Volume 19, Número 3, Jul/Set - 2015
PESQUISA
Condições de vida e saúde do idoso indígena Kaingang
Ana Carla Borghi
1
Lígia Carreira
1
1 Universidade Estadual de Maringá. Maringá - PR, Brasil
Recebido em 20/08/2014
Aprovado em 26/05/2015
Autor correspondente:
Ana Carla Borghi
E-mail:
anacarla.borghi@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Descrever as condições de vida e saúde de idosos Kaingang da Terra Indígena
Faxinal - Paraná.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo, apoiado no método etnográfico, realizado com 28 idosos
Kaingang. Os dados foram coletados entre novembro de 2010 e fevereiro de 2013 por
intermédio da observação participante, analisados por meio da etnografia.
RESULTADOS:
Os idosos possuem organização sociocultural específica, vivem em casas construídas
pelo governo, possuem energia elétrica e água encanada. São fisicamente ativos,
independentes, tem alimentação rica em carboidratos e gorduras saturadas. É
frequente que os idosos façam tentativas de atender seus problemas de saúde no
contexto familiar antes de procurar o serviço de saúde.
CONCLUSÃO:
É necessário adotar propostas voltadas para a melhoria das condições de vida e
saúde do idoso, considerando as especificidades culturais dos indígenas, para que
as intervenções sejam mais eficazes.
Palavras-chave: Saúde de Populações Indígenas; Idoso; População indígena; Cultura.
INTRODUÇÃO
O crescimento da população indígena observado na atualidade demanda desafios ao enfermeiro e a equipe multidisciplinar na atenção à saúde do idoso indígena. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) tem como propósito garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, aos moldes dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), contemplando a diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política, bem como o direito desses povos à sua cultura1. Portanto, torna-se necessário conhecer as condições de vida e saúde dessa população em seus diversos aspectos, incluindo os problemas ambientais, psicossociais, culturais e econômicos.
Com o envelhecimento cada vez mais presente nas aldeias, os aspectos culturais devem ser levados em consideração, uma vez que a cultura influencia diretamente os pensamentos, decisões e ações, especialmente as ações referentes aos cuidados2.
Apesar dos investimentos em saúde pública nas últimas décadas as desigualdades sociais e de saúde continuam a existir entre os povos indígenas3. O perfil de morbimortalidade indígena identificado na literatura caracteriza-se pelo baixo nível de escolaridade, condições inadequadas de habitação e saneamento e dificuldades de acesso a serviços de saúde4,5. No Brasil, são poucas as informações sobre aspectos nutricionais e hábitos alimentares6,7, condições ambientais e sanitárias8,9 e problemas comportamentais, como o alcoolismo10,11 e a prática de atividade física da população indígena7,12 e, na maioria das vezes, são realizadas com crianças ou população adulta.
Entre os estudos que abordam alguns elementos da condição de vida e saúde de idosos indígenas, destaca-se a pesquisa realizada com índios Kaingang intitulada "Dinâmica social e familiar: uma descrição etnográfica de famílias de idosos Kaingang"13 e o estudo sobre a situação de vida, saúde e doença com índios Potiguara9.
Mediante tais considerações, a relevância deste estudo centra-se no contexto sociocultural e científico como produção de conhecimento, visando oferecer informações aos profissionais de saúde, sobretudo ao enfermeiro para o fortalecimento e a avaliação das ações voltadas para a promoção da saúde do idoso Kaingang, o que corrobora no planejamento de estratégias de intervenção para a melhoria das condições de vida e saúde dessa população. Com esta finalidade, objetivou descrever as condições de vida e saúde de idosos Kaingang da Terra Indígena Faxinal - PR, enfatizando os comportamentos em saúde, morbidades existentes, condições de saneamento e uso de medicamentos.
MÉTODO
O presente estudo é descritivo de abordagem qualitativa apoiada no referencial metodológico da etnografia. A etnografia é um método de pesquisa14, que tem por finalidade aprender uma sociedade ou uma cultura em sua totalidade, compreendendo-a de dentro, o que sentem os indivíduos pertencentes à mesma.
A pesquisa foi realizada na Terra Indígena Faxinal de Catanduvas (TIF), localizada no Município de Cândido de Abreu, na região Centro-Sul do Paraná, onde residem aproximadamente 600 indígenas da etnia Kaingang, distribuídas em aproximadamente 120 famílias.
Os idosos foram selecionados a partir de uma lista da população residente na TIF fornecida pela unidade de saúde local e pelo escritório da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em novembro de 2010. Foram identificados 41 idosos. Ao iniciar o contato com os possíveis participantes, constatou-se que seis haviam falecido, quatro mudaram para outras TIs, restando 31 sujeitos. Além destes, também, foram excluídos três idosos que recusaram participar da pesquisa, totalizando 28 idosos.
A coleta de dados compreendeu o período de novembro de 2010 a fevereiro de 2013. Por fazer parte do projeto de pesquisa "Os Saberes e Práticas de saúde de Famílias de idosos Kaingang na Terra Indígena Faxinal - PR", as observações tiveram início em novembro de 2010, totalizando 11 momentos em campo, com a permanência dos pesquisadores por períodos de sete a dez dias. Nos primeiros momentos em campo, foi possível estabelecer uma relação de vínculo entre os pesquisadores e os participantes do estudo. Ressalta-se que em cada momento em campo os pesquisadores fortaleciam os vínculos estabelecendo uma relação de confiança.
A observação participante constituiu a principal ferramenta de investigação, a qual se desenvolveu por meio de visitas domiciliares registradas em diário de campo. Por meio dessa técnica, observamos o cotidiano dos informantes: as situações com que se defrontam e os comportamentos que têm diante delas, procurando nos aproximar das interpretações que têm sobre os fatos observados. As observações foram complementadas com entrevistas semiestruturadas gravadas e transcritas.
Utilizou para a coleta de dados um roteiro de observação que abordou três aspectos: caracterização dos idosos (sexo, idade, estado civil, escolaridade, renda individual e atividade laboral), estrutura da residência (material, presença de banheiros, número de cômodos, energia elétrica, água encanada e peridomicílio), comportamentos em saúde (atividade física, hábitos alimentares, consumo de bebidas alcoólicas e fumo), problemas de saúde referidos e uso de medicamentos. Em alguns momentos os pesquisadores tiveram auxílio de um Agente Indígena de Saúde (AIS) como intérprete bilíngue, considerando que a maioria da população idosa fala a sua língua nativa, o Kaingang, pertencente do tronco linguístico Macro - Jê. Esses momentos compreenderam as visitas domiciliares e as entrevistas.
Após concluir a coleta de dados, iniciou o processamento de análise das notas do diário de campo e das entrevistas transcritas, seguindo os pressupostos da etnografia14.
O estudo atendeu todas as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, obtendo aprovação do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), Parecer nº 760/2010. Para preservar a identidade dos participantes, os idosos foram codificados com números arábicos precedidos da letra I e identificados pela letra F para o sexo feminino e M para o sexo masculino, seguido da idade.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os Participantes do estudo: breve descrição
Dos idosos Kaingang que participaram do estudo 17 eram mulheres e 11 homens, com idade entre 60 e 103 anos, média de 72,9 anos. Destes, 14 tinham idade entre 60 a 69 anos, seis entre 70 a 79 anos e oito idosos com 80 anos e mais, sendo quatro octogenários, três nonagenários e um com mais de 100 anos. Observa-se que o envelhecimento na população indígena tem ocorrido de modo semelhante ao observado entre não indígenas - predomínio de idosos jovens do sexo feminino.
Dos idosos Kaingang 16 eram casados, dez viúvos e dois separados/desquitado. Desses idosos, 14 viviam em famílias extensas, ou seja, famílias compostas por um casal de idosos, ou apenas um idoso, seus filhos(as), filhas casadas e suas respectivas famílias. Observou-se ainda, idosos residindo sozinhos, desses, quatro eram casais.
Em relação ao nível de instrução, os idosos relatam não ser alfabetizados na língua portuguesa, contudo conseguiam interagir e comunicar-se de modo eficaz com a população não índia.
A maioria dos idosos Kaingang é aposentada ou recebem pensão do cônjuge falecido. Observamos que nos dias de receber os benefícios, os idosos iam até a cidade mais próxima para comprar alimentos e pagar contas. A frase "O meu dinheiro é para comprar comida e pagar as compras", foi frequentemente no relato dos idosos, constatando que os idosos eram o amparo financeiro da família. Outra forma de sustento das famílias era a produção de alimentos nas roças familiares, como milho, feijão, mandioca.
Foram identificados dois núcleos temáticos principais: Como vivem os idosos Kaingang e A saúde do idoso Kaingang.
Como vivem os idosos Kaingang
A política de aldeamento estabelecida desde a chegada do europeu alterou, as formas ancestrais de organização espacial dos Kaingang, cujos "assentamentos" eram constantemente refeitos em novos locais. Com a legitimação dessa política, os Kaingang se organizaram, principalmente, em função do posto indígena e das outras formas não indígenas no espaço da aldeia como o posto de saúde, escola e igrejas. A principal razão dessa organização é o fato de que a política indigenista se legitimou ao lançar mão de estratégias assistencialistas, como a distribuição de alimentos, que levou os indígenas à dependência em relação aos recursos assistenciais.
Embora tenham ocorrido modificações no modo como os Kaingang se organizavam no espaço da terra indígena, a permanência de princípios culturais, especialmente, no que diz respeito às regras de descendência e residência se mantém na atualidade. Os Kaingang, como outros grupos da família linguística macro-jê, são caracterizados como sociedades sociocêntricas que reconhecem princípios sociocosmológicos dualistas, apresentando um sistema de metades. Entre os Kaingang as metades originadoras da sociedade recebem os nomes de Kamé e Kairu. O sistema de metades é um articulador da organização social Kaingang, que, segundo a tradição Kaingang os casamentos devem ser realizados entre indivíduos de metades opostas, ou seja, os Kamé devem se casar com os Kairu e vice-versa. Entre os Kaingang, o pertencimento a uma metade decorre da descendência paterna.
Os princípios sociocosmológicos dualistas tradicionais Kaingang operam sobre uma estrutura social baseada na articulação de unidades sociais territorialmente localizadas, formadas por famílias entrelaçadas que dividem responsabilidades cerimoniais, sociais, educacionais, econômicas e políticas15. A literatura traz que a unidade social mínima Kaingang é o grupo familiar formado por uma família nuclear (pais e filhos), os quais fazem parte de unidades sociais maiores chamados de grupos domésticos, formados, por um casal de velhos, seus filhos e filhas solteiras, suas filhas casadas, seus genros e netos15.
Na TIF, a composição dos grupos domésticos seguem as características apontadas na literatura15, um casal de idosos, ou apenas um idoso, quando viúvo, filhos(as) solteiros(as), filhas casadas, genros e netos. O número médio de indivíduos nesses grupos é de seis. Esses grupos não ocupam, necessariamente, uma mesma habitação, mas um mesmo território. Portanto, podemos observar 19 grupos domésticos que ocupavam uma mesma habitação e nove um mesmo território, ou seja, a casa das filhas fica localizada ao lado da casa dos pais.
O modo como os grupos domésticos se organizam favorece a interação dos indivíduos pertencentes a esses grupos. A fala da I2; F101 é expressiva deste ponto: [...] ele (o filho) corta a lenha para fazer o fogo à noite [...] eles (os filhos) moram todos aqui pertinho [...] sempre estamos juntos [...] (I2; F101). O suporte oferecido pela família seja esse, emocional ou funcional pode ter um papel essencial para manter ou mesmo promover a saúde física e mental do idoso, contribuindo com o envelhecimento saudável13,14.
Conhecer o modo como esses indígenas se organizam, como interagem entre eles permite à equipe multidisciplinar, sobretudo o enfermeiro, planejar e desenvolver ações de prevenção e promoção da saúde do idoso indígena.
À arquitetura das casas indígenas seguem padrões distintos, conforme a época de construção. Na década de 1980, o governo do Paraná construiu casas pré-moldadas sem repartimentos, com cobertura de zinco e amianto. Já, em 2003, a Companhia de Habitação do Paraná (COHAB-PR), por meio do programa de construção de casas em comunidades indígenas, nominado "Casa da Família Indígena", construíram novas casas na TIF. Essas casas possuem 52 m2, construídas em alvenaria com esquadrias em madeira, dois quartos, sala, cozinha, banheiro externo, varanda e cobertura em telhas de cerâmica.
Na TIF, a maioria dos idosos reside nas casas construídas pelo governo do Paraná. Os idosos com idade mais avançada moram em casas de madeira, sem repartimento, de chão batido e coberto com folhas de amianto ou lona. Essa estrutura permite a manutenção de uma fogueira em seu interior, hábito cultural preservado pelos idosos. Por essa razão, é comum, que nas casas de alvenaria os idosos construam um "puxadinho". Para os Kaingang o fogo tem uma função bastante importante, pois é sobre ele que os alimentos são preparos e a casa mantida aquecida nos dias frios. A fumaça liberada pela combustão da lenha é responsável pela conservação de grãos como o milho e feijão, e das carnes, que são salgadas e mantidas penduradas próximo à fumaça num processo de defumação13.
Dos domicílios pesquisados 11 não possuem banheiro, no entanto, por meio de iniciativas de saneamento na TIF em 2003, foram construídos banheiros coletivos disponibilizados para aproximadamente um conjunto de quatro casas. Todos os idosos cujo domicilio não tem banheiro referem usar o "mato" para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Relatam, ainda, condições de precariedade dos banheiros, que sempre estão com "encanamento quebrado", sanitários quebrados ou sem condições de uso e falta de recursos para a manutenção.
As ações de saneamento realizadas na TIF, como já mencionado, incluíram melhorias nos sanitários e construção de fossas sépticas. Vale ressaltar, que após a constatação de elevadas taxas de enteroparasitos, por meio de pesquisa nesta TI, foi realizado o tratamento com antiparasitários e a educação em saúde para a população local, em parceria com o serviço de saúde8.
Quanto aos resíduos sólidos (lixo domiciliar), esses estavam disperso no ambiente de forma irregular, como sobre o solo, por não haver sistema de coleta de resíduos adequado que atendesse esta população. Os idosos referem queimar e até mesmo enterrar o lixo como forma de destinação do material gerado. Entre os povos indígenas os resíduos produzidos são comumente enterrados, queimados no peridomicilio ou em outro lugar da aldeia3,9. Em vários momentos podemos observar a iniciativa da equipe de enfermagem em orientar e conscientizar os indígenas sobre a importância de manter a aldeia limpa, livre de lixos, para minimizar a proliferação de insetos e evitar doenças como, as enteroparasitoses.
Em relação à água potável todos os idosos referem ter acesso, no entanto, cinco domicílios não tinham água encanada. Os idosos que não tem a água encanada buscam na casa dos filhos, vizinhos ou nas torneiras espalhadas pela aldeia. A água utilizada pelos indígenas é proveniente de poço artesiano, construído em 2004, ano em que iniciou o tratamento da água, antes disso a população utilizava a água do rio mais próximo, a qual era contaminada8. O Agente Indígena de Saneamento é responsável pela manutenção dos equipamentos e tratamento da água.
Já em relação à disponibilidade de energia elétrica, 18 domicílios tinham energia, nas quatro casas em que não tinha energia elétrica, os idosos utilizavam outros tipos de iluminação como velas, lamparinas e o próprio fogo.
A saúde do idoso Kaingang
No processo de envelhecimento, a manutenção do corpo em atividade é fundamental para conservar as funções vitais em bom funcionamento. Em tal sentido, alguns idosos apontam as atividades de subsistência, artesanato e agricultura familiar, como condição indispensável para a manutenção da capacidade funcional. A fala abaixo traduz essa ideia:
Acabei de chegar lá da roça, andei um monte. Fui lá (na roça) buscar taquara para fazer artesanato. A gente tem sempre que andar bastante, se movimentar, porque é tão ruim depender dos outros para tudo. A minha mãe (I8; F82) não pode andar mais, precisa de ajuda pra tomar banho, ir ao banheiro, pegar água. É muito triste ficar assim (I7; F62).
Eu ainda planto um pouco de milho, batata, lá na minha roça e também faço artesanato com a taquara que busco. Tem que fazer essas coisas porque se não fica dependente dos outros (I5; F62).
O envolvimento do idoso nessas atividades ocorre de diferentes formas. Participam da produção do artesanato 26 idosos, desenvolvendo diversas funções, como buscar e preparar a matéria prima à taquara (Bambusa Vulgaris), confeccionar e comercializar as peças. Observamos que toda a família se envolve na confecção, independentemente da idade: as mulheres e crianças se ocupam de cestas e balaios, enquanto os homens trançam chapéus e peneiras.
Desses idosos, nove além de participar da produção do artesanato, também trabalham nas roças familiares, onde o trabalho braçal inclui o preparo da terra, o plantio e a colheita. Na prática da agricultura familiar entre os indígenas, a distribuição das atividades é realizada de acordo com o gênero, sendo de responsabilidade dos homens o preparo da terra e o plantio, e das mulheres a colheita, transporte e o preparo do alimento colhido11. No entanto, alguns idosos apontam dificuldades no cultivo dos alimentos, expressões como "quando não são os bichos que comem tudo a chuva vem e apodrece tudo" foram frequentemente referidas.
É importante ressaltar que os demais idosos, num total de dois, referem não conseguir realizar essas atividades. Nos dois casos o motivo de não participar está relacionado a limitações físicas, auditiva e visual. Uma das idosas necessita de auxílio para deambulação e apresenta déficit auditivo e visual, já a outra idosa é totalmente dependente, apresentando incapacidade de locomoção, cegueira e surdez.
Para buscar a taquara e/ou trabalhar na roça, os idosos relatam caminhar longas distâncias, isso porque a roça de taquara e as roças familiares ficam afastadas da área central da TI. Participar dessas atividades é essencial para manter os idosos fisicamente ativos e independentes. A literatura aponta que realizar atividades manuais, como a confecção do artesanato ou manter atividade laboral, após a aposentadoria, tem efeito protetor da capacidade funcional, por permitir relacionamento com outras pessoas16.
As dificuldades na manutenção das atividades de subsistência, a facilidade de acesso a centros urbanos e o recebimento de salários, ocasionaram mudanças no estilo de vida. Essas mudanças podem refletir na saúde do indígena em dois aspectos: o primeiro relaciona-se à diminuição da atividade física; o segundo ao aumento do poder de compra e consumo de alimentos industrializados7,12.
Em consequência às mudanças no estilo de vida, já citados, os indígenas passaram a consumir maior quantidade de alimentos calóricos, refinados, ricos em açúcar e sal e pouca quantidade de alimentos naturais e ricos em fibras, como frutas, legumes e verduras6, ou seja, os alimentos industrializados passaram a compor a alimentação cotidiana dos indígenas7. Os idosos pesquisados referem consumo desses produtos, como doces, refrigerantes e embutidos. A fala da idosa I5; F62 mostra o consumo de alimentos ricos em carboidratos e gorduras.
Hoje eu fiz carne de porco para o almoço. Fui ontem à venda e comprei a barriga do porco. É bom porque da para fritar e tirar a gordura para por no arroz, no feijão e depois de tirado a gordura salga e defuma na fumaça (I5; F62).
Ontem na janta eu comi arroz, feijão e frango feito na brasa, hoje vai ser virado (feijão e farinha de mandioca) (I23; F75).
A alimentação básica do idoso indígena é composta por fubá, quirera, feijão, carne, em especial o dorso do frango e a carne de porco, mandioca e milho, havendo ainda grande quantidade de gordura devido à banha de porco utilizada para o preparo13, aspecto, também ressaltado entre os Kaingang no Rio Grande do Sul6. Os hábitos alimentares podem influenciar no estado de saúde do idoso indígena em vários aspectos, como no surgimento de doenças crônicas, obesidade, desnutrição.
Esses idosos têm uma alimentação baseada naquilo que é de fácil obtenção ou cultivo, sendo preservada a utilização da gordura de porco como nos tempos dos ancestrais. Nesse contexto, observam-se idosos cuja dieta é potencialmente prejudicial à saúde, resultado de adaptação da cultura às mudanças ocorridas nas últimas décadas17. Com essas informações, o enfermeiro, por meio da consulta de enfermagem, pode acompanhar o estado de saúde desses idosos, de modo observar o estado nutricional e evitar situações de desnutrição, sobrepeso e/ou obesidade.
No decorrer da pesquisa tivemos dificuldades de contato com alguns idosos, por estarem, quase sempre embriagados ou presos devido ao consumo de bebidas alcoólicas. Muitas vezes, para a própria segurança do indígena, o cacique, como autoridade da TI, prende esses indivíduos para evitar acidentes de trânsito, uma vez que a TIF fica próxima a uma rodovia e ser comum a circulação de indígenas embriagados. Em decorrência ao consumo de bebidas alcoólicas é comum ouvir falas de mulheres idosas referindo sofrer violência doméstica.
Quando ele (I6; M68)bebe umas pingas ele fica nervoso. Uma vez ele me bateu e, às vezes, tenho que sair de casa. Eu fico com medo dele. (I5 ;F62).
A manifestação da violência impulsionada pelo consumo do álcool retrata episódios de agressões físicas, quase sempre, contra as mulheres11. A violência conjugal e os atritos constantes entre membros da comunidade por abuso de álcool são frequentemente relatados entre os povos indígenas e descritos como um sério problema social10,11.
No entanto, as agressões são percebidas de maneira diferenciada por este povo, que acredita não ter o direito de intervir no relacionamento de um casal, sendo oferecida ajuda à vítima e punição ao agressor apenas nos casos em que um dos dois se dirija aos lideres da comunidade e solicite providências.Convém ressaltar que os agressores não são apenas os indivíduos do sexo masculino e que entre as situações que desencadearam o fato destacam-se relatos de ciúmes ou constatação de adultério13.
Outro hábito pouco saudável é o tabagismo. Dezessete idosos referem fumar cigarros de palha composto, basicamente, de um punhado de tabaco, envolvido por uma palha de milho. Estudo na comunidade indígena Potiguara mostrou que tanto os jovens como os idosos, alegam que fumam ou já fumaram alguma vez na vida9.
Entre os problemas de saúde relatados pelos idosos, as doenças respiratórias, constituem a principal causa de adoecimento dos idosos Kaingang, podendo estar relacionado a frequente exposição à fumaça dos fogões e fogueiras que os indígenas mantêm em suas casas.
Índio velho gosta de fogo. Essa noite eu coloquei um papelão no chão, joguei um pano por cima e dormi perto do fogo, é mais quentinho. [...] tem cama, tem colchão, mas, é gostoso dormi no chão. É o costume do índio (I15; F61).
A gente tem o costume de cozinhar no fogo feito no chão. Vocês não gostam né! O enfermeiro sempre fala que a fumaça faz mal pra saúde, e que por isso ficamos doentes (I9; M62).
Os idosos reconhecem que permanecer próximos à fumaça é prejudicial à saúde, porém, mesmo cientes dos riscos oferecidos continuam a fazer fogueiras, pois, além de oferecer calor para o ambiente e propiciar a manutenção dos alimentos, possui significados culturais. Para os Kaingang, permanecer ao redor do fogo fortalece o espírito contra doenças. Nessas circunstâncias, a enfermagem orienta sobre as consequências dessa prática, mas considera a relevância cultural desse hábito, a fim de garantir o cuidado com redução de conflitos17.
A literatura mostra que, além das doenças respiratórias, representarem as principais causas de adoecimento entre os povos indígenas4, constituem as principais causas de óbitos entre alguns grupos indígenas, como nas populações indígenas do Mato Grosso do Sul5.
Os comportamentos e estilos de vida influenciam na saúde do idoso, como a alimentação pouco saudável, inatividade física, o uso do fumo e bebidas alcoólicas. Esses fatores de risco modificáveis explicam parcialmente o perfil epidemiológico das doenças crônicas não transmissíveis na população indígena5, como a hipertensão referida por quatro idosos.
A hipertensão, apesar de pouco referida chama atenção, pois indica alteração no perfil epidemiológico, influenciado pelos comportamentos e estilo de vida do idoso Kaingang. Frente a esse cenário os profissionais de saúde, principalmente a equipe de enfermagem, precisam elaborar estratégias de promoção de saúde e prevenção de complicações advindas desta morbidade, incentivar o tratamento medicamentoso, bem como a adoção de hábitos de saúde mais saudáveis.
O acompanhamento periódico do paciente com hipertensão, informando-o acerca da doença e do tratamento por meio de educação em saúde é necessário, pois a adesão ao tratamento é um processo complexo e deve ser constante por necessitar do envolvimento e participação ativa dos pacientes para a prática do autocuidado, para que haja a prevenção de complicações e promoção da saúde18.
Na relação com os serviços de saúde, existem dimensões nas quais os idosos têm a possibilidade de escolher. É frequente que os idosos façam tentativas de atender seus problemas de saúde no contexto familiar antes de procurar o serviço de saúde. Também faz parte de suas prerrogativas decidirem se é uma "doença de branco" ou "doença espiritual" e, neste caso, ainda é possível escolher entre várias agências de cura: os "remédios do mato", rezas do Kuiã, curandeiro Kaingang e a assistência dos profissionais de saúde. É comum procurar os serviços dos curandeiros, embora se trate de uma prática que está perdendo prestígio, devido às fortes críticas que recebem por parte dos "brancos".
O uso de "remédios do mato" está bastante estendido e muito valorizado entre os idosos, sendo que a função que eles cumprem depende das circunstâncias. Pode ser considerada uma alternativa melhor que os remédios industrializados. A fala de I9;M62 é expressiva deste ponto: "Sempre faço remédio com as ervas do mato. Minha mãe me ensinou como fazer. Quando tenho alguma dorzinha, gripe vou no mato pego umas folhas e faço o remédio". Em outras ocasiões, os remédios caseiros são considerados complementares ao tratamento oferecido nos serviços de saúde:
Machuquei o meu braço e fui ao hospital, lá eles cuidaram do machucado e me deram remédio. Eles me deram remédio para tomar e disseram que era para não arruinar o ferimento. Eu tomei o remédio, mas também peguei umas plantas para fazer remédio caseiro para passar no machucado (I5; F62).
Os idosos Kaingang adicionam às suas práticas elementos tradicionais e da modernidade, sem deixar de fazer uso dos ensinamentos de seus ancestrais. Porém, observou-se a diminuição da utilização dos remédios tradicionais, devido à escassez das ervas medicinais, como relata o idoso: "hoje quase não tem mais remédio do mato (I24; M94)".
Com a implantação da Unidade Básica de Saúde na TI e as mudanças no perfil de adoecimento desses indígenas, o uso de medicamentos industrializados oferecidos no serviço de saúde são bastante aceitos pelos idosos.
Quando tenho alguma dor, o corpo ruim eu vou ao postinho para consultar, depois pego o remédio com o enfermeiro. Mas quando precisa fazer algum tratamento tem que ir todos os dias, para poder tomar o remédio (I24; M94).
Esses dias eu pedi para minha filha pegar o remédio para mim. Tinha acabado e o médico disse que eu preciso tomar para não ficar fraca (I11; F63).
A implantação da unidade básica de saúde e a melhoria das ações assistenciais com a criação do subsistema de saúde específico para a população indígena facilitou o acesso aos recursos de saúde, sobretudo, aos tratamentos medicamentosos, cada vez mais frequentes nas comunidades indígenas19.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa possibilitou melhor compreensão sobre a situação de vida e saúde dos idosos Kaingang e pontuar aspectos característicos dessa população. Conhecer sobre o modo de vida dos índios e as representações sobre o processo saúde-doença são pontos essenciais para a prática dos profissionais que atuam na saúde indígena e para a concretização da Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas.
Diante dessa condição de vida e de saúde dos idosos Kaingang, torna-se necessário que a equipe multiprofissional, dentre ela a enfermagem, considerem as especificidades culturais dos indígenas. As abordagens culturais possibilitarão compreender o universo cultural dos índios Kaingang sobre suas práticas relacionadas à saúde, tornando, assim, as intervenções de controle mais eficazes, principalmente, em relação às doenças.
A não utilização de instrumentos para a avaliação da capacidade funcional e detalhamento dos aspectos nutricionais da população estudada foi um fator limitante no estudo. Sendo assim, sugere-se que outras pesquisas devam voltar-se ao estudo da capacidade funcional deste grupo populacional, bem como as condições nutricionais. Faz-se necessária a reprodução deste estudo com os demais grupos étnicos no Brasil, a fim de conhecer as reais condições de vida e saúde que vivem os povos indígenas, levando em considerações suas particularidades culturais.
REFERÊNCIAS