Volume 19, Número 2, Abr/Jun - 2015
PESQUISA
Compreendendo a governança da prática de enfermagem em um
centro obstétrico
Fernanda Hannah da Silva Copelli
1
Roberta Juliane Tono de Oliveira
1
Alacoque Lorenzini Erdmann
1
Vitória Regina Petters Gregório
1
Aline Lima Pestana
1
José Luís Guedes dos Santos
1
1 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
Recebido em 26/06/2014
Aprovado em 18/03/2015
Autor correspondente:
Fernanda Hannah da Silva Copelli
E-mail: fernandacopeli@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender os significados da governança dos enfermeiros sobre a prática de
enfermagem em um centro obstétrico e construir um modelo explicativo.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa que utilizou como referencial metodológico a Teoria
Fundamentada nos Dados. A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas
semiestruturadas com 27 profissionais de saúde dos setores da maternidade em um
Hospital Universitário do sul do Brasil, divididos em quatro grupos amostrais.
RESULTADOS:
O modelo explicativo foi constituído por 10 categorias e possibilitou a construção
do fenômeno: "Emergindo a governança a partir da prática profissional do
enfermeiro ancorada no exercício do controle sobre o ambiente de cuidado do Centro
Obstétrico e no domínio do conhecimento científico e experiência
profissional".
CONCLUSÃO:
A governança é uma expertise desenvolvida pelos enfermeiros por meio do
conhecimento processual adquirido ao longo da experiência profissional, visando
superar os entraves organizacionais e relacionais para o domínio do ambiente de
cuidado.
Palavras-chave: Gerência; Enfermagem obstétrica; Cuidados de Enfermagem; Serviço Hospitalar de Enfermagem.
INTRODUÇÃO
A governança é o processo de dirigir, orientar e regular, indivíduos, organizações ou nações em suas condutas ou atos em prol de um bem comum. Trata-se de um conceito cada vez mais frequente em estudos de diversas áreas acadêmicas, principalmente em discussões atreladas à administração, gestão organizacional e desenvolvimento e implementação de políticas públicas. Vem sendo relacionada aos termos: normas, direção, ordem, controle, governança corporativa, autoridade, autonomia e tomada de decisão1,2.
Na Enfermagem, o termo governança começou a ser utilizado por volta dos anos 1980, nos Estados Unidos, para subsidiar a elaboração de modelos participativos de gestão3,4. Nesse sentido, vale pontuar que a gênese do saber administrativo relaciona-se ao advento da Enfermagem Moderna no século XIX, a partir da divisão técnica e social do trabalho estabelecidos por Florence Nightingale e à luz dos princípios de controle, disciplina e racionalização do trabalho5. No entanto, não há mais espaço, diante da complexidade organizacional hospitalar contemporânea, para modelos de gestão fundamentados em estruturas rígidas e verticais. Faz-se necessário, portanto, a construção de novos modelos pautados na gestão flexível, no compartilhamento de decisões e na gerência do cuidado5,6.
Nesse contexto, governança relaciona-se ao poder de decisão e aos fatores que interferem no controle dos enfermeiros sobre a prática profissional3. Dentre os modelos de governança em enfermagem difundidos internacionalmente destaca-se a governança compartilhada. Os princípios que balizam esse modelo são parceria, equidade, prestação de contas e controle sobre a prática profissional. A adoção da governança compartilhada para a gestão em enfermagem tem promovido maior satisfação profissional entre enfermeiros e melhoria da qualidade do cuidado prestado no ambiente hospitalar4. Com base nos resultados positivos advindos da sua implementação em outros países, acredita-se que o conceito de governança representa uma possibilidade a ser explorada, no processo de construção de novas práticas gerenciais promovidas e incentivadas por pesquisadores de administração em enfermagem nos mais diversos cenários de prática profissional3. Entretanto, no Brasil, o modelo de governança compartilhada é pouco difundido, mesmo considerando os resultados positivos advindos da sua implementação em outros países.
Dentre os ambientes de cuidado hospitalar, destaca-se o Centro Obstétrico (CO) visto às recentes e contínuas discussões acerca da ampliação da atuação dos enfermeiros obstetras7. Além disso, as políticas públicas e diretrizes técnicas que direcionam a assistência de enfermagem na atenção a mulher e ao recém-nascido conferem papel de destaque ao enfermeiro como profissional promotor da humanização do cuidado e integralidade da assistência8. Assim, considera-se o CO um campo propício para a discussão da governança que os enfermeiros exercem sobre a prática do cuidado de enfermagem.
É mister salientar que como no Brasil o modelo de governança compartilhada é pouco difundido Este estudo não se reposta, especificamente, a este modelo e, sim aos conceitos mais abrangentes do termo governança relacionados à prática da enfermagem e ainda aos significados atribuídos por enfermeiros que desenvolvem essa prática no âmbito de um CO. Dessa forma, questiona-se: Quais são os significados atribuídos por enfermeiros à governança da prática de enfermagem em um CO? Estabelecendo-se como objetivo: compreender os significados da governança dos enfermeiros sobre a prática de enfermagem em um CO, e construir um modelo explicativo acerca desse fenômeno.
MÉTODO
Estudo qualitativo que seguiu o referencial metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados9. O cenário foi o CO de um Hospital Universitário (HU) do Sul do Brasil.
Os participantes foram selecionados por meio de amostragem teórica9, sendo compostos por quatro grupos amostrais (GA). O primeiro GA (E1-E8) foi formado por oito enfermeiros do CO. O segundo GA (E9-E15) por sete enfermeiros, sendo dois do Alojamento Conjunto e cinco da Triagem Obstétrica/Ginecologia. O terceiro GA (E16-21) por integrantes da equipe de saúde sendo dois residentes médicos em obstetrícia, três técnicos e um auxiliar de enfermagem e o quarto GA (E21-27) por sete enfermeiros gestores do HU.
A amostragem teórica foi definida para explorar aspectos relevantes citados pelos enfermeiros do primeiro GA em relação a outros profissionais de setores correlatos, equipe de saúde com quem os enfermeiros mais, frequentemente, se relacionavam e gestores que conferiam suporte à governança dos enfermeiros no CO. Nesse sentido, a inclusão de outros participantes teve como objetivo auxiliar na compreensão do fenômeno da governança da prática de enfermagem, a partir da perspectiva dos enfermeiros e das relações que ele estabelece no contexto do estudo, conforme é previsto pelo método da TFD. Para integrar a pesquisa, os participantes deveriam ter experiência mínima de três meses no setor, pois se considerou este um tempo mínimo para adquirir conhecimento sobre o contexto de trabalho e poder contribuir melhor com a pesquisa.
O tamanho da amostra teórica foi determinado pela saturação teórica dos dados9, que foi atingida com 27 participantes divididos nos quatro grupos amostrais anteriormente citados. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista individual, semiestruturada, gravada em meio digital, no local de trabalho ou em ambiente escolhido pelos participantes, nos meses de janeiro a maio de 2013. As entrevistas tiveram duração média de 50 minutos e foram transcritas na íntegra.
A coleta e análise dos dados ocorreram, simultaneamente, por meio da codificação aberta, axial e seletiva e do método de análise comparativa9. Na codificação aberta, cada fala dos entrevistados foi separada, examinada, comparada e conceituada linha a linha, transformando-se em um código, os quais foram agrupados por semelhanças e diferenças em subcategorias. Na codificação axial os dados foram novamente agrupados por similaridade, formando categorias. A codificação seletiva consistiu na busca e desenvolvimento do fenômeno, em torno do qual giraram todas as demais categorias. Para organizar e relacionar as categorias utilizou-se o modelo paradigmático, que é composto de contexto, condições causais, condições intervenientes, estratégias e consequências9.
Os aspectos éticos foram respeitados conforme a Resolução nº 196/96 e 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e o estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa (parecer nº: 242.944/2013). O anonimato foi garantido pela letra "E", seguida do número ordinal de cada entrevista.
RESULTADOS
Do processo de análise, constituiu-se o fenômeno, "Emergindo a governança a partir da prática profissional do enfermeiro ancorada no exercício do controle sobre o ambiente de cuidado do CO e no domínio do conhecimento científico e experiência profissional" sendo composto por dez categorias, organizadas nos cincos componentes do modelo paradigmático9, conforme ilustra a Figura 1.
A seguir, apresentam-se as categorias de acordo cada um dos componentes do modelo paradigmático.
Contexto
Reconhecendo as atribuições profissionais do enfermeiro
A realização de atividades assistenciais e gerenciais são as principais atribuições dos enfermeiros no CO. Entre as atividades assistenciais dos enfermeiros, destaca-se a realização do cuidado à parturiente durante o trabalho de parto, parto e pós-parto. Quanto às atividades gerenciais, foram pontuadas ações de supervisão da equipe de enfermagem, provisão e previsão de recursos necessários à realização de cuidados, organização do ambiente de trabalho e o dimensionamento de pessoal de enfermagem. Embora essas ações sejam integradas, o enfermeiro gerente tem responsabilidade ética e legal maior sobre o ambiente de cuidado e as ações da equipe de enfermagem:
Enquanto enfermeira assistencial as responsabilidades são planejar a assistência ao trabalho de parto, parto e pós-parto imediato e tudo que envolve essas etapas [...] as responsabilidades como chefia é observar o que está sendo feito, como está sendo feito, de que maneira os profissionais estão se colocando junto a paciente (E5).
Estabelecendo relações profissionais cerceadas por um organograma tradicional
Nas relações profissionais estabelecidas no contexto de trabalho do CO, prevalece o respeito e a busca de uma boa comunicação interpessoal. No entanto, tais relações parecem ser cerceadas por uma estrutura organizacional hierárquica. Implicitamente, os técnicos de enfermagem reconhecem a necessidade de reportarem-se inicialmente aos enfermeiros diante de intercorrências, dúvidas ou quando algo deve ser comunicado aos médicos.
Sinto que aqui no HU existe muita hierarquia [...] porque tem aquela coisa "não pode falar com o médico, tem que falar com a enfermeira", para ela ir falar com o médico (E19). Eu tento respeitar cada enfermeira, sei que existe uma hierarquia e que se eu precisar de algum auxílio será à enfermeira que na maioria das vezes eu vou procurar (E21).
A tomada de decisões de forma coletiva reflete a boa comunicação interpessoal. Os enfermeiros referiram envolver a equipe de enfermagem nos processos decisórios, conferindo-lhes autonomia e liberdade, à medida que os profissionais demonstravam competência e habilidade para o desenvolvimento das suas atividades.
As decisões, inclusive de prioridade, são tomadas em conjunto, dentro de uma autonomia. Elas (técnicas de enfermagem) sabem que podem ter autonomia e têm autonomia dentro da competência delas (E13).
Condições causais
Assumindo a responsabilidade pela tomada de decisões
Nesta categoria, os depoimentos sinalizam que a experiência profissional confere aos enfermeiros maior segurança para tomada de decisão, tanto em relação ao paciente, quanto a equipe de saúde. Além disso, o compartilhamento e envolvimento da equipe na tomada de decisão, também, se mostrou relevante no contexto do estudo.
Pauto-me na minha experiência, em casos passados semelhantes e na certeza de que minha equipe estará do meu lado porque não adianta eu tomar decisões se depende de outras pessoas para executarem as ações, então eu procuro desenvolver com eles esse espírito de equipe (E8).
Percebendo que o trabalho em equipe contribui para o controle da prática profissional
Levando em consideração que o trabalho em equipe é inerente à enfermagem, a segunda condição causal demonstra que a relação interpessoal entre os integrantes da equipe multiprofissional favorece o desenvolvimento da governança do enfermeiro, uma vez que são estabelecidas relação de confiança e ajuda mútua no ambiente de trabalho, contribuindo para a maior satisfação do profissional com o trabalho e qualidade do cuidado oferecido. Para que o trabalho em equipe ocorra de forma coesa, faz-se necessário que os profissionais estejam preparados para agir com competência:
Ter uma equipe coesa, que trabalhe junto, pessoas que tu confie que trabalhe contigo ajuda muito, é importante porque quando a coisa está muito complicada eles acabam assumindo contigo [...] (E3).
Condições intervenientes
Percebendo que o conhecimento científico, a experiência profissional e a satisfação com o trabalho potencializam a governança do enfermeiro
Esta primeira condição interveniente corresponde aos aspectos facilitadores da governança da prática profissional pelo enfermeiro, que são: conhecimento científico, experiência profissional e satisfação com o trabalho.
Acho que o conhecimento contribui para a governança, até o tempo de HU, eu acho [...] (E11). [...] é um local que adoro trabalhar, trabalhar com nascimento é maravilhoso [...] (E2). Saio daqui sempre contente que eu fiz o que eu podia [...] (E7).
Deparando-se com entraves organizacionais e relacionais
Dificuldade de relacionamento interpessoal, sobrecarga de trabalho e ausência de capacitação para assistência neonatal foram os aspectos citados como entraves organizacionais e relacionais. Os conflitos geram um clima desfavorável que recai tanto sobre a forma como a assistência é realizada quanto ao adequado funcionamento da maternidade de maneira integrada. Esses entraves, por sua vez, interferem no controle que o enfermeiro tem sobre a unidade.
[...] às vezes acontecem alguns conflitos, aconteceram casos de outras enfermeiras tentarem resolver na base do diálogo, da conversa e não conseguir e ter que levar aquele caso para direção, ou chefia de divisão para resolver [...] (E9). Com relação à governança, uma coisa que dificulta muito é a relação com outros setores, a dificuldade de nos relacionar [...] (E1).
A sobrecarga de trabalho em função da demanda aumentada de atendimentos e do número insuficiente de profissionais na unidade também limita a governança do enfermeiro. Assim, evidenciaram-se nos relatos menções ao desgaste físico, desestímulo e insatisfação pessoal com a assistência prestada.
[...] tenho noção de tudo que está acontecendo, mas com o fluxo de pacientes aumentado nós perdemos o controle, só tocamos o serviço de forma mecanizada [...] nossa escala está sobrecarregada e não seria uma opção minha trabalhar tanto assim [...] (E2). Na maioria dos momentos, há um desgaste muito grande, principalmente emocional [...] o que desestimula a maioria das pessoas [...] (E18).
A falta de capacitação e até mesmo conhecimento sobre a assistência neonatal pelos enfermeiros do CO e equipe de saúde caracteriza-se como uma fragilidade, que limita a governança do enfermeiro.
Não consigo atender um bebê que nasceu com 500 gramas [...] não tenho condições, enquanto enfermeira de atender um bebê desses, não tive nenhum treinamento específico [...] (E3).
Estratégias
Desenvolvendo autonomia e liderança
A autonomia do enfermeiro no processo de cuidar proporciona poder de articulação com outros profissionais de saúde, valorização profissional e maior comprometimento com as pacientes. Nesse sentido, a equipe de saúde reconhece a autonomia dos enfermeiros na unidade, principalmente quando eles se mostram líderes da equipe.
Acho que elas (enfermeiras) têm autonomia, principalmente quando elas se impõem [...] (E16). Acho que toda enfermeira é uma líder e tem que ser uma líder para o trabalho funcionar [...] acho que faz parte da profissão. O enfermeiro que não entende que a primeira função que a gente tem é de liderar ele vai ter bastante dificuldade no andamento do trabalho (E6).
Estabelecendo o controle do ambiente a partir da passagem de plantão
Por meio da troca de plantão e das anotações do livro de intercorrências, os enfermeiros demonstram ter conhecimento da unidade, que os permitiam organizar e elencar prioridades de cuidado, e conhecer as condições clínicas de cada paciente. Nesse sentido, a visita de enfermagem, além de criar vínculo entre profissional e paciente, possibilitava o controle sobre a prática profissional.
[...] confiro o livro de passagem de plantão lendo o livro, vejo o que ocorreu [...] mas, o primeiro passo é olharas intercorrências anteriores para saber tudo que aconteceu (E4). [...] a partir do momento que recebo o plantão, faço um planejamento de como vou atuar, e quais são as prioridades (E11).
Os enfermeiros fazem questão de realizar suas atribuições e estarem presentes em todos os momentos do processo assistencial, mesmo com a ausência de funcionários. Dessa forma, eles demonstram compromisso com a qualidade da assistência realizada na unidade.
[...] não estou escalonada em nenhum local, mas sim em todos os locais. Pode não ter cesárea, pode não ter parto, mas, pode ter uma paciente que precise de um cuidado mais especializado e eu não abro mão, não delego aquilo que considero minha especialidade e atribuição (E6).
Gerenciando conflitos com a equipe de trabalho
Outra estratégia para o alcance da governança é o gerenciamento dos conflitos, por meio da articulação, envolvimento e participação da equipe.
Não me coloco assim: "ah sou a chefe da equipe e como chefe só eu tenho opinião". Não! Todo mundo tem opinião e, às vezes, quando tem um conflito eu chamo todos para dar opinião e me ajudarem (E6). Onde tem vários funcionários sempre vai ter divergências, dificuldades, então tentamos negociar com a equipe [...] (E9). Sempre procuramos reunir e conversar com a equipe, quando surge um problema maior [...] (E24).
Consequências
Conquistando e buscando manter o domínio da prática profissional
A significância e o embasamento da governança pelo conhecimento científico e experiência profissional foram dois achados relevantes da pesquisa. Percebe-se que de maneira geral, os enfermeiros entendem que os anos de estudo e o tempo de prática profissional conferem maior governança a eles. Isto pode ser afirmado porque grande parte dos enfermeiros refere ter adquirido maior governança ao longo dos anos de experiência e também de atuação no CO.
Muitos enfermeiros estão aqui há 19 anos [...] temos muito tempo de prática. Eu fiz mestrado aqui, doutorado, fui professora durante muito tempo na graduação e pós-graduação, estudei muito obstetrícia (E3). É claro que com o tempo, você vai se sentindo mais seguro [...] (E25).
Em vários depoimentos, os enfermeiros utilizaram o termo controle, gerência e administração para significar governança. A autonomia e o relacionamento interpessoal também foram citados como elementos necessários para o exercício da governança.
Governança para mim é autonomia, supervisão da equipe, liderança (E10). Significa o meu dia a dia, a forma de atuar, as relações que se estabelecem. A organização que acontece no dia a dia, quando eu falo o dia a dia é tudo o que envolve o nosso trabalho [...]. Até a procura pelo conhecimento faz parte (E11).
Desta forma, nota-se que o domínio da prática profissional é, muitas vezes, comprometido pelo excesso de trabalho na unidade, o que gera sentimentos de impotência, tristeza e frustração. Somado a isso, a falta de participação direta dos gestores no setor, gera desânimo, angústia e até mesmo revolta entre os enfermeiros.
[...] sinto-me entristecida e revoltada [...] em certos momentos me sinto abandonada [...] acontece muito isso: caos e controle. Às vezes, a gente só tenta ter o controle mesmo na hora de passar o plantão [...] mas isso faz mal para a gente porque parece que a gente trabalhou, mas não fez nada, isso é muito frustrante para o enfermeiro (E3).
A falta de governança é percebida quando a autonomia torna-se prejudicada e apresenta limitado acesso as decisões tomadas pela direção do HU.
[...] nesse sentido acho que ainda persiste aquele antigo modelo de decisão vertical porque não sinto que tenho acesso as decisões. É claro que algumas coisas são discutidas, a chefia pede nossa opinião, mas não me sinto tão incluído nessa questão decisória (E15).
DISCUSSÃO
Os resultados do estudo sinalizam que a assistência e a gerência são as principais dimensões do trabalho do enfermeiro no contexto do CO. Na busca por articular essas duas dimensões e exercer governança sobre a prática profissional, os enfermeiros estão constantemente estabelecendo relações e interações com a equipe de trabalho. No entanto, tais relações mostram-se, muitas vezes, comprometidas pela organização hierárquica da instituição. Resultados semelhantes estão descritos em estudos desenvolvidos no contexto hospitalar, o que demonstra a influência dos princípios da divisão racional e burocrática no trabalho em saúde e enfermagem5,10.
Entretanto, evidenciou-se a busca dos enfermeiros em envolver a equipe de enfermagem nos processos decisórios. De modo semelhante, estudos anteriores também elucidaram que embora no discurso mereçam destaque as propostas de trabalho em equipe, elas nem sempre são implementadas na prática7,11.
Nesse sentido, os técnicos de enfermagem referiram ter autonomia no desenvolvimento do seu trabalho no CO, porém essa autonomia é restrita ao desempenho de atividades assistenciais já previstas na lei do exercício profissional da enfermagem no Brasil. Quando questionados sobre os processos decisórios, eles perceberam-se à margem das discussões, o que caracteriza uma autonomia pautada apenas na operacionalização da assistência e não no envolvimento em decisões acerca do andamento do trabalho na unidade propriamente dita.
Assim, vale ressaltar que um dos pressupostos da governança em enfermagem é a inserção dos profissionais envolvidos na assistência no momento de tomada de decisão. O compartilhamento e a participação coletiva nos processos decisórios possibilita um maior comprometimento da equipe com melhores resultados assistenciais12,13. Como estratégia para ampliar o nível de participação da equipe de enfermagem nos processos decisórios, estudo norte-americano sugere, por exemplo, a self-scheduling, que permite ao funcionário propor sua própria escala, conferindo-lhe autogerenciamento e maior satisfação profissional13. No CO, essa estratégia poderia ser aplicada se não esbarrasse em viesses que impossibilitam a efetivação da proposta, como a falta de profissionais.
Como aspectos facilitadores que interveem sobre a governança no CO, os enfermeiros destacaram que o conhecimento científico e a experiência profissional geram um sentimento de segurança e facilitam a tomada de decisão. Resultados semelhantes estão descritos em um estudo que apontou a estreita relação entre a experiência profissional e o agir de forma correta e segura. Nesse caso, a experiência profissional facilita a gerência dos processos decisórios, porque contribui para o empoderamento dos enfermeiros13. Pesquisa com o objetivo de identificar e analisar estratégias para promover a segurança do paciente também constatou que o conhecimento tácito, a experiência e as habilidades têm uma forte influência na tomada de decisão para o planejamento do gerenciamento do cuidado de enfermagem14.
Outro elemento facilitador da governança é a percepção de satisfação com o trabalho. O prazer no trabalho repercute no desenvolvimento das potencialidades e da criatividade do enfermeiro bem como, na criação de laços cognitivo-técnicos. Isso faz com que o trabalhador conscientize-se do seu papel na instituição e satisfação profissional15.
Como um dos aspectos dificultadores da governança, destacou-se o relacionamento interpessoal conflitante entre os enfermeiros da maternidade. Pesquisa norte-americana evidenciou que a governança dos enfermeiros está diretamente relacionada com as competências e habilidades dos enfermeiros na resolução de conflitos e no poder de negociação13.
A relação entre governança e o gerenciamento de conflitos justifica o fato dessa prática, ter sido mencionada como uma estratégia para obtenção da governança como parte do processo gerencial do enfermeiro. O gerenciamento de conflitos é um achado recorrente em outras investigações, as quais destacam que a mediação das tensões entre a equipe de trabalho é uma das competências esperadas do enfermeiro visando um melhor cuidado ao paciente no ambiente hospitalar12,13.
Como consequência do fenômeno encontrado, identificou-se que os enfermeiros relacionaram governança ao controle da prática profissional, o que corrobora os achados de estudos que projetam a governança do enfermeiro como o controle da prática profissional de enfermagem12,16.
Esse controle sobre a prática profissional acaba sendo comprometido pela sobrecarga de trabalho em função da demanda aumentada de atendimentos e a falta de profissionais, identificada como um entrave para a governança. A sobrecarga de trabalho entre os trabalhadores gera cobranças pessoais, esgotamento físico e os faz acreditar que estão realizando um trabalho de menor qualidade do que realmente poderiam, o que se configura como fatores geradores de sofrimento e insatisfação profissional15,17. Cabe às instituições de saúde prover melhores condições de trabalho e infraestrutura para que os enfermeiros superem os desafios presentes no seu contexto profissional em busca da governança da prática profissional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo possibilitou compreender os significados atribuídos pelos enfermeiros à governança da prática de enfermagem no CO de um HU, a partir da elaboração do fenômeno.
A governança configura-se como uma expertise desenvolvida pelos enfermeiros por meio do conhecimento processual adquirido ao longo da atuação profissional, visando superar entraves organizacionais e relacionais para o domínio do ambiente de cuidado. Assim, representa o controle que advém da prática profissional e é sustentada pelo trabalho em equipe, desenvolvimento da liderança e autonomia, além do gerenciamento de conflitos.
Este estudo foi restrito ao contexto de um único CO, o que limita a generabilidade dos resultados obtidos. Outra limitação foi a escassa literatura científica brasileira sobre governança em enfermagem, o que dificultou realizar comparações com outros contextos de trabalho. Assim, sugere-se que novos estudos sejam realizados acerca deste tema em outros cenários de atuação profissional do enfermeiro.
REFERÊNCIAS