Volume 19, Número 4, Out/Dez - 2015
PESQUISA
Primeiras oficiais enfermeiras da polícia militar do estado
do Rio de Janeiro (1994-1995): incorporação do habitus
militar
Marcleyde Silva de Azevedo Abreu
1
Verônica Cristin do Nascimento Haddad
2
Laís de Miranda Crispim Costa
3
Kyvia Rayssa Bezerra Teixeira
2
Maria Angélica de Almeida Peres
2
Tânia Cristina Franco Santos
2
1 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3 Universidade Federal de Alagoas. Maceió, AL, Brasil
Recebido em 18/04/2015
Aprovado em 18/12/2015
Autor correspondente:
Marcleyde Silva de Azevedo Abreu
E-mail: marcleydeazevedo@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar o processo de incorporação do habitus militar pelas
oficiais enfermeiras estagiárias, durante o Estágio Probatório de Adaptação de
Oficiais, na Escola de Formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro. O recorte temporal abrange o período de 1994 a 1995.
MÉTODOS:
Trata-se de estudo histórico-social, cujas fontes primárias foram documentos
escritos do acervo da Polícia Militar e depoimentos orais, obtidos por meio de
entrevistas com dez oficiais enfermeiras pertencentes à primeira turma do Quadro
de Oficiais de Saúde. Os dados foram organizados, classificados e analisados em
conformidade com o método histórico e o referencial teórico de Pierre
Bourdieu.
RESULTADOS:
As oficiais enfermeiras estagiárias foram submetidas a um processo de incorporação
do habitus militar, através do aprendizado de gestos e posturas
adequadas à vida militar, articulados a uma rígida disciplina e hierarquia.
CONCLUSÃO:
O aprendizado do habitus militar foi fundamental à nova posição
profissional e social.
Palavras-chave: Enfermagem; História da Enfermagem; Enfermagem Militar
INTRODUÇÃO
O processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro foi objeto de estudo de vários cientistas sociais, sobretudo na década de 1990, em que discutiram, amplamente, as condições de vida e o aumento da violência urbana. Ocorriam crimes de repercussão nacional e internacional, que eram noticiados, diariamente, em jornais de grande circulação. Tais circunstâncias ensejaram uma crise na Segurança Pública do Estado, agravada pela divulgação do envolvimento de policiais e autoridades em ações criminosas1.
Nesse contexto, várias medidas vinham sendo tomadas para melhorar e fortalecer a Secretaria de Segurança Pública, em especial, a realização de concursos públicos para policiais militares da tropa, que favoreceram a admissão de cerca de 2000 soldados. Consequentemente, os Hospitais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), o Hospital da Polícia Militar de Niterói e Hospital Central da Polícia Militar, ficaram sobrecarregados no que refere ao número de atendimentos, seja pela elevação da criminalidade, como pelo aumento do efetivo da corporação2.
Ademais, foi necessário expandir a assistência médico-hospitalar aos novos policiais militares e seus dependentes, o que confluía para a elevação do número de atendimentos de saúde nos hospitais, evidenciando a insuficiência numérica de profissionais de saúde na PMERJ, especialmente, de enfermeiros e de pessoal de enfermagem de nível médio.
Para dar conta dessa demanda, foi criado o Quadro de Oficiais Enfermeiros, por meio da Lei nº 2.206, de 27 de dezembro de 1993, pelo, então, governador do estado, Leonel de Moura Brizola. Essa medida converteu 163 vagas para soldado (não utilizadas) em 56 vagas para oficiais enfermeiros do Quadro de Oficiais de Saúde, que ficou, assim, constituído: dois majores, dez capitães, 20 1º tenentes e 25 2º tenentes. Inicialmente, os enfermeiros foram inseridos no posto de 2º tenente, podendo ser promovidos após o cumprimento do interstício de três anos, de acordo com o número de vagas3.
O processo seletivo durou oito meses e contou com duas fases de caráter eliminatório, seguido da Prova de Títulos, de natureza classificatória. A primeira etapa constou de avaliação escrita dos conhecimentos específicos de enfermagem, já a segunda foi composta de prova prático-oral sobre procedimentos técnicos de enfermagem. Dando seguimento, todos os aprovados realizaram os exames de saúde e o Teste de Aptidão Física. Por fim, houve ainda a análise psicológica e exame social3.
Os aprovados, nessas etapas, foram nomeados pelo governador do Rio de Janeiro como estagiários do Quadro de Oficiais de Saúde (QOS) do Quadro I, que constitui o quadro permanente da PMERJ. Essa nomeação colocava o candidato aprovado na condição de realizar Estágio Probatório de Adaptação de Oficiais, etapa obrigatória e eliminatória do Curso de Formação de Oficiais.
A turma de estagiários era composta de médicos e capelães com a patente de 1º Tenente da Polícia Militar (TEN PM) Estagiário, e 56 enfermeiros, sendo 49 mulheres e seis homens, com a patente de 2º TEN PM Enfermeiros Estagiários. Para lograr aprovação, os estagiários deveriam cumprir todas as etapas com êxito3. A diferenciação de patentes colocava a enfermagem em desvantagem em relação aos médicos e capelães. Não obstante, o concurso para oficiais enfermeiros significou a inserção de um grupo até então inexistente ao efetivo da PMERJ, uma vez que o quadro de pessoal de enfermagem, em seus hospitais, era composto por enfermeiros civis e de auxiliares e técnicos de enfermagem militares, com patente na categoria de cabos e sargentos4.
A incorporação do habitus militar pelo grupo de enfermeiros recém-chegados, composto, majoritariamente, por mulheres, ao campo da saúde da PMERJ, se deu de modo bastante complexo. Para estudar a situação-problema por trás desse processo, foi traçado o seguinte objetivo: analisar o processo de incorporação do habitus militar pelas oficiais enfermeiras estagiárias, durante o Estágio Probatório de Adaptação de Oficiais, na Escola de Formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
A contribuição, deste estudo, se evidencia pelo aprofundamento da discussão sobre a incorporação do habitus militar como requisito indispensável à inserção da enfermagem em espaços militares e pela divulgação de dados de pesquisa que permitem a reflexão sobre aspectos que envolvem o profissional enfermeiro no campo militar no Brasil. Oportuno ressaltar a pertinência dos estudos históricos como ferramenta essencial para o conhecimento da profissão5.
MÉTODOS
Estudo histórico-social, cujas fontes primárias foram documentos escritos (Boletins, Diários Oficiais do Estado) pertencentes ao acervo da PMERJ e depoimentos orais, obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas com dez oficiais enfermeiras da primeira turma do Quadro de Oficiais de Saúde da PMERJ. Como critérios de inclusão elegeram-se àquelas oficiais enfermeiras que pertenceram à primeira turma e que foram lotadas no Hospital Central da Polícia Militar (HCPM), no período estudado. Não houve a exclusão intencional da categoria masculina, entretanto, o oficial masculino que se dispôs a colaborar com o estudo, não pôde participar do processo de coleta de dados, por motivo de saúde.
As entrevistas ocorreram no período de outubro a dezembro de 2010, realizadas em locais e horários escolhidos pelas entrevistadas. Foi utilizado um roteiro semiestruturado com tópicos dos assuntos a serem abordados pelas oficiais. Foram entrevistadas dez oficiais enfermeiras, sendo que seis dessas entrevistas foram realizadas na sala do Setor de Treinamento do HCPM; uma na chefia de enfermagem do HCPM; três na Diretoria Geral de Saúde da PMERJ; e uma em um Hospital Federal do Rio de Janeiro. Quanto à identificação das entrevistadas, optou-se por número sequenciado de 01 a 10. Como critério de confiabilidade do material transcrito, o mesmo foi apresentado às entrevistadas para validação do texto.
A seleção, coleta, organização e classificação dos dados a partir dos documentos escritos sucederam no período de setembro de 2010 a dezembro de 2012, e como critério de inclusão dos documentos escritos, optou-se pelos documentos oficiais referentes ao processo de recrutamento e processo de seleção dos enfermeiros para o oficialato da Polícia Militar.
O projeto, que originou o presente estudo, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital Escola São Francisco de Assis, em 31 de agosto de 2010 (Protocolo nº 85/2010), dessa forma, foram seguidas as determinações descritas na Resolução nº 196 /1996, do Conselho Nacional de Saúde. A Direção do HCPM autorizou a realização do estudo, por meio de documento assinado pelo seu diretor à época (FR nº 362343 de 16/08/10). As fontes secundárias foram constituídas de teses, dissertações, artigos e livros, que consubstanciaram a análise dos dados derivados das fontes primárias do estudo.
Os dados foram organizados, classificados e analisados de acordo com o método histórico. Assim, a análise do corpus documental comportou: análise do contexto em que os documentos foram produzidos e divulgados; crítica externa e interna, visando identificar a autenticidade e confiabilidade dos documentos analisados; análise da natureza do texto com vistas à identificação de conceitos chaves6. Realizou-se a leitura exaustiva dos documentos (orais e escritos) para identificação de elementos pertinentes ao fenômeno estudado e ao alcance do objetivo proposto.
O referencial teórico que apoiou essa análise foi o pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu, especialmente, no que concerne ao conceito de habitus. Esse conceito orientou a compreensão das disposições necessárias ao ingresso no oficialato da PMERJ, que deveriam ser incorporadas pelas enfermeiras durante o Estágio Probatório de Adaptação de Oficiais, com o intuito da compatibilização das futuras experiências com as experiências integradas ao habitus ao longo do referido estágio probatório.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Estágio Probatório na Escola de Formação de Oficiais: primeiro contato com a vida militar
A turma pioneira de 56 enfermeiros iniciou o Curso de Formação de Oficiais, com a patente de 2º TEN PM Enfermeiro Estagiário. O período de Estágio Probatório de adaptação de oficiais perdurou por seis meses (de novembro de 1994 a maio de 1995), sendo que a primeira etapa, com três meses, abrangeu conteúdos teórico-práticos de disciplinas específicas de formação e treinamento militar.
O estágio aconteceu na Escola de Formação de Oficiais (EsFO), atual Escola de Formação de Oficiais Dom João VI, que destina-se a formar os oficiais da Corporação desde sua fundação, pelo Decreto n.º 14.508 de 1º de Dezembro de 1920, com a denominação de Escola Profissional, por iniciativa do General José da Silva Pessoa, então Comandante Geral da Corporação7.
Nos primeiros dias de atividades na EsFO, as estagiárias participaram de várias reuniões. Nesses primeiros dias, tomaram conhecimento das normas quanto à vestimenta, incluindo o fardamento, comportamento, assiduidade, pontualidade, conduta moral, dentre outras. As orientações eram transmitidas, diariamente, no anfiteatro, na sala de aula e no próprio pátio da Academia pelos oficiais responsáveis pela instrução do grupo7.
O Estágio Probatório de Adaptação comportava atividades diárias e em horário integral. A maioria das estagiárias já exercia atividades laborais, o que demandava a necessidade de trabalho noturno para dar conta das atividades na EsFO. Essas demandas, na percepção das entrevistadas eram muito desgastantes:
Foi difícil, porque o estágio era por tempo integral. Nós permanecíamos na Escola das 7 às 17 horas. Nessa época, eu também trabalhava à noite. Também tinha a educação física que, particularmente, exigia um empenho muito grande [...] (E1).
Outra entrevistada avaliou o período de estágio como cansativo e sofrível, uma vez que se somava às responsabilidades já assumidas, anteriormente, em sua vida:
[...] Para muitos era prazeroso, mas teve os que também vivenciaram momentos de sofrimento. Para mim, por exemplo, que morava longe, tinha criança pequena e era obrigada a sair muito cedo de casa, era sofrido... Às seis e meia, já tinha que estar lá, e às sete horas, tinha que estar em forma. Eu ia chorando, quase todos os dias, porque, para mim, era uma carga pesada. Quando eu chegava em casa, era criança chorando e querendo minha atenção, e eu tinha que estudar... Agora, tinha dias que eu enfrentava duas horas e meia de engarrafamento... Saia de lá às cinco horas e chegava em casa, às oito e meia, nove horas da noite. Então, para mim foi muito difícil! Eu chorava todos os dias [...] (E3).
A análise das percepções das entrevistadas sobre as dificuldades iniciais no estágio de adaptação evidencia a utilização do sofrimento infligido ao corpo de que se valem os ritos de iniciação em qualquer sociedade, pois, como bem demonstram inúmeras experiências psicológicas, a adesão será mais efetiva, quando mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciativos a que foram submetidas8.
Não obstante, as percepções sobre o Estágio Probatório foram relatadas de modos distintos entre as entrevistadas que, ou destacaram suas dificuldades vivenciadas, ou seus ganhos. Essa facilidade na internalização das disposições necessárias a aspirante a oficial enfermeira é exemplar no sentido de evidenciar que os efeitos exercidos pelas novas experiências sobre o habitus das candidatas dependem da relação de compatibilidade prática entre essas experiências e as demais já integradas ao habitus8.
As estagiárias tiveram que se dispor à incorporação da doutrina militar, por intermédio de um aprendizado diário de adaptação ao novo estilo de vida, transmitido através das diversas instruções unificadas. Por óbvio, todas as oficiais estagiárias deveriam amoldar-se às instruções, para ajustarem-se ao perfil compatível às exigências da vida militar. A manifestação de uma das entrevistadas evidencia esse processo de adequação ao novo cotidiano:
[...] Tive que me adaptar a uma nova rotina. O rigor militar era uma coisa nova e muito legal. Organizada eu nunca fui, então, nessa época eu já era mãe, e entrar nesse esquema era como se eu voltasse no tempo. Eu era uma aluna novamente. Então tínhamos hora para tudo, para tomar banho, para trocar de roupa. Para rever matéria, para estudar. No fundo foi algo muito legal, muito diferente do que eu estava acostumada... Comecei a aprender uma vida com disciplina, uma vida de militar. Consegui me adaptar [...] (E2).
A adaptação à vida militar não se deu de forma idêntica para todas. Com efeito, razoável número de entrevistadas registrou, de modo destacado, certas dificuldades que passaram. De certo, a doutrina militar tem suas peculiaridades e a forma de adaptação a elas é variável, dependendo da formação familiar, profissional e social anterior do candidato. Do mesmo modo, os referenciais sociais e de cidadania tendiam a exercer influência na conduta do aspirante, durante a familiarização com a rotina militar, podendo até proporcionar impacto, conforme relatou uma das entrevistadas:
[...] Eu tive esse impacto da vida civil para a vida militar e isso se constatou muito de uma situação que aconteceu na Academia com um colega. Isso me atingiu muito... Essa coisa de rancho... Então, ocorreu que nós tivemos um colega de turma, que era sargento enfermeiro. Ele fez concurso para oficial e, não sei o porquê ficou reprovado no exame psicológico. E aí, eu não entendia. Se ele era integrante da Polícia Militar, por que foi reprovado num exame psicológico, sendo militar? Ele entrou na Justiça com uma liminar, e fez o curso junto conosco. A coisa que mais me aborrecia na época era que nós entravamos no rancho dos oficiais para fazer as refeições, e ele entrava no rancho de praças, ficando separado. Então, eu acho que no mundo civil a gente não vê tanto essa diferença... Então, foi uma coisa que me marcou muito. Eu não gostava dessa situação. Eu achava vexatório pra ele. Na vida civil, não tinha visto nada parecido, ainda. Isso me marcou [...] (E9).
As diferenças entre categorias e classes sociais podem levar a discriminações e a outros sentimentos de desvalorização. Entretanto, cumpre admitir que não se trata de peculiaridade da vida militar, eis que, no meio civil, também, há vários tipos de diferenciação entre categorias e classes sociais. Há fenômenos tão antigos que a sociedade tende a tratá-los como naturais, sem esboçar qualquer estranheza. Isso ocorre porque os espaços sociais são estruturados em função do volume e do peso dos capitais em jogo naquele ambiente9. No caso do cenário militar, a patente é o critério que assegura posições de prestígio e, uma vez garantida, a pessoa passa a tratar ou a ter que tratar as diferenças como parte do seu cotidiano. Ainda quanto à adaptação, uma das entrevistadas fez menção a outras dificuldades e suas estratégias de resistência:
[...] Quando eu cheguei na Academia, eu me deparei com uma coisa muito complicada. Quando eu ia para casa, achava que no dia seguinte eu não ia voltar. Chegava em casa e falava: Não volto! Essa vida não é para mim! Tanto que eu não participei de atividades que a maioria das pessoas participaram (...). Então, não cheirei gás, não entrei em bueiro, não fui atrás de incêndio (...). Não fui porque achava altamente desnecessário e uma questão de gosto. Quem gostava, ia... Falei com o Capitão: Oh, Capitão! Primeiro que eu não vou cheirar gás porque tenho renite, bronquite, tenho asma! Eu não tenho condições de cheirar gás, porque daqui a pouco eu faço um edema [de glote] e morro. Eu uso lente de contato, estou de lente, e não vou lá. Participei do que eu julgava necessário para minha formação [...] (E9).
Outro aspecto importante, é que as disciplinas que compunham a grade curricular do Curso de Formação de Oficiais comportavam conhecimentos relacionados aos preceitos militares. A incorporação desses preceitos operava com chancela para o ingresso efetivo no espaço militar. Sendo assim, a formação da oficial não considerava apenas a sua formação profissional, mas, sobretudo, o preparo específico necessário a um oficial da PMERJ.
A esse respeito, é pertinente admitir que o capital militar adquirido com a formação em curso militar tende a gerar mudanças de posição no espaço ocupado pelos integrantes do grupo. Isso porque há uma correspondência entre posições ocupadas socialmente e as disposições (de habitus) de indivíduos ou grupos, funcionando também como princípio de classificação9.
Logo, o processo de adaptação e incorporação do habitus militar pelas Enfermeiras foi desgastante e complexo em relação aos aspectos psíquicos e físicos trabalhados no decurso do Curso de Formação de Oficiais, mas sustentaram-se no desejo das mesmas em se tornarem oficiais, o que daria o prestígio almejado por elas na PMERJ e na sociedade.
Efeito do estágio de formação no habitus das estagiárias
Os depoimentos evidenciam diferentes impressões e sentimentos em relação ao curso de formação. Com efeito, o processo de adaptação procedeu de maneira diversa, o que, certamente, tem relação com as experiências anteriores e as expectativas de cada estagiária. No entanto, todas serem graduadas em Enfermagem, as características culturais, sociais, vocacionais e outras podem contribuir direta ou indiretamente, conscientemente ou não, para as escolhas e representações referentes à carreira. A incorporação do habitus militar dependeria, portanto, da posição social, dos esquemas de percepção, das vivências e valores culturais de cada estagiária. Nesse ínterim, a oficial estagiária enfrentou desafios de diferentes naturezas, quando precisou ajustar o habitus derivado da estrutura social anterior à conjuntura da instituição em que estava inserida, ao longo do curso de formação.
No processo de incorporação do habitus militar, as regras e condutas unificadas tendem a ser incorporadas pelos integrantes do grupo. Se a observância de tais regras, a priori, essenciais à conduta dos estagiários, não fizessem parte do treinamento, possivelmente o curso não obteria êxito. A análise do depoimento de uma das entrevistas a respeito do estágio probatório é exemplar no sentido de evidenciar o entendimento da necessidade de incorporação do habitus militar:
[...] Dentro do quartel, você vai tendo noção de uma nova realidade (...). Na vida civil, a gente tinha tempo para tudo. Na vida militar, não havia tempo de pentear e fazer aquele corte... Quando eu ia ver, meu cabelo já estava precisando de um corte. Cortei "chanelzinho", mas, às vezes, dava vontade de sair correndo para beber água. Mas não, tinha que cumprir aquele rigor todo [...] (E5).
Mas, nem todas as entrevistadas enfrentaram com a mesma tranquilidade as regras, como o cumprimento dos horários estabelecidos no curso, como se verifica no depoimento a seguir:
[...] Eu sempre estava na lista negra dos atrasados. Era a última que acordava. Meu nome estava sempre naquela lista. Minha experiência na EsFO não foi uma muito legal, não [...] (E9).
Vale ressaltar que o grupo era heterogêneo, pois havia àquelas já adaptadas à vida militar na condição de Praças. Sendo assim, tais experiências ensejavam diferenciações no processo de adaptação. A análise do excerto do depoimento abaixo evidencia essas diferenciações:
[...] O estágio para mim foi muito divertido, até certo ponto. Porque, a turma era grande. Na turma tinham grupos que tinham muita afinidade. Logicamente, isso é até normal. Pessoas que tinham mais afinidades uma com as outras acabavam ficando mais juntas. Mas, alguns comportamentos eu não entendia, justamente por ter sido praça. Tinha coisas que eu achava que tinham lógica, outras, nem tanto [...] (E4).
Nesse sentido, a posição de cada sujeito, na estrutura das relações objetivas, propicia um conjunto de vivências típicas que tendem a se consolidar na forma de um habitus adequado a sua nova posição social9. Assim concebido, o habitus da estagiária que fez com que ela agisse não como um indivíduo qualquer, mas como membro de um grupo que ocupa determinada posição na estrutura social em que está inserida, propicia segurança em relação às disposições já incorporadas.
De acordo com a avaliação da entrevistada, que antes do concurso para oficial pertencia ao Quadro de Praças de Saúde PMERJ, muitos passaram pela Academia, porém não incorporaram o "espírito militar". Quando solicitada a explicar a expressão "Muita gente passou pela Academia, e não aprendeu a ser militar", respondeu:
[...] Eu aprendi, na época em que era cabo, que militar é militar. O militar acata ordens, mas ordens absurdas não se cumprem. O que eu achava estranho era a postura do grupo. A preocupação com o batom, cor de cabelo, sapato, pé, calor, sol... Logicamente, tinha como conseguirmos contornar isso. Reclamar menos. As estagiárias tiveram umas atitudes assim, que eu não entendia [...] (E4).
Esse recorte elucida a familiaridade da entrevistada ao cotidiano militar. Sua adaptação prévia ao regime tornava incompatível a compreensão das dificuldades daquelas que vinham da vida civil, daí o discurso crítico em relação às estagiárias sem experiência militar.
Assim, no que tange ao Estágio Probatório de Adaptação de Oficiais, diversas situações ocorreram no processo de incorporação do habitus militar, o que já era esperado, considerando que a maioria do grupo de oficiais estagiárias vinha da vida civil. Além disso, possuíam formação em várias instituições de graduação em enfermagem, sendo oportuno reafirmar a experiência profissional anterior, uma vez que muitas delas haviam ocupado cargos em setores públicos e privados. Esse conjunto de fatores pode ter determinado que o grupo reagisse de maneira bem diversa no decorrer do período de treinamento militar.
No regime militar, a exigência do fardamento e o uso de insígnias para o desempenho do serviço fazem com que o sujeito se sinta responsável e representando a Corporação a todo o momento. As abordagens a esses símbolos eram feitas durante o Curso de Formação, na disciplina de Ética Militar, onde se tratava da importância da envergadura da farda.
O valor atribuído ao fardamento foi um aspecto, particularmente, assinalado pela maioria das integrantes da primeira turma de oficiais enfermeiras, conforme se constata no próximo relato:
[...] Quando eu vestia a farda me sentia como representando um ideal de grupo, de sociedade. Não me sentia mais importante que as pessoas de um modo geral, mas diferente, como fazendo parte de algo que me orgulhava e me engrandecia. Quando eu visto a farda, eu incorporo. Aqui dentro, sou a oficial [...] (E1).
O texto evidencia o efeito da incorporação do habitus militar, quando demonstra a recomendação dos esquemas disciplinares da Corporação, que tem no cuidado à farda, a valorização das coisas do universo militar. O texto contido no Estatuto do Policial Militar (1981) coaduna-se com as ideias contidas no relato anterior: "o espírito de corpo, orgulho do policial militar pela organização onde serve; o amor à profissão policial-militar e o entusiasmo com que é exercida"10:4.
Sobre o uso da farda, outra oficial mencionou que, ao vesti-la, sentia-se diferente:
[...] Quando eu colocava a farda, eu ficava com medo de tocar as pessoas. Então, para não tocar nas pessoas, colocava a mão para trás. Eu fui alertada sobre isso. Um colega da turma disse que eu não deveria tocar nas pessoas. Senão, as pessoas poderiam achar que não era uma postura adequada. Por esta mania de tocar nas pessoas, esta foi uma das coisas que eu tive mais dificuldade. Tenho várias fotos do primeiro ano que estava com as mãos para trás, segurando as mãos [...] (E8).
A incorporação do habitus militar foi aos poucos sendo realizada em cada uma das Enfermeiras durante o curso, o que neste estudo é evidenciado nas falas como a descrita acima, que demonstra as mudanças de comportamento assumidas ao vestir a farda da PMERJ, possibilitando um ajustamento e ajuizamento tidos como necessários para o adequado enquadramento da função e posição militar.
A importância e influência do processo de aprendizagem, não apenas durante o curso, mas no decorrer do exercício da carreira militar, tem no uniforme forte instrumento de identidade. O fardamento constitui elemento emblemático, como símbolo da aceitação da doutrina militar, representando o acatamento do profissional, conforme retratou uma das entrevistadas:
[...] O uniforme é interessante. Ele mostra o que você é! O que você sente por dentro. (...) É o que eu penso. Há pessoas que são desmazeladas. Não usam sapatos adequados, não cuidam da imagem. Por outro lado, há pessoas que não precisam dizer nada, se estão com um uniforme impecável! Qual o valor que essa pessoa dá pra vida que ela leva? Se nem o uniforme ela consegue manter [...] (E10).
A Academia instruía as alunas de tal forma que vestir a farda fazia diferença na sua postura e comportamento. Usar a farda da PMERJ significava representá-la diante da sociedade. Portanto, a atitude do policial constituía a atitude da Corporação (PMERJ).
No que diz respeito ao cumprimento militar realizado por meio da continência, temos o seguinte relato:
[...] Para mim, isso nunca foi problema. Para falar sinceramente, Às vezes me constrange de não atentarem para isso. (...) Eu vejo como uma questão de reconhecimento e respeito. Acho muito bonito uma pessoa que chega perto de você e presta continência, e você também prestar continência a quem é mais antigo que você. Eu acho muito bonito quando a pessoa está realmente imbuída desse espírito... Então, prefiro me dirigir às pessoas de forma correta [...] (E4).
A incorporação do habitus militar se deu, progressivamente, ao longo do estágio. Nesse processo, foram utilizadas inúmeras estratégias para padronizar os gestos e as aparências dessas enfermeiras, em prol da unidade do grupo11, favorecendo a construção de identidade de enfermeira militar12. Assim, as integrantes do grupo foram levadas a assimilar novos costumes e papéis, à medida que reconheceram a Corporação da Polícia Militar e nela integraram-se.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A guisa de considerações finais depreende-se da pesquisa realizada, que o processo de incorporação do habitus militar pelas primeiras oficiais enfermeiras da PMERJ, se deu de maneira heterogênea, conforme teorizado pelo referencial do estudo. As características individuais já incorporadas pelas oficiais foram aspectos de influência que implicaram em dificuldades ou facilidades na incorporação do habitus militar durante os treinamentos militares. Em última instância, representaria o aprendizado de um habitus adequado à nova posição profissional e social, onde a maioria das integrantes, deste grupo, agregou a disciplina e a doutrina militar, não de maneira estanque, mas de forma contínua, que seguiria esse grupo pioneiro no decorrer de sua trajetória.
O estudo possibilitou a construção de uma versão histórica sobre alguns aspectos da incorporação do habitus militar da primeira turma de enfermeiras, no oficialato da Polícia Militar do Rio de Janeiro. No entanto, é importante dar continuidade aos estudos sobre a enfermagem militar, em especial da presença feminina nesses cenários. Por isso, este estudo representa uma verdade provisória, já que os fatos vivenciados integralmente constituem um desafio para a história.
REFERÊNCIAS