Volume 10, Número 3, Jul/Set - 2006
PESQUISA
Reinserção do trabalhador alcoolista: percepção, limites e possibilidades de intervenção do enfermeiro do trabalho
Reinsertion of the alcoholic worker: perception, limits and possibilities of the labor nurse's intervention
Reinserción del trabajador alcohólico: percepción, límites y posibilidades de intervención del enfermero ocupacional
Marilurde DonatoI; Regina Célia Gollner ZeitouneII
IDoutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ; Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da EEAN/UFRJ.
IIDoutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ; Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da EEAN/UFRJ: membro de Núcleo de Pesquisa Enfermagem e Saúde do Trabalhador (NUPENST).
RESUMO
O estudo de cunho descritivo com abordagem qualitativa teve como objetivos identificar o conhecimento do enfermeiro do trabalho sobre o alcoolismo e o trabalhador alcoolista; descrever e analisar a sua percepção acerca da reinserção deste trabalhador no contexto laboral; e discutir as suas possibilidades e limitações de intervenções em relação a este trabalhador'. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas com roteiro semi-estruturado, realizadas nas empresas onde trabalhavam os 27 sujeitos do estudo. A análise temática das entrevistas permitiu identificar quatro categorias: o alcoolismo como doença; o estigma e o preconceito; a reinserção do trabalhador alcoolista; e possibilidades e limitações das intervenções de enfermagem do trabalho. Verificou-se que o grau de conhecimento do enfermeiro do trabalho influencia na sua percepção acerca do alcoolismo, na possibilidade de reinserção do trabalhador alcoolista, e ainda, nas intervenções destes profissionais.
Palavras-chave: Alcoolismo. Enfermagem do Trabalho. Saúde Pública.
ABSTRACT
This study with a descriptive focus and a qualitative approach aimed at the identification of the labor nurse knowledge about the alcoholism; the description of his perception about his reinsertion on the labor context; the discussion of possibilities and limitations concerning the interventions he could make, analyzing his perception aiming at the reinsertion of this worker to the labor world. The data have been obtained through interviews with a semi-structured script, carried out on the enterprises where the 27 individuals of this study used to work. The analysis of the content has allowed identifying four categories: the alcoholism as a disease; the stigma and the prejudice, the reinsertion of the alcoholist worker and possibilities and limits of the interventions of labor nursing. It has been verified that the degree of knowledge of the labor nurse influences on his perception about alcoholism, on the possibility of reinsertion of the alcoholist worker and, also, on the interventions of these professional individuals.
Keywords: Alcoholism. Labor Nursing. Public Health.
RESUMEN
El estudio de cuño descriptivo y con abordaje cualitativo tuvo como objetivos identificar el conocimiento del enfermero ocupacional sobre el alcoholismo y el trabajador alcoholista; describir su percepción acerca de la reinserción de éste en el contexto laboral; discutir sus posibilidades y limitaciones de intervenciones junto a este trabajador, analizando lo que piensa en cuanto a su posibilidad de reinserción al trabajo. Los datos se han obtenido en entrevistas con rotero semi-estructurado, realizadas en las empresas donde trabajaban los 27 individuos del estudio. El análisis de contenido permitió identificar cuatro categorías: el alcoholismo como enfermedad, el estigma y el prejuicio, la reinserción del trabajador alcoholista, y posibilidades y límites de las intervenciones de la enfermería ocupacional. Se ha verificado que el grado de conocimiento del enfermero ocupacional influencia su percepción sobre el alcoholismo, la posibilidad de reinserción del trabajador alcoholista, y aún, las intervenciones de estos profesionales.
Palabras clave: Alcoholismo. Enfermería Laboral. Salud Pública.
INTRODUÇÃO
Alcoolismo, trabalho e empresa estão imbricados no mesmo problema: o alcoolismo que atinge o trabalhador reflete-se, de imediato, no âmbito de trabalho e culmina em prejuízos para ele e para a empresa. Portanto, deve-se buscar entender cada vez mais as interfaces do alcoolismo cujas graves conseqüências, sem dúvida, em algum momento atingirão todos aqueles que estejam convivendo com o alcoolista seja no âmbito social, familiar ou de trabalho, causando-lhes problemas sérios e/ou irreversíveis.
Inicialmente, muitos trabalhadores bebem apenas para relaxar as `tensões psíquicas' do trabalho, tanto assim que já se tornou comum o encontro com os colegas em algum bar para conversar e beber `socialmente'. Os encontros podem ser esporádicos ou agendados previamente, mas, em geral, ocorrem às sextas-feiras, fim do expediente e da semana de trabalho: é o que se conhece por "happy hour".
Estes encontros tornam-se um hábito nocivo porque, subitamente, muitos dos que dele participam se dão conta de que estão enredados em problemas associados ao alcoolismo. Seja qual for a razão alegada para o beber constante, o fato é que, assim procedendo, todos dão início ao continuum1 a que se refere os estudos sobre o tema, piorando seus males a cada dia até chegar a situações de desemprego, desagregação familiar, intensificação do declínio social, dentre outras, em um quadro agravado por doenças que vão deteriorar ainda mais as suas vidas.
Entretanto, não há, até o momento, comprovação científica da causalidade entre alcoolismo e doença profissional, embora existam fatores que podem contribuir para maior risco, destacando-se: disponibilidade do álcool em certas formas de ocupações; pressão para beber em certas situações sociais; separação da norma social; situações de solidão ou mesmo ausência de suporte sócio-familiar; posições de comando de alto status ou sem chefias; alta ou baixa renda; trabalho exercido sob tensão, estresse ou perigo; profissões que atraem pessoas propensas a se tornarem bebedores excessivos (medicina, marinha mercante, cozinheiros, estivadores, entre outros).2 A tais fatores de risco acrescenta-se o exercício de atividades profissionais desprestigiadas, que sujeitam os trabalhadores a atos ou materiais considerados desagradáveis ou repugnantes, cuja possibilidade de qualificação e ascensão profissional é restrita, gerando situações de sofrimento mental.3 Neste caso, a instalação do alcoolismo decorreria de falhas no mecanismo defensivo individual contra a angústia, o sofrimento e a tensão psíquica no trabalho.4
De acordo com dados divulgados por estudiosos do assunto1, o alcoolismo é o terceiro motivo de ausência ao trabalho e a oitava causa de concessão de auxílio-doença pela Previdência Social no país. Há relato de que os primeiros programas de prevenção do alcoolismo nas empresas surgiram em 1980, com enfoque na doença e encaminhamento do trabalhador para tratamento em clínicas especializadas; e que, a partir de 1985, os programas existentes ampliaram seus objetivos, "não só colocando a questão das outras drogas, como também tratando a dependência química junto com outras prioridades do trabalhador" 6, seguindo orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ocorreram, também, mudanças de enfoque do problema, prevalecendo o conceito de síndrome de dependência alcoólica em detrimento do conceito de doença, sendo que os atendimentos realizados até 1990 não resultaram na publicação de trabalhos científicos, e os poucos dados empíricos divulgados em eventos sobre o tema não chegaram a convencer o público quanto ao real benefício dos programas 6.
A partir de 1992, teve início "o período de reestruturação administrativa das empresas, com os programas de qualidade total e reengenharia e com o aparecimento de trabalhos de avaliação de resultados confiáveis metodologicamente", tornando oportuna a "inserção de programas de dependência química e outros de saúde com os programas de qualidade total", na busca da "melhoria de vida em todos os níveis de cargos com o aprimoramento da experiência pessoal e coletiva"6.
Especificamente no âmbito de trabalho, a nossa percepção e experiência permitem destacar que, apesar de ser um problema disseminado, não tem sido convenientemente enfrentado por muitas empresas, chefias e/ou empregados, que fogem à sua constatação adotando medidas controversas. No caso de trabalhadores de baixa qualificação profissional, via de regra, o assunto é resolvido com a demissão sumária; quanto àqueles de alta capacitação técnica - muitas vezes proprietários, gerentes gerais ou executivos influentes da empresa, ao contrário, passam a ser "protegidos", para evitar repercussões sociais e comerciais negativas.
Portanto, a relação entre consumo abusivo de substâncias psicoativas e trabalho é problemática e vem preocupando empregadores e profissionais que atuam na área da saúde do trabalhador, em particular os enfermeiros do trabalho. Destacamos a importância destes últimos para a reflexão sobre a sua participação efetiva no processo de atenção à saúde do trabalhador alcoolista, significando reconhecer neste profissional a capacidade de ir além das intervenções relacionadas às ações rotineiras de recuperação/reabilitação.
Foram objetivos deste estudo: identificar o conhecimento do enfermeiro do trabalho acerca do alcoolismo e do trabalhador alcoolista; descrever a percepção que tem acerca da reinserção do trabalhador alcoolista no contexto do trabalho e discutir as suas possibilidades e limitações de intervenções em relação a este trabalhador com vistas à reinserção dele no ambiente laboral.
METODOLOGIA
Estudo do tipo descritivo com abordagem qualitativa, optando-se pela análise temática, que resultou na identificação de núcleos temáticos que emergiram das falas dos entrevistados, obtidas a partir de um roteiro semi-estruturado. O cenário foi composto por dez empresas localizadas no Estado do Rio de Janeiro e Grande Rio, tendo como característica serem empresas estatais com grau de risco entre 3 e 4. Os sujeitos do estudo foram 27 (vinte e sete) enfermeiros do trabalho que atuavam em Serviços de Saúde do Trabalhador destas empresas; eles assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram informados da manutenção do total sigilo e anonimato das suas falas. O presente estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos, estando este baseado nas Diretrizes e Normas Brasileiras que regulam as pesquisas envolvendo seres humanos.
RESULTADOS
Percepção dos enfermeiros do trabalho
sobre o alcoolismo e a reinserção
do trabalhador alcoolista
Os depoimentos dos enfermeiros do trabalho revelaram que estes, em sua maioria, percebem o alcoolismo como doença, colocando-o como uma dependência associada à concepção de doença. Tal percepção, a nosso ver, apresenta duas vertentes positivas: a primeira demonstra uma visão correta sobre o que é o alcoolismo, mesmo sem terem embasamento científico adequado (percebido nas entrevistas); a segunda mostra que este conhecimento contribui para que vejam o trabalhador alcoolista como um doente que necessita de tratamento, ajuda e apoio, daí não incluírem esta doença na esfera do distúrbio de comportamento, o que poderia levá-los a rotular o alcoolista como pessoa de mau caráter, sem força de vontade ou fraca.
O alcoolismo desde 1987 vem sendo considerado uma doença por causar no indivíduo danos morais, sociais, políticos, econômicos e/ou espirituais. A importância desta abordagem ganhou reforço após experiência realizada em uma clínica, quando, ao se adotar o conceito de alcoolismo como sintoma, não se conseguiu recuperar nem 5% dos seus pacientes, ao contrário do que ocorreu quando o alcoolismo foi abordado como doença, quando a reabilitação passou para 38% dos pacientes, tendo como parâmetro a abstinência. Em 1999, o conceito de alcoolismo foi ampliado, passando a ser tratado como uma doença complexa e multifacetada.8 A palavra "dependência", quando relacionada ao uso de substâncias psicoativas, significa que o indivíduo pode ser influenciado, estar condicionado a algo ou necessitado de mais alguém.8 Quando consiste numa característica exagerada, tem sido vista como um traço da personalidade do indivíduo9.
Embora se tenha constatado a percepção correta sobre o alcoolismo como doença, e ainda como uma dependência associada à concepção de doença, algumas respostas dos enfermeiros do trabalho acerca do trabalhador alcoolista apontaram para o estigma e o preconceito que permeiam o dia-a-dia do alcoólico, inclusive no contexto laboral. Estes fatores, se não impeditivos, no mínimo são limitantes na relação com o usuário de álcool para a efetivação de ações de enfermagem visando a reinserção do trabalhador alcoolista no contexto laboral, caso estes profissionais não busquem informações e esclarecimentos embasados cientificamente acerca do alcoolismo e dos problemas dele decorrentes.
Entretanto, apesar do preconceito, é possível perceber uma ambigüidade nas falas dos sujeitos, visto que reconhecem a necessidade e a possibilidade de tratamento do indivíduo e, ainda, manifestam o desejo de ajudar o trabalhador dependente do álcool. Apesar da percepção das dificuldades inerentes à implantação e implementação de programas de prevenção, tratamento e reabilitação de alcoolismo no ambiente do trabalho, os enfermeiros trazem à tona o aspecto dialético da questão, manifestando-se de forma positiva a respeito, afirmando a possibilidade de tratamento e reabilitação do trabalhador alcoolista.
Em relação às dificuldades de reinserção do trabalhador no mercado de trabalho, os enfermeiros ressaltaram esta realidade em seus depoimentos, confirmando a existência do preconceito:
(...) chance praticamente zero de ele ser reinserido [...]. A partir do momento em que se detecta que ele é um dependente do álcool, as oportunidades dele são mínimas. (Dep.1)
(...) a reinserção se torna uma coisa muito difícil. É difícil o empregador aceitar tudo isso (...). (Dep.9)
(...) muito difícil, muito complicado. Normalmente, essas pessoas são vistas de uma maneira desacreditada, as pessoas não levam muito a sério ou deixam de acreditar, de confiar nesta pessoa, e isso daí eu acho que é mais um fator de realimentação desse alcoolismo dele (...). (Dep.10)
(...) eu acho muito difícil por causa da discriminação que ele sofre no ambiente de trabalho [...]. Os colegas ficam muito inseguros [...] tem muita discriminação [...]. muita (...).(Dep.14)
(...) é uma pessoa discriminada pelos colegas, é uma pessoa mal vista, indesejada, porque não produz o que deveria produzir. É muito difícil, é complicado porque tem preconceito no ambiente de trabalho.(...) (Dep.20)
Mais do que dificuldades e preconceito, as falas destes enfermeiros evidenciaram mesmo um descrédito quanto à possibilidade de reinserção do alcoolista no ambiente laboral. Somente três entrevistados afirmaram ser possível reinseri-lo:
(...) ele teria condições, mas existe o preconceito, os próprios colegas se afastam porque acham que aquele profissional é um profissional-problema [...], mas a gente vê que tem condições [...] tem como aproveitar, sim. (...) (Dep.11)
(...) é complicado porque os próprios colegas o rotulam. Aos olhos dos colegas, ele é uma pessoa que não tem muito valor, não tem muita credibilidade. (...) (Dep.18)
(...) essa reinserção pode acontecer [...] a valorização do seu trabalho é um estímulo muito grande [...] os colegas têm um papel primordial na recuperação desse trabalhador, porque se eles não discriminam, o alcoolista se sente apoiado (...). (Dep.21)
Na prática, o preconceito só vem contribuir para o afastamento do trabalhador alcoolista do seu ambiente de trabalho, levando-o ao que se chama de "círculo vicioso": o trabalhador alcoolista que não conseguiu permanecer no emprego bebe pela frustração oriunda da perda do trabalho; ao beber (e por fazê-lo), não é contemplado com uma nova chance de trabalho, o que gera novo impulso em direção à bebida. Portanto, "derrubar a muralha das negações e da ignorância" 10 é o primeiro passo a ser dado dentro das empresas no sentido da recuperação do trabalhador alcoolista.
No que se refere ao papel desempenhado pela empresa, é importante assinalar o seguinte: para que qualquer programa de recuperação implantado tenha sucesso, é necessário que o preconceito seja colocado de lado e que todos chefias, colegas e o próprio alcoolista nele se engajem, direta ou indiretamente.
Os programas desenvolvidos podem estar situados entre a terapia psiquiátrica (que oferece cuidado individualizado) e o Programa de Auto-Ajuda dos Alcoólicos Anônimos (baseado na solidariedade grupal e espelhamento na experiência de cada dependente)11. Na última década, os resultados animadores de programas e os índices de recuperação de trabalhadores alcoolistas em qualquer nível hierárquico estão fazendo com que novas empresas procurem o aconselhamento de especialista6. Além do mais, atualmente as empresas têm manifestado interesse no assunto, considerando que há uma tendência, em casos de decisões trabalhistas, de obrigar os empregadores a oferecerem alguma modalidade de tratamento, em vez de simplesmente demitirem o empregado com algum tipo de dependência.10
A recuperação do dependente químico está relacionada não só ao programa terapêutico implantado, como também à atitude do enfermeiro diante das expectativas e do resultado das estratégias desenvolvidas para o atendimento deste tipo de cliente12. Portanto, se o enfermeiro do trabalho tiver uma atitude pessimista e preconceituosa, poderá influenciar negativamente a equipe de saúde, fazendo com que a probabilidade de êxito do programa diminua muito. É preciso ter em mente que o enfermeiro do trabalho constitui-se num importante trunfo na ajuda efetiva ao trabalhador alcoolista, pois é quem passa a maior parte do tempo no serviço médico da empresa, e é também quem ouve as confissões que ele faz sobre os problemas causados pelo álcool, tanto em sua própria casa quanto no seu trabalho. Assim, torna-se de suma importância que este profissional tenha muita convicção e segurança nas suas atitudes perante os trabalhadores alcoolistas, e que demonstre acreditar na recuperação dos mesmos, porque somente desta forma os programas de prevenção e reabilitação poderão ter resultados positivos.13
Quanto à possibilidade de reinserção do trabalhador alcoolista no contexto de trabalho, alguns depoentes afirmaram que:
(...) É possível, totalmente possível, eu acredito de verdade que é possível. E a gente consegue. Nós já vimos alguns casos aqui dentro da empresa, de recuperação total (...). (Dep.4)
(...) acho que esse indivíduo tem condições de sair desta situação [...] ele tem condições de retornar ao trabalho (...). (Dep. 13)
(...) eu acho que esse trabalhador pode se tornar um ótimo funcionário [...] eu acho que é possível esse trabalho de reinserção.(...) (Dep. 18)
(...) pode acontecer. Eu acho que a gente tem que dar outra oportunidade para ele [...] acho que merece crédito, qualquer pessoa merece crédito (...). (Dep. 22)
(...) eu acredito nessa reinserção. É difícil, mas é possível, porque aqui na empresa acontece (...). (Dep.24)
É preciso que fique bem claro que o sucesso do tratamento do trabalhador alcoolista, em grande parte, depende dele, e que a participação do enfermeiro do trabalho, o apoio de familiares, dos amigos e da equipe de trabalho certamente contribuirão decisivamente para o seu retorno à vida social e laboral.
Possibilidades e limites de intervenções
do enfermeiro do trabalho em relação
ao trabalhador alcoolista
Nesta categoria destacaram-se a educação em saúde, referida pelos sujeitos do estudo como uma forma preventiva de intervenção em relação ao trabalhador alcoolista; o apoio e a ajuda a ele dispensados; a existência, nas empresas, de programas de prevenção e tratamento, e a atuação da equipe multiprofissional. As falas a seguir traduzem a percepção dos depoentes acerca da educação em saúde:
(...) a melhor intervenção que o enfermeiro do trabalho pode fazer é prevenção [...] agora, também a educação em saúde é muito importante, porque pode conscientizar o trabalhador alcoolista, os seus supervisores e colegas de trabalho (...). (Dep. 2)
(...) enfermeiros, médicos, auxiliares de enfermagem têm a obrigação de desenvolver campanhas educativas. Primeiramente, você atua no nível primário, que é a educação em saúde (...). (Dep. 13)
(...) eu vejo a promoção da saúde. O enfermeiro do trabalho entraria atuando, promovendo palestras, fazendo educação em saúde [...] e se for tratada com rigor, atingindo todos os níveis de prevenção da saúde, a gente tem uma resposta positiva. (...) (Dep. 14)
(...) acho que poderia começar pela educação em saúde. (Dep. 20)
(...) eu procuraria ajuda, não só no trabalho, mas dentro da família (...) levar ao AA (...). (Dep. 22)
A prevenção do alcoolismo como um problema de Saúde Pública deve começar por uma política pública governamental que envolva campanhas de informação e educação através da mídia e também pela educação escolar, com o objetivo de mudança de atitudes, de comportamento e aquisição de conhecimento acerca do tema, especialmente pelos jovens. Sabe-se que o trabalho de prevenção deve considerar as inter-relações existentes entre "a exposição de risco e a complexa rede de fatores culturais, históricos, sócio-econômicos, políticos e ambientais da população-alvo".14
Como se constata, a educação em saúde foi mencionada como uma das possibilidades de intervenção em relação ao trabalhador alcoolista, principalmente por meio de palestras. Porém, o enfermeiro do trabalho deve pensar em atuar além disto, ou seja, na promoção da saúde deste trabalhador, porque esta consiste nas ações implementadas com o objetivo de transformação de comportamento dos indivíduos, tendo como foco a mudança do seu estilo de vida dentro da família, no ambiente de trabalho e nas "culturas" da sua comunidade, considerados fatores importantes para a prevenção do alcoolismo.15
(...) a primeira intervenção pode ser feita através da CIPA [...] cursos, palestras e seminários sobre o alcoolismo, ou seja, educação em saúde (...). (Dep.3)
(...) outro mecanismo que nós, os enfermeiros do trabalho, podemos utilizar, são os cursos ministrados pela CIPA (...). (Dep.12)
(...) o ponta-pé inicial seriam palestras, divulgação, vídeos [...] educação corpo-a-corpo, distribuição de folhetos educativos (...). (Dep.13)
(...) então, para a pessoa que está doente, a palestra não atinge muito. Eu vejo nas palestras isso [...] você vai fazer uma palestra de alcoolismo, é bom para sensibilizar sobre o problema [...] é para sensibilizar a pessoa que tem o problema em si [...] eu acho a palestra muito importante para sensibilizar (...). (Dep.16)
Quanto ao apoio e ajuda como formas de intervenção em relação ao trabalhador alcoolista, os depoentes assim se manifestaram:
(...) eu acho que a gente tem que apoiar o tempo todo [...] você tem que estar sempre apoiando, orientando para que ele não desista [...] eu preciso ajudá-lo [...] ele está com dificuldade precisa da minha ajuda, então, eu não posso desistir de ajudar (...). (Dep. 4)
(...) deve-se convencê-lo de que ele precisa de uma ajuda (...). (Dep.5)
(...) acho que tem que dar apoio [...] tem que ajudar mesmo (...). (Dep.7)
(...) eu acho que primeiro a gente pode ajudar através da detecção do problema, trazer esse trabalhador para a gente, para o nosso serviço, conhecê-lo, ter uma ligação com ele, para que a gente possa ajudá-lo, encaminhá-lo para o programa de dependência química e acompanhá-lo. (...) (Dep.9)
(...) eu acho que precisa de carinho, amor e paciência [...] não pode discriminar. Ele precisa de apoio, conversa [...] você tem como orientar [...] e querer saber se ele quer ajuda (...). (Dep.27)
Há diversas formas de prestar ajuda e apoio ao trabalhador alcoolista, mas o enfermeiro do trabalho deverá oferecer-lhe sempre atenção e segurança, procurando deixá-lo à vontade. Assim, se o trabalhador alcoolizado for atendido no Serviço de Saúde do Trabalhador da empresa, caberá ao enfermeiro:
- realizar os procedimentos habituais para retirá-lo da embriaguez aguda;
- tentar apoiá-lo, aconselhando-o e esclarecendo-o quanto aos malefícios de tal comportamento, logo após a realização dos procedimentos acima;
- manter uma conduta de maneira que, em hipótese alguma, faça comentários preconceituosos ou discriminatórios, pois tal comportamento pode levar o trabalhador alcoolista ao consumo de quantidades maiores de álcool diante do sentimento de culpa pela própria dependência.
Outra forma de ajuda é a abordagem ao trabalhador alcoolista para conversar sobre a doença, aproveitando-se de ocasiões como a sua vinda ao serviço médico; visitas ao seu local de trabalho; na consulta de enfermagem do exame de saúde periódico; ou mesmo quando o empregado for convocado especificamente para esta abordagem.
Se o trabalhador estiver alcoolizado no ambiente de trabalho, o enfermeiro deve agir discretamente, removendo-o da área de trabalho para o serviço médico, procurando evitar quaisquer comentários, inclusive dos colegas presentes; deve encaminhá-lo para tratamento da embriaguez e depois sugerir-lhe alguma forma de tratamento.
Quanto à prevenção e tratamento do alcoolismo, os depoentes mencionaram que programas específicos para este fim são fundamentais na recuperação do trabalhador alcoolista com vistas à sua reinserção no mercado de trabalho; e também por permitirem a participação efetiva do enfermeiro no processo de recuperação. Seus depoimentos enfatizaram esta participação e a forma de fazê-lo:
(...) o enfermeiro do trabalho tem condições de intervir trabalhando nos programas de prevenção do alcoolismo (...). (Dep.1)
(...) acho que o principal seria começar a fazer ele aceitar um tratamento, fazer uma desintoxicação, aceitar realmente o tratamento e, se for o caso, fazer uma reabilitação profissional.(...). (Dep. 8)
(...) implantar programa de prevenção e reabilitação que o enfermeiro pode participar (...). (Dep.12)
(...) você vai mantê-lo dentro de um programa até reabilitá-lo [...] o enfermeiro tem capacidade de criar desde programas pequenininhos até programas maiores, chegando até a internação e depois buscar uma reabilitação [...] você pode trabalhar na prevenção, no tratamento, na reabilitação, nos programas (..). (Dep.23)
(...) é claro que o programa de prevenção ao alcoolismo é o primeiro (...). (Dep. 25)
A implantação do programa de prevenção e reabilitação do alcoolismo é um dos mais eficazes meios de controle da doença.6,10 O sucesso de tais programas deve-se mesmo ao fato de que estejam sendo implantados como medida de prevenção e tratamento precoce do alcoolismo10,16. Portanto, este clima de aceitação e entendimento por parte dos respondentes demonstra que "as muralhas da negação e da ignorância já estão quebradas".10 Por outro lado, vale ressaltar que as taxas de recuperação dos trabalhadores alcoolistas inscritos em programas de prevenção e reabilitação oscilam entre 60 e 80%, enquanto nas clínicas especializadas não ultrapassa os 45%. Isto se deve à pressão exercida pela empresa no sentido de motivar o trabalhador à realização do tratamento.1,6,11, 17 A consulta de enfermagem foi enfocada por alguns entrevistados como uma relevante atividade de intervenção em relação ao alcoolista, com vistas à sua reabilitação e reinserção no contexto de trabalho:
(...) é identificar numa entrevista, durante uma consulta para ver a pressão, tentar identificar e abordar no sentido de encorajar (...). (Dep.6)
(...) eu acredito na consulta de enfermagem. Com certeza, a consulta de enfermagem é viável (...). (Dep. 10)
(...) realizar uma consulta de enfermagem, conversar muito com ele e com os familiares (...). (Dep.11)
(...) realizar a consulta de enfermagem também é possível. (Dep.21)
A consulta de enfermagem é uma atividade ampla; e a ação do enfermeiro não se resume à prestação de cuidados, mas busca relacionar a observação dos aspectos biopsicossociais da pessoa com o seu próprio modo de estar situado no mundo. Tem como fundamental requisito a integração do enfermeiro com o cliente, o que exige do profissional não só uma bagagem de conhecimentos científicos, como também percepção e senso crítico, permitindo um cuidar globalizado do indivíduo.
Para aqueles já diagnosticados como alcoolistas, a consulta de enfermagem constitui-se numa estratégia para a manutenção da sobriedade ou prevenção da recaída dos mesmos, tornando-se um momento de reforço de todos os passos para manutenção do afastamento da bebida. É uma intervenção de muita relevância também na reabilitação do trabalhador alcoolista, por constituir-se numa oportunidade para monitorar as seqüelas ocasionadas pelo alcoolismo e auxiliar na melhoria da sua qualidade de vida. Pela experiência prática, a periodicidade ideal da consulta de enfermagem ao trabalhador alcoolista deve ser mensal, visando à manutenção da sua sobriedade; porém, o enfermeiro deve estar sempre disponível a ouvir o empregado com o intuito de dar-lhe suporte em qualquer momento, durante e mesmo após a fase de reabilitação.
Dois enfermeiros do trabalho também enfatizaram a importância da atuação da equipe multiprofissional no processo de intervenção em relação ao alcoolista:
(...) Eu acho que sozinho é um pouco mais difícil [...] vou precisar de outros colegas, vou precisar da assistente social, do médico, do psicólogo (...). (Dep. 15)
(...) sozinho você não consegue fazer nada, tem que ser uma equipe multiprofissional, um psicólogo, uma assistente social (...). (Dep.26)
Estes pronunciamentos encontram apoio na literatura científica que diz que o tratamento do alcoolismo deve ser feito essencialmente por uma equipe multidisciplinar, corroborando o pensamento de estudiosos do assunto quanto à importância da abordagem multifatorial do problema na questão do tratamento e da recuperação dos clientes alcoolistas.9,13 Um dos resultados mais significativos dos estudos já realizados sobre o tema foi a importância da abordagem multifatorial do problema visando a recuperação dos clientes alcoolistas.9,13
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abordar as questões relacionadas ao alcoolismo tem sido tarefa árdua para todos os que se interessam pelo tema. Trata-se de assunto altamente complexo que se apresenta sob variados prismas, ensejando reações contraditórias das pessoas direta ou indiretamente afetadas pelo problema do beber abusivo. Ficou evidenciado que os enfermeiros do trabalho entrevistados dispõem de pouco conhecimento acerca dos problemas relacionados ao uso abusivo de álcool e de suas nefastas conseqüências para o trabalhador alcoolista. Muitos identificaram o alcoolismo não como um vício, mas como uma doença passível de tratamento, ainda que demorado, cujo resultado favorável depende quase que exclusivamente do desejo de reabilitação do próprio alcoolista.
A percepção do alcoolismo como doença ratifica os resultados da literatura científica e ressalta o aspecto dialético da questão, considerando os depoimentos entremeados de dúvidas e de preconceitos. Levando em consideração estas percepções, as universidades poderiam enfatizar o tema na graduação e na pós-graduação, além de atualizar o acervo bibliográfico a respeito, e incentivar o desenvolvimento de projetos de extensão e pesquisa sobre alcoolismo que realmente apresentem impacto social.
Outro grande problema do alcoolismo é a negação, que ocorre em todos os níveis sociais e se manifesta pela aparente falta de compromisso das autoridades governamentais, visto que os dispositivos legais que regem a matéria são ineficazes em coibir o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, especialmente entre os mais jovens, altamente vulneráveis aos apelos das propagandas de bebidas veiculadas na mídia.
É óbvio que problemas de saúde que impeçam o exercício pleno da vida laboral de um indivíduo causarão prejuízos diversos que atingirão o próprio trabalhador, as empresas, os cofres públicos e a sociedade, revelando sua gravidade no quadro da saúde pública, onde o alcoolismo está inserido. Portanto, a nosso ver, tornam-se necessárias medidas como a implantação e/ou implementação de políticas públicas; a extensão aos Centros Médicos Sanitários (CMS) do atendimento do trabalhador alcoolista; e a elaboração de campanhas educativas permanentes e direcionadas para a população em geral.
Quanto à reinserção do alcoolista no trabalho, os depoimentos revelaram a crença de que é possível, embora possa ocorrer com certa dificuldade em decorrência da postura preconceituosa de colegas e supervisores. É quando, segundo os entrevistados, a desconfiança e o descrédito tornam-se evidentes, gerando um clima de dúvida quanto à capacidade de atuação do alcoolista e medo do que possa ocorrer no ambiente laboral, sendo esta insegurança um agravante para a manutenção do seu emprego ou posterior reinserção no trabalho. Na opinião dos entrevistados, a reinserção seria possível apenas para o alcoolista que se submeteu ao tratamento da doença e está em abstinência. Mesmo assim, não seria um processo simples; ao contrário, demandaria interesse do próprio alcoolista, ajuda irrestrita e constante de todos: família, amigos e colegas de trabalho, além do envolvimento direto do enfermeiro do trabalho que o atendesse no âmbito laboral.
No que diz respeito às intervenções de enfermagem, os depoimentos evidenciaram o seguinte: para que os trabalhadores alcoolistas sejam percebidos como integrantes de um processo de totalização, são essenciais as providências como realização de palestras de esclarecimento sobre temas relacionados com o uso abusivo de álcool; educação em saúde como medida preventiva para o alcoolismo; maior engajamento nos programas de prevenção, tratamento e reabilitação de alcoolistas nas empresas; e orientação à saúde através da consulta de enfermagem, sendo esta última uma das mais importantes por ser uma atividade precípua do enfermeiro, permitindo-lhe abordar cuidadosamente os aspectos mais relevantes da doença.
Tendo em vista as possibilidades e os limites da reinserção do trabalhador alcoolista percebidos pelos enfermeiros do trabalho, caberia às empresas a promoção de eventos de ampla divulgação e discussão direcionados a trabalhadores alcoolistas de qualquer nível hierárquico; a criação de meios de comunicação que divulguem informações acerca do uso, abuso e dependência do álcool; a implantação de Programas de Prevenção, Tratamento e Reabilitação visando à manutenção do seu emprego e/ou a sua reinserção no contexto laboral; a realização de cursos específicos sobre alcoolismo no trabalho; a concessão de meios e condições de atualização profissional ao enfermeiro do trabalho; a implementação de triagem para a detecção de trabalhadores alcoolistas no atendimento às urgências e emergências no âmbito laboral; e, finalmente, a efetiva implantação da consulta de enfermagem ao trabalhador alcoolista em seus Programas de Controle Médico e de Saúde Ocupacional13,16.
Referências
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Recebido em 12/07/2006
Reapresentado em 30/10/2006
Aprovado em 20/11/2006