população. Entretanto, é observado uma falta de humanização das pessoas, as pessoas não respeitam mais os pacientes, eles chegam tão carentes e os próprios atendentes estão com falta de educação. Outro problema é quando tem falta de materiais, e você tem que lidar com o paciente, bater de frente, ele discute, não entende que nós estamos passando por de falta de material, o equipamento está estragado. O paciente não quer entender isso, ele simplesmente quer chegar e ser atendido, ele não entende que não é que a gente não quer atender, é porque não tem o material para fazer, aí acaba brigando, discutindo. O usuário chega, ofende a gente e ainda liga na ouvidoria [...] (01-02-09-18-19-23-27-33-39-48-67-70-82-85-88-89-90-95-97-102-113-119-123-138-144-150-151-153-158-169-173-178-179-189-198-225).
No contexto da ESF, relacionamento entre profissional-usuário é complexo e circundado por questões éticas. Esse relacionamento não é limitado às práticas curativas, porque o encontro entre tais atores sociais ocorre, também, durante atividades de educação em saúde. Os aspectos éticos presentes nas relações estabelecidas pela ESF exibem interconexões com a sociedade, família e a própria equipe25.
A existência de um relacionamento efetivo entre profissional-usuário acarretará em impactos positivos tanto para usuários como para profissionais25. A insatisfação dos usuários quanto aos serviços prestados ocasiona insatisfação dos próprios trabalhadores12.
O discurso exemplifica essa situação, uma vez que os profissionais expressam que ausência de condições adequadas para exercer o trabalho com qualidade e resolutividade é fator de tensão na relação com os usuários. Pelo discurso, pode-se perceber que os entrevistados acreditam que há uma incompreensão por parte dos usuários acerca das condições reais e limitantes para realização do trabalho, impedindo-os de entender que o atendimento não está sendo feito por falta de condições. Essa conjuntura desestabiliza o relacionamento entre os trabalhadores de saúde e a comunidade.
[...] eu entendo que o acolhimento da secretária de saúde, dos gestores, contribui com a minha qualidade de vida no trabalho, porque, muitas vezes, o gestor não procura saber a necessidade do profissional, a gente fica bastante isolado, geralmente, não existe um contato, uma aproximação maior. A gente fica recebendo as ordens e temos a impressão de que essas pessoas não têm uma noção clara do que acontece aqui. Eles se preocupam muito mais com os usuários do que com os profissionais. Mas, se o profissional não tem uma qualidade de vida boa, como é que vai ficar o usuário que é a finalidade disso tudo. Então, a gestão, muitas vezes, ela não colabora com a gente, a gente se sente bastante desvalorizado quanto profissional (01-02-09-18-19-23-27-33-39-48-67-70-82-85-88-89-90-95-97-102-113-119-123-138-144-150-151-153-158-169-173-178-179-189-198-225).
O respaldo da gestão é um aspecto essencial para execução das tarefas no setor saúde, fator que desencadeia sentimento de satisfação no profissional. A ausência de um relacionamento efetivo entre profissionais e gestores gera a frustração do trabalhador, pois o gestor cobra por resultados sem saber se há ou não condições para desenvolver o que foi pedido23.
A carência de retorno aos profissionais, por parte dos gestores, pelos resultados alcançados no serviço, é obstáculo encontrado por eles para participarem dos processos de tomada de decisão, além de comprometer a relação de cooperação que deve haver entre esse binômio, gestores/trabalhadores20.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perante os resultados encontrados, é possível considerar que os significados conferidos à qualidade de vida no trabalho, pelos profissionais de saúde da ESF, perpassam tanto pelos aspectos subjetivos, do gostar da profissão e sentir-se bem no trabalho, como pelos quesitos das condições de trabalho e dos relacionamentos oriundos da atividade laboral.
Cabe destacar que a representação social que estava mais compartilhada no cenário estudado, diz respeito à percepção de qualidade de vida no trabalho relacionada ao contexto organizacional. Com 121 expressões-chave, as questões referentes às condições de trabalho foram as mais expressivas, seguidas pelas relações interpessoais no trabalho, com 72 expressões-chave.
Tal resultado sinaliza para necessidade das instituições avaliarem as condições de trabalho que estão ofertando, tendo em vista que investimentos, com a intenção de melhorar a qualidade de vida no trabalho dos profissionais refletirão na assistência, na satisfação do usuário como, também, poderão diminuir o absenteísmo, casos de acidente de trabalho e eventos adversos.
Como limitações deste estudo, apontam-se o fato das entrevistas terem sido feitas nos locais de trabalho, pois é sabido que tal situação pode vir a coibir o surgimento de temáticas polêmicas. Outra limitação versa sobre a delimitação da população somente ao município estudado, circunstância que não permite generalizações dos resultados do estudo.
AGRADECIMENTO
A Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG pelo financiamento da pesquisa.
REFERÊNCIAS