ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 19, Número 1, Jan/Mar - 2015



DOI: 10.5935/1414-8145.20150012

PESQUISA

Solicitude constituindo o cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher-que-dá-à-luz-na-casa-de-parto

Marcele Zveiter 1
Ivis Emília de Oliveira Souza 2


1 Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Niterói - RJ, Brasil
2 Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil

Recebido em 08/08/2013
Aprovado em 24/04/2014

Autor correspondente:
Marcele Zveiter
E-mail: marcelezveiter@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Este artigo objetiva analisar a constituição do cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto.
MÉTODOS: O fio condutor da hermenêutica se sustenta na compreensão vaga e mediana das enfermeiras obstétricas. A fenomenologia heideggeriana foi o referencial teórico-filosófico-metodológico. Como contribuição, da e para a enfermagem obstétrica, apresenta-se a hermenêutica da consideração e da paciência fundada no conceito de solicitude e inerente ao movimento existencial das enfermeiras. Participando da discussão sobre o direito das enfermeiras na assistência ao parto e a qualidade da atenção, aponta-se a Casa de Parto David Capistrano Filho como um espaço de cuidado diferente do modelo hospitalar.
RESULTADOS: Como resultado, o cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto se desvela sendo uma construção fundada no compartilhar.
CONCLUSÃO: Envolvidas por este cuidado, a enfermeira e a mulher estão num movimento existencial que favorece um cuidado autêntico.


Palavras-chave: Filosofia; Cuidados de Enfermagem; Enfermagem Obstétrica.

INTRODUÇÃO

O interesse em estudar o modelo assistencial desenvolvido nas Casas de Partos decorreu dos argumentos contrários ao trabalho lá implementado pelas enfermeiras obstétricas.

O presente trabalho tem como objetivo analisar a constituição do cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto, a partir de significações das vivências e do vivido. Em consonância com o objetivo, é justamente a partir da experiência vivida pelas autoras no campo do parto e nascimento, tanto no âmbito privado quanto na formação acadêmica e na prática assistencial, que se deu a motivação para desenvolver o presente artigo com o tema do cuidado de enfermagem obstétrica.

A discussão sobre o direito de exercício profissional de enfermeiras na assistência ao parto e a qualidade da atenção prestada às usuárias no Rio de Janeiro foi o início da problematização da presente investigação.

Na lista de elementos que conferem respaldo legal para esta atividade destacam-se a Lei nº 7.498 publicada, em 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem1, a Portaria nº 985, do Ministério da Saúde, que criou os Centros de Parto Normal em 19992 e a Resolução nº 339, do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN)3, que desde 2008 dispõe sobre a regulamentação e responsabilidades do enfermeiro em Centros de Parto Normal e/ou Casas de Parto. No caso específico do cenário da investigação, a Casa de Parto David Capistrano Filho, desde sua inauguração em 8 de março de 2004, esteve exposta à publicações do ponto de vista das organizações médicas. O vasto material que circulou pelas entidades da classe médica tratou da legislação brasileira sobre a participação das especialidades médicas no parto e nascimento e, sobretudo, questionou a competência das enfermeiras obstétricas para assistirem partos fora dos hospitais. Em meio às publicações do Conselho Regional de Medicina (CREMERJ), encontra-se nos registros do 51º Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia a única justificativa para a implantação das Casas de Parto: "municípios onde não há médicos, no interior do país"4:6. Cabe o questionamento sobre o rigor, ou a flexibilização, dos regulamentos para a garantia da boa assistência às mulheres de cada região do Brasil.

Assim, médicos de todas as especialidades foram sensibilizados com argumentos arbitrários. O assunto transbordou das páginas das publicações da classe médica, para os jornais de grande circulação e, a internet, inclusive, com notícias falsas sobre problemas resultantes em óbitos ocorridos lá, na intenção de influenciar a opinião pública5. No dia 3 de junho de 2009, a Divisão de Vigilância e Fiscalização de Serviço de Saúde, lavrou o Termo de Interdição nº 02203, interditando a Casa de Parto. No dia seguinte, o Secretário de Saúde e Defesa Civil do estado do Rio de Janeiro publicou a Resolução SESDEC nº 705, que determinou a interdição total do estabelecimento6. Tal fato determinou uma série de outros eventos de organização social em prol da reabertura da Casa de Parto na cidade do Rio de Janeiro como: o Abraço à Casa de Parto, no dia 09 de junho; a mobilização do dia 14 de junho, na Praia do Leme, com distribuição de panfletos para chamar para a passeata que ocorreu na mesma Praia no dia 21 do mesmo mês, e a Audiência Pública no dia 18 de junho no Palácio Tiradentes7. No mesmo mês, por força de uma liminar judicial obtida pelo sindicato dos enfermeiros do Estado, ocorreu a sua reabertura. Em 2013, um estudo apontou a Casa de Parto David Capistrano Filho como um cenário de práticas assistenciais baseadas em evidências científicas, respeito à cidadania e promoção do bem-estar materno e fetal8.

O cuidado ao parto foi estudado como fenômeno que exige um olhar, que ultrapasse as concepções objetivistas da realidade dos fatos, valorizando as significações das vivências e do vivido. Dito de outro modo, o parto foi tomado como um fenômeno que se manifesta e se fundamenta nas experiências humanas vividas.

Oferece-se, neste artigo, parte de uma investigação9 do cuidado entendido como assistência obstétrica de enfermeiras com mulheres que dão à luz na Casa de Parto. A questão norteadora se dirige à possibilidade de compreensão dos modos de ser das enfermeiras obstétricas, que cuidam na Casa de Parto David Capistrano Filho e de desvelamento de facetas do fenômeno ação assistencial destas enfermeiras, como relação de cuidado enfermeira-mulher que dá à luz na Casa de Parto.

REVISÃO DE LITERATURA

O caminho histórico das sociedades científicas ocidentais foi, progressivamente, supervalorizando a tecnologia sobre a natureza, o que inclui os entendimentos sobre a saúde. A partir da segunda metade do século XX, a lógica da patologia absorveu o fenômeno fisiológico do parto no hospital e o modelo hospitalar passou a dominar o campo do parto.

No Brasil, as ações do Governo para a melhoria da atenção obstétrica se intensificaram a partir de 1998. Especificamente no Rio de Janeiro, desde a década de 90, a Política de Humanização do Parto e Nascimento vincularam-se à estratégia da categorização do atendimento ao parto, com o atendimento das enfermeiras obstétricas aos partos classificados como baixo-risco. Este fato movimentou o terreno das práticas e rotinas hospitalares, provocando forte conflito de competências entre as categorias médica e de enfermagem10.

Na enfermagem, em decorrência da criação dos cursos de doutorado, existe, desde meados dos anos 80, uma tendência dos seus pesquisadores realizarem investigações situadas em temáticas relacionadas com a subjetividade. Neste sentido, o referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger que aborda o ente para alcançar o ser no seu movimento existencial, guarda coerência com os princípios humanísticos11. Considerando a importância de refletir sobre o cuidado de enfermagem em geral, mas também sobre cada situação de cuidado em particular, novamente encontra-se no referencial heideggeriano a contribuição necessária para a aproximação entre teoria e prática do cuidado, a partir da compreensão dos fenômenos. Portanto, trata-se aqui da relação de cuidado enfermeira-mulher que dá à luz na Casa de Parto.

Nas entrelinhas desta discussão, é possível, sustentada nas bases teóricas da fenomenologia, ler os aspectos das experiências vividas no campo do parto e nascimento. Entendeu-se assim que a assistência prestada à mulher que dá a luz numa Casa de Parto pode ser estudada como um fenômeno que precisa de outro olhar, que ultrapasse as concepções objetivistas inerentes à ótica positivista de fazer ciência.

Para mergulhar neste campo teórico-filosófico, a presente investigação toma o capítulo "O ser-no-mundo como ser-com e ser-próprio. O 'impessoal'", da Obra Ser e Tempo12, a partir da tradução para o português de Dulce M. Critelli13. A palavra cuidar, frequentemente, usada por Heidegger, é assumida por ele como a estrutura fundamental do ser-aí e seu significado latino é: zelar, relacionar-se com algo.

Diferentemente de outras reflexões teóricas acerca dos modos de relacionamento humano, este assunto não é tratado por Heidegger a partir de medidas ou normas. No referencial teórico-filosófico heideggeriano encontra-se o questionamento que remete ao caminho de aproximação com o fundamental que ficou à sombra das teorias do conhecimento e modelos da era das ciências exatas. Ser é o modo de algo estar presente, manifesto, para alguém, para o ser-aí ou Dasein. As características fundamentais do ser humano, o que Heidegger chama de ontológico, referem-se ao ser-aí. Outra denominação para estas características ontológicas da existência é o termo existenciálias, que são os modos de se relacionar e de viver.

O que é percebido de imediato é ôntico. Da mesma maneira que se pode nomear existencial ao ontológico, é possível denominar existenciário ao ôntico. Compreende-se que o sentido da vida humana é ser-com outro. Além disso, é sendo-com que se especifica o como das relações do homem com outros homens. O relacionar-se com alguém de modo significante é a solicitude, que envolve as propriedades, de ter consideração e de ter paciência. Longe de representarem princípios da moral, consideração e paciência são maneiras de se viver com os outros, respectivamente, a partir do vivido e das perspectivas14.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa qualitativa, de abordagem fenomenológica. A investigação qualitativa trabalha com um universo correspondente ao espaço das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser analisados por operações com variáveis mensuráveis pela Inferência matemática ou pela Teoria das Probabilidades. A fenomenologia ganhou notoriedade no início do século XX com Edmund Husserl, que a definiu como uma "volta às coisas mesmas". A consciência husserliana possui o dispositivo básico da intenção, estando assim, sempre voltada para o mundo, orientada para alguma coisa e constituída de atos que visam algo14. Para a fenomenologia, ao olhar as coisas como elas se apresentam, o que se obtém é a sua descrição, não a sua demonstração. Não se estabelece a meta de explicar, mas refletir possibilitando uma visão das coisas, do modo como elas se manifestam. O rigor da fenomenologia repousa sobre a sua preocupação em mostrar na realidade o que é.

Os modelos científicos constituem modos de falar sobre as coisas. Isto do que se fala é o ente, que pode ser definido, resumidamente, como todas as coisas formatadas por um discurso. Há também um falar a partir da coisa e, para isto é preciso abrir-se e acolher a coisa na sua existência15. Pode-se inferir que esta fala a partir de é aquela que se dá na abertura para o ser. O ser pode ser definido como o que há de essencial na coisa, o que pulsa nela12.

A escolha da fenomenologia como referencial teórico-filosófico-metodológico está baseada no próprio objeto desta pesquisa. O significado do cuidado ao ser-mulher-que-dá-a-luz, numa Casa de Parto é o fenômeno em questão. Não é possível separar o sujeito do fenômeno, é fundamental que eles estejam reunidos na estrutura intencional da experiência. Portanto, com a inquietação dirigida para as significações singulares referentes tanto ao cuidado de enfermagem obstétrica, quanto à Casa de Parto, buscou-se uma compreensão das enfermeiras como sujeitos, que têm seu mundo vivido a ser revelado e podem apontar uma via de acesso ao fenômeno.

O cenário da investigação foi à Casa de Parto David Capistrano Filho, localizada no bairro de Realengo, no Município do Rio de Janeiro. As depoentes, desta pesquisa, foram as 18 enfermeiras obstétricas da Casa de Parto, ouvidas em entrevistas fenomenológicas de maio a agosto de 2010. Além de respeitar os aspectos éticos e legais que constam na Resolução 196/96, substituída pela Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde16, a pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde e Defesa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro, no Parecer nº 322A/2009. Cabe ressaltar que neste grupo se encontram dois homens, porém optou-se por fazer referência a enfermeiras obstétricas em decorrência do contingente feminino de profissionais de enfermagem.

As enfermeiras obstétricas foram procuradas, sem nenhum pressuposto ou categoria prévia de análise. A cada encontro, ainda no momento ôntico da pesquisa, ao colocar a questão - Fale do cuidado que você desenvolve com as mulheres que dão a luz na Casa de Parto - era promovida uma abertura do ente enfermeira. Neste momento metódico da compreensão se dava a abertura da potencialidade do ente para o desvelamento do fenômeno cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto. Essa descoberta assumiu a forma de uma pré-compreensão. Dito de outro modo, quando se deu a abertura, na qual o ser-enfermeira-obstétrica-que-cuida-da-mulher-que-dá-à-luz-na-Casa-de-Parto se determinou. Essa determinação traduziu-se como uma pré-compreensão que elas têm de si, enquanto ser, e do outro ser-mulher-que-dá-a-luz-na-Casa-de-Parto.

Considerando que no método da fenomenologia a etapa de campo é simultânea à análise, os conteúdos significativos dos encontros foram sendo transcritos, lidos e compreendidos e se encerraram quando todas as enfermeiras obstétricas da Casa de Parto foram ouvidas. O alcance da totalidade das profissionais não foi pré-determinado nem é uma exigência metódica, foi uma ocorrência decorrente da disposição das enfermeiras e da pesquisadora. Foi assim que se construiu um conjunto de possibilidades para a interpretação do que seja a essencialidade do cuidado de enfermagem obstétrica às mulheres que dão à luz na Casa de Parto. Os entes enfermeiras obstétricas foram interrogados sobre o ser-aí-com deste cuidado fundado e (des)velado pelas significações singulares do parir e do nascer numa Casa de Parto. Para Heidegger17, questionar o ser, também, significa ter a necessidade de experimentar o que todo ente é, sem que ele, necessariamente, precise possuir um saber sobre isso. A partir da interrogação do ente, instância ôntica, questionou-se o ser, de modo a alcançar a instância ontológica que permite desvelar o sentido do ser.

A análise compreensiva em Heidegger possui dois momentos: a compreensão vaga e mediana e a compreensão interpretativa ou hermenêutica. Na descrição do fenômeno vivido pelos sujeitos, são destacadas as significações. Este é o primeiro momento da análise, quando a compreensão ainda é vaga e mediana.

Resumidamente, os passos comuns do pesquisador em estudos fenomenológicos são os seguintes: 1º) colocar o mundo e seus pressupostos em suspenso, para captar os significados do outro da maneira mais pura possível; 2) abrir-se aos significados do fenômeno, como expressos nas falas dos sujeitos; 3) destacar as partes significativas das falas, considerando-as como estruturas essenciais de acesso ao fenômeno que está sendo investigado, procura desvelar os sentidos a partir desses significados essenciais; 4) ser capaz de compreender nas estruturas de significação o sentido velado e desvelar facetas do fenômeno estudado18.

RESULTADOS

Seguindo a definição de Husserl para a fenomenologia - uma ciência que se inicia pela descrição do vivido14 - apresenta-se a análise dos encontros com as enfermeiras obstétricas da Casa de Parto. Depois de ouvir algumas vezes as gravações e transcrevê-las, foram destacadas as estruturas significativas que, organizadas em grupos, são denominadas de unidades de significação. Apresenta-se a seguir o primeiro momento metódico, descrito por Heidegger12 como compreensão vaga e mediana, constituído por duas unidades de significação que decorrem da análise compreensiva das significações mesmas das enfermeiras. O caput destas unidades está grafado, em itálico e expressa a compreensão do significado do cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto.

O cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto mostrou-se como:

Um cuidado que se revela desde o pré-natal e continua no pós-parto

O cuidado da enfermeira obstétrica às mulheres que dão à luz na Casa de Parto é iniciado no primeiro contato com as mulheres e continua no pós-parto, ele se dá a partir da mulher que chega ali. Desde a primeira consulta o cuidado é. O significado do cuidado inclui o contato com a mulher. Para as enfermeiras, a significação do cuidado abrange o modo como ele se revela ao longo do período em que as mulheres vão à Casa de Parto. As enfermeiras falam do significado do cuidado envolvendo este desenvolvimento, que se dá desde o momento em que as mulheres são recebidas no início da gestação, e continua a cada contato. As enfermeiras obstétricas cuidam transcendendo ao momento do parto e da gestação, e, considerando todos os momentos de encontro entre elas e as mulheres. Assim, o cuidado se traduz num caminho que possibilita uma visão total do ciclo gravídico puerperal. Diferentemente do que ocorre na estrutura assistencial hospitalar de maternidades onde são desenvolvidas ações na perspectiva biologicista, na qual o destaque está no nascimento tomado como fim do processo da gestação. O cuidado das enfermeiras obstétricas na estrutura assistencial da Casa de Partos mostrou-se como um caminhar mediado por uma visão total da mulher que vivencia o ciclo gravídico até o puerpério.

Uma construção fundada no compartilhar, que envolve a enfermeira e a mulher

Para as enfermeiras obstétricas, sujeitos do estudo, o cuidado gera possibilidades de construção, fundadas no compartilhar e escutar, o que facilita a expressão das emoções, tanto da mulher quanto delas mesmas. É a partir da vivência da mulher que as enfermeiras analisam e propõem a ação assistencial, elas falam de um cuidado voltado para o que as mulheres dizem. A significação do cuidado comporta a liberdade de se identificarem com a mulher, sendo amigas e confidentes. Para as enfermeiras, a significação do cuidado vai além do que seja apenas técnico, envolvendo o melhor do lado humano. Por não estar dirigido para a técnica que racionaliza e padroniza a realização de procedimentos e de intervenções, esse cuidado promove a vontade que as enfermeiras têm de estar com a mulher. O significado do cuidado engloba a escuta da enfermeira, suscitando respeito e valorização das vivências da mulher. Situado na articulação de um diálogo que envolve a enfermeira e a mulher, o cuidado não está centrado na técnica obstétrica procedimental fundada no que Heidegger denomina de tradição. Pelo oposto, nesse cuidado oferece-se a oportunidade para as enfermeiras estarem com a mulher, que então é quem escolhe os modos e as possibilidades técnicas relativas ao tipo de parto que gostaria de vivenciar. Para as enfermeiras a significação do cuidado inclui receber a mulher, que dá o feedback e permite ser cuidada. Quando as enfermeiras estão com a mulher que se mostra sofrendo, elas colocam uma pergunta que dá espaço para que a mulher conte o que a incomoda para que possa alcançar uma atenção que seja, por ela, significado como bom e satisfatório. Este envolvimento, também, tem a estrutura significante de manifestação que as enfermeiras atribuem ao cuidado. A vontade de estar com a mulher se traduz no significado do cuidado, como uma relação de intimidade e proximidade tal, que gera não um conhecimento sobre a mulher e, sim um relacionamento com a mulher. O cuidado possibilita a confiança que a mulher tem nas enfermeiras. Ainda, ele é muito gratificante porque gera resultados a partir da emoção e da liberdade.

Antes da análise compreensiva ocorreu a abertura do ente enfermeira. Somente, neste momento, metódico se deu nesta pesquisa a compreensão desta abertura, ou seja, a abertura da potencialidade do ente para o desvelamento do fenômeno cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto. As unidades de significação revelam a proveniência do fenômeno, que está nas falas das enfermeiras. Este caráter de possibilidade "corresponde ao modo de ser de um ente compreendido"12:208. Fundada nesta compreensão foi possível desenvolver a análise da dimensão ontológica da interpretação fenomênica, conteúdo da discussão.

DISCUSSÃO

Depois de alcançar a dimensão ôntica heideggeriana, a partir da qual foi possível compreender os significados das enfermeiras obstétricas da Casa de Parto, chega-se à dimensão ontológica referente aos sentidos ou à direção do ser em si mesmo. A hermenêutica, representada pela análise interpretativa, pode desvelar os sentidos do vivido, facetas do fenômeno em questão. Com o método heideggeriano é possível ir além do conhecimento do que foi compreendido e "elaborar as possibilidades projetadas na compreensão"12:204. Trata-se do trabalho de interpretação hermenêutica, retirando o encobrimento provocado pelas falas que se ligaram fortemente a quem ouviu e que produz o velamento dos sentidos.

O cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto se mostra sendo uma construção fundada no compartilhar, que envolve a enfermeira e a mulher, que facilita a expressão das emoções, de ambas. Outra estrutura fundamental do ser-aí é o ser-com, que significa alguém na presença do outro13. Esta é a maneira característica e básica do ser humano se relacionar e viver, que se denomina existenciária.

A enfermeira, no seu modo de ser-para-os-outros se dispõe para a mulher. Ao se relacionar com a enfermeira, o ser-mulher-que-dá-à-luz-na-Casa-de-Parto, estabelece este relacionamento de uma maneira que é envolvente e significante. Esta maneira de se relacionar é designada por Heidegger13 como solicitude, cujas características principais são a consideração, e a paciência, ou tolerância, com o outro. No modo de ser da solicitude o ser-aí "está ligado com seu ser em relação ao mundo de seu cuidado e, da mesma maneira, com seu autêntico ser em relação a si mesmo"13:41.

Na característica consideração a enfermeira convive com a mulher tendo em vista tudo o que foi vivenciado e experienciado desde o pré-natal. O ser-aí-com, das enfermeiras é com a mulher, considerando a vivência da mulher no mundo. Nesse modo de ser, o cuidado das enfermeiras à mulher que dá a luz na Casa de Parto é um cuidado à maneira da consideração, pois a cada vez que as enfermeiras cuidam da mulher, elas levam em consideração sua história obstétrica atual e pregressa. Assim, atentam para a gestação e para as adaptações que se fizeram necessárias no corpo físico, bem como nesta mulher inserida na sociedade em geral e na família, em particular, determinantes dos modos de ser no mundo público, circundante e próprio. O cuidado se dá no caminho da convivência, da abertura no relacionamento, a mulher é um ser-no-mundo, ela é considerada como ela é.

[...] eu avalio, de acordo com o que ela me passa. Da história dela de vida, né, da vivência dela (Enf. 2).

É importante notar que a consideração do vivido nos encontros durante a gestação envolve também cada consulta de pré-natal em todos os momentos. Quando a mulher chega em trabalho de parto ela é considerada com a sua história. Assim, o outro desse cuidado não é alguém que chegou de repente, num momento brusco e emergencial, para parir na Casa de Parto.

O cuidado é desde o momento que ela vem para a primeira consulta de pré-natal (Enf. 3).

[...] a gente conhece a mulher, então a gente já sabe mais ou menos o que vai afeta-la durante o trabalho de parto (Enf. 17).

Deste modo, o cuidado da enfermeira obstétrica à mulher que dá à luz na Casa de Parto considera todo o pré-natal, para além das informações contidas no cartão de gestante, pois se inclui a vida vivida e vivenciada de maneira singular. A ciência estabeleceu o cartão e a técnica obstétrica, estes são necessários, mas por não presentificarem o sendo da mulher, são insuficientes para o desenvolvimento do cuidado de enfermeiras obstétricas na Casa de Parto. Embora também sejam apreciados e respeitados, como parte do vivido da gestação e da vivência do parto, não substituem e nem favorecem as possibilidades que existem na com-vivência e no com-partilhar que foram significados.

a gente sente essa energia, porque a gente participa junto com [...] Então.. se eu gosto de ser bem tratada e eu me identifiquei com essa filosofia (Enf. 16).

[...] de você estar junto da mulher nesse momento, junto da família (Enf. 18).

Ter paciência é pressupor e esperar que algo possa acontecer13. Tendo como referência a mulher, o cuidado de enfermeiras obstétricas se mostra como paciência. O cuidado paciente ao tomar a mulher no seu sendo parturiente, compreende-a como alguém que tem potencial para parir, sendo ela quem vai parir a partir dos seus recursos próprios e suficientes. Esta visada é justamente o que não tem pré-determinação por parte de quem acompanha à mulher em trabalho de parto na Casa de Parto. Assim, o cuidado-à-mulher-em-trabalho-de-parto-na-Casa-de-Parto demanda paciência.

Às vezes, elas estão chorando angustiadas, sentindo dor, você acha que ela tá parindo [...] e aí ela conta tudo, ela coloca tudo. E quando termina o atendimento ela sai boazinha, boazinha [...]. Eu acho isso fundamental no cuidado [...] eu priorizo sempre, muito, além da questão técnica [...] eu procuro muito me envolver (Enf. 6).

A solicitude é a primordial característica do cuidar, que, por sua vez, tem duas maneiras, a saber: a primeira é a sua maneira deficiente. Ela se dá quando alguém assume a tarefa do outro de cuidar de si mesmo, dominando-o. Nas palavras de Heidegger13:41 "saltar sobre o outro". Nessa maneira de solicitude, o outro está excluído do seu lugar e se torna dependente de quem cuida. Na instituição hospitalar denominada Maternidade a tradição da ciência obstétrica tem a tendência de determinar que as decisões sejam tomadas por membros da equipe de saúde. Em geral e, na maioria das vezes, as clientes das Maternidades são tomadas como gestantes numa visão de conjunto com essas ou aquelas características - grupo de baixo, médio e alto risco -; parturientes com indicação para parto vaginal, ou operatório; puérperas em alojamento conjunto. A tradição descreve o que é objeto de cuidado, na gestação, no parto e no puerpério nas suas diversas formas. Com procedimentos estabelecidos pelas evidências científicas, as mulheres são tomadas de maneira homogênea no processo assistencial. É possível compreender que nessa solicitude o outro pode se tornar dominado e dependente "mesmo que esta dominação seja, para ele, tácita, ou lhe permaneça oculta"13:41.

A outra maneira da solicitude é, ao invés de manipular o outro, "se 'antecipar' a ele"13:41. Nesse modo o que ocorre é um cuidado que favorece o desenvolvimento do outro que, voltando-se para si mesmo de modo autêntico, desvela suas próprias possibilidades. Heidegger distingue esse modo de solicitude como o cuidar autêntico. Esse modo de solicitude cuida para que o outro possa ser livre para si mesmo. Na Casa de Parto, cenário deste estudo, as enfermeiras obstétricas cuidam da mulher como sujeito e não como um objeto. Nesse cuidado, à maneira da solicitude, a mulher se torna clara para si mesma e se torna livre para viver sua gestação, parir a seu modo e ser-com-seu-filho no momento do nascimento. O ser-aí das enfermeiras mostra-se, na solicitude, ligado com seu ser no mundo do seu cuidado, ele sendo autêntico em relação a si mesmo. Essa autenticidade é possibilitada pela própria mulher que se mostra como fonte e como razão do cuidado. Entende-se que não há gestação sem concepto e não há parto sem parturiente.

O contato aqui é muito diferente. [...] aqui a gente tem a oportunidade, de, é, junto com a cliente, né, porque a gente favorece isso pra ela. De ela escolher quais são as tecnologias que ela vai usar, qual o tipo de parto que ela gostaria (Enf. 4).

O cuidado na Casa de Parto é diferente do cuidado que ocorre na Maternidade, cenário tradicional hospitalar, uma vez que só se dá a partir da mulher que se reconhece como ser de possibilidades. Compreende-se que ao longo do pré-natal a mulher vai se desvelando no relacionamento com a enfermeira. Nesse sentido, é possível conhecer a mulher e contar com suas potencialidades para gestar, parir e cuidar do próprio filho. Os contatos entre mulheres e enfermeiras não são estanques, existe uma continuidade, um movimento de acompanhamento ao longo do processo de viver a gestação, o parto, o nascimento e o com-viver-com-o-filho.

O primeiro contato com essas mulheres é na consulta de pré-natal... o meu cuidado é desenvolvido nessa... nesse transcorrer, nesses períodos que essa mulher vem até aqui (Enf. 2).

A gente assiste a mulher desde o pré-natal [...] em todos os momentos, desde o primeiro contato, até o último contato (Enf. 4).

Além disso, desde a história que antecede a chegada da mulher à Casa de Parto está a sua intenção de participar do cuidado desenvolvido ali, mesmo antes de vivenciá-lo. Ela tem alguma experiência sobre a Casa de Parto, considerando e sendo considerada por quem trabalha ali. Quando refletem sobre o seu cuidar, as enfermeiras também são ser-aí, o cuidado à mulher que dá à luz na Casa de Parto possibilita o ser-de-possibilidades da enfermeira.

CONCLUSÃO

O presente artigo tratou do fenômeno cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto David Capistrano Filho e, numa busca ciente das facetas desse fenômeno, desvelou como sua característica fundamental, a solicitude. Interpretando os depoimentos das 18 enfermeiras obstétricas foi possível compreender que o modo desta solicitude é o cuidado autêntico. Esta possibilidade se deu ao relacionarem-se os conceitos de consideração, paciência, proximidade, diálogo e atenção a partir da filosofia heideggeriana.

No cuidado autêntico de enfermeiras obstétricas à maneira da solicitude, a mulher se compreende livre vivendo sua gestação, seu parto e sendo-com-seu-filho no momento do nascimento. Dito de outro modo, ela conquista a si mesma. As enfermeiras também são livres no cuidado, se libertam do modo de cuidar da tradição obstétrica, sem negligenciar as necessidades fisiológicas dos processos corporais, se dedicam ao cuidado que tem origem na mulher e é construído em cada encontro com cada mulher que dá à luz na Casa de Parto.

Este cuidado toma todo vivido desde que a mulher chega à Casa de Parto e, vai além, considerando seu percurso de vida. Ao se relacionar, de maneira envolvente e significante com a enfermeira, o ser-mulher-que-dá-à-luz-na-Casa-de-Parto se abre ultrapassando o conteúdo do que possa ser registrado nos prontuários e formulários do pré-natal. Assim, considerando a mulher, as enfermeiras obstétricas também se abrem sendo-com-a-mulher no cuidado.

O cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto demanda paciência ou tolerância. As enfermeiras têm paciência por saberem que a mulher é capaz de atravessar a gestação com saúde, sendo também capaz de parir e cuidar do seu bebê. As enfermeiras aguardam, pacientemente, que a gestação se desenvolva e que o parto aconteça de acordo com a potencialidade que é há em cada mulher, enquanto ser de possibilidades.

Tanto as enfermeiras quanto a mulher dependem da conquista de si conferida por este cuidado. Isso porque o cuidado se dá na relação, a partir da mulher e compartilhado com ela. Vinculados à política pública de saúde, os manuais têm essa intencionalidade velada, porém não têm essa explicitação, por não trabalhar o como do cuidado, mas o seu o que.

O presente estudo participa da discussão sobre o direito do exercício profissional de enfermeiras na assistência ao parto e a qualidade da atenção prestada às usuárias no Rio de Janeiro, apontando a Casa de Parto David Capistrano Filho como um espaço de cuidado singular diferente do modelo hospitalar. O cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher que dá à luz na Casa de Parto é uma construção fundada no compartilhar, que envolve a enfermeira e a mulher num movimento existencial que favorece o cuidado autêntico.

REFERÊNCIAS

Lei nº 7.498 de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 26 jun 1986: Seção 1: 1.
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