Volume 19, Número 2, Abr/Jun - 2015
PESQUISA
Trabalho de enfermagem em unidade de terapia intensiva e
sua interface com a sistematização da assistência
Rodrigo Massaroli
1
Jussara Gue Martini
2
Aline Massaroli
2
Daniele Delacanal Lazzari
2
Saionara Nunes de Oliveira
2
Bruna Pedroso Canever
2
1 Hospital Santa Catarina de Blumenau. Blumenau - SC, Brasil
2 Universidade Federal em Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
Recebido em 10/06/2014
Aprovado em 14/04/2015
Autor correspondente:
Aline Massaroli
E-mail:
alinemassaroli@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender as vivências de enfermeiros de uma unidade terapia intensiva adulto no
desenvolvimento da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE).
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, do tipo participante, que utilizou o Itinerário de Pesquisa
de Paulo Freire, com nove enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva adulto
de um hospital do Sul do Brasil. Para coleta e análise dos dados foram realizados
três Círculos de Cultura, seguindo as etapas de investigação dos temas geradores,
codificação e decodificação, e desvelamento crítico.
RESULTADOS:
Os enfermeiros reconheceram que possuíam conhecimento limitado acerca da clínica
do paciente e da SAE, ainda valorizavam o desenvolvimento de procedimentos
técnicos, manipulação do aparato tecnológico, por se sentirem reconhecidos pela
equipe de saúde.
CONCLUSÃO:
Como possibilidade de mudança, os enfermeiros se organizaram para iniciar grupos
de discussões sobre casos clínicos e SAE, vislumbrando fortalecimento do
conhecimento e valorização frente à equipe de saúde.
Palavras-chave: Enfermagem; Terapia Intensiva; Cuidados de Enfermagem; Processos de Enfermagem.
INTRODUÇÃO
O trabalho da enfermagem na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é complexo e, como tal, comporta inúmeras necessidades para o desenvolvimento do cuidado. A dinâmica entre os profissionais, a condição crítica dos pacientes e a utilização de inúmeras tecnologias demandam da enfermagem conhecimentos de ordens diversas, potencializando a assistência prestada e maximizando processos efetivos de trabalho e cuidado.
Situando-se a UTI no nível mais complexo da hierarquia dos serviços hospitalares, apresenta a necessidade de organização e estruturação da assistência de enfermagem, de maneira a contribuir positivamente para a qualidade das ações e segurança do paciente e da equipe multiprofissional1.
Nesse contexto, a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) constitui-se como uma estrutura conceitual sólida que promove a continuidade do cuidado e qualidade da assistência de enfermagem. A SAE é um conjunto de atividades que tem por finalidade profissionalizar a assistência ao paciente por meio de instrumentos de trabalho que auxiliem na tomada de decisão para execução de cuidado científico, holístico e constante. O Processo de Enfermagem (PE) é um método de trabalho exigido como parte fundamental para a realização da SAE2.
A Resolução do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) nº 358/20093, que versa sobre a Sistematização da Assistência de Enfermagem e sua implementação, definiu que o PE deve ser dividido em cinco etapas: Histórico de enfermagem, Diagnóstico de enfermagem, Planejamento de enfermagem, Implementação e Avaliação de enfermagem. Essas etapas, inter-relacionadas e não sequenciais oportunizam a organização das ações de enfermagem, na medida em que vão gerando registros e possibilidades de acompanhamento contínuo por parte de todos os profissionais acerca dos sinais e sintomas do paciente, sua evolução e prognóstico.
A organização e a utilização da SAE exigem inúmeros conhecimentos dos profissionais que a desenvolvem. A responsabilidade sobre esses conhecimentos deve ser compartilhada entre a equipe de enfermagem e a instituição, aliada aos processos de educação permanente em serviço4.
Entretanto, mesmo com a exigência legal e com diversas possibilidades de benefícios por meio da SAE, há grande dificuldade no cotidiano dos profissionais de enfermagem em desenvolvê-la, tendo como justificativa fatores tais como o número reduzido de profissionais; tempo excessivo despendido com os registros, conflitos de papéis entre as atividades assistenciais e burocráticas dos enfermeiros, pouco apoio por parte da instituição; a abordagem superficial que é dada ao assunto durante a graduação, entre outras5.
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi compreender as vivências de um grupo de enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva adulto no desenvolvimento da Sistematização da Assistência de Enfermagem. Essa compreensão é necessária, pois contribui para que outros enfermeiros possam vislumbrar diferentes possibilidades de sistematização, agregando qualidade à prática assistencial e fortalecendo a profissão.
MÉTODO
Estudo de natureza qualitativa, do tipo pesquisa participante, desenvolvida por meio do Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire. O Itinerário de Pesquisa apresentou-se como uma potencialidade metodológica para este estudo por prever uma relação dialógica entre os envolvidos, pesquisador e sujeitos da pesquisa, desvelando "a realidade social, o que está oculto, permitindo que as reflexões dos participantes os levem a novas propostas de ação sobre o cotidiano de promoção da saúde"6:3554.
Esta pesquisa foi desenvolvida, em uma UTI adulto de um hospital de referência do Sul do Brasil, com 20 leitos de internação. Como sujeitos do estudo foram convidados os enfermeiros que atuavam nesta UTI; como critérios de inclusão foram considerados os seguintes: ter graduação em enfermagem, pertencer ao quadro de enfermeiros desta UTI, sem restrição para tempo de graduação ou atuação na área da saúde ou em terapia intensiva. Como critérios de exclusão: estar cumprindo o período de experiência admissional.
No momento da coleta de dados a unidade contava com nove enfermeiros na escala de profissionais e não havia enfermeiro em período de experiência admissional. Os nove enfermeiros que constavam na escala da unidade foram convidados e aceitaram participar voluntariamente da pesquisa, pois atendiam aos critérios de inclusão e exclusão. Assim, a coleta de dados deste estudo contou com a participação de nove enfermeiros.
A coleta de dados foi desenvolvida por meio do Círculo de Cultura, que é uma construção de Paulo Freire para operacionalização do Itinerário de Pesquisa. O Círculo de Cultura é um espaço onde se reúnem todos os participantes, tendo como elemento principal o diálogo como motivador da ação e reflexão em torno de situações existenciais, abordando temas importantes de seu cotidiano7.
O Círculo de Cultura contempla as etapas de: Investigação dos temas geradores, Codificação e Decodificação e Desvelamento Crítico. Na Investigação dos temas geradores, se desenvolvem o processo de reflexão acerca de uma situação e a determinação de palavras ou termos levantados pelos participantes que representem a situação problema6,7.
Em seguida, acontecem a Codificação e Decodificação, onde se busca compreender o significado dos temas geradores para o grupo de participantes, bem como a ampliação do conhecimento acerca destes, chegando à tomada de consciência. O Desvelamento Crítico é a análise preliminar dos conteúdos extraídos, incluindo a subjetividade interpretativa, construindo novas possibilidades para a transformação da realidade6.
A entrada em campo do pesquisador e o recrutamento dos participantes se deram na reunião mensal dos enfermeiros da unidade, quando foram apresentados os objetivos e o método da pesquisa, agendando a data para o primeiro Círculo de Cultura. Foram desenvolvidos três Círculos de Cultura com os participantes no período de novembro de 2011 a janeiro de 2012, com duração de aproximadamente noventa minutos cada.
No primeiro Círculo de Cultura ocorreu à sensibilização dos enfermeiros para participarem desta pesquisa e, na sequência, os enfermeiros assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e autorizaram a gravação em áudio dos encontros.
Nesse momento os participantes foram estimulados por meio de questionamentos a refletir sobre a realidade vivenciada, realizando o levantamento dos temas geradores, que foram assim sintetizados pelo grupo: o enfermeiro da UTI possui pouca experiência assistencial na área de terapia intensiva, limitando o desenvolvimento da SAE; e o enfermeiro da UTI identifica-se muito com as questões entendidas como técnicas.
No segundo Círculo de Cultura, houve a codificação e a decodificação dos temas geradores identificados no primeiro momento. Os dados sintetizados do primeiro encontro foram apresentados ao grupo através de cartazes para estimular a reflexão sobre os temas geradores, identificando as possíveis causas de cada situação limite e o impacto causado na prática assistencial. Os participantes trouxeram ainda novas informações, leis e literatura científica, que julgaram importantes para análise dos temas geradores.
Nesse encontro, os participantes foram convidados a descrever em um painel as atividades realizadas durante o dia de trabalho e, nesse instante, começaram a visualizar com mais clareza o impacto que os temas geradores definidos, previamente, causavam nas suas atividades diárias.
Ao realizar a descrição dos aspectos vivenciados, os participantes deram início a um processo de tomada de consciência, com um olhar crítico sobre os aspectos considerados limitadores para o desenvolvimento da SAE.
O terceiro Círculo de Cultura aconteceu na medida em que os participantes retomaram o caminho percorrido nos encontros anteriores e, a partir da tomada de consciência e análise dos pontos evidenciados sobre a realidade, começaram a surgir oportunidades de mudança.
Dialogando sobre os temas geradores os participantes conseguiram, de modo crítico, dividir as responsabilidades e propor ações para a transformação da realidade. Este processo dialógico e reflexivo possibilitou o desvelar as principais limitações e as perspectivas dos enfermeiros em relação à SAE.
A análise qualitativa dos dados ocorreu de modo simultâneo à coleta com a participação de todos os sujeitos, através da leitura minuciosa do material compilado e sistematizado, em forma de quadros, a partir da construção ocorrida em cada Círculo de Cultura, da reflexão e interpretação dos temas destacados, sendo estabelecidas coletivamente metas para mudança de uma realidade. Posteriormente, o pesquisador desenvolveu o processo final de análise com a discussão teórica e, diálogo, com outros autores que abordam esses temas.
Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da UFSC, observando aos critérios da Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 196 de 19968. A identidade dos participantes foi protegida pelo uso de pseudônimos. É importante informar que durante o ano de 2011 o CEPSH da UFSC esteve paralisado por alguns meses, sendo assim, o projeto desta pesquisa foi analisado antes da paralização, tendo ficado pendente a autorização do serviço onde se realizaria a coleta de dados, pois o documento estava sem o timbre da instituição. Por decisão do colegiado do Curso de Pós-Graduação em Enfermagem da referida universidade, os projetos com pendências de ordem burocrática foram autorizados a realizar a coleta de dados visando manter os prazos de defesa das teses e dissertações, sendo este aprovado no CEPSH/UFSC, Processo nº 2459 FR 439609 em 09 de abril de 2012.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Do total de nove participantes deste estudo, 67% eram do sexo masculino e 33%, do sexo feminino. Este dado contraria a maioria dos locais de trabalho, onde, geralmente, prevalece a atuação do sexo feminino, por ter relação com as características da profissão enfermeiro e da categoria profissional da enfermagem, que é exercida predominantemente por mulheres, sofrendo ainda na atualidade os reflexos do contexto histórico da profissão9.
Quanto à idade dos participantes, destaca-se que eram pessoas com idade predominante entre 25 e 30 anos (67%), 22% possuíam entre 31 e 35 anos, e 11% tinham idade inferior a 25 anos. Este dado se relaciona diretamente com o tempo de formação profissional, onde se verificou que 44% dos profissionais atuantes possuíam tempo de graduação entre 1 e 2 anos de formados. O mesmo percentual de 44% foi constituído por profissionais com 5 ou 6 anos de formação, e 11% dos participantes possuíam tempo de formação superior a 10 anos.
Essas características dos participantes do estudo se mostraram relevantes para o grupo ainda no início das discussões, pois foram consideradas como um limitador para o desenvolvimento da SAE, visto que a pouca experiência na terapia intensiva muitas vezes dificulta a tomada de decisões, por falta de conhecimento prático. A Figura 1 apresenta os dados referentes a este tema gerador.
A implantação total ou parcial da SAE não tem representação em uma grande parcela das instituições de saúde no Brasil, não apenas pelas inúmeras dificuldades por parte das instituições de saúde, como o número reduzido de profissionais, mas também pelo desinteresse profissional, incipiência de conhecimentos sobre a SAE ou mesmo clínicos, carência de força de trabalho, dificuldades de aceitação por parte dos demais membros da equipe multiprofissional, além de certa resistência às mudanças10.
Os enfermeiros apontaram as dificuldades concernentes aos seus processos de formação, em virtude de não possuírem os conhecimentos, habilidades e competências que julgavam necessárias para a atuação na terapia intensiva. Relataram compreender que a aquisição de parte deste conhecimento se dá no cotidiano de trabalho, por meio de atividades diárias.
Dentre os principais fatores que dificultam a implantação da SAE estão a falta de conhecimentos, principalmente, aqueles relativos à etapa do exame físico, ausência de oferta de capacitações pelas instituições de saúde, registros inadequados, conflitos de papéis, falta de credibilidade com as prescrições de enfermagem (por parte da equipe de enfermagem e de outros profissionais) e falta de estabelecimento de prioridades organizacionais10.
Nas falas dos enfermeiros participantes, a pouca experiência no setor acabava por limitar, inclusive, a habilidade para discussão junto à equipe multiprofissional, gerando, por vezes, sentimentos de medo e insegurança no cotidiano de trabalho. Tais situações relacionadas ao referido conhecimento insuficiente dificultam o desenvolvimento de atividades como a SAE, pois o grupo considerava que a sua não adequação à realidade ou a utilização de estratégias desse tipo com pouca propriedade oferecem grande risco de exposição profissional negativa, gerando lacunas no processo de cuidado.
Nesse sentido, o enfermeiro imerso no seu campo de trabalho e consciente da sua real necessidade precisa de momentos de diálogo e troca de experiências, bem como atualizações na área; essa insegurança deve tornar-se uma mola propulsora de conhecimentos, implicando no compromisso verdadeiro e transformação da assistência em saúde, visto que sem o diálogo e a troca é impossível ter uma práxis autêntica7.
A responsabilidade para a situação em tela recai, sob a ótica dos participantes desta pesquisa, em parte, nos critérios de seleção para admissão de enfermeiros de terapia intensiva, que, não raras vezes, desconsideram a necessidade de um perfil específico, com experiência profissional na área e formação em nível de especialização2,10.
Há exigências relativas à capacidade de avaliação criteriosa, além de habilidades e competências para a realização do histórico de enfermagem, em que o raciocínio clínico deve estar presente em todas as ações, abarcando desde o diagnóstico de um fenômeno, a escolha das intervenções e avaliação dos resultados2,10.
Outro aspecto salientado pelos participantes recaiu sobre a experiência de atuar em terapia intensiva sem qualquer contato prévio em outros setores hospitalares, cujo ideário centrava-se na possibilidade de uma adaptação potencializada, caso fosse possível desenvolver cuidados em unidades de diferentes níveis de complexidade (média ou baixa), antes de assumirem suas funções na UTI.
Como possibilidade de mudança da realidade local, os participantes deram sugestões acerca do investimento em programas de desenvolvimento profissional, onde teriam oportunidade de refletir, trocar experiências e, possivelmente, melhorar condutas frente às situações vividas. Ademais, medidas de educação que visem conscientizar enfermeiros acabam por favorecer a segurança do paciente e possibilitar melhorias da assistência de enfermagem prestada11.
Na medida em que o diálogo foi se desenvolvendo, os enfermeiros refletiram sobre a responsabilidade de cada um no processo de construção do conhecimento, pois durante a formação acadêmica há o desenvolvimento de competências generalistas, fato que torna necessária a busca por conhecimentos específicos para ás áreas de atuação, tão logo se inicia a vida profissional.
Durante a troca de experiências, a dificuldade de tomada de decisão foi apontada como nó crítico para todos os participantes. Estes citaram que identificar situações problemas no cotidiano é uma habilidade que o enfermeiro desenvolve com mais facilidade, porém decidir sobre as ações necessárias para resolução destas situações exige um amplo conhecimento técnico-científico, além de vivência profissional.
Nesse momento, a SAE surgiu como possibilidade de minimizar essa limitação, pois possibilita uma organização das atividades cotidianas e favorece a identificação de ações resolutivas durante o processo de tomada de decisão.
Ao encontro dessa afirmação, pesquisa desenvolvida recentemente com enfermeiros observou que há propensão, por parte dos mesmos, em reforçar situações nas quais as decisões tomadas não atendem às necessidades assistenciais e admitem sentimento de culpa ao tentar articular e atender às demandas institucionais com aquelas que consideram essenciais para a efetivação do cuidado12.
Tendo consciência da dificuldade no processo de tomada de decisão pautado na SAE, passou a ser discutida a dificuldade de valorização do enfermeiro pela equipe multiprofissional, salientando o fato de que, por vezes, o enfermeiro apresenta dificuldades na compreensão e utilização de seus instrumentos de trabalho, contribuindo negativamente para sua imagem profissional e valorização pelos demais profissionais da equipe.
Dessa forma, as dificuldades atribuídas à inexperiência profissional ou, especificamente, à assistência de enfermagem nos cuidados críticos, constituem-se não apenas em obstáculos para a utilização da SAE, mas também interferem negativamente na efetivação de outros processos, tais como a tomada de decisão ou a articulação do conhecimento necessário para o cuidado de enfermagem e seu relacionamento com a equipe multiprofissional.
A rotina diária da UTI é pautada em inúmeras questões técnicas, exigindo competências e habilidades profissionais específicas. O enfermeiro é responsável, junto com os demais membros da equipe de enfermagem, pela maioria dessas ações de cuidados contínuos aos pacientes. Esta característica própria da profissão de desempenhar múltiplas tarefas (assistenciais, administrativas e de ensino da equipe de enfermagem) contribui para que a SAE seja compreendida como um processo burocrático.
Há fortemente presente uma dicotomização entre a assistência e registro. Este fato é decisivo para que o profissional tenha dificuldade em compreender a sistematização como estratégia relevante para o cuidado de maneira conjunta com as questões práticas/técnicas propriamente ditas. A Figura 2 apresenta o segundo tema gerador que surgiu no debate entre os participantes: que o enfermeiro da UTI identifica-se mais com as questões entendidas como técnicas.
No dia a dia da UTI, o enfermeiro depara-se constantemente com a criticidade do estado de saúde dos pacientes que se encontram no limiar entre a vida e a morte, sendo necessário o frequente desenvolvimento de procedimentos técnicos de alta complexidade, para manter a vida do paciente que está sob seus cuidados13.
Sendo essa uma unidade do hospital que exige agilidade do profissional em tomar decisões e implementar as ações, havia uma percepção do grupo de que as atividades práticas são as de maior relevância, abstendo-se de realizar a SAE, bem como o planejamento do cuidado que será desenvolvido, deixando muitas vezes de fundamentar com base científica ações e cuidados que desenvolviam e aqueles que também poderiam ser desenvolvidos e gerar melhor e maior impacto na saúde do paciente assistido.
O domínio de aparelhos eletrônicos e tecnologias utilizadas como contribuintes no processo de recuperação do paciente também foi um fator citado pelo grupo como algo que os motivava em relação às demais áreas assistenciais. Este ponto também contribuiu para a percepção de que desempenhar atividades entendidas como técnicas, se sobrepõe até mesmo ao planejamento do cuidado.
A visão tecnicista afasta o profissional da realidade, enfocando apenas os aspectos biológicos e técnicos da assistência à saúde. Assim sendo, os cuidados realizados pelos profissionais da saúde muitas vezes são desenvolvidos de forma mecânica, norteados por tarefas, seguindo rigidamente normas e prescrições. É fundamental a reflexão sobre essas ações no sentido de ultrapassar a prática centrada na habilidade técnica, e isso torna-se possível no encontro com outro, onde as ações são reconhecidas e humanizadas, gerando o processo de ação e reflexão e potencializando as oportunidades de adquirir novos conhecimentos7.
Destaca-se que, muitas vezes, o cuidado de enfermagem em terapia intensiva transcorre perpassando pela tríade: técnica, tecnologia e humanização, pois todos esses aspectos são essenciais e, em muitos momentos vitais, para manter as necessidades básicas do paciente13. Assim, esta área não deve ser considerada menos humana do que as demais que demandam menor aparato tecnológico e procedimentos técnicos, mas deve ser compreendida em sua singularidade, aprofundando a reflexão acerca do cuidado direto prestado ao paciente e do cuidado prestado por meio de recursos tecnológicos14,15.
O enfermeiro dentro da UTI tem diversas funções, que permeiam a coordenação clínica e funcional da unidade, a educação junto à equipe de enfermagem e também voltada para o paciente e seu familiar. Destaca-se, ainda, a função de articular os diversos profissionais envolvidos na assistência a um paciente e, também, articular as informações acerca deste, englobando nesse processo inclusive os setores administrativos do hospital que se preocupam com a conta hospitalar e com os fins financeiros da instituição16.
Dentre as funções que os enfermeiros desenvolvem com maior frequência, despendendo mais tempo de trabalho, sobressaem a supervisão, a coordenação e o cuidado técnico especializado16, que converge com os sentimentos apontados pelos participantes desta pesquisa ao se sentirem mais valorizados e reconhecidos pelos demais membros da equipe quando desempenham funções e atividades que demonstram o seu domínio sobre o funcionamento geral da unidade e do cuidado e, também, sobre os procedimentos de técnicas complexas e especializadas, incluindo o domínio da tecnologia envolvida.
Durante o processo de diálogo estabelecido entre os membros no Círculo de Cultura, um dos participantes questionou sobre o que os demais compreendiam por atividade burocrática e técnicas assistenciais. A reflexão realizada gerou consenso entre os participantes de que as atividades burocráticas ou administrativas englobam aquelas consideradas funções pertinentes ao controle da equipe e registros das informações no prontuário do paciente. A não documentação deste processo foi alvo de crítica durante o diálogo do grupo, pois a falta de registros assistenciais foi denominada como algo que compromete a constatação da assistência de enfermagem.
Nesse momento, foi sugerido retomar o conceito de SAE, visto durante a leitura e análise da Resolução COFEN 358/20093, que prevê o registro de todas as atividades de cuidado realizadas. A partir deste momento do diálogo houve o consenso de que o registro das atividades executadas é o fim do processo de cuidado ao paciente e faz parte da assistência, consenso diferente do inicial, em que consideravam registros como algo burocrático e desvinculado da prática.
Consequentemente veio a tomada de consciência do grupo de que o desenvolvimento da SAE compreende o início e o fim de todas as atividades assistenciais realizadas pelos enfermeiros, com cada etapa representando momentos distintos, porém interligados. A SAE foi entendida então como uma atividade que deve fazer parte do cotidiano do profissional enfermeiro para o planejamento do cuidado a ser realizado com qualidade, auxiliando no processo de tomada de decisão com base científica.
Dessa forma, a SAE contempla um cuidado holístico ao indivíduo e família, além de possibilitar maior resolubilidade durante a assistência de enfermagem, tornando-se difícil não considerá-la como prática assistencial5. No que diz respeito às práticas de gerência do cuidado, todas as atividades de cuidado, administração e educação, ainda que seja parte de atividades ditas burocráticas, contribuem e possuem papel fundamental para a qualidade da assistência oferecida por toda a equipe de saúde, principalmente, pela equipe de enfermagem17.
Durante os Círculos de Cultura foi possível evidenciar que os enfermeiros alcançaram a tomada de consciência sobre a importância dessa metodologia de trabalho e identificaram suas limitações, na medida em que relataram a falta de experiência profissional, o sentimento de desvalorização do enfermeiro, a percepção de que a SAE é uma obrigação legal e que as questões entendidas como técnicas possuem maior relevância dentro da terapia intensiva.
Após os momentos de reflexão entre os participantes, foi possível que o grupo definisse novas perspectivas com o objetivo de mudança da realidade, direcionando suas ações em busca da implantação da SAE, visando trabalhar o desenvolvimento dos fatores que são entendidos como limitadores e dificultadores para a sua efetivação. A partir do momento em que os participantes do Círculo de Cultura perceberam-se como seres inacabados e em processo permanente de construção, constataram a possibilidade de desenvolvimento de educação permanente, sendo que a expressão da educação torna possível a transformação do indivíduo18.
Como o conhecimento acerca da clínica do paciente e a pouca experiência profissional foram dois dos fatores marcantes nesse processo, a equipe decidiu por iniciar um grupo de estudos para discutir casos clínicos, bem como começar a discussão acerca desses casos e da aplicação da SAE nos mesmos, iniciando a construção coletiva entre o grupo de enfermeiros.
Essa iniciativa poderá contribuir com o desenvolvimento de práticas baseadas em conhecimentos científicos que, somadas ao processo de fortalecimento e reconhecimento do papel do enfermeiro, influenciarão para a implantação da SAE nessa UTI, propiciando uma assistência mais qualificada e segura aos pacientes e a toda a equipe de saúde.
CONCLUSÕES
Este estudo permitiu verificar que a SAE não era desenvolvida com facilidade e plenitude pelos enfermeiros que atuavam na instituição estudada, como é preconizado pelo COFEN há 10 anos. Percebeu-se dificuldade dos enfermeiros com a sua prática profissional, uma vez que os participantes referiram que o aperfeiçoamento técnico-científico seria necessário, reconhecendo a responsabilidade de cada profissional e que é imprescindível para o desenvolvimento da SAE.
O grupo ainda apontou que são diversos os fatores que interferem na decisão de aplicar ou não aplicar a SAE, e vislumbrou a busca de conhecimentos específicos e instrumentos para operacionalização da SAE que servirão de base para a implementação desta atividade em sua rotina.
Dentre as fragilidades identificadas neste estudo, o grupo destacou o conhecimento limitado sobre a SAE e entendeu que possui uma corresponsabilidade junto à instituição de saúde para que ela aconteça. A falta de experiência profissional foi compreendida como um limitador, porém ficou evidente para os participantes que são necessárias a busca constante por atualizações profissionais e que estas podem partir do próprio grupo.
A SAE foi compreendida no consenso do grupo como um método de trabalho que contribui fortemente para o planejamento e a organização das atividades assistenciais, com o entendimento de que deve ser constante a análise do processo de trabalho em busca de melhorias condizentes com o cenário atual da instituição.
Como possibilidade de mudança neste cenário surgiu a perspectiva de implantar um grupo de estudo, constituído pelos próprios enfermeiros, procurando estabelecer a troca de experiência em busca das melhores práticas profissionais, somando para a conquista de um espaço junto à equipe multiprofissional.
As limitações, deste estudo, se relacionaram ao número de sujeitos envolvidos que representam apenas a realidade local. Devido à escala de trabalho dos profissionais na UTI foi necessário limitar o número e o tempo de desenvolvimento dos Círculos de Cultura.
REFERÊNCIAS